Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
215/18.5JAFAR.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROCESSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ABSOLVIÇÃO CRIME
ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGAMENTO ANULADO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado (parte civil), ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente (art. 74.º, n.º 1, do CPP); restringe-se a sua intervenção processual à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes, em que se inclui o direito de interpor recurso de decisões que os afetem, nas condições previstas no art. 400, n.º 2, do CPP, limitado à matéria civil [art. 69.º, n.º 2, al. c), 74.º, n.º 1 e 2, e 403.º, n.os 1 e 2, al. b), do CPP].

II - A relação não está impedida de alterar a matéria de facto constante da sentença da 1.ª instância, por via da verificação do vício de erro notório na apreciação da prova, no uso e no âmbito dos poderes que lhe são conferidos pelos art. 426.º e 431.º do CPP, em vista da superação desse vício.

III - Tratando-se de decisão do tribunal da relação que, em conhecimento de vício de decisão da 1.ª instância a que se refere o art. 410.º, deva proceder à modificação da decisão sobre matéria de facto, o art. 431.º do CPP impõe restrições específicas em matéria de prova, ao dispor que sem prejuízo do disposto no art. 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art. 412.º; ou c) se tiver havido renovação da prova.

IV - Não sendo feita, na fundamentação, qualquer menção a esse vício, não se explicitando se a alteração da matéria de facto resulta de verificação do vício ou da reapreciação da prova, apenas sendo referido que “basta a simples leitura da decisão recorrida para que tal se conclua” (decisão em que se inclui a apreciação crítica da prova testemunhal produzida em julgamento e da prova por documentos), nem se especificado em que medida o texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, adotou conclusões ilógicas e inaceitáveis, em resultado de erro clamoroso e evidente à observação do leitor, o acórdão recorrido padece de falta de fundamentação, o que constitui a nulidade prevista na al. a) do n.º 2 do art. 379.º do CPP (ex vi art. 425.º, n.º 4).

V - Não tendo havido recurso em matéria de facto da decisão da 1.ª instância, nos termos do disposto no art. 412.º, n.º 3, do CPP, nem renovação da prova, que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido (art. 411.º, n.º, 5, 412.º, n.º 3, al. c), 423.º, n.º 2 e 430.º do CPP), o tribunal da relação apenas pode modificar a matéria de facto “se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base” (al. a) do art. 431.º do CPP).

V - Havendo arguição de vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP, o tribunal da relação deve verificar se “é possível decidir da causa” (art. 426.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPP) com os elementos de prova que constam do processo, excluindo a documentação (gravação) da prova em audiência. Não sendo tais elementos de prova suficientes para o efeito, não pode o tribunal da relação proceder à sanação do vício; neste caso deve ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPP.

VI - Dois momentos de decisão aqui se identificam: o da deteção e aferição do vício – que, embora em termos imperfeitos, se mostra efetuada – e o de sanação do vício, com base num juízo prévio sobre a suficiência das provas necessárias a essa finalidade – as provas existentes no processo, a apreciar criticamente.

VII - Não se mostrando formulado tal juízo prévio, que se impunha ao tribunal da relação antes de decidir sobre a modificação dos factos, no sentido de assumir a competência para proferir a decisão ou, caso contrário, no sentido de ordenar o reenvio à 1.ª instância para novo julgamento, omitiu o tribunal pronúncia sobre questão que devia apreciar, conhecendo de questão de que (ainda) não podia conhecer, o que constitui a nulidade prevista na al. c) do n.º 2 do art. 379.º do CPP (ex vi art. 425.º, n.º 4).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. Por sentença proferida em 23 de março de 2021, no Juízo Local Criminal de Loulé (Juiz 1), do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foi o arguido AA absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido pelo artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal.

Em consequência, pela mesma sentença, foi julgado improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante Massa Insolvente da sociedade Cármen e Gameiro, Lda., de que o arguido era sócio-gerente, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia global de € 74.100 acrescida de juros de mora legais vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento.

2. Não foi interposto recurso da sentença na parte referente à matéria penal.

Porém, inconformada com a absolvição do pedido, a demandante Massa Insolvente da sociedade Cármen e Gameiro Lda. recorreu da decisão para o Tribunal da Relação de Évora.

Dado o estatuto processual da demandante – parte civil – o recurso tem apenas por objeto a decisão quanto à matéria civil.

3. Por acórdão de 23 de novembro de 2021, o Tribunal da Relação de Évora, julgando verificado um erro na apreciação da prova, alterou a matéria de facto provada e, consequentemente, julgou o recurso procedente, com condenação do arguido no pedido, nos seguintes termos:

«Face ao que precede os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora concedem provimento ao recurso e, em consequência:

A - Dão como provados os factos que na sentença recorrida surgem como não provados de b) a f), como factos provados 11) a 15), como segue:

11 – (b) O contrato referido em 4) e 5) dos fatos provados foi celebrado com o propósito de diminuir os ativos da Carmem e Gameiro, Lda. e criar-lhe prejuízos e reduzir-lhe os lucros na exploração do imóvel em causa na qualidade de proprietária.

12 – (c) No contrato de arrendamento dado como provado em 7) a cedência do uso e gozo da fração objeto do mesmo ocorreu com o propósito de diminuir os ativos da empresa C... Lda., criar-lhe prejuízos e reduzir-lhe os lucros na exploração desse imóvel na qualidade de proprietária.

13 – (d) A cedência de exploração dada como provada em 8) dos fatos provados ocorreu com o propósito de diminuir os ativos da firma "Carmem e Gameiro, l.d", criar-lhe prejuízos e reduzir-lhe os lucros na exploração desse imóvel na qualidade de proprietária.

14 – (e) O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, querendo diminuir o acervo patrimonial e criar/agravar artificialmente prejuízos e reduzir lucros da firma "Carmem e Gameiro, La", por intermédio da cedência dos imóveis de que esta firma era proprietária, mediante contrapartidas inferiores aos valores de mercado, determinando que aquela firma ficasse numa situação patrimonial inferior à sua capacidade, com o propósito de prejudicar os seus credores.

