Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01P4013
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOURENÇO MARTINS
Nº do Documento: SJ200203200040133
Data do Acordão: 03/20/2002
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I

1. No P.º Comum n.º 202/01, do 2º Juízo Criminal da Comarca de Santo Tirso, mediante acusação do Ministério Público, com intervenção do Colectivo, foram submetidos a julgamento:

1. A, solteiro, feirante, nascido a 5 de Novembro de 1980, filho de ... e de ..., natural da freguesia de Castelões de Cepeda, concelho de Paredes, residente em Santo Tirso;
2. B, solteira, feirante, nascida a 31 de Maio de 1980, filha de ... e de ..., natural da freguesia de Maximinos, Braga, residente em Santo Tirso; e
3. C, divorciado, nascido a 19 de Novembro de 1961, filho de ... e de ..., natural da freguesia de S. Miguel do Couto, Santo Tirso, residente em Santo Tirso,
sob imputação, aos arguidos A e B, da co-autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes, pp. pelos artigos 21º e 24º, alíneas b) e c) e ao A, ainda, em concurso efectivo, como autor material de um crime de consumo de estupefacientes, pp. pelo artigo 40º , n.º 1, do Decreto- Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; ao arguido C a autoria material de um crime de consumo de estupefacientes, pp. pelas citadas disposições legais.
Quanto ao crime de consumo de estupefacientes, imputado aos arguidos A e C, foi declarado extinto o procedimento criminal, nos termos do disposto nos artigos 2º, n.º 2 do Código Penal, e 28º, da Lei n.º 30/00, de 29 de Novembro, tendo a audiência de Julgamento prosseguido no restante da acusação.
Por acórdão de 12 de Julho de 2001, o Colectivo deliberou:
absolver a arguida B; condenar o arguido A na pena de 1 (um) ano de prisão, como traficante-consumidor, crime pp. pelo artigo 26º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Nos termos do disposto nos artigos 35º, n.º 2 e 36º, n.º 1 do citado diploma, declarou perdidos a favor do Estado o produto e comprimidos que se encontravam apreendidos .
Ordenou a restituição ao arguido do veículo de matrícula QG-...-..., telemóvel, objectos e dinheiro que se encontravam apreendidos.
Porque o A estava detido desde o dia 12 de Julho de 2000, ordenou a restituição deste, e da arguida B, à liberdade.
2. Não se conformou com a decisão o Dig.mo Procurador da República na comarca de Santo Tirso, interpondo recurso de cuja motivação retirou as seguintes conclusões (por transcrição):
"1- O arguido, quando foi surpreendido pelos elementos da autoridade, tinha na sua posse 12,225 gramas de heroína.
2- Destinando parte desta ao seu consumo e a parte restante a cedências a terceiros consumidores, com o objectivo exclusivo de conseguir desta mesma substância para o seu consumo.
3- Atenta a quantidade de droga detida pelo arguido, que, dado o disposto no n.º 9 da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março e mapa anexo, ultrapassa o necessário para o consumo médio diário de 10 (dez) dias, por força do n.º 3 do art. 26.º do DL. n.º 15/93, de 22/1, tais factos não se podem subsumir ao n.º deste preceito legal.
4- Antes integram os mesmos o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. p. art. 21.º do citado DL..
5- Atentos os factos enunciados, entende-se que o arguido actuou com um grau de ilicitude elevado.
6- Por outro lado, agiu com dolo directo, o que releva intensa vontade criminosa.
7- No que concerne à prevenção geral, atento o flagelo que constitui a questão da droga (consumo e/ou tráfico), este facto deve fazer-se sentir por forma a pesar na pena a impor ao arguido e por forma desfavorável a este.
8- Finalmente, refira-se que as condições pessoais do arguido têm um diminuto valor atenuativo.
9- Nesta conformidade, deve o arguido ser condenado na pena de 5 anos de prisão.
10- Ao decidir da forma como o fez, o Tribunal Colectivo violou os artigos 21.º e 26.º, ambos do supra referido DL.".
Termina pedindo a revogação parcial do acórdão recorrido e a aplicação da pena de 5 anos de prisão ao arguido.
Nenhum dos arguidos, nomeadamente o A, respondeu.
3. Já neste Supremo Tribunal o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto requereu a produção de alegações escritas, ao que o recorrido não se opôs, tendo sido concedido o respectivo prazo.
