Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A1347
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: ÓNUS DA PROVA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
LIVRANÇA
RELAÇÕES IMEDIATAS
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: SJ200505240013471
Data do Acordão: 05/24/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1 - Quem entrega uma livrança em branco fica com o encargo de fazer a prova do seu preenchimento abusivo; e essa prova, no caso de execução, terá de fazer-se nos
embargos de executado, cuja petição se destina à impugnação dos requisitos do título executivo e do direito substancial do exequente, em termos idênticos aos da posição assumida pelo contestante em processo comum de declaração (art.ºs 812 e ss., do CPC).
2 - Executadas livranças subscritas no âmbito de empréstimos bancários cujo cumprimento se visou garantir com a subscrição, apenas a desconformidade com o que tiver sido ajustado acerca do preenchimento poderá afectar a subsistência e a eficácia do direito do portador.
3 - A excepção de preenchimento abusivo não interfere na totalidade da dívida, confinando-se aos limites desse preenchimento. Por isso, se o subscritor inicial entregou a livrança em branco de quantia e o detentor imediato a preencher por quantia superior ao convencionado, a livrança vale segundo a quantia inferior, aproveitando-se os actos jurídicos praticados.
4 - Isto porque, no âmbito das relações imediatas, a obrigação cartular está sujeita ao regime comum das obrigações e, nos termos do art.º 292 do CC, a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se
mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.
5 - Não é abusiva a actuação do Banco embargado ao proceder à resolução dos contratos de abertura de crédito quando se provou que à data da resolução a embargante
já tinha utilizado na quase totalidade o crédito aberto, que a conta em que a embargante autorizara o débito das prestações de reembolso de capital e juros vinha revelando uma situação deficitária impeditiva do débito, e que a embargante estava praticamente sem actividade e incapaz de gerar recursos que lhe permitissem solver o débito então existente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Resumo dos termos essenciais da causa e do recurso,
"A" - Soluções informáticas, Ldª, B e C, D e E deduziram embargos à execução ordinária que no Tribunal de Lisboa lhes foi movida pelo Banco F, SA.
Alegaram que a comarca territorialmente competente é a de Oeiras; que as livranças não foram apresentadas a protesto por falta de pagamento, sendo, por isso, inoponíveis aos avalistas; que o preenchimento dos títulos é abusivo porquanto o exequente pôs termo aos contratos de abertura de crédito concluídos com a "A", Ldª, sem qualquer fundamento, assim impedindo o regular funcionamento da empresa;
que as condições específicas dos contratos, designadamente as suas cláusulas 4ª, foram elaboradas sem prévia negociação, pelo que são nulas, ante o disposto nos art.ºs 12º e 22º, b), do DL 446/85, de 25 de Outubro; e que são incorrectos os valores pelos quais os títulos dados à execução foram preenchidos.

O embargado contestou, defendendo, além do mais, que o Tribunal de Lisboa é o competente, que os títulos são oponíveis aos avalistas, que não houve preenchimento abusivo e que os contratos estavam em incumprimento à data das rescisões.
No saneador foi julgada improcedente a excepção da incompetência territorial e, a final, foi proferida sentença que julgou os embargos totalmente improcedentes.
Sob apelação dos executados a Relação concedeu procedência parcial ao recurso.
Assim, mantendo em tudo o mais a sentença, declarou inexigíveis os juros remuneratórios vencidos após 9.4.01 (data da resolução dos contratos), bem como outras quantias (imposto de selo, comissões e outros encargos) calculadas sobre tais juros, ordenando, em conformidade, a correspondente reformulação do cálculo das importâncias em dívida.
Mantendo-se inconformados, os embargantes pedem revista do acórdão da Relação, suscitando nas cinquenta e cinco conclusões da minuta as questões úteis que assim se podem resumir:
1ª - Violou-se o art.º 10º da LULL ao ordenar-se o prosseguimento da execução com exclusão dos juros remuneratórios vencidos após 9.4.01 dado que, provado o preenchimento abusivo do título executivo, "tal vício inquina a sua validade";
2ª - Ao omitir-se a pronúncia devida sobre a questão, suscitada na apelação, relativa à inexistência de fundamento legal ou convencional para a resolução unilateral dos contratos de abertura de crédito ajuizados, cometeu-se a nulidade prevista no art.º 668, nº 1, d), do CPC;
3ª - Os contratos não foram validamente resolvidos, pois a "A", Ldª, sempre manteve a conta provisionada para fazer face aos únicos pagamentos a que estava obrigada no decurso do contrato e sempre cumpriu com tais pagamentos;
4ª - Por isso, o preenchimento das livranças foi abusivo, facto que determina a inoponibilidade da execução aos avalistas por violação do pacto de preenchimento;
5ª - A Relação violou o art.º 334º do CC ao considerar que o recorrido não agiu com abuso do direito quando, "de forma artificial", "através de pretensas resoluções sem fundamento legal ou contratual", colocou os recorrentes na situação de
devedores das quantias reclamadas na execução;
6ª - A violação do art.º 334 do CC resulta ainda do facto de o recorrido ter cortado o crédito concedido à recorrente "A", Ldª, simultâneamente em todos os contratos de que esta era titular, impossibilitando-a, assim, face ao "estrangulamento
financeiro" que deliberadamente provocou, de solver os seus compromissos.