15 – (f) O arguido subtraiu, ilegítima e ilicitamente, à massa insolvente, os imóveis elencados nos fatos provado em 3) causando grave e irreparável prejuízo à massa insolvente porque impediu que os credores lograssem quer a cobrança dos seus créditos quer que vissem os seus créditos ressarcidos no âmbito do processo de insolvência por si iniciado pouco tempo.

B - Dão como provado o facto 16) com a seguinte redacção:

16 – Os contratos supra referidos resolveram-se em 12 de Novembro de 2019.

C – Condenam o arguido AA a pagar à Massa Insolvente da Sociedade "Carmem e Gameiro, Lda” a quantia de 74.100 € (setenta e quatro mil euros), acrescida de juros vincendos contados desde a notificação do pedido cível»

4. Não se conformando com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, o arguido interpõe recurso deste para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando motivação de que extrai as seguintes conclusões:

«A) Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que, julgando procedente o recurso interposto pela demandante cível, alterou a matéria de facto dada como assente e provada, passando os factos identificados nas alíneas b), c), d) e) e f) dos factos não provados para os pontos 11, 12, 13, 14 e 15 dos factos provados, e condenou o arguido, ora Recorrente, a pagar à Massa Insolvente da Sociedade Carmem e Gameiro Lda., a quantia de € 74.100,00 (setenta e quatro mil e cem euros), acrescida de juros vincendos contados desde a notificação do pedido cível.

B) Entende o Recorrente que o Tribunal da Relação fez, salvo melhor entendimento, incorreta interpretação do disposto nos arts. 377.º e 379.º Código de Processo Penal.

C) Como resulta das conclusões apresentadas perante o Tribunal Recorrido e transcritas no Acórdão em apreço, a Demandante Cível – a Massa Insolvente da Carmem e Gameiro Lda – entendeu que o tribunal ao absolver o arguido, ora Recorrente, de qualquer responsabilidade civil incorreu em errónea apreciação da prova, proferindo uma decisão injusta e que devia ser alterada.

D) Dando acolhimento a tal pretensão, o Tribunal da Relação proferiu Acórdão que acolhendo o pedido formulado, alterou a matéria de facto dada como provada, passando os factos identificados nas alíneas b), c), d) e) e f) dos factos não provados para os pontos 11, 12, 13, 14 e 15 dos factos provados, por considerar ter existido erro notório na apreciação da prova.

E) Porém, salvo melhor entendimento, não se verificou qualquer erro notório na apreciação da prova pelo tribunal de 1.ª instância como se alcança do teor da sentença proferida, a qual se encontra devidamente fundamentada e justificada.

F) Sendo entendimento unânime na jurisprudência que o vício decisório suscetível de integrar a previsão do art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP, consiste em ser dado como provado ou não provada determinado facto em total incongruência lógica com princípios, leis, regras ou experiência comum ou com outra prova irrefutável.

G) No caso em apreço, tal não se verificou, tendo a prova produzida sido devidamente apreciada e ponderada de forma lógica e coerente à luz das regras legais e da experiência comum, considerando-se que da mesma prova não resultou demonstrado que os contratos em causa tenham sido celebrados com o propósito de diminuir os activos da sociedade e causar prejuízos aos seus credores.

H) Não obstante, considerou-se no Acórdão recorrido que “(…) os factos provados demonstram a pré existência de um grave ilícito civil que apresenta autonomia, uma declarada judicialmente insolvência e uma constatação face à simples leitura da decisão recorrida que a conduta do arguido é descaradamente dolosa, ao menos no campo cível”, concluindo pela existência de erro notório na apreciação da prova ao ter sido dado como provado algo que está notoriamente errado no que aos factos constantes dos pontos 2) a 9) dizem respeito.

I) Ao assim decidir incorreu o Tribunal da Relação em errada interpretação e aplicação da lei, uma vez que sendo o erro notório na apreciação da prova um conceito técnico-legal, o mesmo terá que ser detetável na decisão, o que não é manifestamente o caso, pois os contratos mencionados na alínea b) são os contratos celebrados em 2011 e referidos nos pontos 4) e 5) dos factos provados, e, nessa data a sociedade Carmem e Gameiro Lda. não estava em eminência falimentar (al. a) dos factos não provados), a qual apenas se verifica em 2016 (ponto 6) dos factos provados).

J) Do mesmo modo, no que aos demais contratos respeita e mencionados nas alíneas c) a f) dos factos não provados e agora constantes dos pontos 12 a 15 adicionados, também não enfermam de qualquer erro notório da apreciação da prova, pois todos são anteriores à data da entrada em Juízo da Petição de Insolvência, ocorrida em Maio de 2016, tendo a sociedade requerida sido citada editalmente em 24-08-2017 e vindo a decisão de insolvência a ser decretada em 02-02-2018.

K) Pelo que ver nos factos dados como provados e não provados pelo Tribunal de 1.ª instância um claro, notório e evidente erro na apreciação da prova se traduz numa violação e incorreta interpretação da lei.

L) Como tem sido entendimento tais vícios ou anomalias da decisão têm que ser intrínsecos à própria decisão por si só ou conjugados com as regras da experiência comum, situação que não se verifica como resulta da fundamentação de facto constante da decisão proferida, reforçada pela experiência comum com a irrazoabilidade ou improbabilidade de prever e ter a intenção de praticar tais factos com antecedência de 6 anos.

M) Cotejada a motivação do recurso apresentado e o Acórdão Recorrido, dúvidas não restam que a Demandante invocou erro na apreciação das provas e na fixação dos actos materiais da decisão que absolveu o arguido do pedido cível ao invés do acórdão recorrido que assenta no erro notório na apreciação da prova mencionado na al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, que não se confunde, nem se pode confundir, com o erro suscitado em sede de recurso.

N) Ao assim decidir o Acórdão em apreço, julgou procedente o pedido cível formulado, por considerar preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil e os danos daí decorrentes serem de mera contabilização do empobrecimento/enriquecimento das indicadas sociedades, com a concretização da sua quantificação pela multiplicação do prejuízo de ambos os contratos pelo período de vigência de 39 meses à razão de € 1.900,00 mensais.