Nelas conclui:
"I- A quantidade de heroína detida pelo arguido- 12,225 gr. -, excedendo a limitação constante do art.º 26.3 do Dec.-Lei n.º 15/93 e art.º 9 da Portaria n.º 94/96, impede a subsunção dos factos no art.º 26.1 do referido Dec.-Lei;
II- A detenção da referida quantidade (e ausência de outras circunstâncias com reflexo relevante na ilicitude), destinada ao consumo próprio e eventual cedência a terceiros com o objectivo exclusivo de conseguir substâncias para seu consumo, diminuindo o grau de ilicitude do facto não o transportam para um patamar consideravelmente inferior, próprio do tipo do art.o 25.
III- Ao condenar o arguido como autor de um crime do art.o 26.1 do Dec.-Lei n.o 15/93, o tribunal violou os artigos 21 e 26.1 do referido diploma legal".
Assim, deverá ser concedido provimento ao recurso, condenando-se o arguido pelo crime do artigo 21º, n.º 1, em pena de prisão próxima do limite mínimo.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Após audiência de discussão e julgamento o Colectivo considerou provada a seguinte matéria de facto:
"Os arguidos A e B viviam maritalmente desde data indeterminada do início do ano de 1999, residindo num acampamento de etnia cigana, que então ali existia.
Os arguidos A e B exerciam a actividade de feirantes.
No dia 12 de Julho de 2000, pelas 17 horas e 40 minutos, quando se faziam transportar no veículo automóvel, marca Fiat, modelo Uno, cor preta, matrícula QG-...-..., os arguidos A e B foram interceptados pelos agentes da Policia de Segurança Pública, D e E, no Lugar da Ermida, Santa Cristina do Couto.
Ao aperceberem-se da aproximação dos agentes da P.S.P., A e B encetaram uma fuga, tendo-se imobilizado cerce de 500 metros à frente, por se encontrarem, uns troncos a barrar a estrada, impedindo a circulação.
Verificando a aproximação dos agentes da autoridade, o arguido atirou pela janela do automóvel um saco plástico, que foi recuperado por aqueles agentes e que continha no seu interior um produto de cor castanha, que submetido a exame laboratorial realizado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, foi identificado como heroína, com um peso líquido de 12.225 gramas, substância qualificada como estupefaciente abrangida pela Tabela I-A, anexa ao D.L. n.º 15/93, de 22.1 e quatro comprimidos, de cor branca, que submetidos a exame laboratorial, também pelo L.P.C., foram identificados como sendo "Piracetam" - cfr. Doc. de fls. 110, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Por sua vez, o arguido A lançou para o chão algumas notas do Banco de Portugal, que foram recuperadas pelos agentes da P.S.P., tendo-se apurado que totalizavam a quantia de 16000 escudos ( dezasseis mil escudos), proveniente do abono de família da filha.
Efectuada revista no veículo automóvel, com a matrícula QG-...-..., na qual foram encontrados o respectivo livrete a guia de substituição do título de registo de propriedade, um telemóvel, marca "Trium", uma faca de cozinha com uma lâmina de 17,50 cm e um pau de madeira, tipo bastão.
A substância apreendida foi adquirida por A em circunstâncias de tempo, modo e lugar não concretamente apuradas, a pessoa cuja identidade não foi possível determinar e destinava-se ao seu próprio consumo e a eventuais cedências a terceiros consumidores, com o objectivo exclusivo de conseguir desta mesma substância para o seu consumo.
O arguido A conhecia perfeitamente as características psicotrópicas (sic) das substâncias que lhe foram apreendidas, sendo certo que, à data da sua detenção, consumia, em média, desde há dois anos, heroína, sob a forma fumada, meia grama, duas ou três vezes por dia.
O arguido A agiu livre, deliberada e coincidentemente, bem sabendo que a sua conduta era e é proibida por lei.
O arguido A não tem antecedentes criminais.
Não se provou que nenhum dos arguidos A e B exerça qualquer actividade profissional remunerada, daí que tenham formulado a resolução de se dedicarem, em conjunto, à comercialização de produtos estupefacientes.
Não se provou que desde data não concretamente determinada até 12 de Julho de 2000, os arguidos A e B, agindo em conjugação de esforços e concretamente, de forma, reiterada, detiveram, transportaram e venderam quantidades não apuradas de heroína a um elevado número de consumidores dessa substância.
