Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1529/04.7TBABF.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LEITE
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO À QUALIDADE DE VIDA
DIREITO AO REPOUSO
AMBIENTE
RUÍDO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS/ PESSOAS/ DIREITOS DA PERSONALIDADE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ RESPONSABILIDADE CIVIL
Doutrina: - Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 8ª edição, págs. 426, 571.
- Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 460.
- P ais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, do Prof., 3ª edição, pág. 59.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, págs. 104, 471 e ss..
- Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, Lex, pág.427.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 342.º, N.º2, 490º, 496.º, NºS. 1 E 3, 497º, N.º 1 E 512º, N.º 1, 514º, N.º 1, 829.º-A, N.º 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 16.º, 66.º.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH): - ARTIGOS 16.º, 24.º, 66.º.
DL N.º 292/2000, DE 14/11, (REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO), ACTUALMENTE SUBSTITUÍDO PELO DL N.º 9/2007, DE 17/01.
LEI N.º 11/87, DE 07/04 (LEI DE BASES DO AMBIENTE): ARTIGOS 2.º, 22.º.
Sumário : I - Os direitos ao sossego, ao repouso e ao sono traduzem-se em factores que se mostram potenciadores, em grau muito elevado, da recuperação física e psíquica da pessoa, nomeadamente nas situações da vida quotidiana em que a suspensão da actividade laboral, por motivo de férias, tem como principal escopo a prossecução de tais fins, constituindo-se esses direitos como uma emanação do direito à integridade física e moral da pessoa e a um ambiente de vida sadio, direitos esses acolhidos, como direitos de personalidade, na DUDH (art. 24.º), encontrando-se constitucionalmente consagrados, como direitos fundamentais, nos arts. 16.º 66.º da CRP, e sendo objecto de protecção na lei ordinária no âmbito do preceituado no art. 70.º do CC, nos arts. 2.º e 22.º da Lei n.º 11/87, de 07-04 (LBA) e do DL n.º 292/2000, de 14-11 (Regulamento Geral do Ruído), actualmente substituído pelo DL n.º 9/2007, de 17-01.

II - A actividade musical desenvolvida no estabelecimento do qual o réu era proprietário, e ao qual pertencia a respectiva exploração, não pode deixar de ser considerada como um facto directamente dependente da sua vontade, já que, nada em contrário vindo provado por parte do mesmo (art. 342.º, n.º 2, do CC), aquela actividade lúdica era directa e inquestionavelmente por si controlável, nomeadamente numa zona de lazer e de elevada projecção turística.

III - Provada a impossibilidade de adormecer, por parte do autor, enquanto decorria a actuação de uma banda musical, bem como o estado psíquico de irritação e nervosismo de que foi portador durante o Verão de 2004, em consequência do ruído e da impossibilidade de conseguir um sono retemperador, constituem-se como danos de natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, se não configuram como simples incómodos, atendendo a que tais situações se mostram susceptíveis de enquadramento no âmbito da violação do direito à saúde, devendo, consequentemente, esses danos ser objecto de ressarcimento pela via indemnizatória, atendendo-se, no respectivo cálculo, ao critério da equidade – art. 496.º, n.ºs 1 e 3, do CC.

IV - Embora tenha sido considerado provado, pela Relação, que a música e as vozes audíveis no interior da residência do autor provinham de diversas bandas que realizavam espectáculos de “música ao vivo” nos bares da zona onde aquela se localizava, bandas essas entre as quais se englobava a que actuava no bar do réu, tal circunstância não se constitui como factor dirimente da responsabilidade indemnizatória deste.

