Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1919/15.0T8OAZ.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: REMUNERAÇÃO
ADMINISTRADOR
DEVER DE DILIGÊNCIA
INTERESSE PESSOAL DO SÓCIO
ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
SOCIEDADE ANÓNIMA
ABUSO DO DIREITO
DIREITO DE VOTO
BOA FÉ
BONS COSTUMES
ANULABILIDADE
DEVER DE LEALDADE
Data do Acordão: 11/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES – DELIBERAÇÕES DOS SÓCIOS / ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO – SOCIEDADES ANÓNIMAS / OBRIGAÇÕES E DIREITOS DOS ACCIONISTAS / DIREITO AOS LUCROS / ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO E SECRETÁRIO DA SOCIEDADE / CONCELHO DE ADMINISTRAÇÃO / REMUNERAÇÃO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / OBJECTO NEGOCIAL / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO.
Doutrina:
-Carneiro da Frada, A Business Judgment Rule no Quadro dos Deveres Gerais dos Administradores, 219;
-Coutinho de Abreu, Do Abuso do Direito, 1999, 121 ; Deveres de Cuidado e de Lealdade dos Administradores e Interesse Social, IDET Instituto das Empresas e do Trabalho, Colóquios, n.º 3, 30 ; IDET Instituto das Empresas e do Trabalho, Miscelâneas, n.º 6, Estudo Corporate Governance em Portugal, 9 ; Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume VI, 353;
-Ferrer Correia, Lições, 364;
-Joaquim Taveira da Fonseca, Textos-Sociedades Comerciais, CEJ- CDOA, 128;
-Maria de Fátima Gomes, Reflexões Em Torno dos Deveres Fundamentais dos Membros dos Órgãos de Gestão (e Fiscalização) das Sociedades Comerciais à Luz da Nova Redacção do artigo 64º do Código das Sociedades Comerciais, 20 Anos de Homenagem aos Professores Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Volume II, Vária, 551;
-Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais, 2009, 243 e 244;
-Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, II Volume, 2001, 240 e 244 ; Código das Sociedades Comerciais Anotado, anotação ao art. 399.º;
-Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume IV, Sociedades Comerciais, 1993, 291;
-Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 3.ª Edição, 439;
-Vaz Serra, RLJ, Ano 107, 5 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 56.º, N.º 1, 58.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E B), 64.º, N.º 1, 297.º E 399.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 280.º E 334.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 16-04-1996, CJSTJ, 1996, II, 23.
Sumário :
I - O CSC distingue entre deliberações nulas e deliberações anuláveis, sendo a anulabilidade o regime regra por se entender que o dinamismo da vida societária ficaria embaraçado com a multiplicação de invocações de nulidade.

II - A previsão da al. a) do n.º 1 do art. 58.º do CSC visa os casos em que a deliberação não serve o interesse social mas apenas o propósito do sócio em colher para si ou para terceiros vantagens lesivas da sociedade ou de outros sócios.

III - O abuso do direito de voto detecta-se quando, a partir da ponderação das concretas circunstâncias em que aquele é emitido e da real situação societária (que implicaria, à luz da boa fé e dos bons costumes que a deliberação não fosse tomada), se conclui que a deliberação social é totalmente estranha ao escopo da sociedade e ao seu benefício e é escandalosamente ofensivo do sentido ético-jurídico, importando demonstrar que aquela visa alcançar um proveito exclusivo a favor dos votantes e um concomitante prejuízo da sociedade ou de terceiros.

IV - A deliberação sobre os vencimentos dos administradores é um dos casos em que o interesse social e o interesse dos administradores se entrecortam e em que o interesse directo destes se repercute directamente no ente societário.

V - Tendo-se apurado que, no precedente mandato, os actuais administradores da ré (que, a par do autor, são os únicos accionistas desta) nada receberam a título de remuneração pelo exercício dessas funções, que, por via da deliberação impugnada, passarão a auferir mensalmente € 22 000, que a aprovação dessas remunerações influencia negativamente o valor de cada acção e ficando por demonstrar que essa fixação não se repercutirá nos resultados económicos futuros da sociedade, é de concluir que, por essa via, se criaram vantagens substanciais para aqueles e nenhuma vantagem para o autor, tendo-se assim visado exclusivamente o interesse egoístico dos accionistas maioritários em detrimento do interesse daqueloutro accionista e, de igual modo, se preterido o dever de diligência e de cuidado que impende sobre aqueles na gestão do interesse societário.

VI - Posto que a deliberação anulanda foi tomada em momento temporalmente próximo à recusa do autor em prestar uma garantia cambiária que lhe fora solicitada e que este não foi, como até então sucedera, eleito para o cargo de administrador, é ainda de considerar que tal deliberação, ao fixar um aumento excessivo das remunerações dos administradores, é abusiva e intencionalmente lesiva dos interesses daquele.

Decisão Texto Integral:

Proc.1919/15.0T80AZ.P1.S1

R-630[1]

Revista

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, intentou, em 29.4.2015, na Comarca de … – …- Unidade Central, acção de nulidade e anulação de deliberações sociais com processo comum, contra a Ré:

 “BB, S.A.”.

Pedindo que se declare a nulidade das deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da ré realizada no dia 30.3.2015, sob os pontos 4 e 6 da ordem do dia, formulando pedido subsidiário de anulação das mesmas deliberações sociais. 

Para tal alegou, em síntese, que a sociedade ré sempre foi gerida pelos seus três sócios fundadores, onde se inclui o autor que, em Julho de 2014, não aceitou avalizar uma garantia bancária pelo que, ao regressar de férias, em Setembro de 2014, constatou que lhe tinham sido retiradas todas as responsabilidades. 

Para o dia 30.3.2015, foi convocada uma assembleia geral da ré que veio a deliberar a eleição dos membros dos órgãos sociais para o quadriénio 2015 a 2018 e a remuneração a auferir pelos membros do Conselho de Administração. 

As deliberações em causa não têm a suportá-las qualquer proposta do Conselho de Administração para além do que, ao ser nomeado para o conselho de administração um funcionário da ré, pretendeu esta afastar o autor da vida da ré.  

E ao assim deliberar, ficaram os demais accionistas livres para gerirem a ré sem a opinião e intervenção do autor, obtendo vantagens directas, especiais e pessoais, sendo certo que a remuneração aprovada em Assembleia Geral representa um custo que a ré não pode suportar. 

Terminou, alegando que as deliberações em causa violam o princípio da igualdade entre os sócios e são ofensivas dos bons costumes, satisfazendo os propósitos dos accionistas CC e DD e provocando à ré danos financeiros e morais.  

Citada a requerida, esta deduziu oposição invocando que, quanto à escolha dos membros dos órgãos sociais da ré, o próprio autor avançou com duas listas mas nenhuma delas venceu, sendo certo que nunca a Administração da ré apresentou qualquer proposta para tal eleição. 

O autor não obteve o voto de confiança para integrar os órgãos sociais porque assumiu posturas que prejudicaram a ré, designadamente ao recusar dar o seu aval à garantia bancária que veio a ser ainda assim emitida pela BANCO EE, mas em termos mais onerosos para a ré e recusando-se a prestar qualquer outra garantia a seu favor. 

E quanto às remunerações aprovadas, alegou a ré que, para além de ter uma saúde financeira que as suporta, tais remunerações são perfeitamente ajustadas às funções exercidas. 

Terminou pedindo pela improcedência da acção e a absolvição da ré do pedido que contra ela vem formulado. 

Realizou-se audiência prévia, em sede da qual foi proferido o despacho que fixou o objecto do litígio e indicou os temas da prova. 

Instruída a causa, realizou-se audiência de julgamento com observância dos legais formalismos. 

***

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido contra ela formulada.

***

 

 Inconformado, o Autor recorreu para o Tribunal da Relação do …, que, por Acórdão de 16.5.2017 – fls. 671 a 721 –, julgou parcialmente procedente o recurso de apelação e, em consequência, anulou a deliberação tomada na Assembleia Geral da ré “BB, S.A.” sob o ponto 6 da ordem do dia referente à remuneração a auferir pelos membros do Conselho de Administração.