Não se provou que para o exercício da sua actividade ilícita, utilizavam, entre outros objectos e instrumentos, um telemóvel, uma faca de cozinha e um veículo automóvel, marca Renault, modelo 21, cuja matricula não foi concretamente apurada, em virtude de ter sido vendido pelos arguidos a pessoa cuja identidade não foi possível apurar, sendo que em 7 de Julho de 2000, começaram a utilizar o veículo automóvel, marca Fiat, modelo Uno, ligeiro de passageiros, cor preta, com a matricula QG-...-..., adquirido naquela data.
Não se provou que sempre que algum consumidor pretendia adquirir produtos estupefacientes aos arguidos, estabelecia contacto pessoal ou para telemóvel, combinando com qualquer um dos arguidos o local e hora para o encontrar, bem como a quantidade de heroína pretendida.
Não se provou que outras vezes eram os próprios arguidos A e B que contactavam os toxicodependentes junto a cafés frequentados por aqueles, oferecendo a venda da heroína.
Não se provou que, após, A e B se deslocavam no seu veículo automóvel ao local previamente combinado, normalmente escolhiam lugares ermos onde pudessem realizar a transacção longe da observação das autoridades policiais, como é exemplo a mata sita no Lugar da Ermida, Santa Cristina do Couto, Santo Tirso, e faziam a entrega da substância estupefaciente encomendada, recebendo o preço correspondente.
Não se provou que no referido período, e segundo o processo descrito, os arguidos tivessem vendido heroína de modo repetido e habitual, ao preço de 8/10 contos a grama e 4/5 meia grama.
Não se provou que, quando se encontraram no exercício daquela actividade ilícita, haviam acordado encontrar-se no lugar da Ermida, Santa Cristina do Couto, com o C, conhecido por C "...", e com outros toxicodependentes, para fazer a entrega de quantidade não totalmente apurada de heroína.
Não se provou que, verificando a aproximação dos agentes da autoridade, a arguida B atirou pela janela do automóvel um saco de plástico que continha no seu interior um produto de cor castanha e que foi identificada como heroína.
Não se provou que a substância apreendida era destinada pelos arguidos A e B a ser vendida a um número elevado de toxicodependentes, por um preço superior ao da compra, obtendo com tais transacções avultadas compensações económicas, o que não aconteceu por intervenção dos agentes da autoridade.
Não de provou que a importância monetária que lhes foi apreendida era proveniente das vendas do produto estupefacientes idêntico àquele que lhe foi apreendido.
Não se provou que a arguida B conhecia perfeitamente as características psicotrópicas (sic) das substâncias que comercializava.
Não se provou que a arguida B agiu livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei".
Fundamentando a sua convicção disse:
"O Tribunal Colectivo baseou-se nas declarações do arguido A e nos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, D e E, declaração e depoimentos que, pela sua origem e pela forma como foram prestadas, convenceram da sua verdade. Com efeito, o arguido referiu que consumia heroína há cerca de um ano, negando no entanto que se dedicasse ao tráfico de estupefacientes, vendendo a um elevado número toxicodependentes. As referidas testemunhas D e E são agentes da P.S.P. de Santo Tirso e, no exercício das respectivas funções, participaram na detenção, revista do veículo, apreensão deste, de objectos e produto estupefaciente, bem como em investigação relativa às actividades dos arguidos.
O Tribunal Colectivo baseia-se, ainda, no auto de apreensão de fls. 13, guia de entrega de fls. 16, guia de depósito de fls. 34, auto de exame directo de fls. 35 e relatório do exame de toxicologia realizado no Laboratório da Polícia Científica da Policia Judiciária".
III
A questão posta é a de saber se tendo o arguido sido surpreendido na posse de 12,225 gramas de heroína, que destinava em parte ao seu consumo e noutra parte a cedências a terceiros consumidores, com o objectivo exclusivo de conseguir desta mesma substância para o seu consumo, atendendo à quantidade de droga detida, e dado o disposto no n.º 9 da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, e no n.º 3 do artigo 26º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, os factos podem subsumir-se ao tipo legal previsto no seu n.º 1?
O acórdão recorrido salienta, na fundamentação jurídica, que neste tipo de crime há ausência de intenção lucrativa, pois os proventos obtidos pelo agente hão-de ter por finalidade única e exclusiva a aquisição de plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal; tem de haver um dolo específico; não se deve esquecer que o traficante-consumidor tem um papel relevante na rede de abastecimento do mercado de droga.