V - Se a obrigação a cargo do agente se traduz num comportamento negativo por parte do mesmo, de natureza continuada, o autor tem direito, igualmente, a peticionar a condenação do réu numa sanção pecuniária compulsória, por cada dia de incumprimento da não produção de som musical no seu estabelecimento, que perturbe o direito de personalidade daquele.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Trbunal de Justiça 

            I – Na comarca de Albufeira, AA veio demandar BB em que alegou, que, no período de férias judiciais, fins-de-semana e feriados, utiliza como habitação um imóvel de que é proprietário na cidade de Albufeira, a cerca de 100m do qual se localiza um estabelecimento de café-bar, pertença do R e pelo mesmo explorado, que funciona diariamente até às 4h, sendo que, no Verão de 2004, se produziu no referido estabelecimento, que para tal não possuía licenciamento camarário, som musical de uma banda ao vivo, desde as 22h até às 1,30/2,30h da madrugada, o qual era audível no interior da referida habitação, dessa forma prejudicando a tranquilidade e o repouso do A, bem sabendo o R o incómodo que produzia com tal actividade musical.

            Assim, peticionou a condenação daquele último:

            - A abster-se de produzir ou reproduzir som musical no seu estabelecimento, que se ouça no exterior a partir das 22h;

            - Caso assim se não entenda, a abster-se de produzir ou reproduzir som musical, que se ouça na habitação do A, no período compreendido entre as 22h e a hora do seu encerramento;

            - Em qualquer dos casos, no pagamento ao A de uma indemnização no valor de € 20.000,00; e ainda;

            - No valor de € 1.000,00, por cada dia de incumprimento, a título de sanção pecuniária compulsória.

            Contestando, o R veio alegar que o ruído invocado pelo A não pode por este ser identificado como tendo origem no seu estabelecimento, dado que, naquela zona de Albufeira, muitos outros estabelecimentos, inclusive a respectiva autarquia, levam a efeito espectáculos de música ao vivo,  mantendo  o contestante,  desde a abertura do estabelecimento, que se encontra devidamente licenciado para tais fins, o mesmo nível de ruído da música.

            Proferido despacho saneador, o A reclamou da base instrutória que havia sido elaborada, reclamação essa que obteve parcial deferimento.

            Requerida pelo R a realização de prova pericial pelo ISQ, para efectuar a avaliação, de acordo com o Regulamento Geral do Ruído, da componente acústica do ambiente, quer da casa do A, quer do bar do R, bem como a avaliação do campo sonoro do ambiente do referido bar naquela habitação, tal diligência foi indeferida, tendo a Relação de Évora, na sequência de agravo, com subida diferida, interposto do despacho então proferido, decidido anular o referido despacho de indeferimento e todos os actos subsequentes que haviam sido praticados, no que se incluíam a audiência de julgamento realizada e a sentença que havia sido proferida, ordenando a realização da perícia requerida.

            Após a efectivação da aludida perícia, foi realizada nova audiência de julgamento, vindo, então, a ser proferida nova sentença, que, contrariamente ao que havia sido decidido na anteriormente proferida, julgou a acção improcedente, decisão essa que foi objecto de integral confirmação por aquela indicada Relação na apelação então interposta pelo A.

            Inconformado, este vem, agora, pedir revista, em que, nas conclusões apresentadas, veio suscitar as seguintes questões:

            - nulidades do acórdão; e

            - procedência da acção.

            Não foram apresentadas contra alegações.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.


+   +   +                             

            II – Da Relação vem provada a seguinte matéria de facto:

O R. BB é dono e explora o estabelecimento comercial de bebidas “Café-bar” denominado “CC”, sito no Largo Engenheiro D... P...,  n.º ...,  Albufeira,  que tem valor comercial superior a € 500.000,00 - - (A).

O “CC” funciona diariamente até às 4.00 horas (da madrugada), em Julho e Agosto – (B).

Em Outubro de 2004, o A, como magistrado judicial, auferiu o vencimento mensal líquido de € 2.847,25 (fls. 13) - (C).

Desde meados do mês de Junho de 2004 até finais de Setembro de 2004, foi produzido no “CC” som musical com uma banda ao vivo, composta por 5 elementos (3 violas, 1 baterista e 1 vocalista) – (D).

O R. factura mais de € 250.000,00 anuais com o seu estabelecimento e tem mais de 10 trabalhadores ao seu serviço – (E).

Pelo menos no período de férias judiciais de Verão, no ano de 2004, o A viveu na Rua J... P... S..., n.º ... -...°dto., em Albufeira – (1º) e (2º).

