Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2593/19.0T8VLG.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
CONTRATO DE SEGURO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
LIMITE DA RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA
PERDA DE VEÍCULO
VALOR REAL
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Indicações Eventuais: (*) NOTA DE CORRECÇÃO:
O SEGUNDO PARÁGRADO, DO Nº 2, DO PONTO III, POR ACÓRDÃO DE 02-03-2023, FOI RETIFICADO, AO ABRIGO DO ART. 614.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário :
Vigorando no seguro de danos o princípio indemnizatório, o valor da prestação a ser paga ao segurado não pode exceder o valor do dano
Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça



I – Foi proferida a seguinte decisão da relatora:

«1. AA propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Seguradoras Unidas, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento da indemnização devida pela perda total do veículo automóvel seguro em virtude do seu furto, nos termos contratualmente estabelecidos no contrato de seguro celebrado entre as partes, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, a contar do prazo de 60 dias sobre a participação criminal do furto até efectivo e integral pagamento.

Alega o A., no essencial, o seguinte:

- Que é proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca BMW, modelo 3-V, com a matrícula ..-VI-.., que adquiriu em Setembro de 2018, pelo preço de € 32.500,00, cuja responsabilidade pela sua circulação foi transferida para a R., através de contrato de seguro, titulado pela apólice do ramo automóvel com o n.º ...19, abrangendo a responsabilização da R. por danos próprios, tais como furto ou roubo, correspondendo o capital seguro, por furto ou roubo, ao montante de € 32.500,00, sem franquia;

- Que, do dia 31/01/2019 para o dia 01/02/2019, o identificado veículo automóvel lhe foi furtado do local onde o havia deixado estacionado, na via pública em que reside, tendo, naquele dia 01/2/2019, apresentado participação de tal furto junto da PSP e participado também o sinistro à R., não tendo o veículo sido recuperado;

- Que a R., contrariamente ao previsto no contrato de seguro celebrado, decorridos 60 dias sobre a participação não procedeu ao pagamento da indemnização devida, que considera ascender a € 32.500,00, tendo declinado a responsabilidade no dia 26/04/2019 sem nunca indicar especificamente a razão para tal.

A R. contestou, invocando que o veículo segurado se encontra identificado, como objecto do seguro nas condições gerais e especiais da apólice, como tratando-se de um modelo 318D, Pack M, e que, mercê da participação de sinistro recebida, na sequência da averiguação dos factos que lhe foram comunicados, não só tem a convicção de que o sinistro não ocorreu da forma indicada pelo A., como veio a concluir que o valor do veículo que serviu de base à cobertura definida não corresponde à realidade.

Alegou também a R.:

- Que o A. não descreveu a factualidade com rigor e apresentou explicações pouco coerentes ao averiguador da R., no que se refere às circunstâncias do furto invocado, tendo-se verificado ainda que o veículo em causa era um veículo belga, adquirido em venda por leilão electrónico especializado, ainda com a matrícula original, apresentando, em 03/09/2018, a quilometragem percorrida de 140467 km, não correspondente à informação prestada pelo A., nem pelo stand no qual o A. adquiriu a viatura em Portugal, segundo a qual tinha cerca de 121000 km percorridos;

- Que o A., aquando da celebração do contrato de seguro, declarou à R. que o veículo estava dotado do extra “Pack M”, o que veio a constatar-se não corresponder à verdade, tendo feito com que o capital seguro fosse fixado em, pelo menos, mais € 5.000,00, indevidamente;

- Que o veículo não valia, nem vale, a quantia de € 32.500,00, mas apenas e tão-somente a quantia de cerca de € 12.000,00;

A R. impugnou ainda a alegação do A. de que tenha obtido o veículo pelo preço de € 32.500,00, não só por ser manifesto que não seria esse o seu valor comercial, dadas as suas características, como também, porque aquele o A. que obteve de uma sociedade financeira, a concessão de crédito necessário à sua aquisição, no valor de € 33.000,00, embora apenas lhe tenha sido emitida factura, pela compra do veículo, de €18.000,00, não fazendo sentido a sua invocação de que entregou também, para pagamento do preço, uma outra viatura, a que foi fixado o valor de € 13.700,00.

