Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12/14.7JAPTM.E2.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: IN DUBIO PRO REO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MAUS TRATOS
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO O RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA / PODERES DE COGNIÇÃO.
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL.
Doutrina:
-Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, p. 291 e 292.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, ALÍNEA F) E 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 77.º, N.ºS 1 E 2, 171.º, N.º 1, 172.º, N.º 1 E 177.º, N.º 1, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 07-05-2009, CJSTJ, ANO XVII, TOMO II, P. 193, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 12-11-2009, PROCESSO N.º 200/06.0JAPTM, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 16-12-2010, PROCESSO N.º 893/05.5GASXL, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 19-01-2011, PROCESSO N.º 421/07.8PCAMD, IN WWW.DGSI.PT;
-ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 5/2011, IN DR, SÉRIE I, DE 11-03-2011;
-DE 04-05-2011, PROCESSO N.º 626/08.4GAILH, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 26-10-2011, CJSTJ, ANO XIX, TOMO III, P. 198;
-DE 11-01-2012, PROCESSO N.º 158/08.0SVLSB, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 21-03-2012, PROCESSO N.º 303/09.9JDLSB, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 29-11-2012, PROCESSO N.º 862/11.6TAPFR.S1;
-DE 27-02-2014, PROCESSO N.º 798/12.3GCBNV.L1.S1;
-DE 20-03-2014, PROCESSO N.º 43/11.9JDLSB.L1.S1;
-DE 17-09-2014, PROCESSO N.º 595/12.6TASLV.E1.S1;
-DE 22-04-2015, PROCESSO N.º 45/13.0JASTB.L1.S1;
-DE 21-04-2016, PROCESSO N.º 657/13.JAPTR.P1.S1;
-DE 10-11-2016, PROCESSO N.º 1613/14.9PAALM.L1.S1.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:


-ACÓRDÃO N.º 04/2005;
-ACÓRDÃO N.º 208/2006;
-ACÓRDÃO N.º 186/2013.
Sumário : «No caso de os vários episódios de abuso sexual terem tido lugar num diverso contexto, sendo necessariamente comandados por diversas resoluções, há pluralidade de crimes, verificando-se em cada um dos momentos uma autónoma lesão do bem jurídico protegido».
Decisão Texto Integral:

                       Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

           O tribunal de 1ª instância, em formação colectiva, proferiu acórdão condenando o arguido AA a

            -5 anos de prisão, por cada um de 13 crimes de abuso sexual de crianças, agravados, p. e p. pelos artºs 171º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do CP;

            -5 anos de prisão, por cada um de 51 crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos artºs 172º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do mesmo diploma legal;

            -6 anos de prisão, pela prática de um crime da mesma previsão legal dos anteriores [aquele a que se refere o facto nº 10];

            -2 anos de prisão, pela prática de um crime de maus-tratos do artº 152º-A, nº 1, do CP; e, em cúmulo jurídico,

            -na pena única de 18 anos de prisão.

            Julgando recurso interposto pelo arguido, a Relação de Évora, por acórdão de 07/02/2017, alterou a decisão de 1ª instância, decidindo

            -modificar um ponto da decisão sobre matéria de facto e, em função disso, considerar que

                        -os crimes de abuso sexual de crianças, agravados, p. e p. pelos artºs 171º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do CP, foram apenas quatro, mantendo a pena de 5 anos de prisão, por cada um;

                     -os crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos artºs 172º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do CP, foram apenas doze, mantendo as penas de 6 anos de prisão, por aquele que é integrado pelo facto nº 10, e de 5 anos de prisão, por cada um dos restantes onze;

            -fixar em 13 anos de prisão a pena única.

            Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo nos termos que se transcrevem:

            «1. O arguido deveria ter sido condenado pela prática de um crime de trato sucessivo, fazendo-se a respectiva punição pelo ilícito mais grave.

2. O vínculo de filiação entre o arguido e a vítima foi estabelecido por sentença proferida em 09 de Janeiro de 2015, ou seja, em data muito posterior à dos ilícitos retratados nos autos.

3. Não constava da acusação, e não consta da decisão de facto proferida, factos que enformem a vertente subjectiva da circunstância qualificativa prevista no artigo 177º, nº 1, alínea a), do CP, não sendo adequado a suprir tal omissão, a motivação da decisão de facto quando refere que “ao praticar os factos dados como provados em 5 a 18 o arguido sabia, ou pelo menos representava, que o fazia sobre a sua filha”.