Essa residência está situada a não mais de 200 metros em linha recta, num plano mais elevado,  em  diagonal,  em  relação  ao  estabelecimento referido em (A) – - (3º) e (19º).

A banda referida em (D) actuava, pelo menos, três vezes por semana das 22.00 horas à 1 hora e 30 minutos – (4º) e (20º).

A banda actuava com a porta principal, que dá para o Largo, aberta em direcção a sul, direcção da casa do A – (5º).

O som produzido pela banda projectava-se pelo espaço de entrada para o exterior, ouvindo-se no interior da casa do A – (6º).

            O A ouvia no interior de sua casa música e vozes de diversas bandas “ao vivo” actuando nos bares da zona de sua casa – (7º).

            O A, com as portas e janelas de sua casa fechadas, ouvia um “tum-tum” – (8º).

            O A não adormecia enquanto a banda actuava – (9º).

O A andou, no período de férias judiciais de Verão de 2004, em estado de irritação e de nervosismo, causados pelo ruído e pelo facto de não conseguir dormir – - (10º).

O A, de manhã, deixava de acompanhar os filhos à praia, o que gostava de fazer – (11º).

O R sabia que o A estava incomodado com o ruído, pois foi advertido pela sogra deste último – (12º).

Nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2004, por diversas vezes, o R foi interpelado pela GNR de Albufeira, para reduzir o som musical – (13º).

A GNR também actuou na sequência de queixas do A – (14º).

Não obstante as interpelações da GNR, o R continuou a sua actividade de produção de som musical – (15º).

O estabelecimento do R não está licenciado para “música ao vivo” – (17º).

O “CC” encerrava às 3.00 horas em Setembro – (18º).

A Câmara Municipal leva a efeito no Largo Eng. D... P... animação musical – (22º).

No Largo Eng. D.. Pacheco existem mais 2 bares, o “DD” e o “EE”, que possuem música ao vivo – (23º).

Relativamente à casa do A, o bar do R está à mesma distância que a Rua Cândido dos Reis onde se situam os bares “GG”, “II”, “JJ”, “LL” e “MM”, que funcionam com música ao vivo – (24º).

Junto da casa indicada pelo A existe o “FF”, com música que se faz ouvir no exterior – (25º).                                                                                                   “

+   +   +                                      

            III – Nas suas conclusões, o A/recorrente vem invocar que a decisão da Relação enferma de várias nulidades, que se consubstanciam em omissão e excesso de pronúncia.

            Assim, e no que se reporta à omissão invocada, vem arguir que aquela instância de recurso se não pronunciou sobre a questão que havia suscitado na sua apelação, no sentido da apreciação da aptidão, como meio de prova, do resultado da perícia que havia sido realizada, já que a 1ª instância se fundou, para proceder à alteração das respostas aos arts. 7º a 9º da base instrutória, no relatório elaborado pelos peritos, isto porque, a considerar-se a inaptidão da mesma para tal fim, o que por   si   foi   propugnado,  deveriam   subsistir   as   respostas   resultantes   da   prova testemunhal produzida na primeira audiência de julgamento que foi realizada, apenas devendo ter lugar a reapreciação de toda a prova produzida, no caso de ser considerado que o aludido relatório possuía aptidão probatória.

            Ora, nas conclusões apresentadas na apelação, o recorrente veio sustentar que os referidos artigos da BI, contrariamente às respostas negativas sobre os mesmos proferidas pela 1ª instância, deveriam manter, face ao depoimento das testemunhas NN e OO, as respostas que lhes foram anteriormente dadas, atendendo a que os resultados da medição acústica que foi efectuada em 2010 não permite avaliar o nível de ruído produzido no estabelecimento do R no Verão de 2004, nem o nível de incomodidade, à data, causado ao A – fls. 455/456.       

            Todavia, analisando-se a exposição da Relação respeitante à sindicação da apontada matéria de facto, constata-se que aquela instância de recurso se debruçou, ainda que não exclusivamente, sobre o relatório da perícia realizada – fls. 481 (fls. 10 do acórdão) -, inverificando-se, portanto, e no que à mesma diz respeito, a ocorrência do vício relativo à omissão invocada pelo recorrente.

