Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3131/16.1T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: DIREITO LEGAL DE PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO DE PRÉDIO URBANO
ARRENDAMENTO PARA EXERCÍCIO DE PROFISSÃO LIBERAL
PRÉDIO NÃO SUJEITO A PROPRIEDADE HORIZONTAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / PACTOS DE PREFERÊNCIA / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS URBANOS / DIREITO DE PREFERÊNCIA / ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS URBANOS E ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS NÃO ABRANGIDOS NA SECÇÃO PRECEDENTE.
Doutrina:
- Agostinho Cardoso Guedes, O Direito de Preferência, p. 172-208;
- Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6.ª Edição, p. 314;
- Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2.ª Edição, p. 204;
- Laurinda Gemas et all., Arrendamento Urbano, p. 435;
- Maria Olinda Garcia, O Arrendamento Plural, Quadro Jurídico e Natureza Jurídica, p. 163;
- Menezes Cordeiro, A modernização do Direito português do arrendamento urbano, O Direito, 136º, II-III, p. 235-253;
- Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano, ROA 51º, Tomo I, p. 68 ; Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, III Volume, p. 254, 255, 261 e 262;
- Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3.ª Edição, p. 639 e 640 ; Manual de Arrendamento Urbano, 5.ª Edição, Volume II, p. 817;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II Volume, anot. 8 ao art. 47.º do RAU;
- Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 1.ª Edição, p. 247, nota 1.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 417.º, 1067.º, N.º 2, 1091.º, N.º 1, 1117.º E 1119.º.
DL N.º 63/77, DE 25 DE AGOSTO: - ARTIGOS 1.º E 2.º.
REGIME DE ARRENDAMENTO URBANO, APROVADO PELA DL Nº 321-B/90: - ARTIGO 47.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

- DE 17-12-1998, PROCESSO N.º 99B466, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 31-05-2007, PROCESSO N.º 07B1554;
- DE 20-10-2009, PROCESSO N.º 563/2001;
- DE 25-03-2010, PROCESSO N.º 5541/03, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-01-2012, PROCESSO N.º 72/2001;
- DE 29-09-2015, PROCESSO N.º 1555/08, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21-01-2016, PROCESSO N.º 9065/12, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 24-05-2018, PROCESSO N.º 1832/15.
Sumário :
I. Em face do art. 1091º do CC, na versão vigente em 2015, o arrendatário comercial de uma parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não goza do direito legal de preferência na venda do prédio, direito apenas reconhecido ao arrendatário de todo o prédio urbano ou fração autónoma do mesmo prédio objeto de venda ou de dação em cumprimento.

II. O facto de a proprietária do imóvel ter comunicado ao arrendatário o projeto de venda para efeitos de exercício do direito de preferência não é suficiente para constituir na esfera jurídica deste um direito de preferência com eficácia real que seja oponível ao terceiro adquirente.

Decisão Texto Integral:
I - AA intentou ação declarativa com processo comum contra

- BB

e

- CC - Soc. Imobiliária, Lda.

O A. alegou, em síntese, ser o único arrendatário do 2º andar esq. de um prédio urbano situado na R. …, em Lisboa, o qual fora dado de arrendamento em 1941, para o exercício de profissão liberal ou de comércio ou indústria.

Por carta recebida em 7-12-15 a 1ª R., proprietária do referido prédio, comunicou ao A. que iria vendê-lo à ora 2ª R., pelo preço de € 3.450.000,00, estando a escritura marcada para o dia 18-12-15, em escritório notarial que identificou. Uma vez que o A. tinha direito de preferência nos termos do art. 1091º do CC, comunicava-lhe os termos do negócio.

Ora, o A. escreveu à 1ª R., por carta de 14-12-15, exercendo o direito de preferência. Sucede que no dia e local aprazado para a realização da escritura a 1ª R., através do seu procurador, se recusou a reconhecer o direito do A., tendo celebrado a escritura de compra e venda com a ora 2ª R.

Em virtude dessa atuação o A. sofreu um prejuízo de € 3.577,84, correspondente a 80% dos honorários da senhora notária pela elaboração da escritura não concretizada e emissão de certificado de não outorga da escritura.

O A. terminou formulando o seguinte pedido:

a) Que se reconheça ao A. o direito de preferência sobre o prédio sito na R. …, nºs … a …, freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, inscrito na respetiva matriz predial sob o art. 1380 e descrito na CRP de Lisboa sob o nº 1…7 da freguesia de São Nicolau, substituindo-se à 2ª R. na escritura de compra e venda, mencionada no artigo 13º da p. i.;

b) Que sejam as RR. condenadas a entregar o referido prédio ao A., livre e desocupado, tal qual resulta da escritura pública, sem prejuízo dos contratos de arrendamento eventualmente existentes e em vigor à data;

c) Que seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que a 1ª ou 2ª R., vendedora e compradora, respetivamente, hajam feito a seu favor ou a favor de terceiros, nomeadamente pela 2ª R. em consequência da compra do referido prédio, designadamente o constante da apresentação nº 2818, de 18-12-15, bem como quaisquer outros que esta ou terceiros venham a fazer, sempre com todas as demais consequências que ao caso couberem;

d) Que seja a 1ª R. condenada a liquidar ao A. o montante de € 3.577,84, correspondente às despesas em que aquele incorreu pelo incumprimento da mesma e que correspondem a 80% dos honorários devidos à Notária pela não celebração do ato de compra e venda, e ainda pela obtenção do certificado de não outorga da escritura, com juros de mora à taxa legal aplicável desde a data da citação da 1ª R. até integral e efetivo pagamento.