Quanto ao limite a que se refere o n.º 3 do artigo 26º nada, porém, se diz.
1. Vejamos então.

Dispõe-se no citado artigo 26º do Decreto-Lei n.º 15/93:

"1. Quando, pela prática de alguns dos factos referidos no artigo 21º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.
2. A tentativa é punível.
3. Não é aplicável o disposto no n.º 1 quando o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias".

Alega o Ministério Público que aquela disposição do n.º 3 do artigo 26º, conjugada com o disposto no n.º 9 da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, obstacula à aplicação da sanção prevista no n.º 1.
E tem razão.
Este preceito foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 15/93, em relação à redacção anterior (artigo 25º do Decreto-Lei n.º 430/83), tendo havido um agravamento da pena (grosso modo, e para as drogas mais perigosas, passou-se de um máximo de prisão até 1 ano para prisão até 3 anos), e, por outro lado, introduziu-se o n.º 3 ((1) - Seguiremos agora de perto o que se disse no ac. de 23.05.01 - P.º 1177/2001, incluído in Sumários/GJA, n.º 51, 2001, p. 79.).
Na "Nota justificativa" apontam-se as razões: "não se pode esquecer o contributo efectivo que o traficante-consumidor acaba por dar para a propagação das redes de abastecimento do mercado, aproximando-se, por este modo, do papel do pequeno traficante"; o seu perfil "não se amolda ao do consumidor ocasional...mas antes ao do toxicodependente ou do consumidor habitual".
E a propósito das quantidades a que se refere o novo n.º 3, acrescenta-se: "Por outro lado, se o traficante-consumidor é encontrado na posse de quantidades que excedam determinado montante, então o risco da sua conduta para os outros já não justifica a sanção menor" ((2) - Cfr., do Relator, "Droga e Direito", Aequitas, 1994, p. 155.).
Ora a droga detida excede a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias.
Tal resulta da mensuração pericial constante da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março - n.ºs 1º, alínea c), 9º, e mapa anexo -, segundo a qual, a dose média diária individual se situa em 0,1 grama para a heroína, resultado a que se chegou "com base em dados epidemiológicos referentes ao uso habitual".
Entende o Ministério Público que aquele limite de cinco dias se encontra agora fixado em dez dias - o que, ainda assim, a droga detida excede -, no que também nos parece ser a posição correcta ((3) - Ponto de vista já defendido pelo Relator, "DROGA - NOVA POLÍTICA LEGISLATIVA", na RPCC, Ano 11, 3, Jul/Set. 2001, ponto 7.2.3., p. 448.).
Na verdade, a detenção para consumo de doses que não excedam a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias , de acordo com o artigo 2º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, passou a contra-ordenação.
Ainda no período que venha a preceder a já reconhecida necessidade de harmonização dos diplomas, há que entender, por coerência do sistema (n.º 2 do artigo 7º do Código Civil), que o n.º 3 do artigo 26º passou a referir-se ao período de 10 dias. Só a partir daí se configura uma situação de tráfico normal, pelo que se verifica uma derrogação parcial do mencionado n.º 3 (v. artigo 41º daquela lei). A componente de consumo que integra o tipo legal do traficante-consumidor impele igualmente para aquela derrogação.
2. Dando provimento ao recurso no tocante à não aplicação da incriminação prevista para o traficante-consumidor, cumpre agora esclarecer se o arguido deve ser responsabilizado pela prática de um crime de tráfico, pp. pelo artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93 ou pelo que se prevê no artigo 25º (tráfico de menor gravidade).
Entende o Magistrado recorrente na 1.ª Instância, no que é acompanhado pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste STJ, que a incriminação correcta é pelo artigo 21º, e não pelo tráfico de menor gravidade, apenas divergindo no montante da pena a aplicar - 5 anos, para o primeiro, ou próximo do limite mínimo (4 anos), para o segundo.
Olhemos os factos dados como provados.
No dia 12 de Julho de 2000, pelas 17 horas e 40 minutos, o arguido e a sua companheira B, que viviam num acampamento de etnia cigana, foram interceptados por agentes da PSP, quando se faziam transportar num veículo automóvel. Ao verificar a aproximação dos agentes da autoridade, o arguido atirou pela janela do automóvel um saco de plástico contendo 12.225 gramas de heroína (peso líquido).