No mais manteve o decidido.

***

Inconformada, a Ré recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

I. Por acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do … no dia 16 de Maio de 2017, foi julgado parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo autor AA e, em consequência, anulada a deliberação tomada na Assembleia Geral da Ré, ora Recorrente, sob o Ponto 6 da Ordem do Dia referente à remuneração a auferir pelos membros do Conselho de Administração.

Entendeu o douto Tribunal a quo sustentar a anulação de tal deliberação social em dois vectores argumentativos, embora convergentes:

“ (...) ao deliberar-se um acréscimo tão significativo da remuneração dos accionistas maioritários, membros do Conselho de Administração, superior ao dobro da anteriormente praticada, tal prejudicou de forma manifesta a posição do sócio minoritário, que para além de ter deixado de fazer parte do órgão de gestão e de auferir a correspondente remuneração, vê ainda diminuído o valor das suas acções e dos inerentes lucros a distribuir, ficando igualmente dificultada umo eventual venda da sua participação social.

E se a deliberação aqui em causa é susceptível de causar dano ao sócio minoritário, designadamente porque vê diminuídos os lucros a distribuir, esta contraria também o “interesse social”, entendido este como a relação entre a necessidade de todo o sócio enquanto tal na consecução do maior lucro e o meio julgado apto a satisfazê-lo (...) ”...

III. Com este enquadramento jurídico não se pode a ora Recorrente conformar, pelo que interpôs o presente recurso de revista.

IV. São duas as grandes ordens de razão que levam a Recorrente a discordar da decisão revidenda e a confiar em que mesma deve ser revogada.

V. A primeira prende-se com aquilo que se afigura ser uma curta sucessão de equívocos que conduziram a um erro de julgamento (error juris).

VI. Entende-se no douto acórdão recorrido, na esteira do aí citado e não menos douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.03.2007 - Proc. 900712006.6 (disponível em www.dgsi.pt), que a deliberação tomada na Assembleia Geral da Ré, ora recorrente, realizada em 30.03.2015 relativamente ao Ponto 6 da ordem do dia - remuneração a auferir pelos membros do Conselho de Administração “se configura como abusiva sendo por isso anulável ao abrigo do art. 58º, n.º1, al b) do Código das Sociedades Comerciais" (Código das Sociedades Comerciais).

VII. Esta conclusão é alcançada a partir da consideração de dois factos assentes:

(i) “a aprovação da nova remuneração de € 22 000,00€ mensais influencia negativamente o valor de cada acção que, por referência ao ano de 2015, passa de € 20,7939€ para € 18,3017 (cfr. n.º 42); e (ii) “anteriormente, nenhum dos accionistas com funções de gerência ou administração retirou da empresa valor superior a € 8.000,00€ mensais por 14 meses (cfr.47, aditado) ”.

VIII. Ora, conforme se pode ler no douto aresto recorrido, com atinência ao segundo ponto antes mencionado:

“Por último, pretende a autora/recorrente que seja aditada à factualidade provada o seguinte facto: - os accionistas, pelas funções de gerência ou administração, em 2014, acertaram retirar da empresa o valor mensal de € 8.000,00, limpos, por 14 meses, por antecipação de dividendos.

Radica este no art. 30.º da petição inicial, onde se alegou que “...anteriormente, nenhum dos accionistas com funções de gerência ou administração retirou das empresas o valor mensal superior a € 8.000,00”

Do relatório pericial consta que nos exercícios de 2011 a 2014 os accionistas, na sua qualidade de administradores, não auferiram qualquer remuneração, tendo beneficiado da distribuição de dividendos, na proporção das acções detidas - resposta ao quesito 1 d).

No documento de fls. 218, manuscrito, datado de 16.1.2014, e com o título “Ordenado ou dividendos eis a questão?”, considerou-se como referencial a verba de 8.000,00€ limpos por 14 meses.

Assim, com reporte ao art. 30.º da petição inicial, entendemos que deve ser aditado à factualidade provada o n.º47 com a seguinte redacção:

“Anteriormente, nenhum dos accionistas com funções de gerência ou administração retirou da empresa valor superior a € 8.000 mensais por 14 meses”.

IX. Não podem subsistir dúvidas quanto a duas das questões suscitadas neste segmento do douto acórdão em revista: A prática que vinha sendo adoptada no período temporal compreendido entre 2011 e 2014 e que ocasionou a pergunta “Ordenado ou dividendos eis a questão?” era ilícita porquanto violava o disposto no artigo 297º do Código das Sociedades Comerciais (“ 1 - O contrato de sociedade pode autorizar que, no decurso de um exercício, sejam feitos aos accionistas adiantamentos sobre lucros, desde que observadas as seguintes regras: a) O conselho de administração ou o conselho de administração executivo, com o consentimento do conselho fiscal, da comissão de auditoria ou do conselho geral e de suspensão, resolva o adiantamento; b) A resolução do conselho de administração ou do conselho de administração executivo seja precedida de um balanço intercalar, elaborado com a antecedência máxima de 30 dias e certificado pelo revisor oficial de contas, que demonstre a existência nessa ocasião de importâncias disponíveis para os aludidos adiantamentos, que devem observar, no que seja aplicável, as regras dos artigos 32.º e 33.º, tendo em conta os resultados verificados durante a parte já decorrida do exercício em que o adiantamento é efectuado; c) Seja efectuado um só adiantamento no decurso de cada exercício e sempre na segunda metade deste; d) As importâncias a atribuir como adiantamento não excedam metade das que seriam distribuíveis, referidas na alínea b). 2 - Se o contrato de sociedade alterado para nele ser concedido a autorização prevista no número anterior, o primeiro adiantamento apenas pode ser efectuado no exercício seguinte àquele em que ocorrer a alteração contratual.”)

X. A falta, aliás manifesta, de verificação dos requisitos previstos pela citada norma para a admissibilidade de distribuições antecipadas de dividendos tornaria ilícitos os adiantamentos, com as consequências para os accionistas previstas no artigo 34º (“restituição de bens indevidamente recebidos”) e para os administradores as responsabilidades elencadas nos artigos 72.º e ss. e 574.º, todos do Código das Sociedades Comerciais.

XI. Por outro lado, não é menos claro que se mostra viciado o raciocínio jurídico formulado no douto acórdão aqui em crise (mais adiante, na página 49), quando considera, à semelhança do que se refere no convocado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que “na Assembleia Geral da ré efectuada em 30.3.2015 foi deliberado um muito significativo aumento da remuneração das accionistas membros do Conselho de Administração" posto que “anteriormente, nunca esse valor excedera os € 8.000,00 mensais por 14 meses e agora, na referida assembleia geral, esse valor repentinamente mais que duplica, passando para € 22.000,00 mensais por 14 meses".

XII. É evidente que, no douto acórdão revivendo, se confundem, inopinadamente, valores de remuneração da administração líquidos ou “limpos” com valores brutos, o que conduz ao incontornável erro de julgamento.

XIII. No caso dos presentes autos, a um valor bruto de remuneração de um administrador, € de 22.000,00€ correspondia um valor “limpo” ou líquido de € 10. 332, 10€ (somatório dos seguintes descontos legais obrigatórios:

Segurança Social - nos termos, designadamente, dos arts 66.º, 69.º, n.ºs 2 e 3 e 91.º, nºs 2 e3, todos da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro, com a redacção dada pela Lei nº 119/2009, de 30 de Dezembro e pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que aprovou o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social - 7,5% = € 1.650,00; IRS - nos termos, nomeadamente, dos arts 98.º, 99.º, 99.º -B, 99º -C e 99º, todos do Código do Imposto Sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (CIRS) - 43%: 9.460,00; e sobretaxa extraordinária de IRS - nos termos do disposto no art. 72.º -A do CIRS, conjugado com o Decreto-Lei n.º144/2014, de 30 de Setembro que fixa, para o período compreendido entre 1 de Outubro de 2014 e 3l de Dezembro de 2015, em € 505,00 o valor da retribuição mínima mensal garantida - 3,5% sobre a parte do rendimento que exceda, por sujeito passivo, o valor anual da retribuição mínima mensal garantida: € 557,90).