O exequente não apresentou contra alegações.
2. Considerações gerais
Em termos factuais, o caso sub judice apresenta-se do seguinte modo, circunscrito ao seu núcleo essencial: O exequente/embargado - sucessor, por fusão, de dois outros Bancos - executou três livranças subscritas pela 1ª embargante e avalizadas pelos restantes, todas com data de vencimento de 4.10.01 e não pagas; as livranças foram-lhe entregues em execução de três contratos de abertura de crédito em conta corrente realizados com a "A", Ldª, e a cujas cláusulas todos os executados deram o seu assentimento expresso; segundo os acordos de preenchimento inseridos nos três contratos (cláusula 9ª do contrato de 12.12.95, 7ª do contrato de 29.9.98 e 10ª do contrato de 28.12.99), os executados autorizaram o exequente a, em caso de incumprimento das obrigações decorrentes dos referidos contratos, preencher as livranças mediante a inscrição das datas de vencimento, do local de pagamento e do montante - este até ao limite das responsabilidades (capital e juros) assumidas pela 1ª embargante em cada uma daquelas aberturas de crédito; os montantes apostos nas livranças foram calculados de acordo com os pactos de preenchimento.
Por aqui se vê que os recorrentes foram executados por obrigações cartulares, cambiárias - justamente as assumidas nas três livranças em branco, cuja entrega ao embargado foi acompanhada da atribuição de poderes de preenchimento, expressos nas cláusulas que referimos; cláusulas que configuram, sem qualquer dúvida, verdadeiros e próprios pactos de preenchimento. E obedecendo as livranças a todos os requisitos previstos no art.º 75º da LULL, elas constituem, em princípio, títulos executivos, nos termos dos art.ºs 46º, c), e 51º do CPC. Ora, conjugando o disposto no art.º 10º da Lei Uniforme com o art.º 342º, nº 2, do CC, podemos dizer, parafraseando o acórdão deste Supremo de 28.5.96 (BMJ 457º, 405), que quem entrega uma livrança em branco fica com o encargo de fazer a prova do seu preenchimento abusivo; e essa prova, no caso de execução, terá de fazer-se nos embargos de executado, cuja petição se destina à impugnação dos requisitos do título executivo e do direito substancial do exequente, em termos idênticos aos da posição assumida pelo contestante em processo comum de declaração (art.ºs 812º e seguintes do CPC). Na presente situação, que direito substancial é este?

Apenas e só o que deriva para o Banco do pacto de preenchimento dos títulos incluído em cada um dos contratos de concessão de crédito; as vicissitudes destes - designadamente, e por exemplo, o apuramento das circunstâncias em que o Banco decidiu resolvê-los ou denunciá-los, assim como o julgamento sobre a legalidade intrínseca de semelhante comportamento - essas estão totalmente fora do objecto dos embargos, revelando-se de todo em todo indiferentes ao respectivo desfecho. É que a acção executiva tem por escopo, não a definição do direito violado, mas sim a sua efectiva reparação, apresentando-se o título executivo, segundo a lei, como sua condição necessária, mas suficiente (art.ºs 4º, nº 3, e 45º do CPC). Deste modo, executadas livranças subscritas no âmbito de empréstimos bancários cujo cumprimento se visou garantir com a subscrição, claro está que apenas a desconformidade com o
que tiver sido ajustado acerca do preenchimento poderá afectar a subsistência e a eficácia do direito do portador. Já os direitos e obrigações originados pelos empréstimos propriamente ditos, porque não reflectidos nos títulos, são irrelevantes, tornando-se ocioso discuti-los e defini-los nos embargos opostos à execução.