A substância apreendida foi adquirida pelo arguido A em circunstâncias de tempo, modo e lugar não concretamente apuradas, e destinava-se ao seu próprio consumo e a eventuais cedências a terceiros consumidores, com o objectivo exclusivo de conseguir dessas cedências mais substância para o seu consumo.
À data da sua detenção, o arguido consumia, em média, desde há dois anos (segundo a sua confissão anotada pelo Colectivo na fundamentação, há cerca de um ano), heroína, sob a forma fumada, meia grama, duas ou três vezes por dia.
Não tem antecedentes criminais.
Não se provou que o arguido A (e a sua companheira) não exercessem qualquer actividade profissional remunerada, nem tão pouco que desde data não concretamente determinada, até 12 de Julho de 2000, os arguidos A e B, agindo em conjugação de esforços e concretamente, de forma, reiterada, hajam detido, transportado e vendido quantidades não apuradas de heroína a um elevado número de consumidores dessa substância.
É evidente que entre a acusação e a matéria de facto considerada provada existe uma substancial disparidade no perfil aí traçado para o arguido como traficante de certa dimensão e o que veio a ser apurado. A final, ficou somente demonstrada a detenção, para consumo e venda, de cerca de 12 gramas de heroína.

2.1. Dispõe-se no aludido artigo 25º:

"Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) .............................................................".

"Repetindo o que se disse recentemente ((4) - Acórdãos de 7.07.99 - P.º n.º 418/99, e de 7.12.99 - P.º n.º 1005/99, de 10.05.00 - P.º n.º 59/2000, no BMJ n.º 497, p.144 (que ora se segue expressis litteris). Cfr. ainda, o acórdão de 15.11.00 - P n.º 2737/2000.), os meios utilizados reportar-se-ão à organização e à logística de que o arguido se socorre, na modalidade ou circunstâncias da acção relevará particularmente a perigosidade em termos de difusão das substâncias, tendo a qualidade da droga a ver com a sua periculosidade - de algum modo observada no ordenamento das tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93 -, sendo o elemento quantidade o mais difícil de avaliar, posto que o n.º 3 do artigo 26º, e de algum modo o n.º 2 do artigo 40º, possam ser tomados como índices para alguma comparação.
Na "Nota Justificativa" da Proposta de Lei enviada à Assembleia da República, depois de se frisar que o anterior artigo 24º - "tráfico de quantidades diminutas" - não oferecera a maleabilidade desejável, impunha-se a sua revisão "em termos que permitam ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor, que apesar de tudo não pode ser aligeirado de modo a esquecer-se o papel essencial que os "dealers" de rua representam na cadeia do tráfico. Haverá, assim, que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que, ao invés, se force ou use indevidamente uma atenuante especial" (sublinhado agora).
Ao indagar do preenchimento do tipo legal aí previsto haverá de se proceder a uma "valorização global do facto" ou do "episódio", como se diz em Itália, ainda que na nossa lei a enumeração dos topica a considerar seja exemplificativa. Não deverá o intérprete deixar de sopesar todas e cada uma das circunstâncias a que o artigo 25º se refere, podendo-lhe juntar outras.
E, nesta linha, afasta-se a necessidade da referência ao conceito de "quantidades diminutas", que vinha da lei de 1983, nomeadamente para efeito de integração da conduta no artigo 25º, e que, a recuperar-se, inviabilizá-la-ia, no tocante à quantidade, sempre que excedesse a dose média individual para o consumo de um dia, frustrando assim a intenção legislativa, isto é, a busca de soluções mais maleáveis.
E dizia-se não se ver obstáculo na aplicação do preceito a casos de toxicodependência, apesar da previsão do artigo 26º, posto que entre ambas se possam suscitar relações de consunção impura.
Haverá, sim, que não perder de vista a sua teleologia última, a vocação para se aplicar a situações que estejam num ponto intermédio entre o tráfico e o tráfico-consumo, concebido para alargar a paleta das hipóteses colocadas à disposição do julgador para vivências plurifacetadas".
No caso sub judice, e no sentido da diminuição da ilicitude pode invocar-se o facto de apenas se ter demonstrado uma única situação e ainda a eventual dependência - mesmo que na forma de inalação é de supor que exista toxicodependência, todavia, não confirmada por qualquer perícia.