XIV. Inversamente, para um valor “limpo” de € 8.000,00 corresponde um valor bruto de, aproximadamente, € 16.300,00, (somatório dos descontos/retenções legais que a entidade pagadora e ora Recorrente se encontra obrigada, nos supra aludidos termos, a fazer nas retribuições que coloca à disposição dos seus administradores: Segurança Social -7,5%= 1.222,50; IRS - 41,5%: € 6.764,50; e sobretaxa extraordinária de IRS - € 358,40.

XV. Forçoso é, pois, concluir que, afinal, o acréscimo da remuneração deliberado em 30.03.2015 se cifra em cerca de € 5.700,00€ o que também equivale a dizer que o seu valor aumentou menos do que 35%, não sendo por isso nem correcto nem aceitável que se afirme, como no douto acórdão em revista, que “esse valor repentinamente mais do que duplica”...

XVI. Tão pouco se pronunciam (nem tinham de pronunciar) os Senhores Peritos no seu relatório sobre os valores líquidos e brutos entre os quais devem ser comparadas as retribuições da administração (pretéritas e futuras).

XVII. O acervo factual assente e adquirido pelas instâncias é igualmente bem revelador do contraste esmagador entre aquilo que é uma deliberação válida sobre a remuneração de titulares de órgãos sociais legitimamente eleitos e aqueloutra, sobre a qual se debruçou o citado e douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, exemplar daquilo que é uma deliberação, sobre o mesmo tema, abusiva e por isso mesmo anulada.

XVIII. A segunda grande ordem de razão, que conduz inexoravelmente ao dissenso com o douto acórdão recorrido, tem a ver com o erro na interpretação e aplicação da lei.

 XIX. Na estipulação da remuneração da administração das sociedades anónimas, são equacionados hoje, mais do que só o desempenho ou performance da gestão e seus reflexos na situação económico-financeira da empresa.

XX. Não se pode olvidar a componente da remuneração do risco assumido pelos administradores no que respeita ao seu património (pessoal e familiar) quando aceitam desempenhar essas funções.

XXI. Mutatis mutandis, quanto ao valor intrínseco que hoje, globalmente, se reconhece à administração estratégica e empreendedora das empresas, que propiciam o seu desenvolvimento a médio e longo prazo, contribuindo assim, decisivamente, para a sua valorização efectiva (a um nível várias vezes superior ao resultante do seu valor contabilístico).

XXII. O art.º 399º do Código das Sociedades Comerciais não prevê, ao invés da norma do art.º 255.º, n.º2, do Código das Sociedades Comerciais, a possibilidade de as remunerações de administradores de sociedades anónimas serem reduzidas pelo tribunal, a pedido de qualquer sócio (em sede de inquérito judicial), quando forem gravemente desproporcionadas quer ao trabalho prestado quer à situação da sociedade.

XXIII. No caso vertente, a factualidade assente é mais do que suficiente para perceber que o Autor, ora Recorrido, pretende, ele sim, abusivamente, o melhor dos dois mundos, - manter ao mais elevado nível a remuneração do capital há quase quatro décadas investido na sociedade ora Recorrente (cfr. n.º1), mas sem o esforço e trabalho exclusivamente dedicado à empresa e, para ele mais do que tudo, sem o mínimo risco de ver o património que reuniu ao longo da vida responder por dívidas da sociedade.

XXIV. Citando Ana Perestrelo de Oliveira in “Manual do Governo das Sociedades”, Almedina, 2017, pág. 88: “Se tradicionalmente, os deveres de lealdade eram restritos aos administradores das sociedades e não aos sócios, hoje reconhece-se deveres de lealdade na generalidade das sociedades, a cargo de todo o sócio, independentemente do peso que assumem.”

XV. A prosperidade de que a sociedade ora Recorrente beneficia deve-se, obviamente, à actividade desenvolvida pelos dois accionistas fundadores e actuais administradores, bem como à sua visão estratégica de desenvolvimento e internacionalização da empresa.

XXVI. Seria ilógico, para não dizer irracional, que, implicando a qualidade de administradores da sociedade Recorrente uma série de responsabilidades pessoais e inerentes riscos patrimoniais de dimensão muito apreciável (v.g. a responsabilidade subsidiária pelas dívidas tributárias e, sobretudo, a responsabilidade solidária assumida face à banca, demais instituições de crédito e clientes em consequência da prestação de avales e fianças a obrigações da sociedade), aceitassem remunerações que pudessem ter a virtualidade de colocar em risco, de forma quase ilimitada, os seus próprios patrimónios pessoais e familiares.

XXVII. A deliberação social sobre a remuneração dos administradores, aqui sob escrutínio, não enferma de qualquer vício que a invalide.

XXVIII. As remunerações estabelecidas e, mais ainda, as efectivamente praticadas pela sociedade ora Recorrente, constituem contrapartida adequada do exigente trabalho e da responsabilidade pessoal que inerem às funções de administrador, mostrando-se ademais proporcionadas, tendo em conta a situação económica da ora Recorrente.

XXIX. In fine, o douto acórdão recorrido viola, entre outros, os arts. 58.º, nº1, al. b), 64.º, n.º1 e 399º, nº1 todos do Código das Sociedades Comerciais, bem como o artigo 334.º do Código Civil.

Nestes termos e nos mais e melhores de Direito que Vossas Excelências não deixarão de, tão elevada quanto proficientemente suprir, deve o presente recurso de revista ser revogado o acórdão recorrido, sendo a acção julgada totalmente improcedente.

Assim fazendo Vossas Excelências, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.

O Autor contra-alegou, pugnando pela confirmação do Julgado.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1 – Em 04.09.1979, AA (Autor), CC e DD, constituíram a sociedade comercial por quotas sob a firma “FF, Limitada”;

  

2 – Cabendo a cada um dos sócios uma quota no valor de quinhentos mil escudos.

3 – A gerência ficou a cargo de todos os sócios.

   

4 – Ao longo do tempo, verificaram-se aumentos de capital, constando sempre o capital dividido por três quotas de valor igual;

   

5 – Mais tarde, previamente à transformação da sociedade em anónima, o Autor dividiu a sua quota em duas e cedeu uma no valor nominal de 100.000$00 a GG, casada com o sócio CC e este também dividiu a sua quota em duas e cedeu uma no valor nominal de 100.000$00 a HH, no estado de casada com o Autor.

  

6 – Em 31.12.1990, a sociedade Ré foi transformada em sociedade anónima, mantendo-se o capital social dividido em três partes iguais – uma pertencendo ao casal do Autor e da accionista HH; outra ao casal dos accionistas CC e GG e uma terceira ao accionista DD.

7 – De facto, o capital social da Ré, de 67.500.000$00 foi dividido em 67.500 acções do valor nominal de 1.000$00 cada, distribuídas pelos accionistas da seguinte forma:

- AA (Autor): passou a ser titular de 22.400 acções, com o valor nominal total de 22.400.000$00;

- HH: ficou titular de 100 acções, com o valor nominal total de 100.000$00;

- CC: passou a ser titular de 22.400 acções, com o valor nominal global de 22.400.000$00;

- GG: passou a ser titular de 100 acções, com o valor nominal global de 100.000$00;

- DD: ficou titular de 22.500 acções, com o valor nominal total de 22.500.000$00.