Em 15-2-16 o A. juntou aos autos comprovativo do depósito, a favor do Estado, da quantia de € 3.450.000,00, efetuado por CC, S.A.., e DD - Imobiliária, S.A..

As RR. contestaram a ação separadamente, mas em termos idênticos, negando o direito de preferência reclamado pelo A., e arguiram, a título de exceção, a caducidade decorrente de não ter sido ele, mas outrem, a depositar o preço e bem assim a omissão do pagamento de IMI e imposto de selo. Alegaram ainda que o A. age em abuso de direito, atenta a desproporção existente entre o valor da divisão arrendada e a totalidade do prédio.

As RR. concluíram pela improcedência da ação e consequente absolvição do pedido.

A convite do tribunal o A. respondeu às exceções, pugnando pela sua improcedência.

Realizou-se audiência prévia e foi proferido saneador-sentença, no qual foi julgada improcedente a ação e absolvidas as RR. RR. dos pedidos.

O A. apelou da sentença e a Relação julgou parcialmente procedente a apelação, embora com um voto de vencido, condenando a 1ª R. apenas no pagamento da quantia de € 3.577,84, com juros de mora nos termos pedidos.

Recorreu o A., suscitando-se as seguintes questões essenciais:

- Existe ou não direito de preferência num caso em que o contrato de arrendamento urbano incide sobre uma parte de prédio urbano que não está constituído em regime de propriedade horizontal?

- O facto de o proprietário do prédio ter comunicado ao arrendatário de parte não autónoma o projeto de venda e de este ter declarado que pretendia exercer a preferência releva para efeitos de se atribuir consistência ao direito legal de preferência, na medida em que traduz violação do princípio da confiança gerado por aquela comunicação?

Houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II - Matéria de facto:

1. Por escritura pública outorgada em 11-11-41, lavrada no Cartório de EE, a fls. 66 vº do livro de notas nº 296-C, FF e seu marido GG deram de arrendamento a HH, II e JJ, o 2º andar Esq. do prédio urbano sito na R. …, nº …, Lisboa, freguesia de Santa Maria Maior (anteriormente S. Nicolau), inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art. 1…0 (anteriormente 1…5).

2. Ficou estipulado que o arrendamento teria o prazo de 8 meses, a contar de 1-1-41, supondo-se sucessivamente renovado por períodos de 6 meses, nos termos da legislação então em vigor (cláus. 1ª do contrato cuja cópia se encontra junta a fls. 12 a 25).

3. Foi ainda contratualmente fixado que a renda mensal seria de € 3,49 (anteriormente 700$00), devendo ser paga sempre antecipadamente, ao 1º dia útil do mês anterior aquele a que dissesse respeito (cláus. 2ª).

4. O uso do locado em causa seria para escritório de qualquer profissão liberal ou de qualquer comércio ou indústria (cláus. 3ª).

5. O A. por via da renúncia à respetiva posição contratual de HH e JJ, e por ter sucedido na posição contratual de II, é o atual e único arrendatário do sobredito local arrendado.

6. Encontra-se registada a propriedade da 1ª R., em virtude da partilha registada sob a Ap. 1 de 15.05.1978, ¼ do prédio sito na R. …, nºs …, …, …, …, …, … e …, de Lisboa, freguesia de Santa Maria Maior (anteriormente S. Nicolau), inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art. 1…0 (anteriormente 1…5) – cf. certidão junta a fls. 26 a 28.

7. Encontra-se registada pelas Ap. 4 e 7, a aquisição pela 1ª dos ¼ e ½ restante do referido imóvel, em 29-7-86 e 26/07/1988, respetivamente, imóvel que não se encontra constituído em regime de propriedade horizontal e é composto por lojas, 5 andares e sótão, com lados direito e esquerdo.

8. Por carta de 7-12-15, rececionada nessa mesma data, enviada pela 1ª R. ao A., a mesma informou o A. da intenção de vender à 2ª R. o prédio urbano sito na R. …, nºs … a …, supra descrito, nos termos constantes do doc. de fls. 29 a 31.

9. Nessa mesma comunicação, o mandatário da R. deu conhecer que:

(…)

As condições de venda são as seguintes:

I. O preço da venda é de € 3.450.000,00 (três milhões quatrocentos e cinquenta mil euros) a pagar no ato de celebração do contrato definitivo de compra e venda.

II. O prédio será vendido livre de ónus ou encargos.

III. As despesas com IMT, escritura e registo de transmissão a favor do comprador ficam a cargo deste.

IV. Encontram-se atualmente desocupados os seguintes andares: 2º direito, 3º esquerdo, 4º esquerdo, 5º esquerdo e mansardas.

V. O prédio é vendido no estado de conservação em que se encontra.

VI. Fica anexa à presente notificação a seguinte documentação: (….) A escritura será celebrada no dia 18 de Dezembro de 2015, às 12:00 horas, no Cartório Notarial da Notária KK, sito em Lisboa, na Av. …, nº …, 1º esquerdo. Na medida em que, nos termos do art. 1091º do Código Civil, V. Exa. enquanto inquilino, tem direito de preferência relativamente à venda acima referida, venho pela presente comunicar os termos do projetado negócio.”.

10. Na mesma carta constam identificados no ponto VI os arrendamentos existentes no prédio, em número de 9, além do A.

11. O A. por carta datada de 14-12-15, cuja cópia se encontra junta a fls. 32 e 33, veio exercer o seu direito de preferência, tendo assim reportado, além do mais, que:

«(…)

No que concerne à comunicação para o exercício do direito de preferência na alienação do prédio propriedade da sua constituinte D. BB, sito na Rua …, números … a …, freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Lisboa, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 1…0 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 1…7 da freguesia de São Nicolau, de cujo 2º esquerdo sou arrendatário, sou pela presente missiva a informar que pretendo exercer o direito de preferência na aquisição do referido imóvel.