4. Não podia, assim, o arguido ter sido condenado pela prática dos crimes previstos e punidos nos artigos 171 º, nº 1 e 172º, nº 1, na sua forma agravada, por força da circunstância qualificativa prevista no artigo 177º, nº 1, alínea a), todos do Código Penal.

5. Atendendo às circunstâncias de vida e profissionais do arguido, à sua idade e à inexistência de antecedentes criminais, devem as penas parcelares, e a pena única, a aplicar situar-se próximo do limite mínimo da moldura abstracta, consubstanciando a pena de treze anos de prisão uma sanção excessiva.

6. Ao assim não decidir, não fez o tribunal a quo, com o devido respeito a melhor aplicação do disposto nos artigos 71º, 72º e 50º do Código Penal.

Por todo o exposto, e pelo mais que V. Exªs, doutamente, suprirão, deve o presente recurso proceder e em consequência ser revogado o acórdão recorrido e em sua substituição proferir-se decisão que decida nos moldes reclamados nas conclusões do presente recurso».  

           

            O recurso foi admitido.

Respondendo, o MP defendendo a absolvição do arguido, por aplicação do princípio in dúbio pro reo.

No Supremo, a senhora Procuradora-Geral-Adjunta foi de parecer que o recurso deve ser parcialmente provido.

Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.

Não foi requerida a realização de audiência.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação:

Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. Em Fevereiro de 1998, o Arguido manteve um relacionamento amoroso com BB, à data com 14 anos, da qual nasceu, em ...1998, CC.

2. Anos depois, o Arguido reaproximou-se de BB e, em data não concretamente apurada ele 2011, passaram a viver juntos, como se de marido e mulher se tratasse, no Bairro Municipal de ..., passando assim a integrar o agregado familiar da menor CC, até ao dia 24.01.2014, data em que o casal de separou.

3. Desse segundo período de relacionamento, em ...2012, nasceu outro filho, DD.

4. Desde o início do ano lectivo de 2012, que ocorreu entre 10 e 14 de Setembro, que CC não tinha aulas nas quartas-feiras à tarde, pelo que o Arguido, que estava desempregado, a ia buscar à escola.

5. Numa quarta-feira à tarde, em data não concretamente apurada mas ocorrida na segunda quinzena de Setembro de 2012, tinha CC 13 anos de idade, o Arguido, aproveitando-se do facto de estar sozinho em casa com a filha, chamou-a ao quarto que partilhava com a companheira, despiu-se, despiu a filha, deitou-a de costas na cama e começou a beijá-Ia e apalpá-Ia nas mamas e vagina e, com o pénis erecto, roçou-o na vagina da tilha para a frente e para trás, sem o introduzir no seu interior, até ejacular para cima da barriga desta.

6. A partir desse dia até finais Dezembro de 2013, em número de vezes não concretamente apuradas, mas no mínimo uma vez por mês, normalmente numa quarta-feira à tarde, o Arguido, aproveitando o facto de a companheira não estar em casa, chamava CC para o quarto do casal, tirava-lhe a roupa, deitava-a na cama, beijava e apalpava-lhe as mamas, lambia-lhe a vagina e roçava o seu pénis erecto, para a frente e para trás na vagina e ânus da menor, sem, contudo, o introduzir no seu interior, até ejacular em cima barriga ou costas da mesma.

7. O que chegou a acontecer na presença do filho DD.

8. Designadamente, durante a noite, em datas não concretamente apuradas, entre Setembro de 2012 e Dezembro de 2013, o Arguido, aproveitando-se do facto da companheira estar a dormir, entrou no quarto da filha, deitou-se na cama dela, despiu-a, apalpou-lhe e beijou-lhe as mamas, lambeu-lhe a vagina, roçando o seu pénis erecto na vagina e ânus, sem o introduzir no seu interior, até ejacular para a barriga ou costas da mesma, o que aconteceu em 3 ocasiões.

9. De igual modo o Arguido tentava introduzir o pénis erecto na vagina e no ânus da sua filha CC, dizendo que queria que a mesma perdesse a virgindade com ele, que não lhe iria doer e que iria gostar, o que esta recusou.