8 – Posteriormente à transformação foram deliberados mais dois aumentos de capital, subscritos pelos accionistas na proporção das suas participações, tendo sido ainda operada a nominalização do capital social, do que resultou a sua fixação em 875.000,00 euros, representado por 175.000 acções do valor nominal de 5,00 euros cada uma;

9 – Manteve-se, desde então e até à presente data, a mesma distribuição equitativa inicial do capital social, sendo que o accionista DD ficou titular de mais uma acção que os demais grupos accionistas, pelo facto da divisão do capital social por três partes não resultar num número inteiro e ser necessário fazer o acerto das participações;

 

10 – No que respeita à gerência/administração da Ré, esta foi, no acto constitutivo da sociedade, atribuída a todos os sócios, vinculando-se a sociedade com a assinatura conjunta dos três gerentes;

11 – Com a transformação da Ré em sociedade anónima o pacto social foi alterado, estipulando-se que a sociedade se passaria a obrigar com assinatura conjunta de apenas dois administradores;

 12 – Inicialmente na gerência e posteriormente no Conselho de Administração sempre tiveram assento os accionistas AA, CC e DD, de forma ininterrupta até 2011, altura em que foram substituídos pela filha do Autor II, por GG, mulher do accionista CC e por JJ, mulher do accionista DD.

13 – A sociedade Ré sempre foi gerida pelos três sócios fundadores e accionistas, que nela colocaram o seu capital, o seu saber e conhecimentos, o seu empenho e labor pessoais.

14 – Os três sócios fundadores e accionistas foram substituídos apenas formalmente (após terem passado à situação de reformados), mas na prática e de facto continuaram a geri-la.

  

15 – Pouco depois da eleição do Conselho de Administração feminino (composto por familiares dos sócios fundadores e accionistas), pelos membros desse órgão foi outorgada uma procuração aos sócios fundadores e accionistas CC, AA (o aqui Autor) e DD conferindo-lhes poderes para “quaisquer dois deles, conjuntamente, praticar todos os actos necessários à movimentação, a débito e a crédito, das contas bancárias de que a sociedade é titular, nomeadamente para assinar ordens de transferência, requisitar cheques, assinar cheques, quer sacando-os, quer endossando-os, e para assinar letras, quer sacando-as, quer aceitando-as, quer endossando-as.”.

16 – E assim foi gerida a Ré pelos três sócios fundadores e accionistas até Julho de 2014.

 

17 – No dia 2 de Abril de 2013 a Ré havia celebrado um contrato de empreitada com a sociedade “KK, Lda.”, NIPC 000 000 983, tendo por objecto a construção, pela sociedade Ré enquanto empreiteira, de equipamentos de processo de uma unidade para a regeneração de óleos lubrificantes usados.

18 - Foi fixado o preço global da empreitada em 5.613.570,35 € e o prazo para a sua execução em 240 dias, com uma tolerância de 30 dias;

19 - Mais ficou convencionado que o dono da obra pagaria, a título de adiantamento, o montante correspondente a 20% do valor da empreitada (ou seja, 1.122.714,07 €) contra a prestação de uma garantia bancária a seu favor.

20 - Esta primeira garantia veio a ser concedida pelo BANCO LL, S.A.

21 - Posteriormente, o accionista DD, responsável pela gestão deste cliente, informou os demais accionistas que tal garantia bancária exigida pela KK caducara, tendo em consideração que o período de construção e montagem da unidade derrapara 4/5 meses, afirmando que (...) porque o cliente tem do lado dele a possibilidade de accionar as penalizações, e porque a garantia só cobre a boa construção da qual já não existem dúvidas, acho que devemos aceitar a imposição do cliente, porque a sua negação vem criar um conflito muito grave, que até ao momento não existe e que por retaliação da KK, pode-nos vir a ficar muito, mas muito mais caro quer ao nível de custos, quer ao nível da imagem e confiança.”

22 – Como o Autor, recebida tal comunicação, nada mais disse, DD procurou abordá-lo pessoalmente na sede da Ré, tendo o mesmo respondido que não prestaria o seu aval para a garantia em causa nem se atravessaria em mais nenhum outro contrato ou operação da sociedade Ré.

22-A - Tais afirmações foram ouvidas pelo funcionário da Ré que se encontrava no gabinete contíguo – MM; [facto acrescentado pela 2ª Instância]

23 – Em Julho de 2014, o Autor não avalizou a garantia bancária à empresa KK;

24 – Ao regressar de férias, em Setembro, o Autor constatou que lhe tinham sido retiradas todas as responsabilidades, toda a informação e trabalho dentro da empresa (sociedade Ré).

25 – A garantia bancária referida em 23. veio a ser emitida pela BANCO EE no dia 8.10.2014, com o n.º 000-00.000040-2, apenas avalizada por CC e DD;

26 – A partir deste momento, nunca mais o Autor subscreveu qualquer contrato em representação da Ré nem prestou qualquer garantia a uma obrigação desta.

27 – Sendo certo que, desde a sua constituição em 1979, todos os sócios gerentes prestaram todas as garantias que se mostraram necessárias e indispensáveis para o sucesso dos negócios da sua empresa.

28 – A sociedade Ré veio a abrir três contas correntes caucionadas – uma junto do BANCO NN, S.A. em 12 de Dezembro de 2014, da BANCO EE, em 20 de Abril de 2015 e do BANCO OO, S.A., em 14 de Maio de 2015 – tendo sido entregues as habituais livranças em branco, subscritas pela sociedade e avalizadas unicamente pelos outros dois accionistas;

29 – A partir do mês de Novembro, o Autor deixou de comparecer na empresa e a partir de Julho de 2014 a Ré deixou de pagar a remuneração e despesas, por antecipação de dividendos, como era habitual.

30 – Com data de 25.09.2014, o Autor emitiu uma carta tipo circular, que enviou a diversos clientes, informando da “intenção de vender as (...) acções na sociedade BB, S.A. e PP, Lda., correspondentes a 1/3 do seu capital.”, afirmando ainda “ (...) haver a possibilidade de venda de mais do que 1/3 do capital social nestas sociedades.”

31 – Terminado o prazo de duração do mandato dos órgãos sociais designados para o quadriénio 2011/2014, cumpria eleger os membros para o mandato seguinte.

32 – No dia 09.03.2015, a administração da Ré dirigiu à Presidente da Mesa da Assembleia Geral uma carta tendente à convocação da Assembleia Geral que acabaria convocada para o dia 30.03.2015 na qual declarou: “... como tem sido timbre histórico da sociedade, não apresentará a Administração qualquer proposta, deixando à superior consideração dos Ex. mos  Senhores accionistas as propostas que entendam dever sujeitar à apreciação e deliberação da Assembleia Geral anual.”

33 – No dia 30.03.2015 realizou-se Assembleia Geral da sociedade Ré com a seguinte ordem do dia:

Ponto um – deliberar sobre o Relatório de Gestão e as Contas do exercício de 2014;

Ponto dois – deliberar sobre a proposta de aplicação de resultados;

Ponto três – proceder à apreciação geral da Administração e fiscalização da Sociedade referente ao exercício de 2014;

Ponto quatro – deliberar sobre a eleição dos membros dos órgãos sociais (Mesa da Assembleia Geral, Conselho de Administração e Fiscal único, efectivo e suplente) para o quadriénio de 2015 a 2018;

Ponto cinco – deliberar sobre a dispensa de prestação de caução pelos membros do Conselho de Administração;

Ponto seis – deliberar sobre a remuneração a auferir pelos membros do Conselho de Administração;

Ponto sete – Outros assuntos.

34 - No que ao ponto quatro respeita, a proposta apresentada pelo accionista CC (Lista A) reuniu a maioria dos votos (116.667 votos favoráveis, contra os 58.333 votos favoráveis nas demais listas) e, tendo sido a aprovada, vieram a ser eleitos para integrar o Conselho de Administração no quadriénio 2015/2018:

- CC, enquanto presidente do órgão;

- DD; e

- QQ.

35 – O Autor avançou com a proposta de outras duas listas, “Lista B” e “Lista C”, nesta fazendo parte do Conselho de Administração uma sua filha, proposta rejeitada pelos accionistas CC e DD;

36 – Nem o Autor, nem a sua mulher (também ela accionista da Ré), nem um outro familiar do Autor integram qualquer um dos órgãos, Conselho de Administração e Mesa da Assembleia Geral.