Considera que, segundo a descrição do A., o suposto crédito associado à aquisição do veículo automóvel dado em pagamento de parte do preço de aquisição da viatura em causa nem sequer terá sido amortizado, pelo que o A. e o stand terão ficado com liquidez financeira e na posse/propriedade dos respectivos veículos, apesar dos negócios alegadamente celebrados, de modo indevido e injustificado.

Alegou ainda que ficou convencida de que os factos que o A. lhe declarou aquando da celebração do contrato de seguro, bem como aquando da participação do sinistro dos autos, são um meio concertado para obter a anuência quanto à celebração de um contrato de seguro com a cobertura de furto ou roubo com capital exagerado e uma indemnização claramente indevida, fazendo ainda notar que o A. se tem visto envolvido em vários sinistros automóveis, incluindo por furto de outro veículo em Agosto de 2017, pouco tempo depois de ter celebrado o contrato de seguro com a congénere da R., tendo dessa recebido indemnização, o que ocultou do averiguador do presente sinistro.

Por sentença da 1.ª instância foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e condeno a ré Seguradoras Unidas, S.A. a pagar ao autor AA a quantia que se vier a apurar em ulterior liquidação, correspondente ao capital seguro, na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, fosse conhecido que o veículo com a matrícula ..-VI-.. não estava dotado de conjunto de acessórios extra, denominado “pack M”, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar desde a data de 01/04/2020 e até efetivo e integral pagamento, absolvendo a ré do mais peticionado.».

Inconformado, interpôs a R. recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão do mesmo Tribunal, foi proferida a seguinte decisão:

«Por tudo o exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso e, alterando-se a decisão recorrida, condena-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de 13.100,00 euros acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data de 3/4/2019 até efectivo e integral pagamento.».


2. Veio o A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«24. O presente recurso visa discutir o julgamento acerca da matéria de facto julgada provada e não provada, bem como, a decisão acerca da matéria de direito atinente à subsunção dos factos provados ao contrato de seguro dos autos e à Lei.

25. “o A. é dono do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, da marca BMW, modelo 3V318D, com a matrícula ..-VI-...

26. A viatura foi adquirida pelo valor de €32.500,00 (trinta e dois mil e quinhentos euros).

27. Para pagamento do preço do automóvel recorreu a financiamento junto da C..., pelo montante de €33.000,00 (trinta e três mil euros).

28. O valor da fatura do veículo é de 18.000,00€;

29. Para pagamento do remanescente do automóvel entregou o veículo, marca Peugeot Partner, matrícula ..-SO-.., a qual foi de comum acordo entregue pelo valor de €13.700,00 (treze mil e setecentos euros).

30. Também esta tinha uma reserva a favor do M..., cuja liquidação o vendedor do BMW iria liquidar. Visto que lhe foi entregue o veículo Peugeot e recebeu a totalidade do preço do BMW em virtude do financiamento.

31. Que sem essa liquidação estaria a receber a mais € 14.200,00 (catorze mil e duzentos euros).

32. Efetivamente o crédito ao M... não foi liquidado, tendo sido extinta a reserva, por documentos falsos e disso já foi feita participação crime, cujo processo se encontra a decorrer no DIAP do Tribunal Judicial ..., com o número 905/19.....

33. Efetivamente o valor foi totalmente liquidado, conforme testemunha BB.

34. Dos factos provados resulta que, no dia 31 de Janeiro de 2019, o aqui Autor deixou o seu veículo estacionado na via pública e, no dia seguinte, pelas 10horas, aquando ao local regressou, aquele havia desaparecido, não tendo sido recuperado até ao momento.

35. Consequentemente, o Autor apresentou denúncia à autoridade policial, tendo-se iniciado inquérito que foi arquivado, por não se terem conseguido obter indícios da autoria dos factos.