10. Numa ocasião, em data não concretamente apurada de Setembro de 2013, o Arguido colocou o pénis erecto dentro da boca de CC e, com a mão, empurrou-lhe a cabeça para baixo e para cima, friccionando assim o pénis até ejacular para fora da boca da filha.

11. Sempre que o Arguido agia da forma descrita em 5 a 10, a menor dizia que não queria, pedindo-lhe que o fizesse com a mãe ou com outras pessoas, ao que o Arguido lhe respondia que se gostava dele tinha de o fazer, bem como lhe prometia que seria a última vez.

12. De igual modo, o Arguido justificava a sua conduta com o facto da companheira, mãe da CC, se recusar a manter consigo relações sexuais.

13. O Arguido, sempre que CC o recusava e obstava aos seus intentos, mostrava-se aborrecido e brigava com ela e com a mãe.

14. Quando a menor dizia que ia contar à mãe, o Arguido dizia-lhe em tom sério "experimenta contar à mãe, vais ver o que te acontece", causando-lhe medo, conseguindo assim evitar que a mesma contasse o que ele lhe fazia.

15. Em data não concretamente apurada de Dezembro de 2013, durante a noite e enquanto CC dormia, o Arguido entrou no quarto da mesma, baixou os boxer que trazia vestidos até ao joelho, baixou as calças do pijama e cuecas da filha até ao joelho e roçou o pénis erecto no ânus daquela, que entretanto acordou e o empurrou.

16. Uma vez que desde finais Dezembro de 2013 que CC passou a recusar e obstar os contactos sexuais do Arguido com maior intensidade, logrando evitar os mesmos, este começou a ralhar com a mesma com mais frequência.

17. No dia 23.01.2014, em hora não concretamente apurada, quando se encontravam em casa, o Arguido desferiu chapadas na cara da menor.

18. Também no dia 24.01.2014, em hora não concretamente apurada, no interior do quarto da CC o Arguido desferiu-lhe pontapés e socos pelo corpo, encostou-a à secretária e deu-lhe chapadas na lace, o que fez diante do filho DD que, assustado, começou a chorar.

19. Como consequência directa e necessária dos pontapés, murros e chapadas que o Arguido lhe desferiu, CC sofreu dores e escoriação periorbital esquerda e no nariz, o que lhe determinou 5 dias de doença, sem afectação da capacidade escolar.

20. Ao agir da forma descrita, o Arguido quis e representou praticar actos sexuais de relevo com CC, sua filha, entre os 13 e 14 anos de idade daquela, com o propósito conseguido de satisfazer a sua lascívia, bem sabendo que a mesma não tinha capacidade para querer e entender o significado social dos actos nela praticados.

21. Sabia o Arguido que a menor, enquanto sua filha, estava entregue aos seus cuidados, protecção e educação, e ainda assim, aproveitando-se da sua superioridade física, ascendência e autoridade que exercia sobre a mesma, quis e representou, mediante os actos sexuais de relevo que praticou nela, obter prazer sexual, o que conseguiu, ciente da incapacidade de CC para se lhe opor.

22. Sabia o Arguido que os factos que praticou com a menor, cuja idade conhecia, prejudicavam um livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade daquela e bem assim afectavam a sua autodeterminação sexual, o que não o demoveu da sua conduta.

23. De igual modo, o Arguido ao dirigir-se à filha nos sobreditos termos e ao desferir-lhe socos, pontapés, murros e chapadas, agiu com o propósito conseguido de a maltratar, subjugando-a à sua vontade, o que fez no interior da casa de morada de família e diante do filho menor de idade, bem sabendo que a mesma era menor e estava entregue aos seus cuidados, protecção e educação.

24. Ao agir como agiu, o Arguido quis e representou exercer violência sobre o corpo da filha, ofendendo-a na sua saúde, bem como atingí-Ia na sua honra, consideração e dignidade como pessoa, humilhando-a, causando-lhe medo e inquietação e dessa forma provocar-lhe sofrimento físico e psicológico, o que conseguiu.

25. O Arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade de se motivar e determinar de acordo com esse conhecimento.