            Por outro lado, este último igualmente vem apontar a existência de análogo vício no que respeita à resposta dada pela Relação ao art. 7º, uma vez que, exorbitando a mesma do conteúdo da pergunta que constituía o seu objecto, tal resposta ter-se-á de considerar como não escrita, pelo que, consequentemente, tal artigo não foi respondido.

            Porém, também aqui, o recorrente carece de razão.

            Com efeito, assumindo o aludido ponto da BI o seguinte conteúdo:

           

No interior de sua casa, o A ouvia (completa integral e continuamente) as músicas ali produzidas ou reproduzidas – apercebendo-se (perfeitamente) da sua melodia, ritmo, acordes e vozes?

a resposta da Relação de que:

            O A ouvia no interior de sua casa música e vozes de diversas bandas “ao vivo” actuando nos bares da zona de sua casa, não extravasa, todavia, aquele enunciado conteúdo, uma vez que a mesma, não só é restritiva, no sentido da não imputação da proveniência dos barulhos sentidos na casa do A como tendo a sua origem exclusiva no bar do R, mas também noutros estabelecimentos que se dedicavam à mesma actividade lúdica e que se localizavam na referida zona, como também tal matéria havia sido alegada pelo R no art. 20º da sua contestação. 

            Temos, portanto, que, não podendo ter lugar, quanto a tal factualidade, a sanção alegada pelo recorrente no sentido da sua desconsideração, não ocorre, perante tal circunstancialismo, que se haja de considerar que o artigo em causa não foi objecto de resposta por parte da Relação.

            Alega, igualmente, o recorrente a existência de excesso de pronúncia, atendendo a que a Relação, sem que tal lhe tenha sido pedido, procedeu à reapreciação da prova produzida e gravada.

            Ora, nas conclusões que foram apresentadas na apelação, o mesmo veio pugnar, como, aliás, já atrás se referiu, pela alteração dos questionados pontos da BI, com a consequente repristinação das respostas que aos mesmos haviam sido dadas aquando da realização da 1ª audiência de julgamento.

            Porém, e dado que a Relação de Évora, no agravo interposto pelo R, determinou a anulação dos actos que praticados foram subsequentemente ao do indeferimento da perícia pela mesma admitida, nunca poderia a 2ª instância, sem proceder à reapreciação da prova testemunhal produzida que havia sido indicada pelo recorrente, ajuizar da pertinência ou impertinência da impugnação factual deduzida, dado que a repristinação, sem a produção de qualquer prova, das anteriores respostas proferidas, sempre se mostrava legalmente vedada e, como tal, inadmissível de efectivação.

            Inverificam-se, portanto, os vícios processuais tipificados no art. 668º, n.º 1, al. d) do CPC e que vêm invocados pelo recorrente.


+   +   +                                 

            IV – No que respeita ao enquadramento jurídico da matéria de facto que se mostra provada, o recorrente vem sustentar, que, contrariamente ao decidido, se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito e do consequente dever de indemnizar os danos não patrimoniais produzidos, pelo que, por tal motivo, deve proceder o pedido pelo mesmo formulado, em todas as vertentes que o compõem.

            Na verdade, o direito ao sossego, ao repouso e ao sono traduzem-se em factores que se mostram potenciadores, em grau muito elevado, da recuperação física e psíquica do agente, nomeadamente nas situações da vida quotidiana em que a suspensão da actividade laboral do mesmo, por motivo de férias, tem como principal escopo a prossecução de tais fins, constituindo-se, por tal motivo, os referidos direitos como uma emanação do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente de vida sadio, direitos esses que se mostram acolhidos como direitos da personalidade humana na Declaração Universal dos Direitos do Homem – art. 24º -, que se encontram constitucionalmente consagrados como direitos fundamentais nos arts. 16º e 66º da CRP e que são objecto de protecção na lei ordinária no âmbito do preceituado no art. 70º do CC, nos arts. 2º e 22º da Lei n.º 11/87, de 07/04 (Lei de Bases do Ambiente) e no DL n.º 292/2000, de 14/11, (Regulamento Geral do Ruído), actualmente substituído pelo DL n.º 9/2007, de 17/01, impendendo sobre o seu infractor a responsabilidade civil por tal lesão, a qual se traduz na obrigação de proceder ao ressarcimento dos danos causados ao lesado, nos termos do preceituado no art. 483 e segs. do CC – n.º 2 daquele citado art. 70º e Anotado dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, pág. 104 -, constituindo, assim, e por tal motivo, pressupostos da referida obrigação indemnizatória:

            - Um facto voluntário do agente;

            - Que o referido facto revista natureza ilícita;

            - Que o mesmo seja susceptível de imputação ao lesante, a título de dolo ou culpa;

            - Que ocorra um dano para o lesado; e

            - Que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.

- pág. 471 e segs. daquela última obra e vol. citados.

            Temos, portanto, que, de acordo com a factualidade que vem provada da Relação, no Verão de 2004, e, pelo menos, durante três vezes por semana, das 22h à 1h e 30m da madrugada, no estabelecimento de café-bar propriedade do R e por este explorado, actuou uma banda musical, composta por cinco elementos, cujos acordes pela mesma produzidos se projectavam, através da porta principal que se encontrava aberta, na direcção da habitação do A, situada a cerca de 200m, situação essa a que o R não quis pôr cobro, apesar de para tal ter sido advertido pelas autoridades policiais e por um familiar do A, que lhe deu conhecimento do estado psíquico em que o mesmo se encontrava por força do ruído provocado pelos espectáculos de “música ao vivo” realizados no referido estabelecimento e para os quais, aliás, o referido estabelecimento não possuía qualquer licenciamento.

            Com efeito, e embora tenha sido considerado como provado, que, no interior da aludida residência, o som que era audível era proveniente de diversas bandas que actuavam nos bares da zona, na fundamentação respeitante à alteração da referida resposta por parte da Relação, escreveu-se que:

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Se tomarmos em consideração, como se disse, que na época dos factos (Verão de 2004) havia também “música ao vivo” em outros 2 bares (“DD” e “EE”) e que junto da casa do A. havia o bar “FF” com música que se fazia ouvir no exterior, teremos que concluir que, com tanta música, o que com toda a probabilidade se ouvia era uma barulheira generalizada da qual mais se destacava para o A. a que era produzida pela banda “ao vivo” no bar “CC” mas que, misturada com a restante, não lhe permitia a audição do ritmo, nem dos acordes, nem do que os respectivos vocalistas cantavam ou diziam com as suas vozes que ele ouvia. Isto é, o A. ouvia o som musical proveniente desse bar – e que era o que mais se destacava – e proveniente de outros bares, e ainda vozearia proveniente de vários locais, destacando-se, como se disse, a que provinha do bar “CC”, vindo, igualmente, provado, que, embora se encontrassem fechadas as portas e janelas da referida habitação, se ouvia no seu interior um barulho constituído por um “tum-tum”, sendo, no aludido Verão de 2004, o estado permanente do A, de irritação e nervosismo, em consequência do ruído que se verificava e da impossibilidade de dormir durante o período de actuação da banda.

            Perante a factualidade exposta, mostram-se verificados, em nosso entender, os apontados pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do R.

            Assim, a actividade musical desenvolvida no estabelecimento do qual aquele era proprietário, e ao qual pertencia a respectiva exploração, não pode deixar de ser considerada como um facto directamente dependente da sua vontade, já que, nada em contrário vindo provado por parte do mesmo, a quem tal prova incumbia – art. 342º, n.º 2 do CC -,  a referida actividade lúdica era directa e inquestionavelmente por si controlável, inserindo-se, obviamente, num meio destinado à atracção da clientela, nomeadamente numa zona de lazer e de elevada projecção turística, frequentada, quer por parte de cidadãos nacionais, quer, sobretudo, por parte de cidadãos de outras nacionalidades.       