 

37 - No que respeita à deliberação tomada no ponto seis da ordem do dia, foi aprovada a remuneração dos membros do Conselho de Administração accionistas em 22.000,00 € mensais (por catorze meses, a cada um).

38 – QQ, identificado em 34. é funcionário da sociedade Ré com mais de 30 anos de casa, do conhecimento pessoal dos accionistas, sendo igualmente conhecidas as suas habilitações académicas, o seu percurso profissional, as funções desempenhadas no passado e o número de acções detidas na sociedade Ré (zero).

39 – O Autor, ao longo dos anos, usou recursos materiais e humanos da sociedade Ré em seu proveito próprio, sem que a sociedade obtivesse por isso qualquer contrapartida;

40 – Em 2014, a Ré apresentou um volume de negócios anual superior a dez milhões de euros e empregou mais de cem trabalhadores.

41 – A remuneração indicada em 37. foi aprovada a favor de CC e DD pelo exercício das funções de administração e assim que se iniciaram os seus pagamentos, cessou o indicado em 29. (pagamento da remuneração e despesas, por antecipação de dividendos).

42 – A aprovação desta remuneração influencia negativamente o valor de cada acção que, por referência ao ano de 2015, passa de € 20,7939 para € 18,3017;

  

43 – Em 31.07.2014 a KK era devedora da Ré, apresentando um saldo de € 1.252.798,80;

44 – A conclusão da obra indicada em 17. estava prevista para Dezembro de 2013 mas a última factura emitida (relativa ao auto de medição nº 11) data de 30.06.2014, faltando ainda emitir o auto de recepção provisório e a factura a ele respeitante – 5% do contrato – € 354.234,58;

45 – As garantias referidas em 20. e 25. foram emitidas:

• Com a validade de nove meses, pelo BANCO LL, em 15.03.2013, e garantindo o pagamento de € 1.222.714,00;

• Com a validade de trinta meses, pelo BANCO EE, em 08.10.2014, garantindo o pagamento de € 280.678,52;

46 – A Ré não cumpriu os prazos de conclusão da obra designadamente porque o Inverno foi muito chuvoso, tendo impossibilitado a execução/conclusão de muitos dos trabalhos.

                                                                    *

Não se provou qualquer outro facto com interesse para a decisão da causa e, designadamente, não se provou que:

a) A Ré tenha sido sempre gerida segundo o tipo de gestão familiar;

b) Ao ser escolhido, para o Conselho de administração, um funcionário da empresa, quiseram os demais fundadores discriminar o Autor, o que representa uma vantagem pessoal e directa para os accionistas CC e DD;

c) A Ré não comporta, económica e financeiramente, o pagamento das remunerações dos membros do Conselho de Administração

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso, importa saber se é válida a deliberação da Assembleia Geral da Ré, de 30.3.2015 que deliberou a remuneração de cada um dos dois membros do Conselho de Administração e accionistas, CC e DD, fixando-a em € 22 000,00 pagos 14 vezes ao ano.

O Autor questionara também a deliberação dessa Assembleia Geral, no seu ponto 4, que o não elegeu para tal Conselho de Administração, mas tal deliberação foi considerada válida, tendo transitado em julgado a decisão quanto a essa questão.

O Autor, ora recorrido, considerou que as remunerações aprovadas (aumentando o valor mensal de € 8 000,00 para € 22 000,00), são abusivas, visando apenas conceder vantagem especial e directa aos accionistas CC e DD, por excessivas e economicamente incomportáveis para a Ré, afectando não só a sociedade, mas também a sua posição de accionista do ponto em que aqueles valores se repercutem, negativamente, no valor das acções que continua a deter. Entendeu que as deliberações feriram o dever de lealdade e são ofensivas dos bons costumes.

É patente que o Autor não dissociou as duas deliberações: a sua não eleição para o Conselho de Administração e as remunerações fixadas para aqueles dois eleitos (o terceiro não aufere qualquer remuneração), onde se inclui uma pessoa que nem sequer era accionista, antes um colaborador da Ré – vendo-a ligadas por um propósito de revanche da sociedade pelo facto de não ter prestado uma garantia num contrato de empreitada, sendo a ré a empreiteira, celebrado com a sociedade KK.

O Acórdão recorrido revogou a sentença quanto à deliberação respeitante às retribuições, considerando que, “Na Assembleia Geral da ré efectuada em 30.3.2015 foi deliberado um muito significativo aumento da remuneração dos accionistas membros do Conselho de Administração.

Anteriormente, nunca esse valor excedera os 8.000,00€ mensais por 14 meses e agora, na referida assembleia geral, esse valor repentinamente mais que duplica, passando para 22.000,00€ mensais por 14 meses.

Mesmo que a situação económica da ré não se recorte como débil, tendo em conta que em 2014 apresentou um volume de negócios superior a 10 milhões de euros e empregue mais de 100 trabalhadores (cfr. n° 40), não se divisa fundamento para um tão generoso aumento da remuneração dos accionistas administradores.

Aliás, coincidindo esse aumento com a saída do autor AA do Conselho de Administração, o que lhe parece subjazer é a intenção de os sócios maioritários (CC e DD), por um lado, melhorarem os seus proventos e, por outro, prejudicarem a situação do autor, como que o punindo redobradamente pela falta de solidariedade que evidenciara ao não assinar a garantia bancária solicitada pela KK.

É que não se pode ignorar que em consequência da aprovação da nova remuneração o valor de cada acção da ré, por referência ao ano de 2015, diminuiu de 20.7939 € para € 18,3017.

Sucede que ao deliberar-se um acréscimo tão significativo da remuneração dos accionistas maioritários, membros do Conselho de Administração, superior ao dobro da anteriormente praticada, tal prejudicou de forma manifesta a posição do sócio minoritário, que para além de ter deixado de fazer parte do órgão de gestão e de auferir a correspondente remuneração, vê ainda diminuído o valor das suas acções e dos inerentes lucros a distribuir, ficando igualmente dificultada uma eventual venda da sua participação social.

 E se a deliberação aqui em causa é susceptível de causar dano ao sócio minoritário, designadamente porque vê diminuídos os lucros a distribuir, esta contraria também o “interesse social”, entendido este como a relação entre a necessidade de todo o sócio enquanto tal na consecução do maior lucro e o meio julgado apto a satisfazê-lo – cfr. Coutinho de Abreu, “Do Abuso do Direito”, 1999, pág. 121”.

A Recorrente considera ter havido erro de julgamento, porquanto o Acórdão recorrido confunde os valores de remuneração da administração líquidos ou “limpos” com valores brutos, o que conduz ao incontornável erro de julgamento.

Na conclusão XIII das suas alegações sustenta que a um valor bruto de remuneração de um administrador, de € 22.000,00 correspondia um valor “limpo” ou líquido de € 10.332,10 (somatório dos seguintes descontos legais obrigatórios: Segurança Social; IRS e sobretaxa extraordinária de IRS).

Censura ainda o Acórdão pelo facto de não ter levado em linha de conta a responsabilidade e o risco assumido pelos administradores, no que respeita ao seu património pessoal e familiar, pelo desempenho do cargo social, e que na remuneração são equacionados hoje, mais do que só o desempenho ou performance da gestão e seus reflexos na situação económico-financeira da empresa.   

Faz notar que o Autor visa “abusivamente, o melhor dos dois mundos, - manter ao mais elevado nível a remuneração do capital há quase quatro décadas investido na sociedade ora Recorrente (cfr. n.°1), mas sem o esforço e trabalho exclusivamente dedicado à empresa e, para ele mais do que tudo, sem o mínimo risco de ver o património que reuniu ao longo da vida responder por dívidas da sociedade”

Vejamos:

Nos termos do art.58º, nº1, b) do Código das Sociedades Comerciais são anuláveis as deliberações que: sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos.