O) Ficando, desta forma, a procedência de tal pedido apenas justificada na apontada alteração da matéria de facto a qual não se encontra fundamentada nem justificada face ao que a este respeito consta da decisão proferida em 1.ª instância.

P) Como resulta da decisão de 1.ª instância, o que importava saber era se o arguido celebrou aqueles contratos com intenção de prejudicar os credores, o que foi feito através da análise crítica, detalhada e ponderada de toda a prova documental e testemunhal, concluindo pela não verificação e prova de qualquer propósito ou intencionalidade do arguido em prejudicar os credores da sociedade.

Q) Ao invés, o Acórdão Recorrido limitou-se a alterar os factos não provados para provados de molde a julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado, sem qualquer sustentação ou fundamentação na prova produzida, situação legalmente inadmissível, por violação do disposto art.º 377.º e 379.º do CPP.

Pelo exposto deve o Acórdão Recorrido ser declarado nulo e, em consequência, mantida a decisão proferida na 1.ª instância (…).»

5. A demandante civil apresentou resposta ao recurso interposto, exarando as seguintes conclusões:

«Do arrazoado supra, cumpre concluir:

1.ª) Que, segundo o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, os factos provados demonstram a pré-existência de um grave ilícito civil;

2.ª) Que, da simples leitura da decisão recorrida, logra-se constatar que, no campo cível, a conduta do arguido é descaradamente dolosa;

3.ª) Que a declaração de insolvência – um claro ilícito cível já declarado por tribunal judicial – reúne todos os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual;

4.ª) Que os factos provados de 2) a 9) na sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância evidenciam claramente que o arguido agiu com o propósito de diminuir os activos da sociedade “Carmem e Gameiro Lda” e, correspondentemente, enriquecer a sociedade “Enredos e Façanhas, Ldª”;

5.ª) Que esse tipo de procedimento imputado ao arguido/demandado não é original;

6.ª) Que é a técnica habitualmente utilizada para concentrar as dívidas e extrair o património de uma determinada sociedade que se pretende conduzir à insolvência, concentrando o património e outros activos na nova sociedade que se pretende manter em giro comercial ou industrial;

7.ª) Que basta a simples leitura da decisão recorrida para que tal se conclua;

8.ª) Que, em função disso não se entende da razão para que se tenha afastado, sem mais, a culpa civil do arguido/demandado, tão clara ela (…) surge, para além da ilicitude e da culpa civil resultantes da mera declaração de insolvência;

9.ª) Que, por tal, decorre como muito natural que os factos dados como não provados de b) a f) sejam dados como provados;

10.ª) Que, assim sendo, mostram-se preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, sendo os danos a mera contabilização do empobrecimento/enriquecimento das indicadas sociedades.

11.ª) Que esta quantificação concretiza-se na multiplicação do prejuízo de ambos os contratos pelo período da sua vigência, de 39 meses, à razão de € 1.900,00 mensais, o que soma € 74.100,00;

12.ª) Que, por essa razão, o recurso é procedente no montante global de € 74.100,00.

13.ª) Que do confronto entre as teses vertidas no Acórdão da Relação de Évora e no Recurso apresentado pelo recorrido AA, não se vislumbra que possa assistir qualquer mérito na pretensão prosseguida pelo recorrido;

14.ª) Que não só não há qualquer erro ou conflito entre o peticionado pela Massa Insolvente em sede de recurso e aquilo que foi decidido pelo Tribunal da Relação de Évora;

15.ª) Que, além do mais, o entendimento do julgador da causa e a respectiva fundamentação que lhe está subjacente é clara, coerente e lógica e encontra-se cristalinamente explanada nos excertos do Acórdão transcritos nesta Resposta.»

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

II. Fundamentação

7. O Tribunal da Relação julgou provados os seguintes factos:

a) Factos dados como provados na sentença de 1.ª instância:

“1) A firma "Carmem & Gameiro., La", foi constituída em 10 de Maio de 1982 como sociedade por quotas, com o objeto social de comércio de artigos de artesanato e similares, nomeadamente cerâmica, cristais, estanhos e bordados, com sede em ..., ....

2) A gerência de facto dessa firma esteve sempre a cargo do arguido AA, sendo da sua responsabilidade societária a afetação dos seus recursos, pagamentos a fornecedores e a funcionários, assinatura de documentos, etc ...

3)    Em Outubro de 2011, A firma "Carmen & Gameiro, Lda" era proprietária de dois imóveis, destinados a comércio, sitos na Rua ..., ..., ..., lojas n.º ...6 e ...7, ..., ..., descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob os números 1818/19... e 1818/19..., inscritos na matriz predial urbana sob o número ...03 da freguesia ....

4) No dia 1 de Outubro de 2011, o arguido AA, na qualidade de gerente da firma "Carmen & Gameiro, La", celebrou um contrato denominado de arrendamento comercial sobre o imóvel destinado a espaço comercial sito na Rua ..., ..., ..., loja n. ...6, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número 1818/19..., ..., ..., com a firma "Vontade Latina – Unipessoal, L.da", cuja gerência estava igualmente a seu cargo.

5) Nesse contrato denominado de arrendamento comercial, o arguido AA, na qualidade de gerente da firma "Carmen & Gameiro, La", cedeu o uso e gozo desse espaço comercial à firma " Vontade Latina – Unipessoal, Lda", pelo período de 15 anos, mediante uma renda mensal de 250€, quando o valor médio de arrendamento seria, pelo menos, de 1000€/mensais.

6) Face à iminência falimentar, no dia 30 de Agosto de 2016, o arguido AA, na qualidade de gerente da firma "Carmen & Gameiro, l.d", celebrou dois contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais sobre os imóveis destinados a espaços comerciais sitos na Rua ..., ..., ..., lojas nºs ...6 e ...7, descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob os números 1818/19... e 1818/19..., ..., ..., com a firma " Enredos e Façanhas, Unipessoal, Ldª, cuja gerência de facto estava igualmente a seu cargo.

