Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1560/11.6TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: UNIÃO DE FACTO
SEGURANÇA SOCIAL
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
REGIME GERAL DA SEGURANÇA SOCIAL
REGIMES PRIVADOS DE SEGURANÇA SOCIAL
INTEGRAÇÃO DE LACUNAS DA LEI
REGULAMENTAÇÃO COLECTIVA
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Data do Acordão: 05/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / UNIÕES DE FACTO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / PRINCÍPIOS GERAIS / DIREITOS E DEVERES SOCIAIS.
Doutrina:
- BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 2006 (reimpressão), 196.
- HERBERT WIEDEMANN, Normsetzung durch Vertrag, Richterliches Arbeitsrecht, Festschrift für Thomas Dieterich zum 65. Geburtstag, C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1999, 661 e ss.
- KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997 (tradução de José Lamego), 566, 569.
- RITA LOBO XAVIER, “O Estatuto Privado dos Membros da União de Facto”, Scientia Ivridica, tomo LXIV, 2015, 283 e ss., 295.
- RUI MEDEIROS, Anotação ao artigo 63.º da CRP, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa” Anotada, tomo I, Coimbra Editora/Wolters Kluwer, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1289 (itálico e negrito no original).
Legislação Nacional:
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º, 63.º.
LEI N.º 7/2001, DE 11-05: - ARTIGO 3.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional:

ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (AUJ) N.º 3/2013, EM WWW.STJ.PT .

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 232/03, N.º 675/2005, DE 6 DE DEZEMBRO DE 2005, N.º 174/2008, DE 11 DE MARÇO DE 2008, N.º 522/2006, DE 26 DE SETEMBRO DE 2006, TODOS EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :
I - É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e do direito a uma segurança social universal (arts. 13.º e 63.º, ambos da CRP), a interpretação da versão originária do n.º 3 do art. 3.º da Lei n.º 7/2001, de 11-05, segundo a qual o membro sobrevivo de união de facto não poderia beneficiar da protecção por morte por o falecido membro dessa relação familiar (ou, pelo menos, para-familiar) estar abrangido por um regime especial de segurança social (substitutivo do regime geral) por este não o prever especificadamente.

II - Embora se deva reconhecer que o subsistema de segurança social dos trabalhadores bancários goza de independência face ao sistema geral, importa não esvaziar a tutela do núcleo essencial do direito à segurança social, não se vislumbrando, por seu turno, qualquer justificação razoável para a existência de tratamentos diferentes entre membros de união de facto com base na circunstância de essa relação ter sido mantida com trabalhadores bancários ou com outros trabalhadores.

III - O princípio da aplicação em bloco de uma CCT não impede a combinação de aspectos do regime geral que se revelem mais favoráveis. Assim, não contendo a CCT no qual estava plasmado o regime especial mencionado em I disposições respeitantes à tutela por morte do membro sobrevivo da união de facto e posto que essa tutela constitui uma opção de fundo do legislador, impõe-se que se integre essa lacuna (ou se proceda a uma extensão teleológica), tanto mais que a CCT tem que respeitar os princípios e valores fundamentais do sistema.

IV - O poder normativo concedido às partes outorgantes de uma CCT é vinculado aos direitos fundamentais – mormente àqueles de que terceiros são titulares (no caso, os membros sobrevivos das uniões de facto com trabalhadores bancários) –, sendo questionável se as mesmas dispõem de legitimidade para os afastar.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção)

Processo nº 1560/11.6TVLSB.L1.S1

AA intentou contra o BB, SA, acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, pedindo que o Réu seja condenado a pagar-lhe todas as prestações devidas a título de pensão de sobrevivência, subsídio de Natal e 14º mês desde a data do falecimento de CC previstas no ACTV para o sector bancário bem como o subsídio de funeral. Invocou ter vivido em união de facto com CC, divorciado, desde Janeiro de 1995 até 9.07.2010, data da morte deste. CC, trabalhador bancário, encontrava-se reformado e auferia a respetiva pensão de reforma paga pelo Réu.

O Réu contestou por impugnação, propugnando pela improcedência da acção, tendo deduzido incidente de intervenção provocada de DD e EE, respectivamente filha e ex-cônjuge do falecido CC, a qual foi admitida.

Foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, e, em consequência, reconheceu à Autora a titularidade da pensão de sobrevivência por morte de CC, falecido em 09.07.2010, desde 01 de Janeiro de 2011.