O art. 64º, nº1, consagra como deveres fundamentais dos gerentes ou administradores:

Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:

 a) Deveres de cuidado, relevando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e

b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.

2.Os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização devem observar deveres de cuidado, empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade, no interesse da sociedade.”

Artigo 399.° (Remuneração)

1.Compete à assembleia geral de accionistas ou a uma comissão por aquela nomeada fixar as remunerações de cada um dos administradores, tendo em conta as funções desempenhadas e a situação económica da sociedade.

2. A remuneração pode ser certa ou consistir parcialmente numa percentagem dos lucros de exercício, mas a percentagem máxima destinada aos administradores deve ser autorizada por cláusula do contrato de sociedade.

3. A percentagem referida no número anterior não incide sobre distribuições de reservas nem sobre qualquer parte do lucro do exercício que não pudesse, por lei, ser distribuída aos accionistas.   

São estes preceitos do Código das Sociedades Comerciais e ainda o art. 334º do Código Civil (abuso do direito) que a Recorrente considera violados.

Vejamos:

A questão objecto do recurso relaciona-se com a governação da sociedade e os deveres impostos aos seus gerentes ou administradores.

“Das deliberações sociais enquanto realidades jurídicas sobressai a sua aplicabilidade a pessoas que nelas não participaram ou, mesmo, que a elas se opuseram.

 Ora tudo isto ocorre no seio do Direito privado, onde dominam a liberdade e a igualdade e onde ninguém surge dotado de “ius imperii”.

Compreende-se, por isso, sem recorrer a maiores considerações, a necessidade de subordinar cuidadosamente as deliberações sociais à lei e aos estatutos.

Apenas mercê duma legitimação encontrada nesses níveis se pode admitir o poder vinculativo das deliberações, em particular perante todos quantos nelas não tenham participado ou se lhes tenham oposto”- Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito Comercial”, II Volume, 2001, pág.240.

Porque as deliberações sociais, pelo seu objecto e conteúdo, podem contender com a estrita legalidade ou, meramente com os estatutos societários, o Código das Sociedades Comerciais (CSC) distingue as que são nulas – art. 56º- das que são anuláveis – art. 58º.

Atento o caso em apreço, do elenco das nulidades previstas no art. 56º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais, vejamos a que, em princípio, poderá estar em causa afectando as deliberações tomadas.

 É ela a da alínea a) que fulmina com anulabilidade as deliberações sociais que:

Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos”.

 

 “São anuláveis as deliberações sociais que sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiro, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios.”- Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.4.1996, in CJSTJ. 1996, II, 23.

Ao contrário do regime previsto no Código Civil, em que a regra tendencial é a de considerar a nulidade dos actos que violem a lei – art. 280º do Código Civil – no Código das Sociedades Comerciais o regime-regra é mais benévolo, é o da anulabilidade.

Segundo o tratadista citado, tal regime deve-se à intenção de dinamizar a vida das sociedades comerciais, que ficaria embaraçada com uma multiplicação de situações de nulidade”- pág. 244.

A deliberação societária abusiva exprime um acto disfuncional, porquanto não visa a função de servir a sociedade mas, ao invés, é estranha a essa finalidade, do ponto em que apenas visa satisfazer o propósito de sócio ou sócios que assim, através do voto, colhem para si, ou para terceiros, vantagens que lesam a sociedade ou outros sócios. 

Se com tal prática houver prejuízo para a sociedade ou outros sócios “a consequência é a anulabilidade”- cfr. Professor Oliveira Ascensão, in “Direito Comercial, Vol. IV, Sociedades Comerciais”, 1993, pág.291.

“No fundo e em síntese, parece-nos não ser incorrecto reconhecer, apesar das reservas que alguns colocam ao entendimento que o critério decisivo para distinguir as deliberações nulas das anuláveis é o da imperatividade e interesse de ordem pública das deliberações viciadas.

 Sempre que esteja em causa a violação de normas do contrato de sociedade ou normas legais destinadas a integrar apenas a vontade dos associados na falta de regulamentação nos estatutos, a sanção será, por conseguinte, em princípio, a mera anulabilidade”- cfr. “Textos-Sociedades Comerciais- CEJ- CDOA”, pág. 128, Estudo da autoria do Dr. Joaquim Taveira da Fonseca.

Mas será que as deliberações em causa visaram tão-somente os interesses pessoais dos accionistas que as votaram, causando prejuízo à sociedade ou ao accionista discordante, no caso o Autor/recorrido?

Estamos colocados perante a possibilidade de tais deliberações serem abusivas do direito.

 A figura do abuso do direito, regulada no art. 334º do Código Civil, tem largo campo de aplicação no direito societário.

“...Não basta, pois, o ter-se determinado o sócio, por motivos extra-sociais; nem releva, só por si, o prejuízo da sociedade ou dos outros sócios.

Mas estas duas circunstâncias conjugadas definem o abuso do direito de voto.

Esta solução é aceite, por todas as doutrinas que, por diferentes vias, procuram estabelecer um limite ao poder da maioria, nos termos referidos” – Professor Ferrer Correia, in “Lições”, pág.364.

Para o Prof. Vaz Serra - “O abuso do direito em deliberações sociais verifica-se, quando a deliberação, em vez de prosseguir, um fim social, isto é, de ser tomada no interesse da sociedade, o é em proveito exclusivo dos sócios que a aprovam ou de terceiros, conferindo vantagens especiais a eles ou aos terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios”.

 [...] O direito de voto é atribuído aos sócios para a realização do fim ou objecto social, pelo que se for exercido, não para esse fim, ou objecto, mas para a obtenção de vantagens especiais dos votantes ou de terceiros, em prejuízo da sociedade ou dos outros sócios, existe abuso do direito - art. 334º do Código Civil- e, portanto, violação da lei, sendo anulável a deliberação” – cfr. RLJ, Ano 107, págs. 5 e segs.

A questionada deliberação social, para que possa ser considerada abusiva do direito dos votantes, importa que, pelo seu teor e conteúdo totalmente estranhos ao escopo societário e ao benefício do ente, seja escandalosamente ofensiva do sentido ético-jurídico.

 

Tal juízo é feito a partir das concretas circunstâncias em que o voto é emitido, em função da real situação da sociedade; situação que à luz das regras da boa-fé e dos bons costumes implicaria que a deliberação não fosse tomada.

Importa que se demonstre que as deliberações visam tão-somente o proveito exclusivo dos sócios votantes, que dela colhem vantagens que redundam em concomitante prejuízo da sociedade ou de terceiros.

Pinto Furtado, in “Curso de Direito das Sociedades”, 3ª edição, pág. 439, acerca do conceito de “bons costumes” aplicado às deliberações sociais abusivas, escreve:

“A fórmula do critério sociológico definidora dos bons costumes que nos parece mais feliz é a adoptada pelo Supremo Tribunal alemão: “o sentido do decoro ou da dignidade de todas as pessoas que pensam com equidade e justiça”.

  O art. 64º do Código das Sociedades Comerciais, na redacção anterior à da Reforma de 2006, estatuía:

“Os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.

Após a Reforma de 2006, o preceito passou a ter a seguinte redacção:

“1. Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:

a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado;

 b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.

Já na vigência desta redacção, Menezes Cordeiro, in “Código das Sociedades Comerciais” – 2009 – págs. 243 e 244 – em comentário àquele normativo, escreveu:

“Os administradores das sociedades têm, no essencial, dois deveres ou poderes-deveres: o de gestão e o de representação.

O 64.° reporta-se, antes, ao modo de concretização desses dois deveres e, ainda, de todas as restantes obrigações que lhes advenham da lei ou dos estatutos. […].

Na tradição nacional, a diligência traduz a medida de esforço exigível ao devedor, no cumprimento das obrigações.

Tal medida pode ser determinada em concreto ou em abstracto, remetendo para um bom cidadão comum (bonus pater famílias) ou para critérios mais exigentes. […]. O gestor criterioso e ordenado surge como uma bitola mais exigente do que a comum: requer um esforço acrescido, por se dirigir a especialistas fiduciários, que gerem bens alheios.

 Apesar de inserida no final do 64.°/1, a), a diligência dá corpo a todos os deveres dos administradores, explicando a intensidade requerida na sua execução. […].

No Direito das sociedades, a lealdade exprime o conjunto dos valores básicos do sistema que, em cada situação concreta, devam ser acatados pelos diversos intervenientes.

 Equivale, de certo modo, à ideia civil de boa fé.

 A lealdade aplica-se: (a) nas relações dos sócios com a sociedade e entre si, integrando a ideia básica de status do sócio; (b) nas relações da sociedade para com os sócios, implicando um alargamento ex bona fide da competência da assembleia geral; (c) nas relações dos administradores com a sociedade e com os próprios sócios, as quais estão, agora, em causa.

 Pela positiva, a lealdade obriga a seguir as regras do bom governo das sociedades (corporate governance).

A lei portuguesa, objectivamente tomada, remeteu essa matéria para os deveres de cuidado.

 No Direito português, os deveres de cuidado devem ser tomados como normas de conduta que densificam, à luz dos ditames do bom governo das sociedades, os deveres gerais de gestão.

 Afastam-se dos duties of care, próprios do negligence law, de onde foram retirados, em 2006, configurando-se como normas de procedimento.

 Modalidades. A lei especifica: (a) disponibilidade; (b) competência técnica; (c) conhecimento da actividade da sociedade: outros tantos deveres, não-taxativos, que dão um colorido geral a toda a actuação, essencialmente fiduciária, dos administradores.

Opera caso a caso: “adequados às suas funções”. Relevam a dimensão da sociedade, a actividade social, o pelouro, os objectivos fixados e os condicionamentos externos, jurídicos, económicos e sociais”.

Não obstante a primitiva redacção não enunciar de forma clara o princípio da “corporate govenance[2], ele estava contido na regra do “dever de cuidado e de diligência” imposta ao gerente a quem incumbe actuar segundo o padrão do “gestor criterioso e ordenado”, pautando a sua actuação pelos critérios da isenção e do agir de boa fé em vista da salvaguarda dos interesses da sociedade, “tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”; de notar que nas als. a) e b) da redacção agora vigente do citado preceito se alude, de igual modo, a “diligência de um gestor criterioso e ordenado” e nos deveres de lealdade se apontam os interesses dos sócios, da sustentabilidade da sociedadetais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.

Antes, o art. 64º tinha como epígrafe “Dever de diligência”, após a Reforma aparece como “Deveres fundamentais”, um plus de expressa maior exigência.

Comentando a formulação do art. 64º do Código das Sociedades Comerciais, antes da Reforma, a agora Conselheira Maria de Fátima Gomes, in “Reflexões Em Torno dos Deveres Fundamentais dos Membros dos Órgãos de Gestão (e Fiscalização) das Sociedades Comerciais à Luz da Nova Redacção do artigo 64º do Código das Sociedades Comerciais”, na obra “20 Anos de Homenagem aos Professores Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier”, volume II, Vária, escreve – pág. 551:

 “O art. 64.° do Código das Sociedades Comerciais tem sido entendido, pela doutrina nacional, como a norma jurídica que fundamenta a existência do dever de prosseguir o “interesse social”, na condução dos negócios societários, interesse esse que não se esgota na mera recondução ao interesse da sociedade, dos sócios e/ou dos trabalhadores.

Nesse sentido o conceito de interesse social tem sido utilizado de uma forma mais abrangente, que engloba em si a potencialidade de conciliação dos referidos interesses considerados numa perspectiva não meramente isolada face aos demais”.

Coutinho de Abreu, in “IDET Instituto das Empresas e do Trabalho, Colóquios”, nº3, pág.30, “Deveres de Cuidado e de Lealdade dos Administradores e Interesse Social.”, “Ora, importa sublinhar aqui que o art. 64.°, 1, desempenha no campo da responsabilidade uma dupla função: prevê deveres de cuidado e de lealdade que se traduzem em vários deveres objectivos de conduta cuja violação significa ilicitude; e circunscreve o critério da culpa: a “diligência de um gestor criterioso e ordenado”. Consequentemente, a norma do art. 64.° é fundamento autónomo de responsabilidade” – Coutinho de Abreu, in “IDET Instituto das Empresas e do Trabalho, Colóquios”, nº3, pág.30, “Deveres de Cuidado e de Lealdade dos Administradores e Interesse Social.

Assaca o Autora à Ré a violação de deveres de cuidado, de diligência e de lealdade, todos previstos no art. 64º do Código das Sociedades Comerciais, enfatizando, sobretudo, a violação do dever de lealdade.

O dever de lealdade é indissociável da ideia de confiança, quer seja perante a sociedade, quer perante os sócios, quer perante terceiros. O acautelar do interesse social não se confina apenas ao interesse societário tout court, ou seja, a uma actividade que vise lucros. A eticização do direito e da vida societária impõem uma actuação honesta, criteriosa e transparente compaginável com a tutela de terceiros que possam ser prejudicados pela actuação do ente societário através da actuação de quem delineia a sua estratégia e é responsável pela actuação da sociedade, o que convoca os princípios da actuação de boa fé, da confiança e a da proibição do abuso do direito.

Como refere Carneiro da Frada: “Os administradores devem, portanto, ser leais a todos: à sociedade, aos sócios, aos credores, aos trabalhadores e aos clientes. Não podem ser “mais leais a uns do que a outros”. Se o são, já são desleais” – “A Business Judgment Rule no Quadro dos Deveres Gerais dos Administradores”, pág. 219.

O interesse social e o dos administradores entrecortam-se quando está em causa a tomada de decisões que, interessando directamente a estes, se repercutem no ente societário: um dos domínios em que a conflitualidade pode existir é, justamente, como no caso de onde o recurso dimana, a deliberação sobre os vencimentos dos membros do conselho de administração da sociedade anónima aqui Ré, que integra três accionistas, mas apenas em relação a dois deles por o terceiro não ser remunerado.

A sociedade ré, inicialmente, assumiu a forma de sociedade por quotas com participações sociais iguais de três sócios, todos gerentes; depois, em 31.12.1990, transformou-se em sociedade anónima, e, após dois aumentos de capital, tem hoje o capital social de € 875 000,00. Foi administrada pelos três sócios fundadores e actuais accionistas como consta provado.

Como se acha provado – “No que respeita à gerência/administração da Ré, esta foi, no acto constitutivo da sociedade, atribuída a todos os sócios, vinculando-se a sociedade com a assinatura conjunta dos três gerentes; com a transformação da Ré em sociedade anónima o pacto social foi alterado, estipulando-se que a sociedade se passaria a obrigar com assinatura conjunta de apenas dois administradores.

 Inicialmente na gerência e posteriormente no Conselho de Administração sempre tiveram assento os accionistas AA [o autor], CC e DD, de forma ininterrupta até 2011, altura em que foram substituídos pela filha do Autor II, por GG, mulher do accionista CC e por JJ, mulher do accionista DD.

A sociedade Ré sempre foi gerida pelos três sócios fundadores e accionistas, que nela colocaram o seu capital, o seu saber e conhecimentos, o seu empenho e labor pessoais.

Os três sócios fundadores e accionistas foram substituídos apenas formalmente (após terem passado à situação de reformados), mas na prática e de facto continuaram a geri-la.”

A causa próxima das dissensões entre o Autor e a sociedade reporta-se ao contrato de empreitada, celebrado em 2.4.2013, entre a Ré e a Sociedade “KK, Lda.”.

Tal contrato, sendo a Ré empreiteira, tinha por objecto a construção de equipamentos de processo de uma unidade para a regeneração de óleos lubrificantes usados para aquela sociedade, dona da obra.