7) Nesse contrato denominado de arrendamento urbano para fins não habitacionais, o arguido AA, na qualidade de gerente da firma "Carmen & Gameiro, l.d", cedeu o uso e gozo desse espaço comercial à firma "Enredos e Façanhas, Unipessoal, Ldª", pelo período de 25 anos, mediante uma renda mensal de 50€, quando o valor médio de arrendamento seria, pelo menos, de 1000€/mensais.

8)    Entretanto, em 29 de Agosto de 2016, o arguido AA, na qualidade de gerente de facto da firma " Vontade Latina – Unipessoal, Lda", cedeu a posição contratual desta firma nos mencionados contratos sobre os imóveis destinados a espaço comercial sitos na Rua ..., ..., ..., loja n. ...7, descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob os números 1818/19... e 1818/19..., ..., ..., à firma Enredos e Façanhas, Unipessoal., Ldª", cuja gerência de facto estava igualmente a seu cargo.

9)     Por decisão datada de 2 de Fevereiro de 2018, transitada em julgado em 26 de Fevereiro de 2018, proferida no âmbito do processo nº 1013/16…, a firma "Carmen & Gameiro, l.daª  foi declarada insolvente.

10) O arguido tem registados no seu certificado de registo criminal as seguintes condenações:

a)   Por sentença proferida em 2015/11/18, transitada em julgado em 2015/12/21, no âmbito do processo comum singular n. 524/12.... do Juiz ... do Juízo Local Criminal de ..., foi o arguido condenado pela prática em Julho de 2008, de um crime de abuso de confiança fiscal, tendo a pena sido dispensada.”

b) Factos dados como provados no acórdão do Tribunal da Relação (acórdão recorrido), que haviam sido dados como não provados na decisão de 1.ª instância:

“11 – O contrato referido em 4) e 5) dos fatos provados foi celebrado com o propósito de diminuir os ativos da Carmem e Gameiro, Lda. e criar-lhe prejuízos e reduzir-lhe os lucros na exploração do imóvel em causa na qualidade de proprietária.

12 –No contrato de arrendamento dado como provado em 7) a cedência do uso e gozo da fração objeto do mesmo ocorreu com o propósito de diminuir os ativos da empresa Carmem e Gameiro, Lda., criar-lhe prejuízos e reduzir-lhe os lucros na exploração desse imóvel na qualidade de proprietária.

13 –A cedência de exploração dada como provada em 8) dos fatos provados ocorreu com o propósito de diminuir os ativos da firma " Carmem e Gameiro, l.da", criar-lhe prejuízos e reduzir-lhe os lucros na exploração desse imóvel na qualidade de proprietária.

14 –O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, querendo diminuir o acervo patrimonial e criar/agravar artificialmente prejuízos e reduzir lucros da firma "Carmem e Gameiro, Lda", por intermédio da cedência dos imóveis de que esta firma era proprietária, mediante contrapartidas inferiores aos valores de mercado, determinando que aquela firma ficasse numa situação patrimonial inferior à sua capacidade, com o propósito de prejudicar os seus credores.

15 – O arguido subtraiu, ilegítima e ilicitamente, à massa insolvente, os imóveis elencados nos fatos provado em 3) causando grave e irreparável prejuízo à massa insolvente porque impediu que os credores lograssem quer a cobrança dos seus créditos quer que vissem os seus créditos ressarcidos no âmbito do processo de insolvência por si iniciado pouco tempo.

16 – Os contratos supra referidos resolveram-se em 12 de Novembro de 2019.”

Objeto, admissibilidade e âmbito do recurso

8. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal da Relação que, conhecendo o recurso interposto por uma parte civil, da decisão absolutória da 1.ª instância, na parte penal e na parte civil, condenou o arguido no pedido de indemnização deduzido no processo penal, em que era peticionada a quantia de € 74.100, acrescida de juros de mora, por danos emergentes da prática de um crime por que este fora acusado e absolvido na mesma decisão da 1.ª instância.

9. Dispõe o artigo 377.º do CPP que “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 82.º” (que se refere à liquidação em execução de sentença e ao reenvio para os tribunais civis).

Nos termos do artigo 71.º do CPP (princípio da adesão), “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”. A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil (artigo 129.º do Código Penal).

Estabelece o artigo 74.º (legitimidade e poderes processuais) que “o pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente” (n.º 1) e que “a intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes” (n.º 2), em que se inclui o direito de “interpor recurso de decisões que os afetem” [artigo 69.º, n.º 2, al. c)].

Nos termos do disposto no artigo 403.º, n.º 1, do CPP, “é admissível a limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas”. Estabelecendo o n.º 2 do mesmo preceito que, para efeitos do n.º 1, é autónoma a parte da decisão que se referir a matéria civil [al. b)].

Quanto ao recurso da decisão sobre o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, dispõe o artigo 400.º, n.º 2, do CPP que “sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º [recurso para a relação] e 432.º [recurso para o Supremo Tribunal de Justiça], o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”. Estabelecendo o n.º 3 do mesmo preceito que[m]esmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”.

Impõe este n.º 3 dois critérios cumulativos de admissibilidade do recurso da sentença relativamente a matéria cível: o recurso é admissível “desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido”o denominado critério da alçada – “e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada” – o denominado critério da sucumbência. A alçada dos tribunais da Relação em matéria cível é de € 30.000, sendo que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a ação (artigo 44.º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).

Encontram--se, pois, preenchidos ambos os critérios do n.º 3 do artigo 403.º, uma vez que o valor peticionado no pedido de indemnização civil em apreciação, de 74.100 euros, é superior à alçada do tribunal da Relação e que a sucumbência, isto é, a desvantagem que a decisão implica para a parte vencida, ou seja, para o arguido (demandado), condenado a pagar esta importância na sua totalidade, é superior a metade (15.000 euros) daquela alçada.

Pelo exposto, e atento o que dispõe artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP – segundo o qual se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º –, há que concluir pela admissibilidade do recurso.

10. O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), sem prejuízo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, que se refere a acórdãos proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo (aditamento ao artigo 434.º do CPP pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, não aplicável no caso sub judice).