Inconformado o Réu interpôs recurso, em que sustentava que não era aplicável ao caso o regime geral da Segurança Social, mas sim um regime especial que não prevê a concessão de uma pensão mensal de sobrevivência para o caso de “uniões de facto”. Acresce que se trata de um regime assente em uma convenção coletiva. Ora esta é um contrato e, por conseguinte, este regime “tem génese e natureza contratual, é um todo incindível, havendo que aplicá-lo em bloco”. Afirmou ainda que dada a natureza contratual deste regime por o mesmo ser expressão da vontade das partes não existiria violação dos princípios constitucionais constantes dos artigos 13º e 63º da CRP. Concluía pedindo que a Ré fosse absolvida de todos os pedidos formulados pela Autora.

A Autora contra-alegou.

O Tribunal da Relação decidiu, por maioria, julgar procedente a apelação, e, em consequência, revogou a sentença recorrida e absolveu a R. do pedido formulado pela Autora. Tal decisão foi justificada afirmando-se que o ACT aplicável tem de ser aplicado em bloco, como já foi decidido  pelo Acórdão do STJ de 5.3.2013 e que não se afigurava que a Lei nº 7/2001 (com as alterações introduzidas) tenha, por si só, a virtualidade de viabilizar o pedido do membro sobrevivo da união de facto ao direito às prestações de sobrevivência contra o Réu.

Foi lavrado um Voto de Vencido cujo subscritor afirmava que um ACT “não pode (…) contrariar os princípios constitucionais que, neste âmbito, protegem a união de facto, nem as normas legais, de carácter imperativo, que os tornam efectivos” e defendendo uma interpretação atualista da cláusula do ACT.

Inconformada a Autora recorreu, pedindo a revogação do Acórdão da Relação do Porto e a manutenção da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância. Defendeu uma interpretação actualista da cláusula 120.º do ACT aplicável e sustentou, designadamente, que só assim se respeitariam princípios constitucionais que protegem a união de facto e normas legais imperativas que os concretizam, bem como o princípio da igualdade e o direito à segurança social, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e do próprio Estado-de-Direito democrático.

A Ré contra-alegou, invocando que o regime especial aplicável no ACT não prevê a concessão de uma pensão mensal de sobrevivência para o caso de uniões de facto e que esse regime é “incindível e hermético” que tinha que ser aplicado em bloco, “não fazendo sentido complementá-lo, onde, pontualmente, o mesmo é menos favorável, nomeadamente com regras do regime geral da segurança social, sendo certo que na sua globalidade é mais favorável”. Concluía pedindo a manutenção do Acórdão Recorrido.

Fundamentação

De Facto

Foram os seguintes os factos dados como provados nas Instâncias:

1) CC faleceu no dia 9 de Julho de 2010, no estado de divorciado de EE

2) CC, encontrava-se reformado, sendo a pensão paga pelo BB

3) A A. é solteira

4) CC era pensionista da R. recebendo a pensão de € 1.447,99

5) O R. tem pago, desde Fevereiro de 2011, a DD, filha de CC, a pensão de sobrevivência no montante de €362,00

6) Por testamento lavrado em 01 de Fevereiro de 2008, no Cartório Notarial da …, CC, institui a A. legatária por conta da sua quota disponível do direito de usufruto da fracção autónoma designada pela letra "..." correspondente ao ... andar ... do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no Largo …, números … a … na freguesia da …

7) A pensão referida na al. B) dos Factos Assentes era depositada pelo R. em conta bancária titulada também pela A.

         8) A A. e CC residiam na mesma casa

         9) Confeccionavam e tomavam as refeições em conjunto.

            10) Pernoitavam juntos na mesma cama.

         11) Comungavam todas as despesas com alimentação, vestuário, calçado, transportes, renda de casa, água, electricidade, gás, assistência médica e medicamentosa.

         12) A vivência descrita sob os art°s 1° a 5° ocorria desde Janeiro de 1995 .

        13) E manteve-se até à data referida na al. A) dos Factos Assentes.

        14) A A. contribuía para as despesas comuns com o que auferia por serviços domésticos que prestava

        15) CC antes de falecer esteve durante 4 meses internado no Hospital do SAMS

        16) Tendo a A. nesse período visitado CC, duas vezes por dia, durante a semana e, aos fins-de-semana, permanecia todo o dia com ele.

        17) A A. beneficiava desde 1996 dos serviços médicos e assistência disponibilizados pelo SAMS, na qualidade de unida de facto.

         18) A A. não tem filhos, nem tem os pais vivos.

        19) CC, foi admitido ao serviço do FF, em 15.04.72, no qual havia já trabalhado no período de 22.12.1996 até 28.02.1970.