            Por seu turno, e se é certo que se não mostra quantificado o nível acústico do ruído provocado pela banda que actuava no estabelecimento do R, nomeadamente no que respeita à circunstância do mesmo exceder ou não exceder os limites fixados no aludido Regulamento Geral do Ruído, nível de pressão sonora essa, que, todavia, sempre se mostrava impossível de determinação concreta através da sua medição em momento posterior ao termo da sua ocorrência, e, sobretudo, como foi objecto de decisão por um tribunal superior, seis anos após o seu termo, todavia, não poderá deixar de ser tido em linha de consideração, que “o direito de personalidade não pode ser restringido por um simples regulamento; a compatibilização jurídica do Regulamento do Ruído com o direito de personalidade deve ser feita no sentido de que todos devem limitar a emissão de ruídos, em geral, ao estabelecido no Regulamento, mas desse Regulamento não resulta um «direito a fazer ruído» e muito menos a licitude do impedimento do repouso alheio; o direito de personalidade prevalece sobre o regulamento do ruído”  –  Teoria Geral do Direito Civil, do  Prof. P ais de Vasconcelos, 3ª edição, pág. 59 -, de tal decorrendo, portanto, a ilicitude da conduta do R, traduzida na violação do direito de personalidade do A, na segmentação respeitante ao direito deste ao sono e à saúde psíquica.

            Por outro lado, a conduta do R reveste natureza manifestamente culposa, já que “agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito, sendo a conduta do lesante reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se deva concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo” – Das Obrigações em geral do Prof. Antunes Varela, vol. I, 8ª edição, pág. 571 -, resultando da enunciada factualidade que se mostra provada, que o mesmo não podia ignorar que os espectáculos de “música ao vivo”, que se realizavam no seu bar, perturbavam os residentes em habitações próximas, não só pela inevitabilidade da ocorrência de tal situação, na percepção de qualquer cidadão comum, por força da inexistência de quaisquer obstáculos, portas totalmente abertas, à propagação do som proveniente dos concertos que ali eram realizados, como também porque tal facto, no que directamente respeitava aos seus reflexos na pessoa do A, lhe havia sido directamente comunicado por um familiar deste último, constando igualmente da fundamentação exarada pela 1ª instância às respostas à matéria de facto, ter sido referido pelo, à data, comandante do posto da GNR de Albufeira, a existência de outras reclamações, para além da do A, contra o referido bar, por causa do ruído pelo mesmo provocado, as quais determinaram a deslocação ao local, por várias vezes, de patrulhas daquela corporação policial – fls. 426.

            E a provada impossibilidade de adormecer, por parte do A, enquanto decorria a actuação da banda musical, bem como o estado psíquico de irritação e nervosismo de que foi portador durante o Verão de 2004, em consequência do ruído e da impossibilidade de conseguir um sono retemperador, constituem-se como danos de natureza não patrimonial, que, pela sua gravidade, se não configuram como simples incómodos, como foi entendido pela Relação, atendendo a que tais situações se mostram susceptíveis de enquadramento no âmbito da violação do direito à saúde, devendo, consequentemente, os referidos danos ser objecto de ressarcimento pela via indemnizatória, atendendo-se, no seu respectivo cálculo, ao critério da equidade – art. 496º, n.ºs 1 e 3 do CC.

            Concomitantemente, haverá, igualmente, a referir, que se não mostram elididas, total ou parcialmente, as apontadas causas geradoras do aludido estado psíquico de que o A padeceu, nomeadamente em consequência da ocorrência, no período temporal em causa, de qualquer outro acontecimento que o haja atingido ou no qual o mesmo tenha intervindo, sendo que a provada natureza do barulho que era audível na residência daquele, pelo seu tom monocórdico e processando-se de forma sistemática e contínua, de acordo com as normais regras da experiência do comum dos cidadãos, assume-se como um factor altamente perturbador e de efeito duradouro no que respeita ao equilíbrio do sistema nervoso de um qualquer agente que não sofra de perda acentuada de audição, perturbação essa, que, dessa forma se constitui como um facto notório – art. 514º, n.º 1 do CPC -, cujo conhecimento se não mostra vedado a este STJ – Estudos do Prof. Teixeira de Sousa, pág. 427-, pelo que, por tal motivo, se mostra assim preenchido o nexo de causalidade,  traduzido  na  relação  de  causa- efeito, entre os factos praticados pelo R e os danos sofridos pelo A, quer sob o ponto de vista da sua condicionalidade em concreto, quer em abstracto.