Ora,

36. Conforme o entendimento plasmado no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/07/2013, e mencionado na douta sentença do Tribunal de 1ª Instância, para se verificar se ocorreu o sinistro furto ou roubo contratualizado no âmbito do contrato que abrange danos próprios, não é necessário analisar os pressupostos penais da consumação do crime de furto ou de roubo tal como tipificados na lei penal.

37. Assim sendo, verifica-se obviamente a perda do veículo segurado, estando assente o sinistro coberto pelo contrato que vincula a Ré, tendo como consequência, para esta, a obrigação de indemnizar.

38. Com efeito, atento ao princípio da liberdade contratual afirmado no art.º 11º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o negócio assim celebrado é regulado pelas estipulações da respetiva apólice que não sejam proibidas por lei; subsidiariamente, pelas disposições do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e, ainda subsidiariamente pelas disposições da lei comercial e da lei civil.

39. Assim, o contrato celebrado pelas partes, nos termos que ficaram assentes, verifica-se que foi convencionado um seguro de responsabilidade civil e ainda um seguro que cobre danos próprios do veículo em caso de furto ou roubo, integrando o tipo denominado “seguro de danos”, previsto no título II art.º 123.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

40. Por força de tal contrato de seguro, que abrange danos próprios do veículo em caso de furto ou roubo, a seguradora, verificado o sinistro, nos termos do disposto no art.º 99.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, constitui-se na obrigação de indemnizar o tomador do seguro pelo valor do dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro, tal como determina o princípio indemnizatório previsto no art.º 128.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

41. Sucede que, a Ré alega que o valor do veículo que serviu de base à cobertura definida não corresponde à realidade, dado que o veículo em apreço não tem “pack M” apresentando apenas o volante que costuma ser aplicado nos veículos com esse conjunto de acessórios, vulgarmente designados de “extras”.

42. Porém, a Ré não alegou, nem demonstrou que ao autor ao ter feito constar uma realidade incorreta quanto ao valor do veículo tenha usado de um artifício causador que não a levaria a contratar o seguro.

43. Ademais, a Ré nunca demonstrou que em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o fato omitido ou declarado inexatamente.

44. Pelo que, a Ré deve ser condenada a pagar ao A. a quantia que se vier a apurar em liquidação ulterior, correspondente ao valor do capital seguro, mas na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, fosse conhecida a condição do veículo, não dotado de “Pack M”».

A Recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Cumpre apreciar e decidir.


3. Vem provado o seguinte:

1) O autor AA é dono do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, da marca BMW, modelo 3-V 318 D, com a matrícula ..-VI-...

2) Por escrito, com a data de 07/09/2018, o autor declarou comprar a C..., Unipessoal, Lda., que explora o stand de venda de automóveis denominado “...”, o veículo automóvel com a matrícula ..-VI-.., de marca BMW, modelo 318 GT, fabricado em 01/2014, com cilindrada 1995, com 5 lugares e com 121000 quilómetros, pelo preço de € 18.800,00 e pela retoma do veículo automóvel de marca Peugeot, modelo Partner, com o valor de € 13.700,00, perfazendo um total de € 32.500,00.

3) O autor e C..., Unipessoal, Lda., declararam por escrito, datado de 25/08/2018, respectivamente vender e comprar o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo Partner, com a matrícula ..-SO-.., pelo preço de € 13.700,00.

4) Para pagamento do veículo identificado em 1), o autor, através de A..., Lda. solicitou a C..., S.A., em 29/08/2018, o financiamento da quantia de € 33.000,00 (trinta e três mil euros), a restituir em prestações mensais.

5) Essa quantia foi entregue por C..., S.A., a pedido do autor, de 29/08/2018, a A..., Lda..

6) C..., Unipessoal, Lda. emitiu, em nome do autor, factura relativa ao veículo acima identificado, com o preço de € 18.800,00, datada de 07/09/2018.

7) O veículo referido foi adquirido por M..., Unipessoal, Lda. em leilão electrónico, no país de origem da primeira matrícula, na ..., pelo preço de € 12.800,00, em 05/02/2018.