De Direito

A Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio, que adotou medidas de proteção da união de facto, veio consagrar no seu artigo 3.º alínea e) o direito das pessoas que vivem em união de facto a proteção na eventualidade de morte do beneficiário. Fê-lo, contudo, em um preceito que, na sua redacção originária se referia à “protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei”. A letra da norma referia-se tão-somente à aplicação do regime geral da segurança social e da lei. Foi apenas com a Lei n.º 23/2010 de 30 de Agosto, que a redacção do artigo 3.º alínea e) da Lei n.º 7/2001 foi alterada, passando a prever a “protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei”. O problema central no caso dos autos é precisamente o de saber se vivendo a Autora em união de facto com um trabalhador bancário, o qual morreu depois da entrada em vigor da lei n.º7/2001, mas antes da entrada em vigor da alteração que lhe foi introduzida pela Lei n.º 23/2010, poderá beneficiar da proteção social por morte de alguém a quem se aplicava, à época, um regime especial (e que era substitutivo) de segurança social. A letra da lei sugere uma resposta negativa, mas esta é, apenas, como é sabido, o ponto de partida da interpretação da norma.

Importará começar por referir que este Tribunal já se pronunciou reiteradamente sobre problemas decorrentes da aplicação no tempo da versão originária da Lei n.º 7/2001 e da ulterior versão modificada da mesma Lei, designadamente com a primeira alteração a que foi sujeita pela referida Lei n.º 23/2010. A respeito, designadamente, da modificação dos requisitos de prova da existência de uma união de facto, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2013 afastou qualquer argumentação que pudesse fundar-se na natureza interpretativa do novo regime legal, mas considerou, também, na esteira de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA que “sendo o óbito do beneficiário pressuposto essencial para a invocação, por parte do elemento sobrevivo da união de facto, do direito ao recebimento de prestações sociais, uma vez adquirido tal estatuto devem aplicar-se-lhe as novas regras definidoras do seu conteúdo”. Assim, entendeu-se que era irrelevante o momento em que ocorreu a morte do membro da união de facto e que o que interessava exclusivamente para efeitos de aplicação do novo regime é “apurar se no momento em que o membro sobrevivo pretende constituir o direito às prestações sociais, se encontra preenchido o pressuposto do qual a Lei faz depender a constituição desse direito”. Assim, este Acórdão uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos: “a alteração que a Lei n.º23/2010, de 30 de Agosto, introduziu na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, sobre o regime de prestações sociais em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social é aplicável também às situações em que o óbito do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime”. Partindo desta perspetiva parece que a data do óbito não deveria ser aqui decisiva e que o “viúvo de facto” deveria ter direito à prestação pelo menos a partir do momento em que por força da conjugação da lei n.º 23/2010 e a modificação introduzida na Lei n.º 7/2001 e a previsão no regime especial de segurança social lhe atribuíssem tal direito.

No entanto, parece que a alteração ocorrida neste campo da demonstração da existência da união de facto com a Lei n.º 23/2010 não terá sido tão inovadora como aquela que nos interessa nestes autos.

Quando a Lei n.º7/2001 foi promulgada existiam regimes especiais de segurança social, alguns com prestações ou natureza substitutiva desse regime geral, frequentemente criados por convenção coletiva. Por razões históricas tais regimes especiais aplicavam-se no setor privado a muitos trabalhadores bancários. Se a letra da lei – mais precisamente a versão originária do artigo 3.º n.º 3 da Lei n.º 7/2001 – for considerada decisiva, então um cidadão que vivesse em união de facto com outro cidadão teria direito a proteção por morte deste se o seu parceiro ou parceira estivesse sujeito ao regime geral, mas poderia deixar de gozar tal proteção só porque o referido parceiro ou parceira estava sujeito a um regime especial que não previsse expressamente tal proteção. Em suma o viúvo de facto de qualquer trabalhador beneficiário do regime geral teria direito à proteção, mas já não o viúvo de facto de um trabalhador bancário sujeito a um regime especial.

Tal entendimento viola, estamos em crer, tanto o direito a uma segurança social universal, como o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrados, respectivamente nos artigos 63.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Para RUI MEDEIROS, com efeito, “a universalidade [do direito à segurança social] significa que a efectivação do direito à segurança social através de um sistema organizado, coordenado e subsidiado pelo Estado deve, prima facie, “abranger todos os cidadãos, independentemente da sua situação profissional” (Acórdãos n.ºs 517/98 e 634/98), não se compadecendo com um sistema que deixe arbitrariamente de fora alguns trabalhadores ou parte da população[1].