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP – acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995 –, de nulidades não sanadas – n.º 3 do mesmo preceito – e de nulidades da sentença – artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, segundo o qual as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, o que significa que o tribunal de recurso está obrigado a conhecê-las, independentemente de arguição (assim, por todos, Oliveira Mendes, comentário ao artigo 379.º, Henriques Gaspar et alii, Código de Processo Penal comentado, Almedina, 3.ª ed., 2021).

11. O recorrente conclui, em síntese, que:

a) Não severificou qualquer erro notório na apreciação da prova por parte do tribunal de 1.ª instância, encontrando-se a sentença proferida devidamente fundamentada e justificada;

b) A demandante não invocou o erro previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal em sede de recurso para o Tribunal da Relação, mas sim um “erro na apreciação das provas e na fixação dos actos materiais da decisão que absolveu o arguido do pedido cível”;

c) A alteração dos factos efetuada nos moldes constantes do acórdão recorrido não é legalmente admissível, pois a mesma não encontra sustentação na prova produzida, traduzindo-se numa alteração da matéria de facto sem fundamentação e apoio na prova produzida;

d) O Tribunal da Relação fez uma incorreta interpretação do disposto nos artigos 377.º e 379.º Código de Processo Penal.

12. Alegando que tinha havido “uma errónea apreciação da prova” e pedindo revogação da sentença e a sua substituição por outra “que se coadune com a pretensão apresentada – ou seja: condenar o arguido pela prática do crime indicado na acusação e a ressarcir a massa insolvente pelo prejuízo causado com essa conduta”, a demandante “Massa Insolvente de C... Lda.” apresentou recurso da sentença absolutória da 1.ª instância, que o tribunal recorrido (1.ª instância) limitou “aos pressupostos da responsabilidade civil do pedido de indemnização civil que deduziu (artigos 401, n.º 1, alínea c), 411.º, n.º 1, e 414.º, n.º 2, «a contrario» do CPP”, sendo que foi com esta limitação que o recurso foi apreciado e decidido pelo Tribunal da Relação.

13. O Tribunal da Relação, ponderando, nomeadamente, que a recorrente não podia constituir-se assistente, começou por apreciar a legitimidade da recorrente e a admissibilidade do recurso, levando em conta o disposto no artigo 483.º do Código Civil, que estabelece o “princípio geral” da responsabilidade civil (extracontratual) por factos ilícitos, tendo considerado que esta “não tem que ser a responsabilidade assente exclusivamente na prática de um crime”, para o que convocou o “assento” n.º 7/99 deste Supremo Tribunal de Justiça (DR I-A de 3.8.1999) – em que se decidiu: “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º n.º 1 do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual” –, bem os acórdãos deste Tribunal de 24.2.2010 (Raul Borges), Proc. 151/99.2PBCLD.L1.S1, e de 23.2.2012 (Manuel Braz), Proc. 296/04.9TAGMR.G1.S1, em particular este último, no qual se considerou que ”por o lesado não ter a qualidade de assistente em nada diminui as possibilidades de fazer valer a pretensão [de] condenação do requerido civil a indemnizá-lo pelos prejuízos sofridos com a prática do crime”, que “o direito de sustentar e provar o pedido civil abrange também os factos descritos na acusação como integrando o crime aí imputado aos arguidos, desde que o requerente os tenha alegado, autonomamente ou por remissão para a acusação” e que “esse direito há-de poder ser feito valer tando perante o tribunal de 1.ª instância como perante o tribunal de recurso”, pois que “de outro modo, o direito ao recurso, apesar de consagrado na lei, de pouco valeria (…), isso equivaleria a negar-lhe a possibilidade de sustentar e provar o pedido civil”.

E fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:

“Como é sabido, o erro na apreciação da prova resulta de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado «que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa» (Ac. de 12.11.98, no BMJ 481-325). «Erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.» (Ac. STJ de 9.12.98, BMJ 482-68).

Aqui é imperativo constatar que os factos provados de 2) a 9) evidenciam claramente que o arguido agiu com o propósito de diminuir os activos da sociedade Carmen & Gameiro Lda” e, correspondentemente, enriquecer a sociedade “Enredos e Façanhas, Ldª”.

Aliás, sequer o procedimento é original, já que é a técnica habitualmente utilizada para concentrar as dívidas e extrair o património de uma determinada sociedade que se pretende conduzir à insolvência, concentrando o património e outros activos na nova sociedade que se pretende manter em giro comercial ou industrial. Basta a simples leitura da decisão recorrida para que tal se conclua.  

Em função disso não se entende da razão – ao menos – para que se tenha afastado, sem mais, a culpa civil, tão clara ela nos surge, para além da ilicitude e culpa civil resultantes da mera declaração de insolvência!

Daqui decorre como muito natural que os factos dados como não provados de b) a f) sejam dados como provados, nos seguintes termos, expurgando-se tais factos de considerandos adjectivantes:

11 – (b)   O contrato referido em 4) e 5) dos fatos provados foi celebrado com o propósito de diminuir os ativos da Carmem e Gameiro., Lda. e criar-lhe prejuízos e reduzir-lhe os lucros na exploração do imóvel em causa na qualidade de proprietária.

12 – (c)   No contrato de arrendamento dado como provado em 7) a cedência do uso e gozo da fração objeto do mesmo ocorreu com o propósito de diminuir os ativos da empresa Carmem e Gameiro Lda., criar-lhe prejuízos e reduzir-lhe os lucros na exploração desse imóvel na qualidade de proprietária.

13 – (d)   A cedência de exploração dada como provada em 8) dos fatos provados ocorreu com o propósito de diminuir os ativos da firma " Carmem e Gameiro, l.da", criar-lhe prejuízos e reduzir-lhe os lucros na exploração desse imóvel na qualidade de proprietária.

14 – (e)   O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, querendo diminuir o acervo patrimonial e criar/agravar artificialmente prejuízos e reduzir lucros da firma " Carmem e Gameiro, Lda", por intermédio da cedência dos imóveis de que esta firma era proprietária, mediante contrapartidas inferiores aos valores de mercado, determinando que aquela firma ficasse numa situação patrimonial inferior à sua capacidade, com o propósito de prejudicar os seus credores.