No caso presente, na medida em que o pacto de preenchimento tem como conteúdo a obrigação, a cargo do Banco embargado, de preencher as livranças de acordo com o critério estipulado com a subscritora, só a prova positiva da violação dessa obrigação poderia afastar a responsabilidade da A, primeira embargante; e subsistiria, mesmo nessa hipótese, a dos restantes embargantes, avalistas dos títulos,
visto que relativamente a eles o embargado é um portador mediato de boa fé (art.ºs 17º e 32º da LULL).

3. Mérito da revista
a) Alegam os recorrentes que ao ordenar a recomposição do cálculo das quantias em dívida por força da decretada exclusão dos juros vencidos após 9.4.01 a Relação violou o art.º 10º da Lei Uniforme, pois tal decisão contém, implícito, um juízo sobre o preenchimento abusivo dos títulos.
Sem razão, no entanto.

No aspecto considerado, o julgamento da 2ª instância baseou-se na consideração de que, tendo havido resolução dos contratos de abertura de crédito com efeitos a partir da data que se indicou, a obrigação de juros remuneratórios cessava nesse dia, nos termos dos art.ºs 432º e seguintes do CC. O embargado - diz-se no acórdão recorrido - poderia ter preenchido as livranças logo após as declarações resolutivas
dos contratos, mas optou por só o fazer cerca de seis meses mais tarde; pode fazê-lo, mas não pode onerar os embargantes com os juros correspondentes a esse lapso de tempo porque o contrato já estava resolvido. Ora, é evidente que esta decisão não comporta nenhum juízo, ainda que implícito, a respeito de um pretenso preenchimento abusivo dos títulos dados à execução, que, aliás, se demonstrou não
ter existido, pois deu-se como provado, em sede de matéria de facto, que os montantes apostos nas livranças foram calculados de acordo com os pactos de preenchimento.

E isto, por si só, faz cair pela base a alegação dos recorrentes. De resto, a obrigação de juros pressupõe necessariamente uma obrigação de capital, sem a qual não pode constituir-se; depois de constituído, porém, o crédito de juros torna-se autónomo, podendo extinguir-se sem o crédito principal (art.º 561º do CC); e se pode extinguir-se à margem do crédito de capital, naturalmente que também poderá reduzir-se, como no caso presente sucedeu, sem que isso se repercuta nas duas obrigações (a totalidade da obrigação de capital; e a parte restante da obrigação de juros). Por fim, conforme este Supremo Tribunal já anteriormente decidiu (acórdão de 17.12.92-BMJ 422º, 398), no domínio das relações imediatas
o preenchimento duma livrança feito pelo tomador por valor superior ao resultante do contrato de preenchimento não torna a livrança nula; esta mantém a sua validade relativamente ao montante resultante do mesmo contrato, quer quanto ao tomador, quer quanto ao subscritor e respectivo avalista. A excepção de preenchimento abusivo,
por conseguinte, não interfere na totalidade da dívida, confinando-se aos limites desse preenchimento. Por isso, se o subscritor inicial entregou a livrança em branco de quantia e o detentor imediato a preencher por quantia superior ao convencionado, a livrança vale segundo a quantia inferior, aproveitando-se os actos jurídicos praticados. Isto porque, no âmbito das relações imediatas, a obrigação cartular está sujeita ao regime comum das obrigações e, nos termos do art.º 292º do CC, a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.
Ora, esta excepção não se verifica no caso presente: de nenhum dos factos coligidos se pode inferir as partes só teriam concluído o pacto de preenchimento mediante a inclusão dos juros remuneratórios que a Relação reputou indevidos.

b) Não procede, de igual modo, a questão levantada na segunda conclusão da minuta.
Com efeito, não houve relativamente ao problema referido, - o de saber se a resolução unilateral dos contratos de abertura de crédito foi ou não ilegal - qualquer omissão de pronúncia relevante, isto é, geradora de nulidade, porque, na óptica da
Relação, claramente expressa na síntese conclusiva do acórdão recorrido, "o contrato de abertura de crédito ou de concessão de crédito em conta não deve ser denunciado ou resolvido sem justa causa no período para que foi celebrado; mas após se verificar a data do seu términus pode ser sucessivamente prorrogado por acordo das partes ou pode ser denunciado, agora sem justa causa, se do texto escrito do contrato nada resultar que condiciona a denúncia ou resolução". Significa isto que, decidindo como decidiu, a 2ª instância considerou fundamentadamente prejudicado o conhecimento da questão a que os recorrentes aludem; e tal
facto, nos termos do art.º 660º, nº 2, do CPC, afasta a verificação da nulidade arguida.