            E, embora, como atrás se aludiu, haja sido considerado provado pela Relação, que a música e vozes audíveis no interior da residência do A provinham de diversas bandas que realizavam espectáculos de “música ao vivo” nos bares da zona onde aquela se localizava, bandas essas entre as quais se englobava a que actuava no bar do R, tal circunstância não se constitui como factor dirimente da responsabilidade indemnizatória deste.

            Com efeito, sendo vários os autores de um facto ilícito, sobre todos impende a responsabilidade pelos danos causados, ainda que tal actuação não haja entre os mesmos sido concertada, a que acresce que tal responsabilidade, por força da sua natureza solidária, determina a satisfação integral pelo R da indemnização a arbitrar ao A a título de danos não patrimoniais – arts. 490º, 497º, n.º 1 e 512º, n.º 1 do CC e pág. 491 do volume e obra atrás citados dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela.

            O A veio, igualmente, peticionar a condenação do R numa sanção pecuniária compulsória, por cada dia de incumprimento da não produção de som musical no seu estabelecimento, que perturbe o direito de personalidade daquele.

            Ora, se a obrigação a cargo do agente se traduz num comportamento negativo por parte do mesmo, de natureza continuada, “impõe-se que a sentença condene o devedor a cumpri-la no futuro, ordenando-lhe que não renove a sua infracção, pelo que é nesta parte que a sanção pecuniária compulsória é útil, como meio de prevenir a continuação ou renovação do incumprimento, provocando a obediência do devedor à condenação  inibitória  e  o  respeito pela devida prestação originária de non facere” – -Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória do Prof. Calvão da Silva, pág. 460 – devendo ser tido em consideração, relativamente a tal imposição coercitiva regulamentada no art. 829º-A do CC, o preceituado no seu n.º 3, no que respeita aos beneficiários da atribuição do montante para a mesma fixado.

            Perante o que acaba de explanar-se, haverá, então, que proceder à apreciação dos pedidos formulados pelo A, entre os quais, e desde logo, aquele que tange à abstenção da produção ou reprodução pelo R, no seu estabelecimento, de música que seja audível no exterior, se mostra condenado ao insucesso, uma vez que a causa de pedir da acção se traduz, especificamente, na ofensa do direito de personalidade do A e não na ofensa de um direito ambiental cuja titularidade se radica na comunidade social.               

            Por seu turno, e no que diz respeito à indemnização a atribuir ao A, entende-se ajustada, e fazendo para tal apego ao critério da equidade, a sua fixação no montante de € 5.000,00, bem como no valor de € 500,00/dia, o montante a fixar a título de sanção pecuniária compulsória.

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            Procedem, pois, as conclusões do recorrente, na parte relativa à subsunção jurídica dos factos que vêm provados da Relação.


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            V – Face ao exposto, vai  concedida  a  revista requerida, pelo que, revogando-se o acórdão da Relação, e por arrastamento a decisão da 1ª instância, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, condena-se o R BB:

            - A abster-se de produzir ou reproduzir som musical no seu estabelecimento denominado “CC”, que se ouça na habitação do A, sita na rua J... P... S..., ...-...º-...º, em Albufeira, das 22h. até à hora do seu encerramento;

            - A pagar ao A, a título de danos não patrimoniais, a indemnização de € 5.000,00; e

            - No pagamento da quantia de € 500,00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de incumprimento da abstenção de produção do indicado ruído.

            Custas por A e R, nas instâncias e neste Supremo, na proporção de 1/10 e 9/10, respectivamente.


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Lisboa, 17 de Abril de 2012.         

 

Sousa Leite  

Salreta Pereira       

João Camilo