26. AA desde que se separou da última companheira, coincidentemente com a data da acusação em apreço, há dois anos atrás, tem vivido basicamente sozinho, à excepção de alguns períodos, como o presente em que tem consigo um irmão, de 51 anos, com problemas de saúde mental e alcoolismo.

Aparentemente é um individuo com recursos para uma vida auto-suficiente, assegurando razoáveis condições pela via do trabalho, ainda que se releve uma situação de emprego instável, ligado à prestação de serviços diversos de construção civil, por conta própria. No presente vive num apartamento arrendado na ....

27. Nos dois anos anteriores à data da acusação manteve vida em comum com BB. Com uma diferença de idades de 14 anos, o casal havia tido um curto período de relacionamentos íntimos na adolescência de BB, sem significativo envolvimento afectivo, do qual resultou a gravidez e nascimento da menor CC, sem que disso o Arguido tivesse tido informação na altura, porque se afastaram. Sequer esta jovem teve conhecimento desta realidade, tendo evoluído com a identificação de outro pai, até ao ressurgimento de AA nesta dinâmica relacional e esclarecimento oficial da ascendência biológica. O casal constituiu família na casa onde BB já vivia com a filha, no ..., vindo nesta altura a ocorrer o nascimento de mais um filho, ..., actualmente com 3 anos de idade.

28. Depois da separação, o Arguido vê-se impedido de se relacionar com os filhos, mesmo o DD, ao qual apenas cumpre o dever de alimentos, contactando apenas esporadicamente via telefone. Está ainda por regular o regime da participação educativa, além da contribuição pecuniária, dependendo do desfecho do presente processo.

29. AA provém de uma família numerosa, de fracas condições sócio-económicas, agravadas por um mau ambiente afectivo, atribuído à violência conjugal e alcoolismo por parte do pai, obrigando à separação do casal progenitor. Embora nascido na região de ..., com poucos anos regressou com a mãe e os irmãos para a ..., donde eram oriundos. Faz menção a uma vida sacrificada e experiências de vitimização, com o sentimento de ter passado uma infância infeliz. Refere que se viu obrigado a uma precoce autonomização e entrada no mundo do trabalho e dos adultos, sem ter prosseguido a escola além do 6° ano.

Foi mantendo actividade laboral basicamente ligada à construção civil. Há vários anos trabalha por conta própria na prestação de obras de remodelação/ manutenção a particulares.

30. Da vida afectiva-relacional há menção a múltiplas experiências de namoro/vida marital, quase sempre com um envolvimento pobre e o sentimento de ser enganado ou não ser devidamente reconhecido. Fruto da primeira relação foi pai de um filho, que conta agora 22 anos e que não foi criado consigo. Teve outras relações com mulheres que já tinham filhos, que não eram seus. Só voltou a ter a própria descendência com os dois filhos nascidos da relação com BB.

31. A ligação com a vítima identificada, até se ter reaproximado da mãe desta, volvidos 13 anos, era nula.

32. Da vida quotidiana familiar, designadamente por parte da companheira, BB, não resultavam sinais de preocupação e aparentemente não se alteraria a situação, não tora a detecção por parte de elementos externos de possíveis factos a fundamentar o presente processo. Em todo o caso, percepcionava-se uma relação pobre, com fraco conhecimento mútuo do casal e falta de intimidade, para além de uma notória falta de satisfação ao nível sexual, aceite e não desencadeadora de conflitos de maior.

33. Tem sido grande o impacto da acusação na sua vida, principalmente por ter sido determinante da separação e sobretudo impeditivo de uma normal relação com o filho mais novo. Face à vítima identificada, revela dificuldades em avaliar o dano na mesma, de quem apresenta uma visão pouco realista.

34. Já numa fase relativamente tardia da sua vida, com início de há 10 anos a esta parte, veio a manifestar tendências aditivas de abuso de cocaína, com períodos de abstinência e recurso a terapia especializada junto do DICAD. Refere que durante o tempo de vida em comum com BB não consumiu. mas depois da última separação e acusação tem tido recaída.

35. O Arguido apresenta um pensamento auto-centrado e atitudes apelativas, imaturidade/isolamento relacional, fraca vinculação nas relações sociais em geral, baixo sentido empático, em particular para com a vítima identificada e baixa resistência à frustração.

