Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A2989
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOPES PINTO
Descritores: INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
ERRO NA DECLARAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
Nº do Documento: SJ200311110029891
Data do Acordão: 11/11/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I- O sentido a que o artº. 236º-1 CC faz referência é o sentido pretendido. É admissível a prova testemunhal para indagar desse sentido em ordem a interpretar a declaração, o que é distinto do problema de afirmação de convenção contrária ou adicional à declaração negocial.
II- O apuramento da vontade efectiva quando derive da interpretação dos factos provados sem apelo a critérios de fixação do sentido normativo da declaração de vontade não é sindicável pelo STJ.
III- O erro na identificação do prédio hipotecado que seria 'libertado' após o pagamento parcial da dívida atingir certo valor, tendo-se exarado um em vez de outro igualmente hipotecado constitui erro-obstáculo que, por ser ostensivo, confere direito à rectificação da declaração.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" propôs contra B e mulher C e D e mulher E acção a fim de os réus serem condenados a reconhecer que existe lapso na escrita da escritura pública outorgada no 1º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, de fls. 104 vº a 106 do Lº 36-G, e, assim, que na mesma onde se diz «hipoteca reduzir-se-á ao primeiro dos prédios» deverá constar «a hipoteca reduzir-se-á ao segundo dos prédios», alegando ter sido essa a vontade real dos declarantes na prestação da garantia à dívida reconhecida mas que, por lapso de escrita de que na altura da sua realização ninguém se apercebeu, outra foi consignada.
Contestando separadamente, impugnaram os réus os factos.
Após réplica não admitida, prosseguiu até final o processo, tendo a acção procedido por sentença que a Relação confirmou.
Inconformados mais uma vez, pediram revista os réus Oliveira concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações, que, por inadmissibilidade da prova testemunhal a todos os quesitos com excepção do 1º (na infra al. e)), se considerem não-escritas as respostas aos restantes (nas infra als. f) a m)) e se revogue o acórdão recorrido, tendo por violado o disposto nos artºs. 238º, 249º, 393º e 394º, CC e 712º, CPC.
Contra-alegando, defendeu o autor a sua confirmação.
Colhidos os vistos.

Matéria de facto que as instâncias consideraram provada -
a)- em 95.11.03 o autor e os 1º e 2º réus celebraram a escritura pública de confissão de dívida com hipoteca nos termos da qual os 1º réus se confessaram devedores ao autor "da quantia de cinquenta e oito milhões e oitocentos mil escudos, a qual se obrigam a pagar em sessenta prestações mensais, nos termos e quantitativos das letras aceites de que, neste acto, fazem entrega ao segundo outorgante" (aqui, autor);
b)- ficou acordado no referido contrato que "em garantia de todas as obrigações assumidas pelo primeiro outorgante (1º réus), os terceiros outorgantes (2º réus) constituem hipoteca sobre dois imóveis a seguir descritos, de que declaram não existir qualquer outra anterior em vigor:
1) prédio urbano (...) situado no lugar de ..., freguesia de S. João da Madeira (...) descrito sob o número zero zero quatrocentos e dezasseis, da freguesia de S. João da Madeira e nela inscrito a favor do terceiro outorgante (3º réu) pela inscrição G-dois;
2) prédio urbano (...) situado no lugar do ..., freguesia de Pindelo, concelho de Oliveira de Azeméis (...) descrito na competente Conservatória sob o nº. zero zero cinquenta e nove, da freguesia de Pindelo, e nela inscrito a favor do terceiro outorgante (3º réu) pela inscrição G-um";
c)- ficou ainda acordado que "a hipoteca reduzir-se-á ao primeiro dos prédios logo que estejam pagas todas as prestações no montante de vinte milhões de escudos";
d)- os 1º réus pagaram prestações no montante de 25.200.000$00;
e)- os prédios referidos na al. b) foram avaliados pelos réus em 20.000.000$00 e 40.000.000$00, respectivamente, valores que o autor aceitou;
f)- o autor, antes da celebração da escritura referida na al. a) aceitou que logo que estivessem liquidadas prestações no montante de 20.000.000$00 "libertaria" o prédio referido na al. b)-1) e sito em S. João da Madeira,
g)- e porque tal prédio estava avaliado em igual valor,
h)- mantendo-se a hipoteca do prédio sito em ... (referido na al. b)-2) para garantia da prestação de 38.800.000$00;
i)- foi nos termos referidos nas als. e) e f) que foram - por todas as partes - dadas as instruções para a elaboração da escritura referida na al. a);
j)- o autor e todos os réus queriam e pensavam que ficava clausulado na escritura o referido nas als. e) e f);
l)- no acto da assinatura da escritura referida na al. a) nem o autor nem os réus se aperceberam da desconformidade entre o referido nas als. e) e f) e o ali clausulado, constante da al. c);
m)- os réus sabiam que o constante da escritura referido na al. c) não corresponde ao acordado entre todos.

Decidindo: -
1.- Pela escritura pública, documento autêntico, fica plenamente provado que foram proferidas as declarações de vontade dela constantes.
Discute-se se essas declarações, quanto a uma das cláusulas, traduzem a vontade real dos outorgantes e, se a esta não corresponder, podem elas valer de acordo com o efectivamente querido e conhecido de todos.
Não restam dúvidas sobre o reconhecimento da dívida dos 1º réus nem que quiseram que ela fosse garantida por hipoteca sobre determinados prédios dos 2º réus. Em crise apenas a cláusula que estabeleceu a redução da hipoteca logo que paga certo montante da quantia confessada em dívida.
Não é posto em dúvida nem dos factos resulta que quer a confissão de dívida quer a prestação da garantia não teriam tido lugar se na cláusula de redução da hipoteca se tivesse observado outra ordem de indicação dos prédios.

2.- Considerando estar-se face a erro incidental, julgou-se admissível a produção de prova testemunhal (CC- 392º), pelo que, por força quer do artº. 249º quer do artº. 238º-2 CC, a declaração de vontade devia ser, como foi, rectificada ficando a valer de acordo com a vontade real de todos conhecida.
Analisemos a questão numa tripla vertente - interpretação do negócio jurídico, erro na declaração (e não na formação da vontade) e prova admissível.
A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (CC- 236º, 1).
Sempre que o declaratário conhecer a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (CC- 236º, 2).
Como ensinava Castro Mendes, «o sentido a que o preceito faz referência é o sentido pretendido» (in Teoria Geral do Direito Civil II/248).
Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (CC- 238º, 1).
Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (CC- 238º, 2).
Valor da dívida confessada e para pagamento da qual foi prestada garantia - 58.800 contos. Valor global atribuído aos prédios sobre que incidiu (e ainda incide) a hipoteca - 60 mil contos (a um, 20 mil e ao outro, 40 mil contos).
Dívida a ser paga em 60 prestações mensais, estipulando-se que o não pagamento de qualquer delas implicará o vencimento da totalidade.
Se nada de diverso tivesse sido estipulado, a garantia hipotecária manter-se-ia na sua total extensão independentemente do valor que o pagamento parcelar fosse atingindo. Todavia, outra e diversa foi a vontade dos outorgantes - reduzi-la logo que o montante pago alcançasse um determinado valor, 20.000 contos. Reduzi-la libertando dela um dos prédios. É sobre essa declaração indicando qual seria libertado que incide o litígio porquanto ficou exarado na escritura, na óptica do autor, um por outro.
A declaração negocial existe, não se questiona a sua existência. Mas também não se trata de afirmar a existência de convenção contrária ou adicional. O problema é distinto, tão somente de interpretação do contexto do documento, pelo que a prova testemunhal é admissível (CC- 393º, 3).

3.- Os outorgantes na escritura pública quiseram e querem um e outro negócio jurídico - não é a sua validade que é posta em crise.
A garantia foi estabelecida para a totalidade da dívida.
Uma cláusula prevendo a redução da garantia hipotecária foi acordada - cláusula que é estabelecida não a favor do autor mas do garante, não do credor a quem aproveitaria a sua manutenção até ao pagamento da dívida.
O querido foi prever e estipular a redução da garantia não a sua inutilização prática. A ser esse o sentido dessa declaração ele escaparia, de todo, à normalidade do comportamento das pessoas constituindo excepção - nessa medida incumbiria aos réus prová-la se alegada tivesse sido, e não o foi.
Os prédios sobre que incide a garantia (referidos na al. b)) foram avaliados pelos réus em 20.000.000$00 e 40.000.000$00, respectivamente, valores que o autor aceitou.
Para o pagamento da dívida foi acordada uma periodicidade das prestações - mensal.
A redução foi acordada para quando as prestações mensais pagas atingissem o valor global de 20.000 contos. Este montante coincide com o valor que os réus atribuíram, e o autor aceitou, a um dos prédios sobre que incide a hipoteca.
Tendo-se querido garantir o pagamento da totalidade da dívida, não se compreenderia, sob pena de, na prática, a inutilizar - por deixar 'a descoberto' dela parte substancial da dívida (20.000 contos) - acordar que da redução fosse objecto o prédio a que se atribuíra o valor de 40.000 contos logo que ocorresse o pagamento de apenas 20.000.
O sentido pretendido não foi esse e um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, com segurança o excluiria e exclui.
O sentido pretendido foi o de possibilitar a redução logo que atingido aquele valor na medida em que a um dos prédios fora atribuído esse mesmo valor mas mantendo a garantia em relação ao restante em dívida, com o que aquele objectivo de a garantia ser estabelecido para a totalidade da dívida não seria alterado.
Pela interpretação da declaração, apenas com base no documento em si, alcança-se, com segurança, que o sentido pretendido foi este. A confirmá-lo, se necessário fosse, quer a consequência da não satisfação pelos réus do ónus de alegar quer a prova produzida e fixada pelas instâncias.
A este propósito, um parêntesis - o apuramento da vontade efectiva quando derive da interpretação dos factos provados sem apelo a critérios de fixação do sentido normativo da declaração de vontade (CC- 236º a 238º) é conclusão de facto e, porque tal, não sindicável pelo STJ (CPC- 729º, 1; sobre isto, e juízos de valor, cfr., 'Os juízos de valor da lei substantiva, o apuramento dos factos na acção e o recurso de revista' de A. Varela in CJ XX/4/7 e ss).
Além de o devedor e o garante conhecerem ser essa a vontade real do credor, sucede que, no texto da escritura, há, como resulta do exposto, um mínimo de correspondência (CC- 238º, 1).
As razões determinantes da forma não se opõem à fixação e validade deste sentido da declaração (CC- 238º, 2).

4.- A vontade declarada na cláusula em que foi prevista e estabelecida a redução da hipoteca não corresponde à vontade real dos seus autores - houve erro na identificação do prédio que seria 'libertado', em vez de um («segundo») ficou exarado outro («primeiro»).
Trata-se de erro-obstáculo na espécie que Castro Mendes definia como traduzindo «um erro entre o conteúdo de pensamento expresso e a realidade a que esse conteúdo de pensamento se queria referir» (op. cit., II/135) e de erro cognoscível ou ostensivo porque a divergência é «apreensível com segurança pelos próprios termos e circunstancialismos da declaração» (p. 137).
O negócio jurídico vale tal como foi querido e, por força dos artºs. 238º-1, 236º-2 e 249º, CC, essa divergência apenas dá direito à rectificação da declaração.
Tendo sido este o pedido do autor, teria de proceder, como procedeu, a acção.

Termos em que se nega a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 11 de Novembro de 2003
Lopes Pinto
Pinto Monteiro
Reis Figueira