15 – (f) O arguido subtraiu, ilegítima e ilicitamente, à massa insolvente, os imóveis elencados nos fatos provado em 3) causando grave e irreparável prejuízo à massa insolvente porque impediu que os credores lograssem quer a cobrança dos seus créditos quer que vissem os seus créditos ressarcidos no âmbito do processo de insolvência por si iniciado pouco tempo.

Mas outro facto haverá que acrescentar e que é determinante para a delimitação do pedido cível e que a recorrente expressa de forma explícita no seu pedido cível. Tendo os contratos de arrendamento comercial celebrados sobre as identificadas fracções um prazo de 25 anos, certo é que a própria recorrente nesse articulado confessa um facto desfavorável, o de que a resolução dos referidos contratos ocorreu em 12 de Novembro de 2019 – artigo 31.º do pedido cível – facto que terá a seguinte redacção:

16 – Os contratos supra referidos resolveram-se em 12 de Novembro de 2019.

E, assim sendo, mostram-se preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, sendo os danos a mera contabilização do empobrecimento/enriquecimento das indicadas sociedades.

Esta quantificação concretiza-se na multiplicação do prejuízo de ambos os contratos pelo período da sua vigência, de 39 meses, à razão de 1.900 € mensais, o que soma 74.100 €.”

14. Como se extrai da fundamentação da sentença da 1.ª instância, transcrita no acórdão recorrido, o tribunal deu como não provados os factos 11 a 16 (referidos ao elemento subjetivo do tipo de crime constituído pela “intenção de prejudicar”), agora dados como provados pelo Tribunal da Relação, com base em depoimentos de testemunhas e em prova documental.

Com efeito, nessa base, procedendo a uma apreciação crítica das provas, o ... considerou, designadamente, que o facto de o arguido “não ter apresentado a sociedade à insolvência se se configurara como um indício de má fé em sede de qualificação da insolvência como dolosa, não constitui elemento do tipo criminal em causa”, que “de toda a prova produzida e do que referimos quanto à intenção do arguido, podemos dizer que não ficou provado que o arguido, com a atuação referida, (…) tivesse agido com a intenção de prejudicar os credores da Carmem e Gameiro Lda.”, que “podemos mesmo dizer que ficou provado que a intenção do arguido com a celebração dos referidos contratos era manter a atividade de comércio de vestuário e calçado nas referidas lojas (…) e favorecer esta nova empresa com o pagamento de rendas baixas”, que, ”pese ter-se provado que o arguido procedeu á cedência dos imóveis (…) mediante contrapartidas inferiores aos valores de mercado (…), não ficou provado o dolo específico , ou que é o mesmo que o tivesse feito com intenção de prejudicar os credores ou, como refere a acusação e o pedido cível tivesse o propósito de falsamente diminuir os activos da empresa Carmem e Gameiro. Lda.”. Concluindo que “não se tendo provado qualquer factualidade que consubstancia o elemento subjetivo do crime de que vinha o arguido acusado, mostra-se prejudicada a apreciação da prova dos factos constantes do pedido de indemnização civil (…)”.

Ou seja, a absolvição na parte criminal resultou de não se ter provado que o arguido tenha agido com “dolo específico”, com “intenção” de prejudicar, isto é, não se provou um particular elemento subjetivo do tipo de crime, que, como tal, se distingue dos elementos pertencentes ao dolo do tipo, referido ao elemento objetivo do ilícito (sobre este ponto Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3.ª ed., GestLegal, 2019, pp. 442-444). Pelo que, não estando excluído o dolo, em qualquer das suas formas, e não sendo o crime de insolvência dolosa (artigo 227.º do Código Penal) um crime de resultado (o prejuízo não constitui elemento do tipo, mas apenas a “intenção” de o causar), embora de execução vinculada (pelos atos descritos no tipo), sempre restaria, no âmbito de apreciação da matéria de facto relevante para o preenchimento do tipo objetivo do crime e, consequentemente, para o estabelecimento dos pressupostos da responsabilidade civil (nomeadamente o prejuízo e o nexo causal), um campo autónomo de apreciação em vista da decisão sobre o pedido de indemnização civil.

15. O recorrente, embora de forma pouco concretizada, invoca que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação fez uma incorreta interpretação do disposto nos artigos 377.º e 379.º Código de Processo Penal, ao proceder à alteração da matéria de facto nos termos em que o fez, nomeadamente, alega, em virtude de a sentença da 1.ª instância não padecer do vício de erro notório na apreciação da prova.

Importa, desde logo, distinguir duas questões invocadas que não se poderão confundir: por um lado, a questão de o acórdão ter apreciado erradamente o vício do erro notório na apreciação da prova, por a sentença proferida em 1.ª instância não padecer desse vício; por outro, a circunstância de o acórdão proferido ser nulo, nos termos do artigo 379.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Da alegada incorreta apreciação do erro notório na apreciação da prova

16. Quanto à primeira questão, decorre das conclusões que o recorrente invoca que a sentença de 1.ª instância se encontrava devidamente fundamentada, tendo apreciado a prova produzida de modo adequado e crítico, operação que conduziu ao elenco dos factos provados e não provados; não resultando existir um erro notório na apreciação da prova, o Tribunal da Relação não o poderia considerar verificado e, consequentemente, alterado a matéria de facto.

Alega, assim, nomeadamente, que “uma vez que sendo o erro notório na apreciação da prova um conceito técnico-legal, o mesmo terá que ser detetável na decisão, o que não é manifestamente o caso, pois os contratos mencionados na alínea b) são os contratos celebrados em 2011 e referidos nos pontos 4) e 5) dos factos provados, e, nessa data a sociedade Carmem e Gameiro Lda. não estava em eminência falimentar (al. a) dos factos não provados), a qual apenas se verifica em 2016 (ponto 6) dos factos provados). Do mesmo modo, no que aos demais contratos respeita e mencionados nas alíneas c) a f) dos factos não provados e agora constantes dos pontos 12 a 15 adicionados, também não enfermam de qualquer erro notório da apreciação da prova, pois todos são anteriores à data da entrada em Juízo da Petição de Insolvência, ocorrida em Maio de 2016, tendo a sociedade requerida sido citada editalmente em 24-08-2017 e vindo a decisão de insolvência a ser decretada em 02-02-2018. (…) Como resulta da decisão de 1.ª instância, o que importava saber era se o arguido celebrou aqueles contratos com intenção de prejudicar os credores, o que foi feito através da análise crítica, detalhada e ponderada de toda a prova documental e testemunhal, concluindo pela não verificação e prova de qualquer propósito ou intencionalidade do arguido em prejudicar os credores da sociedade”.