Exercido que está o direito de preferência e obedecendo a compra e venda aos tempos, preço, prazos e condições referidas na vossa missiva de 07 de Dezembro de 2015, solicito o envio no máximo até ao dia 17 de Dezembro de 2015, dos seguintes documentos:

Certidão do registo predial;  

Caderneta predial urbana;  

Certificado energético;  

Licença de utilização ou comprovativo da sua dispensa por se tratar de prédio com construção anterior a 07 de Agosto de 1951;

Cópia dos últimos recibos de renda e das últimas cartas de atualização de renda;

Face ao exposto, aguardamos o envio dos documentos solicitados, dentro do prazo definido para o efeito, sendo que no dia 18 de Dezembro de 2015 às 12h estarei no Cartório Notarial de KK para a outorga da escritura pública de compra e venda. Mais solicito, que, para efeitos de liquidação de IMT e de IS me remetam a seguinte informação:

- Identificação da proprietária, onde se inclui o NIF;

- Estado Civil;

- Se casada o regime de casamento e o NIF do cônjuge;

Uma vez que a escritura é já dia 18 de Dezembro de 2015, solicito que o envio dos documentos supra referidos seja feito para o seguinte endereço de e-mail: …@gmail.com.».

12. A 1ª R não respondeu à comunicação do A. de 14-12-15.

13. Por escritura pública de compra e venda de 18-12-15, exarada no Cart. da Notária KK, a fls. 115 a 117 vº, do livro de notas nº 100, a aqui 1ª R., representada por procuradora substabelecida, vendeu à 2ª R., pelo preço de € 3.450.000,00, o prédio urbano supra identificado (cfr. doc. de fls. 39 a 46).

14. Na mesma data e hora agendadas para a escritura referida, o A. encontrava-se no Cart. Not. de KK, com vista a celebrar a escritura de compra e venda com a 1ª R., tendo esta recusado celebrar a escritura de compra e venda com o A. – cf. doc. de fls. 45 e 46.

15. O A. pagou de honorários devidos à Notária pela não celebração do ato de compra e venda e pela obtenção do certificado de não outorga da escritura o valor total de € 3.577,84 – cf. doc. de fls. 47.

16. O A., com data de 15-2-16, juntou aos autos cópia de um documento único de cobrança do IGFEJ no valor de € 3.450.000,00, tendo o pagamento de tal quantia sido feito pelo “LL Net Empresas”, a 12-2-16, efetuado por “CC, S.A.”, empresa “DD, S.A.” e cuja autorização figura como tendo sido de “MM” – cfr. doc. de fls. 59 e 60.

17. A 1ª R enviou carta idêntica à referida em 8. aos seguintes inquilinos: “NN, Lda”, “OO, Lda”, “PP, Lda”, “QQ, Lda”, RR e SS - cf. fls. 201 a 212.


III – Decidindo:

1. A resolução do litígio está essencialmente dependente da interpretação que se faça do art. 1091º do CC, na versão vigente em 2015, nos termos do qual “o arrendatário tem direito de preferência … na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de 3 anos”.

Em segundo lugar importa apreciar se o facto de a 1ª R. ter comunicado ao A. o projeto de venda para exercício do direito de preferência criou na esfera jurídica deste um direito de preferência com base no princípio da confiança.


2. Quanto à interpretação do art. 1091º do CC sobre o direito legal de preferência:

2.1. O contrato de que o A. é titular incide sobre o 2º andar esq. do prédio de que a 1ª R. era proprietária. Malgrado a notificação que lhe foi feita pela 1ª R. no sentido de exercer o direito de preferência nas condições que foram anunciadas, o prédio acabou por ser vendido à 2ª R.

A base da discórdia que suscitou a interposição da presente ação está no facto de o objeto da venda corresponder a um prédio (todo o prédio, naturalmente) não submetido ao regime de propriedade horizontal. Por esse motivo, ao local especificamente arrendado ao A. não correspondia qualquer fração autónoma.

Dir-se-á, desde já, que a resposta que será dada à primeira questão, depois de mais alongada justificação, passa pela confirmação do acórdão recorrido, tanto mais que o ora relator e o 1º adjunto subscreveram o Ac. do STJ de 21-1-16 – 9065/12, em www.dgsi.pt, no qual se discutia a mesma questão (ainda que em torno de contrato de arrendamento habitacional), tendo sido adotada a tese segundo a qual, em face do referido art. 1091º do CC, o arrendatário de uma parte não autónoma de prédio urbano não gozava do direito legal de preferência.

Tal ficou condensado no seguinte sumário:

“Na vigência do art. 1091º do CC, introduzido pela Lei nº 6/06, de 27-2, o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência, sobre a parte arrendada ou a totalidade, na compra e venda ou na dação em cumprimento desse mesmo prédio”.

 

2.2. Prescreve o art. 1091º do CC, na redação introduzida pela Lei nº 6/06, aplicável ao caso sub judice, que:

1. O arrendatário tem direito de preferência:

a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos; (…)

2. (…).

3. (…)

4. É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º do Código Civil”.

Os antecedentes legislativos do preceito encontram-se descritos naquele aresto (e também no acórdão recorrido) e dispensar-nos-emos de os reproduzir, bastando que nos foquemos na comparação com os antecedentes mais recentes.