É certo que a existência de um sistema ou subsistema específico de segurança social para os bancários tem sido aceite pelo nosso Tribunal Constitucional. Este Tribunal já teve ocasião de afirmar que “o sector bancário sempre esteve fora do sistema público de segurança social, constituindo um subsistema que tem sido expressamente reconhecido pelas leis da segurança social” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 675/2005 de 6 de Dezembro de 2005), que para os bancários existe “um sistema de segurança social específico, independente e alheio aos outros sistemas (pelo menos para alguns trabalhadores bancários) ” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 174/2008 de 11 de Março de 2008[2]). Não há sequer qualquer garantia de que as prestações sejam idênticas ou calculadas por referência aos mesmos valores: “nada na lei obriga a que as pensões de reforma tenham que ser calculadas para todos de forma igual” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 675/2005 de 6 de Dezembro de 2005).

Mas há que ter presente que, todavia, o que neste caso se discute não é uma diferença de montante ou de critério de determinação de uma pensão ou benefício. É antes a diferença entre ter e não ter direito à proteção social apenas pela circunstância de o parceiro que morreu não estar sujeito ao regime geral, estando antes sujeito a um regime especial que não previa expressamente qualquer proteção.

O Tribunal Constitucional chamou também a atenção para o dever do legislador de não esvaziar a tutela predisposta pela Constituição quanto ao núcleo essencial do direito à segurança social, reconhecendo igualmente que a família não é apenas aquela que se funda no matrimónio.

Mas quer a união de facto seja concebida como uma relação familiar, quer, antes, como uma simples relação para-familiar[3], importa ter presente que, nas palavras do próprio Tribunal Constitucional, “constitui jurisprudência assente e reiterada deste Tribunal a caracterização do princípio da igualdade decorrente do art. 13.º da CRP como proibição do arbítrio (assim o Acórdão 232/03)” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 522/2006 de 26 de Setembro de 2006). Com efeito, “o princípio da igualdade não impede que tendo em conta a liberdade de conformação do legislador se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, razoável, racional e objectivamente fundadas” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 522/2006 de 26 de Setembro de 2006). Não se vislumbra, contudo, justificação para que os unidos de facto com trabalhadores bancários a quem era aplicável o referido ACT tenham tratamento diferente – isto é não tenham tutela em caso de morte do parceiro – relativamente aos unidos de facto com outros trabalhadores[4].

Dir-se-á, no entanto, como faz o Recorrido, que há que que ter em conta a natureza convencional do ACT em que estava plasmado o regime especial aplicável ao caso e que o mesmo deveria ser aplicado em bloco.

Começando por este último aspecto importará, desde logo, referir que a aplicação em bloco de uma convenção colectiva não é, decerto, um princípio sacrossanto ou sem excepções como é revelado pela circunstância de que a própria portaria de extensão pode inequivocamente estender a convenção no todo ou em parte. Mas, e sobretudo, há que ter presente que o que ocorre neste caso não é verificar que certos aspectos do regime geral são mais favoráveis do que o regime especial e forçar a combinação de tais aspectos mais favoráveis com esse mesmo regime especial. O que ocorre aqui é que o legislador tomou uma opção de fundo ao estabelecer que o viúvo de facto tem direito a uma tutela por morte do seu parceiro, remetendo para a concretização desse direito para um regime especial que constava, no caso, de uma convenção colectiva. Se esta nada disser a respeito verifica-se uma lacuna de remissão na lei – que, aliás, sempre poderia ser concebida como uma lacuna teleológica na própria lei, a qual tem que ser integrada. A convenção colectiva tem, na verdade, que respeitar os princípios e valores fundamentais do sistema (e as normas absolutamente imperativas deste sob pena de nulidade das suas cláusulas).

Por outro lado, há que atender também aqui à natureza híbrida da convenção colectiva. Se esta é, para a doutrina dominante, um contrato aplica-se a terceiros como expressão de heteronomia e não de autonomia (o que é bem visível no caso de existência de portarias de extensão) e essa natureza híbrida deve ser tomada em linha de conta[5], como, de resto, faz a nossa jurisprudência ao defender que a interpretação da convenção – ou pelo menos da sua parte normativa – está sujeita aos mesmos princípios que regem a interpretação das leis. Se o legislador atribui à convenção colectiva um poder normativo que a converte em verdadeira fonte de direito – ao ponto de o Tribunal Constitucional entender que as normas assim criadas estão sujeitas a fiscalização da sua constitucionalidade – o poder normativo assim concedido às partes outorgantes de uma convenção não é ilimitado: não só a lei coloca limites ao âmbito material da convenção, arredando certas matérias do seu âmbito, como se suscita a vinculação deste legislador, apesar da sua natureza privada, aos direitos fundamentais, mormente tratando-se de direitos de terceiros como é o caso de familiares dos próprios trabalhadores. Com efeito, o que está aqui em jogo não é um direito dos trabalhadores, mas um direito dos viúvos de facto, ainda que daqueles que eram parceiros de trabalhadores abrangidos pela convenção, pelo que sempre se suscitaria o problema da legitimidade para as partes outorgantes de uma convenção coletiva afastarem ou disporem de estes direitos.

Tendo o legislador optado por conferir aos “viúvos de facto” proteção no caso de morte do seu parceiro na união e verificando-se que o regime especial para o qual se remete é omisso há que integrar a lacuna[6] – ou proceder a uma extensão teleológica[7] – reconhecendo a existência de tal direito também nestes casos, como fez o Tribunal de 1.ª Instância.

Decisão: Concedida a Revista, revogando-se o Acórdão recorrido

Custas pelo Recorrido

Lisboa, 3 de Maio de 2016

Júlio Gomes (Relator)

José Raínho

Nuno Cameira

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[1] RUI MEDEIROS, Anotação ao artigo 63.º da CRP, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, , tomo I, Coimbra Editora/Wolters Kluwer, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1289 (itálico e negrito no original).
[2] Sublinhe-se, contudo, que neste mesmo Acórdão se destacou que a questão da constitucionalidade das sucessivas leis de base da segurança social que têm mantido em vigor o regime de previdência previsto na contratação colectiva do sector bancário encontrava-se fora do objecto do Recurso. Destacou-se também que o recorrente não pretendia afastar em bloco o regime previdencial particular dos empregados bancários inscritos em um instrumento de regulamentação colectiva de trabalho e sujeitar-se em alternativa à aplicação em bloco do regime geral do sistema público de segurança social.
[3] Assim RITA LOBO XAVIER, O Estatuto Privado dos Membros da União de Facto, Scientia Ivridica, tomo LXIV, 2015, pp. 283 e ss., p. 295, que, na esteira de PEREIRA COELHO, designa tais uniões como relações para-familiares ou, mais precisamente, para-conjugais.
[4] Comparam-se assim “viúvos de facto” com outros “viúvos de facto”, para utilizar uma expressão empregada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 522/2006 de 26 de Setembro de 2006. Nesse mesmo Acórdão pode ler-se que: “Constitui aqui elemento de igualdade fáctica comum aos dois termos da comparação de o direito à pensão de sobrevivência ter sido adquirido em função do reconhecimento judicial de uma situação de união de facto com um beneficiário ou subscritor falecido, Este elemento, não expressando uma situação de igualdade fáctica absoluta, já que compara pensões geradas no chamado Regime Geral com pensões geradas no âmbito do regime dos funcionários e agentes da função pública permite no entanto a qualificação da situação de ambos como essencialmente igual, isto é, em função de uma expressiva preponderância de elementos comuns”.
[5] Cfr., por todos, HERBERT WIEDEMANN, Normsetzung durch Vertrag, Richterliches Arbeitsrecht, Festschrift für Thomas Dieterich zum 65. Geburtstag, C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, 1999, pp. 661 e ss.
[6] BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 2006 (reimpressão), p. 196: “A mais importante das categorias das lacunas da lei são as lacunas teleológicas. São lacunas de segundo nível, a determinar em face do escopo visado pelo legislador ou seja, em face da ratio legis de uma norma ou da teleologia imanente a um complexo normativo. Estamos no domínio de eleição da analogia: a analogia serve aqui tanto para determinar a existência de uma lacuna como para o preenchimento da mesma”.
[7] KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997 (tradução de José Lamego), p. 566: “Uma tal extensão teleológica aproxima-se, de resto, muito nos seus efeitos a uma analogia. Em ambos os casos se estende uma regulação a uma situação de facto que não é abrangida segundo o seu sentido literal possível. Em ambos os casos se trata da plena realização do fim da regra legal e de evitar uma contradição de valoração que não é justificável”. O autor acrescenta, ob. cit., p. 569, que “à luz da actual concepção sobre a competência dos tribunais para o desenvolvimento do direito não pode haver dúvidas sobre a sua legitimidade, em princípio, para fazerem uma correcção, teleologicamente fundamentada, da lei”.