Contudo, o que o recorrente agora pretende é que o Supremo Tribunal de Justiça examine a alteração efetuada pelo Tribunal da Relação, no que respeita à factualidade que este Tribunal entendeu encontrar-se provada. Ou seja, sem imputar ao acórdão da Relação qualquer um dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, que são vícios relativos à decisão sobre a matéria de facto – o que, como já se viu, não poderia constituir fundamento de recurso –, pretende que este Supremo Tribunal aprecie a decisão da Relação sobre a verificação do vício da sentença da 1.ª instância, por a seu ver, a prova produzida não permitir dar como provada a factualidade ora dada como assente na 2.ª instância.

No fundo, o recorrente pretende uma segunda apreciação da decisão em matéria de facto, apreciação que se esgotou com a decisão da 2.ª instância (artigo 428.º do CPP). Nota-se, a este propósito, que, ao contrário do que o recorrente parece alegar, a Relação não estava impedida de, oficiosamente, alterar a matéria de facto constante da sentença da 1.ª instância, por via da verificação de erro notório na apreciação da prova, mesmo que esse erro não tivesse sido invocado em recurso, no uso e no âmbito dos poderes que lhe são conferidos pelos artigos 426.º e 431.º do CPP, em vista da superação desse vício.

17. Como anteriormente se referiu, o recurso interposto da decisão do Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), sem prejuízo de o Supremo Tribunal de Justiça poder, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida – que é a decisão do tribunal da Relação e não a de 1.ª instância –, na medida em que esse conhecimento se revele necessário à boa decisão de direito.

Assim, pelo exposto, não se conhece da primeira questão suscitada no recurso, ficando o conhecimento deste limitado à invocada nulidade do acórdão da relação, a qual, embora não identificada no recurso, constitui matéria que, como se referiu, se inscreve nos poderes de conhecimento oficioso deste Supremo Tribunal de Justiça (artigo 379.º, n.º 2, ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP).

Da nulidade do acórdão recorrido

18. Dispõe o artigo 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “é nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º (…)

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Por sua vez, o artigo 374.º, n.º 2, estabelece que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

O artigo 425.º, n.º 4 estabelece que “é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º (…)”.

Tal normativo reflete o princípio da fundamentação, “consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República, o qual se traduz na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão – n.º 4 do artigo 97.º deste Código. Tal princípio, relativamente à sentença penal concretiza-se, porém, mediante uma fundamentação reforçada, que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a actividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da actividade decisória […]. A lei impõe, pois, que o tribunal não só dê a conhecer os factos provados e os não provados, para o que os deve enumerar, ou seja, indicar um a um, mas também que explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação de exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, isto é, dando a conhecer as razões pelas quais valorou ou não valorou as provas e a forma como as interpretou, impondo, ainda, obviamente, o tratamento jurídico dos factos apurados, com subsunção dos mesmos ao direito aplicável […]” (Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, 2014, pp. 1168 e 1169).

Como se afirmou no acórdão de 27.11.2019, Proc. n.º 3073/19.9T8GMR-S1, o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais resulta, como é conhecido, de razões que se extraem do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais, que implicam, para além do mais, a necessidade de justificação do exercício do poder estadual, de modo a possibilitar o seu controlo por parte dos destinatários e dos tribunais superiores, assim se conferindo garantia efetiva ao direito de defesa, incluindo o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. A fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido pelo artigo 6.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos, a qual impõe o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza (assim, o acórdão do TEDH de 09.07.2007, no caso Tatishvili c. Rússia, n.º 1509/02, e outros nele mencionados)”.

19. Tratando-se de decisão do tribunal de recurso que, em conhecimento dos vícios de decisão da 1.ª instância a que se refere o artigo 410.º, deva proceder à modificação da decisão sobre matéria de facto, o artigo 431.º do CPP impõe restrições específicas em matéria de prova, ao dispor que:

“Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova.”

Estabelecendo o n.º 1 do artigo 426.º que “sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.”

20. Relembrando a fundamentação, diz o acórdão recorrido:

“Como é sabido, o erro na apreciação da prova resulta de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado «que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa» (Ac. de 12.11.98, no BMJ 481-325). «Erro notório na apreciação da prova é aquele de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.» (Ac. STJ de 9.12.98, BMJ 482-68).

Aqui é imperativo constatar que os factos provados de 2) a 9) evidenciam claramente que o arguido agiu com o propósito de diminuir os activos da sociedade Carmem e Gameiro Lda” e, correspondentemente, enriquecer a sociedade “Enredos e Façanhas., Ldª”.

Aliás, sequer o procedimento é original, já que é a técnica habitualmente utilizada para concentrar as dívidas e extrair o património de uma determinada sociedade que se pretende conduzir à insolvência, concentrando o património e outros activos na nova sociedade que se pretende manter em giro comercial ou industrial. Basta a simples leitura da decisão recorrida para que tal se conclua.  

Em função disso não se entende da razão – ao menos – para que se tenha afastado, sem mais, a culpa civil, tão clara ela nos surge, para além da ilicitude e culpa civil resultantes da mera declaração de insolvência!

Daqui decorre como muito natural que os factos dados como não provados de b) a f) sejam dados como provados (…)”.