36. Do seu Certificado de Registo Criminal nada consta.

Conhecendo:

1. O MP na instância recorrida defendeu a absolvição do arguido, com fundamento no princípio in dúbio pro reo.

A alegação da violação desse princípio constitui, em certa perspectiva, uma verdadeira questão de direito: quando se pretende que da decisão recorrida resulta que o tribunal se deparou com uma dúvida insanável acerca da verificação de um ou mais factos, resolvendo-a contra o arguido. Mas no caso, não é essa a situação alegada nem a que se verifica. O que o MP diz é que, perante a prova produzida, o tribunal devia ter ficado na dúvida em relação à verificação dos factos e, em consequência, tê-los considerado não provados. Nessa alegação suscita-se uma pura questão de facto, que é a de saber se a prova produzida é ou não suficiente para dar como provados os factos, a qual, por isso, está fora dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artº 434º do CPP.

2. O recorrente, para além de questões relativas à determinação das penas, tema que será apreciado mais adiante, apresenta duas pretensões relacionadas com a qualificação jurídica dos factos. Por um lado, pretende que as condutas criminosas tidas na Relação como integradoras de cada um dos vários crimes pelos quais foi condenado integram um só crime; por outro, defende que se não verifica a agravação prevista no artº 177º, nº 1, alínea a), do CP.

 3. Como se viu, para além da alteração da medida da pena única, a Relação modificou a decisão de facto proferida pelo tribunal de 1ª instância. Esta última modificação refere-se ao nº 6 dos factos dados como provados.

O tribunal de 1ª instância descreveu esse nº 6 do modo seguinte: “A partir desse dia até finais Dezembro de 2013, em número de vezes não concretamente apuradas, mas que aconteceram quase semanalmente, por vezes mais do que uma vez por semana, em regra às quartas-feiras à tarde, o Arguido, aproveitando o facto de a companheira não estar em casa, chamava CC para o quarto do casal, tirava-lhe a roupa, deitava-a na cama, beijava e apalpava-lhe as mamas, lambia-lhe a vagina e roçava o seu pénis erecto, para a frente e para trás na vagina e ânus da menor, sem, contudo, o introduzir no seu interior, até ejacular em cima barriga ou costas da mesma”.

A Relação descreveu-o tal como se encontra transcrito no local próprio, ou seja: “A partir desse dia até finais Dezembro de 2013, em número de vezes não concretamente apuradas, mas no mínimo uma vez por mês, normalmente numa quarta-feira à tarde, o Arguido, aproveitando o facto de a companheira não estar em casa, chamava CC para o quarto do casal, tirava-lhe a roupa, deitava-a na cama, beijava e apalpava-lhe as mamas, lambia-lhe a vagina e roçava o seu pénis erecto, para a frente e para trás na vagina e ânus da menor, sem, contudo, o introduzir no seu interior, até ejacular em cima barriga ou costas da mesma”.

Assim, a Relação considerou provados menos episódios, e, consequentemente, reduziu de treze para quatro o número dos crimes de abuso sexual de crianças, agravados, p. e p. pelos artºs 171º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do CP, e de cinquenta e dois para doze o número dos crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos artºs 172º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do CP, mantendo as penas aplicadas por cada um em 1ª instância.

Nos termos do artº 400º, nº 1, alínea f), do CPP, «não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».

No caso de concurso de crimes, sendo pena aplicada tanto a pena singularmente imposta por cada crime como a pena única, a irrecorribilidade prevista naquela norma afere-se separadamente, por referência às penas singulares e à pena aplicada em cúmulo. É neste sentido que o Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo uniformemente. (cf., por exemplo, acórdãos de 07/05/2009, CJ, Acórdãos do STJ, Ano XVII, Tomo II, pág. 193; de 12/11/2009, proc. 200/06.0JAPTM; de 16/12/2010, proc. 893/05.5GASXL; de 19/01/2011, proc. 421/07.8PCAMD; de 04/05/2011, proc. 626/08.4GAILH; de 11/01/2012, proc. 158/08.0SVLSB; de 21/03/2012, proc. 303/09.9JDLSB, disponíveis em www.dgsi.pt; de 26/10/2011, CJ, Acórdãos do STJ, Ano XIX, Tomo III, pág. 198; de 27/02/2014, proc. 798/12.3GCBNV.L1.S1; e de 20/03/2014, proc. 43/11.9JDLSB.L1.S1, ambos da 5ª secção).