Recuando ao que dispunha o art. 1117º do CC, na sua versão original, para o contrato de arrendamento comercial (e que era aplicável também aos arrendamentos para o exercício de profissão liberal, nos termos do art. 1119º), nele se previa que:

1. Na venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio arrendado, os arrendatários que nele exerçam o comércio ou indústria há mais de um ano têm direito de preferência, sucessivamente e por ordem decrescente das rendas.

2. É aplicável, neste caso, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º

3. …

4. Sendo dois ou mais os preferentes, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.”

Não abarcava tal regime os arrendamentos com fim habitacional relativamente aos quais, numa era em que se pretendeu reforçar os direitos dos arrendatários, acabou por ser introduzida uma medida de cariz semelhante pelo DL nº 63/77, de 25-8, em cujo art. 1º se previa que:

1. O locatário habitacional de imóvel urbano tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo.

2. O locatário habitacional de fração autónoma de imóvel urbano também goza do direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento da respetiva fração”.

Prescrevia ainda o art. 2º deste último diploma que:

1. Quando mais de um locatário habitacional exercer o direito de preferência, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.

2. Quando num imóvel existirem um ou mais locatários habitacionais e um ou outros de diferente natureza, também com direito de preferência, proceder-se-á nos termos do número anterior”.

Para completar este breve excurso legislativo, importa ainda transcrever o que passou a dispor o art. 47º do DL nº 321-B/90 (Regime de Arrendamento Urbano que precedeu o atual NRAU):

 “1. O arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano

2. Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante”.


2.3. Posto que fosse discutível a interpretação de qualquer das normas que precederam o art. 1091º do CC, quando se tratava de integrar situações, como a presente, em que o direito de preferência era invocado por titular de contrato de arrendamento de parte não autónoma de prédio urbano, nos casos em que a venda abarcasse todo o prédio criou-se uma forte corrente jurisprudencial e doutrinal no sentido de reconhecer ao arrendatário o direito de preferência relativamente à venda de todo o prédio.

Ainda que não houvesse unanimidade, a jurisprudência deste Supremo seguiu esta linha interpretativa, como o demonstram alguns arestos, privilegiando os mais recentes:

- Ac. de 20-10-09, 563/2001:

A arrendatária habitacional de parte de um prédio urbano não subordinado ao regime da propriedade horizontal pode exercer preferência legal, nos termos do art. 47º do RAU, em caso de venda do prédio.

- Ac. de 31-5-07, 07B1554:

Não estando constituída a propriedade horizontal, o arrendatário de parte de um prédio pode exercer o direito de preferência em relação a todo o imóvel. Tudo depende de o local arredando ter ou não autonomia material ou jurídica em relação à restante parte do prédio. Se tiver esta autonomia, a preferência incidirá apenas sobre a parte arrendada. Se não tiver, a preferência poderá incidir sobre a totalidade do prédio.

- Ac. de 12-1-12, 72/2001:

Nem do preâmbulo do DL nº 321-A/90, nem dos trabalhos preparatórios do mesmo se pode retirar ter sido intenção do legislador afastar o direito de preferência do locatário habitacional na compra e venda de todo o imóvel não constituído em regime de propriedade horizontal; pode impressionar o facto de o legislador ter utilizado a expressão “local arrendado”, só que tal expressão não é sinónimo de andar arrendado, mas de todo o imóvel onde o arrendamento se situa.

Se o legislador tinha intenção de restringir a preferência aos casos de compra e venda de prédio constituído em propriedade horizontal devia tê-lo dito no art. 47º do RAU; não o tendo feito não pode a interpretação restringir com base em expressões de alcance dúbio.

Assim, o direito de preferência existe para a fração autónoma arrendada, no caso de o prédio estar constituído em propriedade horizontal, ou para todo o imóvel se este não estiver legalmente parcelado a preferência não pode incidir, apenas sobre a parte arrendada, não sendo de interpretar restritivamente o art. 47º, nº 1, do RAU.

No mesmo sentido cf. ainda os Acs. do STJ de 25-3-10, 5541/03 e de 29-9-15, 1555/08, todos em www.dgsi.pt.

Assim era também na doutrina, sendo disso exemplo as opiniões emitidas por Pires de Lima/Antunes Varela, CC anot., II vol., anot. 8 ao art. 47º do RAU, Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6ª ed. p. 314, Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª ed., pp. 639 e 640, Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 1ª ed., p. 247, nota 1, ou Agostinho Cardoso Guedes, O Direito de Preferência, pp. 172-208.

Nos argumentos expostos era realçada a finalidade de a preferência legal concretizar a política de acesso à habitação própria ou ao espaço próprio para o exercício de atividade comercial ou industrial ou profissão liberal, encontrando esse objetivo sustentação no facto de estar consagrado um mecanismo de licitação para ser usado se acaso se apresentassem a exercer a preferência diversos interessados colocados no mesmo plano preferencial.

Não se justificando o recurso a este mecanismo nos casos em que o prédio em venda estivesse onerado com diversos contratos de arrendamento mas que incidiam sobre frações autónomas, a justificação para a previsão específica de um mecanismo de licitação apenas faria sentido quando aplicada a arrendatários de partes de prédios não constituídos em propriedade horizontal (ou seja, de arrendamentos sobre espaços não autónomos de prédios urbanos) cada um titular de direito de preferência legal relativamente à totalidade do prédio.


2.4. Pese embora as objeções que alguma jurisprudência e doutrina expressavam relativamente a tal solução (cf. o Ac. de 17-12-98, 99B466, em www.dgsi.pt, Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2ª ed. p. 204 ou Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano, na ROA 51º, t. I, p. 68, e em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, III vol., p. 255), não haveria motivos para inverter aquela tendência maioritária se acaso não tivessem sido introduzidas entretanto relevantes alterações no texto legal regulador do direito de preferência do arrendatário.