21. Como se vê, o Tribunal da Relação verificou que a sentença de 1.ª instância enfermava de “erro na apreciação da prova” – parecendo, com essa afirmação, querer referir-se ao vício de erro notório na apreciação da prova (da previsão do artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, que não identifica expressamente), que se distingue do erro de julgamento –, concluindo no sentido de dar como provados factos que a 1.ª instância considerou que não se encontravam provados (factos 11 a 16), com fundamento em que “os factos os factos provados de 2) a 9) evidenciam claramente que o arguido agiu com o propósito de diminuir os activos da sociedade Carmen & Gameiro Lda” e, correspondentemente, enriquecer a sociedade “Enredos e Façanhas, Ldª” – o que, podendo evidenciar contradição entre eles, se reconduziria a um vício de contradição insanável da fundamentação (artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP) –, bem como na consideração de que “o procedimento é original, já que é a técnica habitualmente utilizada para concentrar as dívidas e extrair o património de uma determinada sociedade que se pretende conduzir à insolvência, concentrando o património e outros activos na nova sociedade que se pretende manter em giro comercial ou industrial”. Em função disso, afirma, “não se entende da razão – ao menos – para que se tenha afastado, sem mais, a culpa civil, tão clara ela nos surge, para além da ilicitude e culpa civil resultantes da mera declaração de insolvência!”.

Não obstante seja possível compreender a conclusão última a que o Tribunal da Relação chega, desconhece-se o caminho lógico percorrido no acórdão para considerar aqueles factos como provados. Embora da fundamentação conste uma pequena introdução acerca do erro (notório) na apreciação da prova, o certo é que, na apreciação do caso, não é feita qualquer menção a esse vício, não se explicita se a alteração factual resulta da verificação oficiosa desse erro ou, pelo contrário, da reapreciação da prova produzida, apenas sendo referido, de modo vago, que “basta a simples leitura da decisão recorrida para que tal se conclua” (decisão em que se inclui a apreciação crítica das provas produzidas em julgamento).

De facto, o acórdão recorrido não concretiza sequer se estamos perante um erro notório na apreciação da prova ou um erro de julgamento, sendo que, tratando-se do primeiro caso (o que se afigura ser a situação, atendendo às considerações iniciais), deve ser especificado em que medida o texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, adotou conclusões ilógicas e inaceitáveis, em resultado de erro clamoroso e evidente à observação do leitor. Também não se identificam os trechos da decisão da 1.ª instância que se encontrariam concretamente viciados e que conduzem a uma conclusão totalmente díspar por parte do tribunal de recurso, não bastando que se aluda a situações gerais que frequentemente ocorrem, sem concretizar tais considerações no caso concreto.

Pelo que, nesta base, se deve concluir que o acórdão recorrido padece de falta de fundamentação, o que constitui a nulidade prevista na al. a) do n.º 2 do artigo 379.º do CPP (ex vi artigo 425.º, n.º 4).

22. Sucede, porém, que como já se referiu, o tribunal de recurso se encontra adstrito à observância de regras estritas em matéria de prova para que possa modificar a decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância (artigo 431.º do CPP), mesmo tratando-se, como se trata, de discutir apenas a parte relativa à indemnização civil, que segue as regras do processo penal [assim, entre outros, o acórdão de 11.7.2019 (Raul Borges), Proc. 1203/16.1T9VNG.P1.S1].

Não tendo havido recurso em matéria de facto da decisão da 1.ª instância, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, do CPP, nem renovação da prova, que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido (artigos 411.º, n.º, 5, 412.º, n.º 3, al. c), 423.º, n.º 2 e 430.º do CPP), o Tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto “se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base” (al. a) do artigo 431.º do CPP) (neste sentido, designadamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30.1.2002 (Armando Leandro), Proc. 3264/01-3.ª, apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª ed.,  Quid Juris, 2020, p. 1067-1068, de 23.3.2006 (Santos Carvalho), Proc. 06)547, em www.dgsi.pt, e de 24.5.2018 (Carlos Almeida), Proc. 632/13.7PARGR.L2.S1, apud Henriques Gaspar et alii, cit., 3.ª ed., p. 1384) .

Havendo arguição de vício do artigo 410.º, n.º 2, do CPP – o que parece ter sido aceite – o Tribunal da Relação deve verificar se “é possível decidir da causa” (artigo 426.º, n.º 1, do CPP) com os elementos de prova que constam do processo, excluindo a documentação (gravação) da prova em audiência. Não sendo tais elementos de prova suficientes para o efeito, não pode o Tribunal da Relação proceder à sanação do vício; neste caso deve o Tribunal da Relação ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do CPP (assim, Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, p. 1184-1185, e Pereira Madeira, CPP Comentado, p. 1363, e os acórdãos de 21.3.2018, Proc. 1188/15.1PHLRS.L1.S1, e de 24.2.2016, Proc. 502/08.0GEALR.E1.S1).

Dois momentos de decisão aqui se identificam (id., ibid.): o da deteção e aferição do vício – que, embora em termos imperfeitos, se mostra efetuada – e o de sanação do vício, com base num juízo prévio sobre a suficiência das provas necessárias para essa finalidade – as provas existentes no processo, a apreciar criticamente.

No caso sub judice não se mostra formulado tal juízo prévio, que se impunha ao tribunal recorrido antes de decidir sobre a modificação dos factos, no sentido de assumir a competência para proferir a decisão ou, caso contrário, no sentido de ordenar o reenvio à 1.ª instância para novo julgamento.

Assim sendo, omitiu o tribunal recorrido pronúncia sobre questão que devia apreciar, conhecendo de questão de que (ainda) não podia conhecer.

O que constitui a nulidade prevista na al. c) do n.º 2 do artigo 379.º do CPP (ex vi artigo 425.º, n.º 4).

III. Decisão.

23. Nestes termos, e com tais fundamentos, acordam os juízes da 3.ª Secção Criminal em declarar nulo o acórdão recorrido, determinando que o Tribunal da Relação de Évora profira novo acórdão em suprimento das nulidades verificadas, com observância do disposto nos artigos 426.º, n.º 1, 1.ª parte, e 431.º n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.

Sem custas.


Supremo Tribunal de Justiça, 22 de junho de 2022.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria da Conceição Simão Gomes

Nuno António Gonçalves

(assinado digitalmente)