Outro entendimento nestes casos levaria a que, quando os vários crimes em concurso fossem apreciados na mesma decisão, poderiam ser reexaminadas em recurso as questões relativas aos ilícitos punidos singularmente com pena de prisão não superior a 8 anos, com confirmação da Relação, o que estaria vedado num caso idêntico de concurso de conhecimento superveniente em que cada crime houvesse sido julgado num diferente processo, sendo de questionar se aí não haveria violação do princípio da igualdade.

E o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 186/2013, do plenário, não viu nesta interpretação da norma desconformidade com preceitos constitucionais.

O acórdão da Relação é sem dúvida confirmatório da decisão de 1ª instância relativamente à condenação pelo crime de maus-tratos do artº 152º-A, nº 1, todos do CP, parte em que não foi introduzida qualquer alteração.

E como tal deve ser também considerado relativamente ao arguido na parte em que reduziu de treze para quatro o número dos crimes de abuso sexual de crianças, agravados dos artºs 171º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), e de cinquenta e dois para doze o número dos crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelos artºs 172º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea a), do CP, mantendo as penas aplicadas por cada um em 1ª instância.

Na verdade, o que fundamenta o seu direito de interpor recurso de uma decisão judicial é a circunstância de esta lhe ser desfavorável, como resulta do artº 401º, nº 1, alínea b), do CPP, que apenas lhe permite recorrer das «decisões contra ele proferidas» (fórmula que, conforme se decidiu no acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 5/2011, publicado no DR, série I, de 11/03/2011, já abrange o «interesse em agir» do nº 2). Ora, se o arguido houvesse sido condenado na Relação pelos 13 crimes de abuso sexual de crianças e pelos 52 crimes de abuso sexual de menor dependente, não podia recorrer, por força da disposição da alínea f) do nº 1 do artº 400º do CPP, mal se compreenderia que, à luz do apontado fundamento do direito de recorrer, lhe fosse permitido interpor recurso numa situação que lhe é mais favorável, em que a alteração introduzida pela Relação se traduziu unicamente na redução do número de crimes, sem repercussão nos pressupostos de determinação das penas singulares, que passaram a ser em menor número e, relativamente aos crimes que restaram, foram mantidas.

Trata-se de situação que vem sendo designada como de confirmação in melius.

Assim, e porque nenhum dos crimes foi punido com pena de prisão superior a 8 anos, se for confirmada a pluralidade de crimes, não se conhecerá de questões relativas a cada um.

4. Não está nessa situação a questão de saber se ocorre unidade ou pluralidade de crimes, que diz respeito ao conjunto dos factos.

Relativamente a esta matéria, pretende o recorrente que as condutas criminosas tidas na Relação como integradoras de cada um dos vários crimes pelos quais foi condenado integram um só crime, que designa de trato sucessivo, sendo a punição encontrada dentro da moldura penal correspondente à conduta mais grave, “já que os factos se caracterizam pela sua homogeneidade, identidade na sua forma de execução e proximidade temporal”.

           Essa argumentação não se aplica desde logo ao crime de maus-tratos, não se podendo dizer que entre a respectiva conduta e as demais houve “homogeneidade e identidade na forma de execução”, pois se trata de ilícito cujas condutas típicas são de diferente natureza.

           Se bem se percebe, o arguido pretende que, não estando afirmada nos factos a pluralidade de resoluções, se deve entender que houve uma só resolução criminosa.

Mas é ao contrário. Nada se afirmando sobre a unidade de resolução na decisão de facto e ocorrendo cada uma das condutas em diferente contexto, pelo menos temporal, está implícito que cada uma delas obedeceu a uma autónoma resolução. Como é, aliás próprio deste tipo de crimes. Qualquer propósito que o recorrente inicialmente tivesse de levar a cabo as condutas que realizou seria necessariamente vago e por isso não dispensaria a tomada da verdadeira resolução que veio a presidir a cada uma das concretas condutas perpetradas, designadamente a decisão sobre quando e onde agir.