8) A essa data, o veículo, cuja matrícula original, de 15/01/2014, era 1GEI320, apresentava, pelo menos, 136659 quilómetros percorridos.

9) Na sequência de procedimento de desalfandegamento, com o pagamento da taxa aduaneira devida, de € 4.594,67, e por pedido de 05/06/2018, foi atribuída ao veículo a matrícula actual, acima indicada (..-VI-..).

10) À data de 03/09/2018, o veículo tinha 140467 quilómetros percorridos.

11) O veículo automóvel identificado encontra-se inscrito a favor do autor, na Conservatória do Registo Automóvel, através do registo n.º ...34, de 04/10/2018, com reserva de propriedade a favor de C....

12) Como anterior proprietário do veículo consta, na Conservatória do Registo Automóvel, com o registo n.º ...32, de 04/10/2018, M..., Unipessoal, Lda..

13) O autor, acompanhado do legal representante de C..., Unipessoal, Lda., solicitou a agência de mediação de seguros, representante da ré, a celebração de contrato de seguro de responsabilidade civil pela circulação do veículo acima identificado, tendo fornecido os respectivos dados e características.

14) O autor e o legal representante de C..., Unipessoal, Lda. comunicaram à ré, através dessa agência, que o veículo em causa, com a matrícula ..-VI-.., era de marca BMW, série 3, diesel, com o modelo 318 D “pack M”, com o valor de € 32.500,00.

15) O veículo descrito não tem “pack M”, apresentando apenas o volante que costuma ser aplicado nos veículos com esse conjunto de acessórios adicionais, vulgarmente designados de “extras”, proporcionado pela marca, do [que] tinha conhecimento o autor.

16) O autor quis indicar à ré que o veículo possuía esses acessórios extra, sabendo que tal não correspondia à sua concreta situação, com o objectivo de aumentar o valor do capital seguro.

17) Por escrito, o autor e a ré Seguradoras Unidas, S.A. declararam acordar na transferência para a segunda da responsabilidade pelo risco de danos próprios, nomeadamente por furto ou roubo, do veículo automóvel com a matrícula ..-VI-.., de marca BMW, série 3, diesel, com o modelo 318 D “pack M”, com início em 07/09/2018, conforme consta da apólice de seguro automóvel, com o n.º ...19 e suas cláusulas gerais e particulares e tabela de actualizações anexa, juntas aos autos com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

18) No dia 31 de Janeiro de 2019, pelas 21 horas e 30 minutos, o autor estacionou o veículo identificado na Av. ..., em ..., em lugar de estacionamento reservado a residente, para o qual tinha autorização camarária, aí o deixando.

19) No dia seguinte, 1 de Fevereiro de 2019, pelas 10 horas, quando se deslocou a esse local, o dito veículo automóvel ali não se encontrava.

20) O autor apresentou queixa na esquadra da Polícia de Segurança Pública, de ..., no dia 01/02/2019, dando origem ao inquérito criminal com o n.º 45/19...., que correu termos no DIAP ..., arquivado pelo Ministério Público, mediante despacho cuja notificação foi expedida ao autor em 25/02/2019, por não existirem indícios da autoria dos factos denunciados.

21) Até à data, o veículo indicado não foi encontrado pelas autoridades policiais.

22) O autor participou o sinistro à ré, em 01/02/2018, tendo esta iniciado averiguação, através de diligências de empresa de peritagens que lhe presta serviços.

23) Em 27/03/2019, o autor facultou ao averiguador ao serviço da ré duas chaves do veículo identificado, cuja leitura indicou, respectivamente, que a última utilização datava de 31/01/2019, às 21h20, apresentando o quadrante 149559 quilómetros percorridos, e uma utilização do dia 09/10/2018, às 21h52, apresentando o veículo 143517 quilómetros percorridos.

24) O autor declarou à ré, por escrito, datado de 27/03/2019, que o veículo tinha “pack M” e que fora adquirido pelo preço de € 33.000,00, ao stand “...” do seu amigo CC.