c) A rejeição das conclusões 3ª e 4ª decorre linearmente do que se disse no ponto 2 (considerações gerais), bem como na antecedente alínea a). Interessa apenas acrescentar duas notas. A primeira para sublinhar que, contrariamente ao que se alega na revista, não ficou provado que a 1ª embargante sempre tivesse pago pontualmente as prestações de capital e os juros remuneratórios (resposta negativa ao quesito 1ª).
A segunda para repetir que não houve preenchimento abusivo dos títulos (pelo contrário: provou-se, explicitamente, como já se disse, que tal não aconteceu);
porém, mesmo que se tivesse verificado essa excepção, ela não aproveitaria aos recorrentes avalistas, quer porque se trata de excepção pessoal, invocável somente nas relações imediatas (subscritora/tomador), quer porque o embargado, como atrás dissemos, é portador de boa fé, quer ainda porque a vinculação cambiária do avalista é autónoma, no sentido de que subsiste ainda que a do criador do título se mostre inexistente, nula ou ineficaz.

d) Quanto ao alegado abuso do direito - questão suscitada nas conclusões 5ª e 6ª - valem também para justificar a sua improcedência, mutatis mutandis, as considerações já feitas no ponto 2 e nas alíneas a) e c). Importa tão somente insistir no seguinte: 1º) É inútil perspectivar o abuso a partir da alegada rescisão dos contratos à margem da lei visto que essa problemática nenhuma pertinência tem ao caso em litígio; tendo em conta o objecto que com a execução das livranças ajuizadas ficou definido para o processo executivo e subsequentes embargos, é evidente que só o incumprimento dos contratos de preenchimento das livranças por parte do Banco, e não o das aberturas de crédito em cujo desenvolvimento tais títulos surgiram, poderia impedir a satisfação coactiva do seus direitos cambiários ali incorporados; 2º).

De todo o modo, os factos apurados não autorizam a conclusão de que o embargado, cortando em simultâneo todo o crédito concedido, deu causa ao estrangulamento financeiro da empresa (1ª embargante). Tudo indica, até, que as coisas se passaram exactamente ao contrário, pois ficou provado que à data da resolução dos contratos a A já tinha utilizado na sua quase totalidade o crédito aberto a seu favor (120 mil contos, no total); que a conta em que autorizara o débito das prestações de reembolso de capital e juros vinha revelando uma situação deficitária impeditiva do débito; que a resolução contratual foi decidida em face da situação financeira da empresa que já antes disso se verificava; que a A estava praticamente sem actividade e incapaz de gerar recursos que lhe permitissem solver o débito então existente (cerca de 150 mil contos de capital); e, até, que nenhum dos executados era já dono de qualquer património imobiliário, tendo dois deles transferido para uma off shore sediada em Gibraltar a fracção de que eram proprietários.

Perante estes elementos de facto não faz sentido dizer-se que o embargado abusou do seu direito ao pôr fim aos contratos. Estando nessa altura a 1ª embargada em estado verdadeiramente "comatoso" - permita-se-nos a expressão - não se vê que, objectivamente considerada, a conduta do Banco possa ser taxada de excessiva, pois limitou-se a accionar as cláusulas rescisórias inseridas nos contratos livremente concluídos pela 1ª embargante; e fê-lo, note-se, numa altura em que o risco de crédito, para cujo agravamento não se provou ter concorrido de maneira nenhuma, era já muito elevado. Constituindo o abuso um limite normativo imanente ou interno dos direitos subjectivos - há comportamento abusivo, rejeitado pelo art.º 334º do CC, quando os limites inerentes ao direito subjectivo invocado são ultrapassados - é evidente que no caso ajuizado o embargado "não pisou o risco" traçado por tal norma: reclamou dentro das fronteiras legais e sem qualquer excesso ou ofensa da boa fé um direito de crédito, não se justificando, por isso, lançar mão do instituto do abuso para deter o seu exercício.

4. Decisão
Nega-se a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 24 de Maio de 2005
Nuno Cameira,
Sousa Leite,
Salreta Pereira.