Os elementos recolhidos são manifestamente insuficientes para fundar um juízo de ilicitude consideravelmente diminuída, em especial pela qualidade (heroína) e, de algum modo, pela quantidade da droga apreendida, passível de confecção de cerca de 120 doses médias individuais, ainda pelo envolvimento da companheira e pelo uso de uma viatura automóvel ((5) - Comparando com o acórdão de 31.05.00, publicado no BMJ n.º 497, p. 167, poderíamos considerar esta uma situação de fronteira - cfr. a anotação crítica de P.B., feita no mesmo Boletim, p. 172, indicando divergências com a jurisprudência anterior, sobre a ilicitude, a culpa, as relações entre a prevenção e a culpa, fins das penas, o próprio conceito de direito penal, que não se descortinam. Apenas um brevíssimo apontamento para dizer que o Relator privilegia a "filosofia prática", preocupada com o que "devemos fazer" e polarizada na realização do "bem" e da "justiça", no caso-problema decidendo, quer partindo de um discurso argumentativo quer de um discurso metodológico-jurídico, sem esquecer as regras éticas e pragmáticas da argumentação prática (Castanheira Neves) e tendo presente "o direito inucleado na pessoa" (a que alude Fernando José Bronze, "Argumentação jurídica: o domínio do risco ou o risco dominado? (Tópicos para um diálogo pedagógico)", in BFD, vol. LXXVI, pp. 13/33). A incompletude quer do sistema quer daqueles que tentam interpretá-lo e assim também construí-lo, releva da modéstia e da busca característica de uma ciência prática (do justo e do injusto), voltada para a acção - Jean-Pascal Chazal, "Philosofie du droit et théorie du droit ou illusion scientifique", in Revue Interdisciplinaire d’Études Juridiques, 2001.46, pp. 39/79, citando a fala de Mefistófeles, no Fausto, de Goethe: "Meu bom amigo, toda a teoria é seca, e a árvore preciosa da vida é florida".) .
Portanto, a incriminação pelo artigo 21º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 15/93, é a mais ajustada e que deve ser adoptada.
3. Existe, porém, um outro aspecto que não pode deixar de ser tido em conta: o arguido, à data da prática do crime (12.07.00) tinha apenas 19 anos de idade (nasceu em 5.11.80), pelo que lhe era aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.
Ora, o Colectivo nem sequer aludiu a tal circunstância, como, aliás, ignorou por completo o Relatório Social junto aos autos (fls. 233).
Tem este Supremo Tribunal repetidamente afirmado que não sendo de aplicação automática o regime que flui do Decreto-Lei n.º 401/82, não está, porém, o tribunal "a quo" dispensado de, tratando-se de arguido com menos de 21 anos de idade, ajuizar da conveniência ou inconveniência da sua aplicação no caso concreto. Não o fazendo está a decisão inquinada do vício de falta de fundamentação ou de motivação e que o Supremo Tribunal pode conhecer desde que tenha sido evidenciado nas conclusões do recurso e a verificar-se, o mesmo insere-se no n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, determinando a nulidade da decisão por força do artigo 379º alínea a) do mesmo Código ((6) - Ac. de 24.06.98 - P.º n.º 442/98. No mesmo sentido, cfr. acs., de 8.05.97 - P.º n.º 1392/96, de 15.10.97 - P.º n.º 383/97, de 2.06.99 - P.º n.º 398/99, todos na BD/JSTJ/ITIJ, in www.dgsi.pt (Internet).). Ou, talvez mais apropriadamente por violação da alínea c) deste último preceito (omissão de pronúncia sobre questão que devia apreciar).
Deste modo, verificada a nulidade do acórdão nessa parte, deve o mesmo ser reformulado pela 1.ª Instância, apreciando a aplicação ou não do Decreto-Lei n.º 401/82, agora à luz da incriminação pelo artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, num momento em que o arguido já cumpriu um ano de prisão e em que o aludido relatório social se mostrará desactualizado.
IV
Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso, ordenando a reformulação do acórdão recorrido à luz não apenas da incriminação pelo artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, como também da eventual aplicação do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.
Sem custas.
Texto elaborado em computador pelo Relator, que rubrica as restantes folhas.
Lisboa, 20 de Março de 2002
Lourenço Martins,
Pires Salpico,
Leal Henriques.