25) Por escrito datado de 26/04/2019, a ré comunicou ao autor que declinava responsabilidade pela liquidação dos danos.

26) À data de 01/02/2019, o veículo descrito em 1. tinha um valor comercial de 13.100,00 €. [dado como provado pela Relação]

27) O autor participou vários outros sinistros anteriores, entre os quais, designadamente o de furto de um veículo de marca BMW, série 4 Grand Coupé, de matrícula ..-SB-.., em 31/08/2017, tendo recebido de S..., S.A., a título de indemnização pela perda total, a quantia de € 41.062,00, em 18/01/2018, no âmbito de apólice de seguro com início em 29/06/2017.

Factos dados como não provados:

A) Sobre o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo Partner, que o autor declarou entregar a C..., Unipessoal, Lda., pelo preço de € 13.700,00 incide reserva de propriedade decorrente de contrato de financiamento obtido pelo réu, para pagamento do respectivo preço, aquando da sua aquisição, e que se encontrava por liquidar.

B) Caso o autor não tivesse declarado que o veículo estava munido de “pack M”, aquando da negociação da apólice, o valor de capital seguro teria sido mais baixo em, pelo menos, € 5.000,00.


4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto unicamente a seguinte questão:

- Valor da indemnização devida pela R. ao A. pela perda total do veículo automóvel segurado pela R..


5. Não estando posto em causa, no presente recurso, que ocorreu a perda total do veículo do A. por furto do mesmo, discute-se apenas qual o montante de indemnização a pagar pela R. ao abrigo da cláusula do seguro por danos próprios celebrado entre as partes.

A sentença da 1ª instância entendeu que tal indemnização deveria partir do valor do capital seguro, isto é, do valor de € 32.500,00 (cfr. facto provado 2), mas que, como foi provado que o veículo automóvel não dispunha do conjunto de extras que, aquando da celebração do contrato de seguro, o A. declarara possuir, devia a R. ser condenada «a pagar ao autor a quantia que se vier a apurar em liquidação ulterior, correspondente ao valor do capital seguro, mas na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, fosse conhecida a condição do veículo, não dotado de “pack M”.».

Tendo o Tribunal da Relação alterado a matéria de facto, dando como provado que, à data em que foi furtado, o automóvel «tinha um valor comercial de 13.100,00 €» (facto 26), julgou parcialmente procedente o recurso da R., reduzindo o montante indemnizatório para este último valor.

Insurge-se o A. contra esta decisão, afirmando, na introdução às suas alegações recursórias, pretender impugnar a fundamentação do acórdão recorrido, na parte em que deu como provado o referido facto 26, do qual resulta que o valor comercial do veículo automóvel era de € 13.100,00, mas sem levar esta questão às conclusões recursórias, o que, nos termos do art. 635.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, constitui uma restrição do objecto do recurso. Não cabe assim pronunciarmo-nos sobre tal questão.

Quanto ao mais, pretende o A. que seja repristinada a decisão da 1.ª instância, limitando-se a tecer considerações gerais sobre o valor do capital seguro dever prevalecer sobre o valor comercial do veículo.

Vejamos.

Prescreve o art. 128.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril), em vigor à data dos factos provados:

«A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.».

E, conforme dispõe o n.º 1 do art. 130.º do mesmo RJCS:

«No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.».

Temos assim que, tal como entendeu o acórdão recorrido, vigorando no seguro de danos o princípio indemnizatório, o valor da prestação a ser paga ao segurado não pode exceder o valor do dano. Sendo que, nos termos do n.º 1 do art. 132.º do RJCS:

«Se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro, é aplicável o disposto no artigo 128.º, podendo as partes pedir a redução do contrato.».

Conclui-se, assim, pela manifesta improcedência da pretensão do Recorrente.


6. Pelo exposto, dada a simplicidade da questão objecto do recurso, assim como dada a sua manifesta improcedência, ao abrigo do art. 656.º do Código de Processo Civil, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.»