Cada uma das várias condutas do arguido foi levada a cabo num diverso contexto, necessariamente comandada por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada uma dessas condutas não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente aos episódios descritos na decisão de facto, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes. Foi neste sentido que se pronunciou o relator deste em declaração de vencido, que se encontra transcrita na decisão recorrida e foi junta ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Justiça de 29/11/2012, proferido no proc. nº 862/11.6TAPFR.S1, numa situação paralela, em desacordo com a solução idêntica à proposta pelo recorrente. E decidiu este Supremo Tribunal em acórdãos de 10/11/2016, proc. nº 1613/14.9PAALM.L1.S1, com esta mesma formação de juízes; de 17/09/2014, proc. nº 595/12.6TASLV.E1.S1; de 22/04/2015, proc. nº 45/13.0JASTB.L1.S1; e de 21/04/2016, proc. nº 657/13.JAPTR.P1.S1, tendo-se considerado neste último:

 “Unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade. Na verdade, ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime”.

Não tem, pois, razão o recorrente nesta parte.

5. A questão relativa à verificação ou não da agravação prevista no artº 177º, nº 1, alínea a), do CP diz respeito a cada um dos crimes de cariz sexual, pelo que, em função da medida das penas singulares aplicadas e da confirmação da Relação, nos termos já referido em 3, não se conhece dela.

6. Resta a determinação da pena única.

Nos termos do nº 2 do artº 77º do CP, a moldura penal conjunta tem como limite máximo 25 anos de prisão, visto a soma das várias penas singulares atingir 83 anos, e como limite mínimo 6 anos de prisão, a medida da mais elevada dessas penas.

Na fixação da medida concreta da pena, como ensina Figueiredo Dias, devem ser tidos em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artº 71º – exigências gerais de culpa e prevenção – e o critério especial dado pelo nº 1 do artº 77º: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Sobre o modo de levar à prática estes critérios, diz este autor: “Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

Considera ainda que à questão de saber se “factores de medida das penas parcelares podem ou não, perante o princípio da proibição da dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta” se impõe, “em princípio”, uma resposta negativa. Mas faz notar que “aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá fundamento para invocar a proibição da dupla valoração” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, páginas 291 e 292).

O recorrente foi condenado nas penas de 6 anos de prisão, por um crime de abuso sexual de menor dependente, agravado, quinze penas de 5 anos de prisão, por crimes de abuso sexual de crianças e abuso sexual de menor dependente, agravados, e de 2 anos de prisão, por crime de maus-tratos, ou seja, penas cuja dimensão é média/alta, no que se refere às 16 primeiras, e baixa, no respeitante à última.

A gravidade global dos factos, que no caso se afere em função da medida das várias penas singulares, do seu número e da relação de grandeza em que se encontram entre si e cada uma delas com o máximo aplicável, com desconsideração das circunstâncias particulares relativas a cada crime, cuja sede de valoração é/foi a determinação da respectiva pena singular, é, no contexto da moldura do concurso, bem superior à média, tendo em conta que próximo da mais elevada, que determina o mínimo aplicável, se situam outras quinze e que, das dezassete envolvidas, só uma, a última, tem peso reduzido na soma de todas.

Daí que a culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao agente por esse conjunto, e a medida das exigências de prevenção geral se situem no mesmo plano, bem acima da média, permitindo aquela e impondo esta que a pena se fixe na zona intermédia da moldura aplicável.

No plano da prevenção especial, relevam negativamente o número elevado dos ilícitos, a sua natureza, o extenso período em que tiveram lugar e a insistência do arguido em os consumar, circunstâncias que reflectem predisposição para a prática de crimes contra a autodeterminação sexual, e positivamente a ausência de outras condenações e o apego ao trabalho, sinais de que será sensível à pena que lhe for aplicada. Devendo, no confronto entre esses factores de sentido contrário, atribuir-se maior peso aos negativos, restam ainda exigências de ressocialização com algum significado, a imporem que a pena se fixe acima do mínimo pedido pela prevenção geral.

Tudo ponderado, conclui-se que a pena única fixada na decisão recorrida, de 13 anos de prisão, situando-se muito aquém do ponto intermédio da moldura penal conjunta, não excede a medida permitida pela culpa nem a necessária à satisfação das finalidades da punição.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso.

O recorrente vai condenado a pagar as custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

                                               Lisboa, 01/06/2017

Manuel Braz (Relator)

Isabel São Marcos