Ora, tanto o confronto isolado com o atual preceito (art. 1091º do CC), como a comparação com o texto anterior (art. 47º do RAU) levam-nos a concluir que o direito de preferência apenas se constitui na esfera jurídica do arrendatário quando o contrato de arrendamento abarca todo o prédio, estando excluído em casos, como o presente, em que incide sobre uma parte do prédio não submetido ao regime da propriedade horizontal.

Na verdade, é quando existe venda do “local arrendado há mais de 3 anos” que se cria na esfera jurídica do titular de contrato de arrendamento urbano o direito de preempção ou de preferência sobre esse local, situação bem diversa dos casos em que o arrendamento incide sobre uma parcela não autonomizada de prédio urbano e que, isoladamente considerada, não é suscetível sequer de ser objeto de contrato de compra e venda.

Algum significado se há de atribuir, pois, ao facto de o legislador ter introduzido uma modificação no texto legal, num contexto em que, para além de se discutir a própria admissibilidade de preferências legais em sede de arrendamento urbano, eram conhecidas as divergências doutrinárias e jurisprudenciais em torno da questão.

Esta foi, aliás, a tese adotada no já citado Ac. do STJ de 21-1-16, com intervenção do ora relator e do 1º adjunto, e desde então os argumentos que foram terçados não justificam qualquer modificação da posição então assumida. Pelo contrário, podemos arrolar alguns argumentos que acabam por servir de reforço a essa tese.


2.5. Desde logo, há que pôr em evidência que essa solução foi recentemente confirmada pelo Ac. do STJ de 24-5-18, 1832/15, de cujo sumário consta que:

“Atento o teor do art. 1091º, nº 1, al. a), do CC, o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado;

O arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada”

Aquele resultado, correspondendo ao que, noutro contexto, foi defendido por Oliveira Ascensão (v.g. em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles, vol. III, p. 254), é advogado também, em face do novo preceito, por Menezes Cordeiro, em Leis do Arrendamento Urbano anot., onde refere, além do mais, que “o RAU de 1990 (art. 47º) limitou a preferência à venda do «local arrendado», locução mantida pela Lei 6/06 vertida no art. 1091º, hoje em vigor. Ora, devemos presumir que o legislador escolheu as suas palavras com critério, dizendo o que quis dizer: designadamente o de 2006 que já conhecia o alcance prático da polémica”. Acrescenta ainda, referindo-se ao elemento teleológico, que “a lei, ao atribuir a preferência ao arrendatário visou facultar-lhe o acesso à habitação ou a instalações próprias, podo termo ao arrendamento. Ora, admitir a preferência no mercado, dando uma vantagem ao arrendatário transcende o fim da lei. Transformar o inquilino de um fogo em dono do prédio (só) porque este não estava em propriedade horizontal, é uma operação de todo fora do objetivo legal que apenas visaria lucrativos negócios imobiliários” (p. 262). Noutro passo, atribuindo relevo ao elemento histórico, o mesmo autor aduz ainda que o RAU de 2004 pretendeu pôs cobro às preferências dos arrendatários, tendo em conta o uso meramente especulativo que estaria associado a situações vinculísticas, como ocorria com o contrato de arrendamento (p. 261).

Caminho semelhante é seguido por Laurinda Gemas et all., em Arrendamento Urbano, p. 435, ou por Maria Olinda Garcia, em O Arrendamento Plural. Quadro Jurídico e Natureza Jurídica, p. 163, aludindo-se em ambas as obras ao princípio da coincidência entre o objeto do locado e o objeto da compra e venda (contra Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, 5ª ed., vol. II, p. 817).

Saliente-se ainda que os arestos do STJ que o recorrente menciona em aparente sentido contrário abordaram casos em torno da aplicação do regime anterior e não daquele que emerge do art. 1091º do CC.


2.6. O NRAU não eliminou a preferência do arrendatário na alienação do arrendado, continuando a prevê-la no art. 1091º do CC, ainda que lhe tenha imposto restrições, como seja a decorrente do prolongamento (de um ano para três anos) da duração do arrendamento para a concessão da preferência, ao mesmo tempo que, num sentido oposto, alargou o regime do direito de preferência legal a arrendamentos que anteriormente dele não beneficiavam, como ocorre com os arrendamentos de prédios para duração limitada e arrendamentos para fins limitados.

Na mesma linha, a determinação legal do objeto da preferência fixou-se, como se salientou, no “local arrendado”, abandonando-se a referência ao “prédio urbano” ou a “sua fração autónoma” e, mais ainda, desaparecendo a norma que resolvia o litígio decorrente da frequente concorrência, na preferência, entre arrendatários de partes não autónomas de prédio não constituído em propriedade horizontal.

O legislador utilizou a expressão “local arrendado” no art. 1067º do CC, a respeito do “fim do contrato”, estabelecendo no nº 2 que “quando nada se estipule o local arrendado pode ser gozado no âmbito das suas aptidões”: aqui, é igualmente claro que o “local arrendado” é o objeto físico do contrato de arrendamento, como também já entendido naquele artigo.

Portanto, o sentido a extrair do disposto no art. 1091º, nº 1, do CC, na versão vigente em 2015, é o de que o direito de preferência do arrendatário está limitado ao local arrendado, objeto do contrato de arrendamento, se se tratar de bem jurídico autónomo; caso o prédio vendido não tenha sido constituído em propriedade horizontal, o arrendatário de parte dele, sem autonomia jurídica, não tem direito de preferência nem sobre essa parte (sem autonomia jurídica), nem sobre a totalidade do prédio, em caso de venda ou dação em cumprimento deste último.