II – Veio o Recorrente impugnar para a Conferência a decisão proferida pela relatora, apresentando extenso requerimento, no qual se limita a manifestar, de forma prolixa e repetitiva, a sua discordância com o sentido da decisão reclamada, sem, porém, pôr em causa a fundamentação da mesma.

A final, conclui nos seguintes termos:

«- A Ré deve ser condenada a pagar ao recorrente a quantia de € 32.500,00, correspondente ao valor do veículo, conforme os documentos já juntos aos presentes autos, a factura de compra de veículo, o valor apurado na retoma atráves da entrega do veículo Peugeot e o contrato de empréstimo que o recorrente assinou aquando da compra do veículo BMW, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor desde 03/04/2019 até efetivo e integral pagamento.

- Caso assim não se entenda, deverá ser a quantia que se vier a apurar em ulterior liquidação, correspondente ao capital seguro, na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, fosse conhecido que o veículo com a matrícula ..-VI-.. não estava dotado de conjunto de acessórios extra, denominado “pack M”, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor desde 03/04/2019 até efetivo e integral pagamento.».


Cumpre apreciar e decidir.


III – Não pode deixar de se salientar que o meio processual da impugnação para a Conferência de decisão de mérito proferida em singular, ao abrigo do art. 656.º do Código de Processo Civil, não pode constituir ocasião para, como sucede no caso dos autos, vir o Recorrente desenvolver, ampliando-a, a argumentação aduzida nas alegações de recurso e, menos ainda, vir alterar o pedido formulado no mesmo recurso.

Na verdade, da análise do requerimento de impugnação para a Conferência resulta, não apenas que o Recorrente utilizou o meio processual que o art. 652.º, n.º 2, do CPC, lhe faculta para ampliar as alegações de recurso (o que fica patente se confrontarmos o teor dos 44 pontos das alegações iniciais, incluindo as conclusões, com os 86 pontos, incluindo as conclusões, do requerimento ora em apreciação), como ainda que, em sede de requerimento, formulou o Recorrente um pedido principal (condenação da R. no pagamento da quantia de € 32.500,00, correspondente ao capital seguro) e um pedido subsidiário (condenação da R. no pagamento de «quantia que se vier a apurar em ulterior liquidação, correspondente ao capital seguro, na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, fosse conhecido que o veículo com a matrícula ..-VI-.. não estava dotado de conjunto de acessórios extra»), quando, em de alegações de recurso, se tinha limitado a formular este último pedido como pedido único.

Trata-se de um uso indevido do meio processual que a lei coloca ao dispor do Recorrente. A impugnação para a Conferência não constitui um novo recurso de revista, incidente sobre a decisão proferida em singular, mas sim o meio de fazer intervir o colectivo na apreciação do recurso interposto.


2. Aqui chegados, temos que a única questão jurídica que, no meio das extensas e pouco precisas alegações de recurso, é possível identificar consiste na rejeição da aplicação do princípio indemnizatório ao contrato de seguro de danos dos autos.

Com efeito, com diversos argumentos, pretende o Recorrente que a indemnização pela perda total do veículo automóvel segurado na R., devido a furto, seja aferida essencialmente em função do valor do capital do seguro e não, como decidiu o acórdão recorrido, em função do valor do bem segurado à data do sinistro.

Por outras palavras, pretende o Recorrente que o valor da indemnização seja calculado não com base no dano sofrido (€ 13.100,00) mas com base no valor do bem declarado aquando da celebração do contrato de seguro (€ 32.500,00), ainda que deduzido proporcionalmente nos termos enunciados no pedido do recurso (devido ao facto de ter ficado provado que, diferentemente do declarado, o modelo do automóvel não dispunha de certo conjunto de extras) (*)


A pretensão do Recorrente contraria frontalmente as normas dos art. 128.º («A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.») e do art. 130.º, n.º 1 («No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.») do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, razão pela qual, não pode proceder.


IV – Pelo exposto, indefere-se a impugnação, confirmando-se a decisão impugnada que julgou improcedente o recurso e manteve a decisão do acórdão recorrido.


Custas da impugnação pelo Recorrente.


Lisboa, 2 de Fevereiro de 2023


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira