Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | LOURENÇO MARTINS | ||
Nº do Documento: | SJ200203200040133 | ||
Data do Acordão: | 03/20/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Sumário : | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I 1. No P.º Comum n.º 202/01, do 2º Juízo Criminal da Comarca de Santo Tirso, mediante acusação do Ministério Público, com intervenção do Colectivo, foram submetidos a julgamento: 1. A, solteiro, feirante, nascido a 5 de Novembro de 1980, filho de ... e de ..., natural da freguesia de Castelões de Cepeda, concelho de Paredes, residente em Santo Tirso; 2. B, solteira, feirante, nascida a 31 de Maio de 1980, filha de ... e de ..., natural da freguesia de Maximinos, Braga, residente em Santo Tirso; e 3. C, divorciado, nascido a 19 de Novembro de 1961, filho de ... e de ..., natural da freguesia de S. Miguel do Couto, Santo Tirso, residente em Santo Tirso, sob imputação, aos arguidos A e B, da co-autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes, pp. pelos artigos 21º e 24º, alíneas b) e c) e ao A, ainda, em concurso efectivo, como autor material de um crime de consumo de estupefacientes, pp. pelo artigo 40º , n.º 1, do Decreto- Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; ao arguido C a autoria material de um crime de consumo de estupefacientes, pp. pelas citadas disposições legais. Quanto ao crime de consumo de estupefacientes, imputado aos arguidos A e C, foi declarado extinto o procedimento criminal, nos termos do disposto nos artigos 2º, n.º 2 do Código Penal, e 28º, da Lei n.º 30/00, de 29 de Novembro, tendo a audiência de Julgamento prosseguido no restante da acusação. Por acórdão de 12 de Julho de 2001, o Colectivo deliberou: absolver a arguida B; condenar o arguido A na pena de 1 (um) ano de prisão, como traficante-consumidor, crime pp. pelo artigo 26º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Nos termos do disposto nos artigos 35º, n.º 2 e 36º, n.º 1 do citado diploma, declarou perdidos a favor do Estado o produto e comprimidos que se encontravam apreendidos . Ordenou a restituição ao arguido do veículo de matrícula QG-...-..., telemóvel, objectos e dinheiro que se encontravam apreendidos. Porque o A estava detido desde o dia 12 de Julho de 2000, ordenou a restituição deste, e da arguida B, à liberdade. 2. Não se conformou com a decisão o Dig.mo Procurador da República na comarca de Santo Tirso, interpondo recurso de cuja motivação retirou as seguintes conclusões (por transcrição): "1- O arguido, quando foi surpreendido pelos elementos da autoridade, tinha na sua posse 12,225 gramas de heroína. 2- Destinando parte desta ao seu consumo e a parte restante a cedências a terceiros consumidores, com o objectivo exclusivo de conseguir desta mesma substância para o seu consumo. 3- Atenta a quantidade de droga detida pelo arguido, que, dado o disposto no n.º 9 da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março e mapa anexo, ultrapassa o necessário para o consumo médio diário de 10 (dez) dias, por força do n.º 3 do art. 26.º do DL. n.º 15/93, de 22/1, tais factos não se podem subsumir ao n.º deste preceito legal. 4- Antes integram os mesmos o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. p. art. 21.º do citado DL.. 5- Atentos os factos enunciados, entende-se que o arguido actuou com um grau de ilicitude elevado. 6- Por outro lado, agiu com dolo directo, o que releva intensa vontade criminosa. 7- No que concerne à prevenção geral, atento o flagelo que constitui a questão da droga (consumo e/ou tráfico), este facto deve fazer-se sentir por forma a pesar na pena a impor ao arguido e por forma desfavorável a este. 8- Finalmente, refira-se que as condições pessoais do arguido têm um diminuto valor atenuativo. 9- Nesta conformidade, deve o arguido ser condenado na pena de 5 anos de prisão. 10- Ao decidir da forma como o fez, o Tribunal Colectivo violou os artigos 21.º e 26.º, ambos do supra referido DL.". Termina pedindo a revogação parcial do acórdão recorrido e a aplicação da pena de 5 anos de prisão ao arguido. Nenhum dos arguidos, nomeadamente o A, respondeu. 3. Já neste Supremo Tribunal o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto requereu a produção de alegações escritas, ao que o recorrido não se opôs, tendo sido concedido o respectivo prazo. Nelas conclui: "I- A quantidade de heroína detida pelo arguido- 12,225 gr. -, excedendo a limitação constante do art.º 26.3 do Dec.-Lei n.º 15/93 e art.º 9 da Portaria n.º 94/96, impede a subsunção dos factos no art.º 26.1 do referido Dec.-Lei; II- A detenção da referida quantidade (e ausência de outras circunstâncias com reflexo relevante na ilicitude), destinada ao consumo próprio e eventual cedência a terceiros com o objectivo exclusivo de conseguir substâncias para seu consumo, diminuindo o grau de ilicitude do facto não o transportam para um patamar consideravelmente inferior, próprio do tipo do art.o 25. III- Ao condenar o arguido como autor de um crime do art.o 26.1 do Dec.-Lei n.o 15/93, o tribunal violou os artigos 21 e 26.1 do referido diploma legal". Assim, deverá ser concedido provimento ao recurso, condenando-se o arguido pelo crime do artigo 21º, n.º 1, em pena de prisão próxima do limite mínimo. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II Após audiência de discussão e julgamento o Colectivo considerou provada a seguinte matéria de facto: "Os arguidos A e B viviam maritalmente desde data indeterminada do início do ano de 1999, residindo num acampamento de etnia cigana, que então ali existia. Os arguidos A e B exerciam a actividade de feirantes. No dia 12 de Julho de 2000, pelas 17 horas e 40 minutos, quando se faziam transportar no veículo automóvel, marca Fiat, modelo Uno, cor preta, matrícula QG-...-..., os arguidos A e B foram interceptados pelos agentes da Policia de Segurança Pública, D e E, no Lugar da Ermida, Santa Cristina do Couto. Ao aperceberem-se da aproximação dos agentes da P.S.P., A e B encetaram uma fuga, tendo-se imobilizado cerce de 500 metros à frente, por se encontrarem, uns troncos a barrar a estrada, impedindo a circulação. Verificando a aproximação dos agentes da autoridade, o arguido atirou pela janela do automóvel um saco plástico, que foi recuperado por aqueles agentes e que continha no seu interior um produto de cor castanha, que submetido a exame laboratorial realizado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, foi identificado como heroína, com um peso líquido de 12.225 gramas, substância qualificada como estupefaciente abrangida pela Tabela I-A, anexa ao D.L. n.º 15/93, de 22.1 e quatro comprimidos, de cor branca, que submetidos a exame laboratorial, também pelo L.P.C., foram identificados como sendo "Piracetam" - cfr. Doc. de fls. 110, que aqui se dá por integralmente reproduzido. Por sua vez, o arguido A lançou para o chão algumas notas do Banco de Portugal, que foram recuperadas pelos agentes da P.S.P., tendo-se apurado que totalizavam a quantia de 16000 escudos ( dezasseis mil escudos), proveniente do abono de família da filha. Efectuada revista no veículo automóvel, com a matrícula QG-...-..., na qual foram encontrados o respectivo livrete a guia de substituição do título de registo de propriedade, um telemóvel, marca "Trium", uma faca de cozinha com uma lâmina de 17,50 cm e um pau de madeira, tipo bastão. A substância apreendida foi adquirida por A em circunstâncias de tempo, modo e lugar não concretamente apuradas, a pessoa cuja identidade não foi possível determinar e destinava-se ao seu próprio consumo e a eventuais cedências a terceiros consumidores, com o objectivo exclusivo de conseguir desta mesma substância para o seu consumo. O arguido A conhecia perfeitamente as características psicotrópicas (sic) das substâncias que lhe foram apreendidas, sendo certo que, à data da sua detenção, consumia, em média, desde há dois anos, heroína, sob a forma fumada, meia grama, duas ou três vezes por dia. O arguido A agiu livre, deliberada e coincidentemente, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida por lei. O arguido A não tem antecedentes criminais. Não se provou que nenhum dos arguidos A e B exerça qualquer actividade profissional remunerada, daí que tenham formulado a resolução de se dedicarem, em conjunto, à comercialização de produtos estupefacientes. Não se provou que desde data não concretamente determinada até 12 de Julho de 2000, os arguidos A e B, agindo em conjugação de esforços e concretamente, de forma, reiterada, detiveram, transportaram e venderam quantidades não apuradas de heroína a um elevado número de consumidores dessa substância. Não se provou que para o exercício da sua actividade ilícita, utilizavam, entre outros objectos e instrumentos, um telemóvel, uma faca de cozinha e um veículo automóvel, marca Renault, modelo 21, cuja matricula não foi concretamente apurada, em virtude de ter sido vendido pelos arguidos a pessoa cuja identidade não foi possível apurar, sendo que em 7 de Julho de 2000, começaram a utilizar o veículo automóvel, marca Fiat, modelo Uno, ligeiro de passageiros, cor preta, com a matricula QG-...-..., adquirido naquela data. Não se provou que sempre que algum consumidor pretendia adquirir produtos estupefacientes aos arguidos, estabelecia contacto pessoal ou para telemóvel, combinando com qualquer um dos arguidos o local e hora para o encontrar, bem como a quantidade de heroína pretendida. Não se provou que outras vezes eram os próprios arguidos A e B que contactavam os toxicodependentes junto a cafés frequentados por aqueles, oferecendo a venda da heroína. Não se provou que, após, A e B se deslocavam no seu veículo automóvel ao local previamente combinado, normalmente escolhiam lugares ermos onde pudessem realizar a transacção longe da observação das autoridades policiais, como é exemplo a mata sita no Lugar da Ermida, Santa Cristina do Couto, Santo Tirso, e faziam a entrega da substância estupefaciente encomendada, recebendo o preço correspondente. Não se provou que no referido período, e segundo o processo descrito, os arguidos tivessem vendido heroína de modo repetido e habitual, ao preço de 8/10 contos a grama e 4/5 meia grama. Não se provou que, quando se encontraram no exercício daquela actividade ilícita, haviam acordado encontrar-se no lugar da Ermida, Santa Cristina do Couto, com o C, conhecido por C "...", e com outros toxicodependentes, para fazer a entrega de quantidade não totalmente apurada de heroína. Não se provou que, verificando a aproximação dos agentes da autoridade, a arguida B atirou pela janela do automóvel um saco de plástico que continha no seu interior um produto de cor castanha e que foi identificada como heroína. Não se provou que a substância apreendida era destinada pelos arguidos A e B a ser vendida a um número elevado de toxicodependentes, por um preço superior ao da compra, obtendo com tais transacções avultadas compensações económicas, o que não aconteceu por intervenção dos agentes da autoridade. Não de provou que a importância monetária que lhes foi apreendida era proveniente das vendas do produto estupefacientes idêntico àquele que lhe foi apreendido. Não se provou que a arguida B conhecia perfeitamente as características psicotrópicas (sic) das substâncias que comercializava. Não se provou que a arguida B agiu livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei". Fundamentando a sua convicção disse: "O Tribunal Colectivo baseou-se nas declarações do arguido A e nos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, D e E, declaração e depoimentos que, pela sua origem e pela forma como foram prestadas, convenceram da sua verdade. Com efeito, o arguido referiu que consumia heroína há cerca de um ano, negando no entanto que se dedicasse ao tráfico de estupefacientes, vendendo a um elevado número toxicodependentes. As referidas testemunhas D e E são agentes da P.S.P. de Santo Tirso e, no exercício das respectivas funções, participaram na detenção, revista do veículo, apreensão deste, de objectos e produto estupefaciente, bem como em investigação relativa às actividades dos arguidos. O Tribunal Colectivo baseia-se, ainda, no auto de apreensão de fls. 13, guia de entrega de fls. 16, guia de depósito de fls. 34, auto de exame directo de fls. 35 e relatório do exame de toxicologia realizado no Laboratório da Polícia Científica da Policia Judiciária". III A questão posta é a de saber se tendo o arguido sido surpreendido na posse de 12,225 gramas de heroína, que destinava em parte ao seu consumo e noutra parte a cedências a terceiros consumidores, com o objectivo exclusivo de conseguir desta mesma substância para o seu consumo, atendendo à quantidade de droga detida, e dado o disposto no n.º 9 da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, e no n.º 3 do artigo 26º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, os factos podem subsumir-se ao tipo legal previsto no seu n.º 1? O acórdão recorrido salienta, na fundamentação jurídica, que neste tipo de crime há ausência de intenção lucrativa, pois os proventos obtidos pelo agente hão-de ter por finalidade única e exclusiva a aquisição de plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal; tem de haver um dolo específico; não se deve esquecer que o traficante-consumidor tem um papel relevante na rede de abastecimento do mercado de droga. Quanto ao limite a que se refere o n.º 3 do artigo 26º nada, porém, se diz. 1. Vejamos então. Dispõe-se no citado artigo 26º do Decreto-Lei n.º 15/93: "1. Quando, pela prática de alguns dos factos referidos no artigo 21º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV. 2.1. Dispõe-se no aludido artigo 25º: "Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; b) .............................................................". "Repetindo o que se disse recentemente ((4) - Acórdãos de 7.07.99 - P.º n.º 418/99, e de 7.12.99 - P.º n.º 1005/99, de 10.05.00 - P.º n.º 59/2000, no BMJ n.º 497, p.144 (que ora se segue expressis litteris). Cfr. ainda, o acórdão de 15.11.00 - P n.º 2737/2000.), os meios utilizados reportar-se-ão à organização e à logística de que o arguido se socorre, na modalidade ou circunstâncias da acção relevará particularmente a perigosidade em termos de difusão das substâncias, tendo a qualidade da droga a ver com a sua periculosidade - de algum modo observada no ordenamento das tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93 -, sendo o elemento quantidade o mais difícil de avaliar, posto que o n.º 3 do artigo 26º, e de algum modo o n.º 2 do artigo 40º, possam ser tomados como índices para alguma comparação. |