O direcionamento da preferência para a alienação do “local arrendado” (elemento gramatical) e a simultânea eliminação da regra cuja aplicabilidade pressupunha a concorrência da preferência de arrendatários de partes não autónomas de prédio não constituído em propriedade horizontal, levaram a maioria da doutrina e a jurisprudência maia recente a considerar que o legislador pretendeu restringir o direito de preferência a titulares de arrendamentos cujo objeto coincidisse com o da alienação.

O facto de o obrigado à preferência, no caso de venda de diversos prédios ou de frações autónomas, ter de se sujeitar ao mecanismo do art. 417º do CC, que permite definir um valor para o prédio ou fração que esteja arrendada não contraria o que se disse anteriormente.

O legislador manteve a solução tradicional, que, em virtude da natureza dos bens alvo da preferência e da transação acordada (coisas juridicamente autónomas), dá ao obrigado à preferência e ao preferente a possibilidade de modelarem o exercício da preferência. Já a eliminação do preceito que regulava a (frequente) concorrência na preferência entre arrendatários de partes diversas de prédio não submetido à propriedade horizontal, significa que, para o legislador, desapareceu o problema que estava vocacionado para resolver.


2.7. A referida solução encontra três reforços que têm a sua base no plano legislativo.

a) O NRAU teve como precedente legislativo mais imediato a Proposta de Lei n.º 140/IX (“Ante-projecto de decreto-lei autorizado que aprova o regime dos novos arrendamentos urbanos”, no DAR, II série A, n.º 5/IX/3, suplemento de 30-9-04), o qual continha um preceito que pretendia eliminar pura e simplesmente o direito de preferência dos arrendatários na alienação dos prédios arrendados.

Nos termos do anexo a essa Proposta de Lei, o art. 1096º do CC passaria a ter a seguinte redação: “nos arrendamentos urbanos regidos pela presente secção, nenhuma das partes tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do direito da outra, salvo preceito expresso em contrário.”, objetivo que, segundo a justificação, corresponderia a “uma velha aspiração destinada a libertar a riqueza imobiliária, permitindo a transparência requerida pela efetividade de um mercado.”

Como se refere no acórdão recorrido, Menezes Cordeiro, impulsionador de tal projetada reforma, explicitou o seu entendimento, no artigo “A modernização do Direito português do arrendamento urbano”, em O Direito, 136º, II-III, pp. 235-253, do seguinte modo: “muito importante é o desaparecimento da apertada teia de preferências, antes existente – 1096º. Desde o período liberal, são pacíficos os inconvenientes dos gravames que recaem sobre a propriedade. Meros sobrecustos não produtivos, as preferências exprimiam-se por abundante litigiosidade, complicando os negócios e entravando a livre circulação da propriedade.” (p. 251).

É este antecedente que explica de algum modo a razão de ser que esteve subjacente à modificação do texto legal, a qual, sem abolir por completo o direito de preferência, procurou contrariar o sentido que a jurisprudência e a doutrina maioritárias extraíam do regime anterior.


b) O segundo e principal argumento assenta no art. 7º, nº 3, da Lei nº 42/17, de 14-6, nos termos do qual “os arrendatários de imóvel em que esteja situado estabelecimento ou entidade reconhecidos como de interesse histórico e cultural ou social local gozam de direito de preferência nas transmissões onerosas de imóveis, ou partes de imóveis, nos quais se encontrem instalados, nos termos da legislação em vigor”.

Este diploma foi aprovado já depois de ter sido interposta a presente ação, mas deixa bem evidente a necessidade que foi sentida de assegurar uma tutela específica para os arrendamentos que apresentam as especificidades previstas na citada norma, diferenciando-a da tutela geral que é alcançada pelo regime do direito legal de preferência regulado no art. 1091º do CC.

Com tal medida o legislador procurou prosseguir o objetivo de tutelar especificamente as chamadas “lojas históricas” que naturalmente, na maior parte dos casos, estão instaladas em edifícios situados nos grandes centros urbanos sobre os quais ainda não incide ou não pode incidir (por falta dos requisitos legais mínimos) o regime da propriedade horizontal.

Com a previsão de um direito de preferência cujo objeto acaba por ser mais extenso do que o local físico sobre que incide o arrendamento o legislador procurou evitar que, através da venda do prédio a terceiros, se operasse indiretamente a extinção das atividades que, tendo valor histórico cultural ou social local, deverão ser preservadas. Deste modo, contrabalançou os efeitos que o incremento de negócios imobiliários (que em alguns casos atinge proporções de uma verdadeira “bolha imobiliária”) vem provocando no mercado de arrendamento urbano tradicional.


c) Importa ainda anotar uma outra intervenção legislativa que nesta data ainda está em curso, mas cujo relevo para o caso nos parece desde já manifesto, sendo reveladora de que a versão do art. 1091º do CC que foi introduzida pela Lei nº 6/06, com o sentido que anteriormente foi enunciado, não satisfaz plenamente os interesses dos titulares de contratos de arrendamento com fim habitacional que incidem sobre espaços não autónomos de prédios urbanos.

Na sessão de 18-7-18 da Assembleia da República foi aprovada uma Lei (Decreto nº 233/XIII) na sequência de uma iniciativa parlamentar que preconizava o “aprimoramento do exercício do direito de preferência pelos arrendatários” (Projeto de Lei nº 848/XIII/3ª) e que com aquela aprovação pretendeu transformar-se em diploma que “garante o exercício do direito de preferência pelos arrendatários”.

Segundo tal iniciativa, o art. 1091º do CC passaria a ter a seguinte redação:

“1. O arrendatário tem direito de preferência na compra e venda … do local arrendado, ainda que inserido em prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal …”.