Foi fixado o preço global da empreitada de € 5.613.570,35 e o prazo para a sua execução em 240 dias, com uma tolerância de 30 dias. Mais ficou convencionado que o dono da obra pagaria, a título de adiantamento, o montante correspondente a 20% do valor da empreitada (ou seja, € 1.122.714,07) contra a prestação de uma garantia bancária a seu favor.

Como se acha provado, após vicissitudes várias relacionadas com a prestação de garantia bancária à dona da obra, o Autor, na sua qualidade de administrador e accionista, em Julho de 2014, recusou dar, como garantia, o seu aval cambiário.

Ao regressar de férias, em Setembro, constatou que lhe tinham sido retiradas todas as responsabilidades, toda a informação e trabalho dentro da empresa (sociedade Ré).

Terminado o mandato dos administradores – quadriénio 2011/2014 – após indiscutida convocação da Assembleia Geral da ré, realizou-se ela em 30.3.2015 com sete pontos na ordem do dia.

O ponto quatro – deliberar sobre a eleição dos órgãos sociais (Mesa da Assembleia Geral, Conselho de Administração e Fiscal único, efectivo e suplente) para o quadriénio de 2015 a 2018 e o Ponto seis – deliberar sobre a remuneração a auferir pelos membros do Conselho de Administração suscitaram controvérsia, tendo as deliberações sociais a respeito sido impugnadas em juízo pelo Autor.

Como antes dissemos, o Autor não foi eleito para o Conselho de Administração da Ré – ponto 4 – e viu ser aprovada a remuneração dos membros do Conselho de Administração accionistas em € 22.000,00 mensais (por catorze meses, a cada um).

A remuneração foi aprovada a favor de CC e DD, pelo exercício das funções de administração e, assim que se iniciaram os seus pagamentos, cessou, a partir de Julho de 2014, o pagamento ao Autor, da remuneração e despesas, por antecipação de dividendos, como era habitual.

Em 2014, ano anterior à deliberação sobre a remuneração aprovada, a Ré apresentou um volume de negócios anual superior a dez milhões de euros e empregou mais de cem trabalhadores.

Foi neste quadro factual, com a ausência do Autor da empresa a partir de Novembro de 2014, que foi aprovado em Assembleia Geral, aquele aumento das remunerações dos dois administradores.

No imediato a aprovação das remunerações influencia negativamente o valor de cada acção que, por referência ao ano de 2015, passa de € 20.7939,00 para € 18.3017,00, como ficou provado.

Anteriormente àquela deliberação “nenhum dos accionistas com funções de gerência ou administração retirou da empresa valor superior a 8.000,00 € mensais por 14 meses.”  

No Relatório pericial unânime, de fls. 520 a 530, respondendo ao quesito:

 “Se o montante anual das remunerações deliberadas (22.000,00 € x 14 x 2), acrescido do montante dos custos e encargos inerentes àquelas remunerações por conta da Ré, nomeadamente imposto, segurança social e outras) têm impacto negativo na realidade económica e financeira da Ré sociedade? Foi respondido: “De acordo com a análise do quadro apresentado no quesito 1 b) constata-se que as diversas tipologias de remunerações apuradas no exercido de 2015, teriam um impacto negativo nos resultados apresentados nos anos 2011 a 2014, conforme evidenciado na parte final do referido quadro”

Anteriormente à contestada deliberação, os administradores não foram remunerados pela sua gestão ou administração, recebendo dividendos que, em 2011 foram de € 435 586 e, em 2014, de € 166 720.

Pretende a Recorrente demostrar que os montantes aprovados, se considerados no seu valor líquido, “limpo”, se aproximam dos € 8 000,00 a que se refere o facto provado nº47.

Como refere o Recorrido, nas suas contra-alegações, as taxas da segurança social, IRS e sobretaxa extraordinária sobre este imposto, não são idênticas à tributação que incide sobre os dividendos.

A comparação que deve ser feita à luz dos factos provados, seja “remuneração” pela administração, ou pela via de adiantamentos sobre lucros nos termos do art. 297º do Código das Sociedades Comerciais: objectivamente para os terceiros que lidam com a sociedade, para os seus credores e para o Autor, é patente que a remuneração sobe para números de difícil, justificação. Se no mandato que decorreu de 2011/2014 os três administradores nada recebiam pela administração, já no quadriénio 2015/2018, os administradores CC e DD receberão € 22 000,00 por 14 vezes. O Autor nada receberá, a esse título, pois que deixou de ser administrador.

Vantagem aquela, substancial para os administradores, nenhuma vantagem para o Autor, que não eleito, vê os valores das suas acções ser desvalorizado.

Estando em causa um aumento tão expressivo da remuneração dos administradores e não tendo a Ré, que assume já uma dimensão e volume de negócios que não pode considerar-se uma empresa de dimensão “familiar”, provado, pela via de documentos contabilísticos e outros, que o aumento não se repercute nos resultados económicos futuros da sociedade, não lesando, nem o “interesse social”, nem o do Autor, haveremos de concluir que a deliberação visa o interesse pessoal dos accionistas porque só isso, imediatamente, se evidencia, ou seja, que os dois administradores maioritários a votaram em seu mero benefício pessoal, prejudicando o accionista Autor, o único que não é administrador.

No “Código das Sociedades Comerciais Anotado” de Menezes Cordeiro, em anotação ao art. 399º do Código das Sociedades Comerciais, pode ler-se:

Fixação. A remuneração é fixada, administrador a administrador, pela assembleia geral ou por uma comissão de vencimentos, por ela nomeada. Nas grandes anónimas, a fixação em causa é delicada: pode envolver o recrutamento de especialistas muito solicitados, mediante compensações adequadas que, no interesse da sociedade, não podem ser discutidas em público. A comissão de vencimentos tem, assim, um papel delicado.

 O 399.° aponta, como elementos a ter em conta: (a) as funções desempenhadas; (b) a situação económica da sociedade. Podem-se acrescentar: (c) as habilitações do administrador; (d) as características do mercado; (e) os resultados obtidos.”

 Em anotação ao normativo citado – Coutinho de Abreu, in “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Volume VI, pág. 353 escreve:

“Na fixação das remunerações devem ser tidas em conta as funções desempenhadas pelos administradores (v.g. funções executivas ou não executivas, de maior ou menor complexidade e exigência, mais ou menos nucleares) e a situação económico-financeira da sociedade – 2ª parte do nº1 do art. 399º”.

Ante a ausência de prova dos critérios adoptados pela Ré, que enquadraram a deliberação de aumento das remunerações votada e aprovada por dois dos três administradores e accionistas, em termos da diligência exigível e dos deveres de cuidado e objectividade que lhes compete observar no contexto da gestão/administração do interesse social conclui-se que não agiram naquele interessem, mas no seu mero interesse egoístico.

Por isso são excessivos os vencimentos deliberados pela Assembleia-geral da ré, de € 22 000,00x 14 vezes ao ano, não podendo, numa perspectiva de justiça, desconsiderar-se as circunstâncias em que foi tomada.

 Não sendo ousado afirmar que, objectivamente, até dada a proximidade temporal dos factos relacionados com a recusa do Autor em prestar a garantia cambiária que lhe foi solicitada e a sequente Assembleia-Geral da Ré, com a sua não eleição no cargo, tal deliberação, decretando um aumento desproporcionado, das remunerações dos administradores, revela ser abusiva e intencionalmente lesiva do Autor sendo anulável, como se sentenciou no Acórdão recorrido.

Decisão:

Nestes termos, nega-se a revista.

Custas pela Ré/recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 07 de novembro de 2017

Fonseca Ramos – Relator

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

 

_______________________________________________________
[1] Relator- Fonseca Ramos
Ex. mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot
Conselheiro Pinto de Almeida
[2] “Designamos por corporate governance o complexo das regras (legais, estatutárias, jurisprudenciais, deontológicas), instrumentos e questões respeitantes à administração e ao controlo (ou fiscalização) das sociedades” – Coutinho de Abreu, in IDET Instituto das Empresas e do Trabalho, Miscelâneas, nº6, Estudo “Corporate Governance em Portugal”, pág.9.