E segundo o nº 8, “sem prejuízo do previsto no nº 10, se o local arrendado objeto do exercício do direito de preferência … se inserir em edifício não sujeito ao regime da propriedade horizontal e caso não tenha sido entretanto requerida junto da entidade competente a constituição da propriedade horizontal, nos termos dos arts. 1417º e ss., deve o preferente, no prazo de 180 dias a contar da data da compra do local arrendado, propor ação judicial de divisão de coisa comum …”.

Com tal medida pretendia-se estabelecer a possibilidade de naqueles casos de prédios não constituídos em propriedade horizontal ser exercida a preferência sobre o local arrendado, para o que se tornaria necessária uma operação jurídica complementar de divisão de coisa comum, com estabelecimento do regime de propriedade horizontal que permitisse a autonomização do local arrendado como fração autónoma.

Foi, no entanto, recusada a sua promulgação pelo Presidente da República com os fundamentos descritos na mensagem publicada no DAR II Série-A, nº 151.

Na sequência e com o objetivo de serem introduzidas melhorias do texto legal, o referido diploma foi sujeito a nova discussão de que resultou a aprovação de um novo texto constante do Decreto nº 248/XIII que se encontra publicado no Diário da Assembleia da República de 9-10-18 e que, no essencial, traduz o seguinte:

I - Previsão do direito de preferência para os arrendatários de prédios urbanos há mais de 2 anos;

II - No caso de venda de coisa juntamente com outras deve o obrigado à preferência indicar o preço que é atribuído ao locado;

III - No caso de contrato de arrendamento para fim habitacional relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:

- O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;

- A comunicação prevista no n.º 1 do art. 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;

- A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado;

- Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.

Efetivamente, na parte que releva para a fundamentação deste aresto, consta de tal diploma (que na presente data – 18-10-2018 - ainda não está em vigor, estando correndo o processo de promulgação), o seguinte:

“…

8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:

a) O direito é relativo à quota parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota parte face ao valor total da transmissão;

b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;

c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota parte do prédio a que corresponde o locado.

9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.”


2.8. Neste contexto, para além de não haver motivos que determinem uma inversão do resultado que foi assumido pelo ora relator e pelo 1º adjunto no Ac. deste STJ de 21-1-16, os demais argumentos de ordem doutrinal e jurisprudencial, associados aos posteriores desenvolvimentos legislativos, acabam por reforçar aquele entendimento segundo o qual, em face do art. 1091º do CC, na versão vigente em 2015, não existe direito de preferência legal nos casos em que o arrendamento urbano incide sobre parte não autónoma de prédio.

Com efeito, como ficou dito no referido aresto de 21-1-16:

“A consagração do direito de preferência do arrendatário na compra e venda do local arrendado sugere, só por si, que o legislador teve em vista o locado e não também o prédio urbano indiviso que o abrange mas nele não se esgota.

É indefensável o alargamento do local arrendado ao prédio onde se insere o locado porque a parte sobrante não foi objeto do arrendamento e não se pode considerar arrendado; já o local poderá ter maior ou menor extensão física, comportando tanto o andar, a garagem, ou o prédio.

Não oferece ambiguidade ou polissemia a expressão empregue pelo legislador; local arrendado é, repete-se, o exato espaço que as partes acordaram ser objeto do arrendamento: nem mais, nem menos.


O texto do nº 1 do art. 1091º tem, por aqui e desde já, a função negativa de eliminar o sentido de o local arrendado abranger, não apenas o andar, também o prédio que não foi objeto do contrato de arrendamento; e, tem a função positiva de, comportando um só sentido – o de que local arrendado é o locado contratualmente definido – ser esse o sentido da norma”.

Na verdade, se o direito de preferência nasce do direito de arrendamento e se se justifica na relação próxima (tendencialmente duradoura) entre o arrendatário e a coisa locada, afigura-se ajustado, equilibrado e proporcional que o primeiro não suplante o segundo quanto ao objeto e antes haja rigorosa identidade entre a extensão da coisa locada e a da coisa preferida.


2.9. Os preceitos que consagram direitos de preferência legal, atento o seu caráter excecional, não consentem o seu alargamento a situações que dela não resultem claramente, tanto mais que se trata de direito real de aquisição, com eficácia erga omnes e que nem sequer está sujeito a registo.

O facto de o arrendamento urbano, designadamente o arrendamento para o exercício de comércio ou de profissão liberal, ter vindo a perder paulatinamente os aspetos vinculísticos que o caracterizaram durante as precedentes décadas, com os efeitos que se mostraram bem visíveis no abandono do parque imobiliário e no financiamento de atividades privadas à custa das restrições dos direitos dos proprietários, é coerente com a restrição ao direito de preferência em casos, como o presente, em que o contrato de arrendamento apenas incide sobre uma parte não autónoma de prédio não constituído no regime de propriedade horizontal.

Ainda que o direito de preferência se exerça tanto por tanto relativamente às condições em que o proprietário se propõe vender a terceiro o prédio, a proliferação de direitos legais de preferência como aquele que é reivindicado pelo A. não deixa de perturbar o livre funcionamento do mercado.

Ora, não é compatível com aquela evolução legislativa que vem na senda da maior liberalização do mercado de arrendamento a manutenção de vínculos de natureza real como o direito legal de preferência em tais situações que, levadas ao extremo, levariam a que, por exemplo, o arrendatário de uma garagem ou até de um espaço de parqueamento de veículo (tipo box) num prédio urbano não constituído em propriedade horizontal pudesse, por esse simples facto, interferir na liberdade de comercialização do direito de propriedade de todo o prédio.

E se porventura não devem ser merecedores de proteção especial os objetivos de natureza especulativa que muitas vezes estão subjacentes a este tipo de negócios (tendo, ainda assim, como contributo positivo a recuperação de imóveis degradados que, na sequência da Lei nº 6/06, se mostra bem visível nos centros urbanos das principais cidades), também devem ser desconsiderados com o mesmo ênfase objetivos de natureza semelhante que estão frequentemente associados a situações em que arrendatários de prédios urbanos no sentido se apresentam a exercer a preferência como passo necessário para a posterior revenda a terceiros, como as circunstâncias do caso bem o demonstram.


2.10. Por conseguinte improcede a pretensão do A. no sentido de lhe ser reconhecido um direito legal de preferência em face do atual art. 1091º do CC.


3. Quanto à constituição do direito legal de preferência a partir do princípio da confiança gerado na esfera do A.:


3.1. Está essencialmente provado que no dia 7-12-15 o A, recebeu uma carta da 1ª R. informando-o da sua intenção de vender à 2ª R. o prédio urbano a que pertence o espaço que ao A. está arrendado e comunicando-lhe ainda as condições essenciais da venda, designadamente o preço, a situação dos demais andares arrendados e a data da escritura pública de compra e venda, terminando com a indicação de que “na medida em que, nos termos do art. 1091º do CC, V. Exª, enquanto inquilino, tem direito de preferência relativamente à venda acima referida, venho pela presente comunicar os termos do projetado negócio”.

Por carta datada de 14-12-15, o A. veio exercer o seu direito de preferência, respondendo, além do mais que “…pretendo exercer o direito de preferência na aquisição do referido imóvel” e que aguardaria os documentos solicitados, dentro do prazo definido para o efeito, sendo que no dia 18-12-15 às 12 h estarei no Cartório Notarial de KK para a outorga da escritura pública de compra e venda”.

Todavia, a 1ª R. não espondeu à comunicação do A. e no dia aprazado vendeu o prédio à 2ª R., recusando a venda ao A. que se encontrava no Cartório Notarial.

A atuação da 1ª R. determinou que o A. tivesse de suportar honorários notariais no valor de € 3.577,84.


3.2. O efeito que o A. pretende de se substituir à 2ª R. na aquisição do direito de propriedade do prédio é sustentado na figura do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, alegação cujo resultado sinuoso não encontra sustentação legal.

O argumento principal que se pode invocar para rebater in limine tal pretensão assenta no facto de a mesma se projetar unicamente na esfera jurídica da R. que, ao menos aparentemente, é alheia ao relacionamento contratual que existiu entre o A. e a 1ª R., tal como lhe é estranha a atuação pré-negocial que foi empreendida entre a 1ª R. e o A.

Não se antolha efetivamente que motivos – quer específicos, quer assentes na figura de contornos imprecisos do abuso de direito – poderiam levar a sobrepor ao direito de propriedade legitimamente adquirido pela 2ª R. a posição jurídica do A. sustentada tão só naquela comunicação, na subsequente resposta do A. e na recusa de contratação assumida pela 1ª R. Dificuldades tanto maiores quando se constata que o direito legal de preferência constitui um direito de natureza real que confere ao seu titular o direito de se substituir ao adquirente.

Direitos desta natureza terão de assentar em pressupostos mais fortes, de natureza objetiva, e não tanto em meras atuações dos sujeitos no âmbito de relações preliminares à concretização de qualquer negócio. Pela sua própria natureza um direito real de aquisição, com eficácia erga omnes, deve ser sustentado numa situação jurídica que ao mesmo conduza e não tanto na avaliação de aspetos de natureza meramente subjetiva, tanto mais que se trata de direito real que nem sequer está sujeito a registo que permita acautelar terceiros.

Independentemente da qualificação da situação jurídica decorrente da troca de comunicações que ocorreu entre os sujeitos como proposta e aceitação negocial, contrato-promessa de compra e venda ou simplesmente segundo as regras da responsabilidade pré-contratual, nenhum motivo existe que permita extrair algum efeito vinculativo para a 2ª R. que é terceira em relação a tais contactos ou negociações.

Na alegação que o A. faz para justificar a sua pretensão apenas são apontados factos e argumentos que comprometem a 1ª R., mas que são totalmente estranhos à 2ª R. que é quem, na realidade, veria a sua posição jurídica prejudicada pela substituição que porventura se operasse por via do reconhecimento de um direito de preferência constituído por uma via atípica que nem sequer encontra sustentação nas regras do arrendamento urbano.


3.3. No caso concreto, como se diz no acórdão recorrido, é inegável que a 1ª R. criou no A. a convicção de que lhe reconheceria o direito de preferência na venda do dito imóvel, tanto por tanto, ou seja, a faculdade de lho comprar pelo preço e demais condições que haviam sido acordadas com a ora 2.ª R..

Tendo o A. escrito à 1ª R. dando nota do seu interesse na compra, a 1ª R. não desmentiu ou contrariou tal propósito, antes deu azo a que o A. tomasse providências e assumisse despesas tendo em vista a concretização do negócio. Assim, ao proceder à venda do imóvel à 2ª R., a 1ª R. agiu em violação da confiança que criara junto do A., sendo responsável pelo prejuízo que causou na esfera do A. e que se traduziu na realização das despesas que se provaram no montante de € 3.577,84 cuja responsabilidade já foi reconhecida no acórdão recorrido, com conformação por parte da 1ª R.

Porém, em relação à 2ª R. nada se provou que justifique ou imponha a extração de algum efeito que se repercuta negativamente na sua esfera jurídica.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo do A.

Notifique.


Lisboa, 18-10-18


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo