Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20767/16.3T8PRT-A.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
EMPRÉSTIMO BANCÁRIO
AMORTIZAÇÃO
JUROS REMUNERATÓRIOS
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
VENCIMENTO
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - No mútuo bancário, as obrigações que visam simultaneamente amortizar e remunerar o capital - obrigações híbridas ou mistas não são nem obrigações de reembolso de capital e nem obrigações de pagamento de juros. São obrigações unitárias, ainda que se destinem a cumprir uma dupla função: restituição e remuneração do capital mutuado.

II - Segundo a doutrina dominante, o incumprimento de uma das prestações em que a obrigação de reembolso é dividida ou repartida preenche a facti-species do art. 781.º, ainda que o incumprimento se reporte a uma prestação com função simultaneamente amortizadora e remuneratória do capital.

III - De modo a evitar que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, para tutelar o devedor contra a acumulação da sua dívida, deve aplicar-se o prazo de prescrição do art. 310.º, als. d) e e) do CC - de cinco anos a contar do respetivo vencimento.

IV - O facto de o incumprimento de uma prestação implicar o vencimento antecipado das restantes prestações em “nada releva para o problema em causa, porque nesse caso a prescrição respeitará a cada uma das quotas de amortização e não ao todo em dívida”.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,


I - Relatório

1. AA., por apenso à execução que o Novo Banco, S.A., intentou contra si, veio deduzir os presentes embargos de executado.

2. Como fundamento da sua pretensão, indicou, essencialmente, a prescrição da totalidade do crédito peticionado (em relação a si e ao outro Executado/seu marido – BB.).

3. A título subsidiário, invocou a prescrição dos juros anteriores a 24 de outubro de 2011 (em relação a si e ao outro Executado/seu marido).

4. Concluiu pela procedência dos embargos, com a extinção da execução em relação a si e ao outro Executado/seu marido.

5. A Exequente/Embargada contestou, impugnando, fundamentalmente, a factualidade alegada pela Executada/Embargante. Retificou ainda a quantia em dívida, reduzindo-a para o total de € 19.950,03, acrescida de juros.

6. Saneado o processo, prosseguiram os autos para julgamento, vindo a ser proferida sentença (fls. 71/79) com o seguinte dispositivo:

"Pelo exposto, considerando verificada a prescrição da obrigação exequenda e a inerente falta de válido título executivo, julgo parcialmente procedentes os presentes embargos de executado, com a consequente e oportuna extinção da execução quanto à referida executada/embargante.

Julgo improcedentes os embargos quanto ao mais pedido em relação ao co-executado BB., prosseguindo a execução contra o mesmo, com a citada redução da quantia exequenda."

7. Inconformada, a Exequente/Embargada interpôs recurso de apelação.

8. Os Executados/Embargantes responderam às alegações, pronunciando-se pela improcedência do recurso.

9. Por acórdão de 28 de janeiro de 2020, por unanimidade, o Tribunal da Relação …. decidiu o seguinte:

Pelos fundamentos expostos, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente”.

10. De novo irresignada, a Exequente/Embargada Novo Banco, S.A., interpôs recurso de revista excecional, nos termos dos arts. 627.º, 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 637.º, 638.º, 639.º, 671.º, n.º 3, 672.º, 675.º, nº 2, e 676.º, n.º 1, 852.º, e 854.º do CPC, apresentando as seguintes Conclusões:

1. O Recorrente é do entendimento que o presente recurso deverá ser admitido, porquanto apesar de o Acórdão recorrido ter vindo confirmar, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão da 1ª instância, no caso concreto, aplicar-se-á as alíneas b) e c) do artigo 672.º do CPC.

2. A questão que se coloca à apreciação do Tribunal superior e que é a de saber se à dívida exequenda, resultante de crédito ao consumo a ser reembolsado em prestações mensais de capital e juros, mas entretanto vencido na totalidade, se aplica o prazo de prescrição de 5 anos, afecta todos os consumidores e todas as instituições bancárias, pelo que se entende estarem em causa interesses de particular relevância social.

3. Por outro lado, ao diante se junta certidão judicial de Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação …., no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito em contradição com o Acórdão recorrido e que entendeu que o capital relativo ao crédito ao consumo resolvido encontra-se sujeito ao prazo de prescrição ordinário de 20 anos.

4. O Acórdão recorrido julgou improcedente a apelação do Recorrente por ser do entendimento que tendo a dívida contraída pelos Executados sido repartida por prestações mensais que englobavam capital e juros, o prazo de prescrição é o previsto na alínea e) do artigo 310.º do C. Civil, mas o Recorrente é do entendimento que nesse Acórdão é feita uma errada interpretação da referida norma.

5. Não obstante se poder considerar como aplicável a cada uma das prestações acordadas para reembolso da quantia mutuada prazo de prescrição de 5 anos por aplicação da alínea e) do Código Civil, tal aplicação deixa de fazer sentido depois de verificado o incumprimento de uma dessas prestações e depois de operado o vencimento imediato de todas as prestações vincendas preconizado no artigo 781.º do Código Civil.

6. Depois da resolução do contrato e depois de se considerarem vencidas todas as prestações vincendas, o valor em dívida deixa de ter uma componente de capital e uma componente de juros pagáveis em conjunto, pelo que deixa de se poder considerar que estamos perante quotas de amortização do capital pagáveis com os juros.

7. Assim como, ao deixar de existir um plano de pagamentos em vigor para que possa considerar-se que nos encontramos perante quaisquer outras prestações periodicamente renováveis.

8. A partir desse momento, o Banco exige do responsável pelo pagamento da dívida o capital vencido acrescido dos juros de mora contabilizados desde a data do incumprimento.

9. Ou seja, perante tal realidade deixará de poder aplicar-se a esse capital vencido o prazo de prescrição de 5 anos, por aplicação da alínea e) do artigo 310.º do Código Civil.

10. Caso assim não fosse, os credores sempre se recusariam a aceitar acordos de pagamento para regularização de responsabilidades às quais não esteja, à partida, associado qualquer plano de pagamento em prestações (por exemplo dívidas de cartões de crédito) pois assim estaria a reduzir o prazo de prescrição aplicável a tais responsabilidades de 20 para 5 anos.

11. Por último, é entendimento do Recorrente que a intenção do legislador não foi a de aplicar a redução do prazo de prescrição para 5 anos prescrição à obrigação dada à execução no caso em apreço, pois que tal obrigação que advém do incumprimento de um contrato de mútuo, não configura uma obrigação periódica, mas sim uma única obrigação cujo pagamento foi fracionado para melhor conveniência do devedor impossibilitado de a honrar que uma só vez.

12. Face a tudo o supra exposto, o Banco Recorrente entende que o Tribunal da Relação no Acórdão recorrido integrou erradamente a factualidade dos autos à alínea e) do artigo 310.º do Código Civil interpretando-a erradamente, o que implicaria uma alteração da decisão proferida, julgando-se a excepção de prescrição invocada improcedente relativamente ao capital.

13. Consequentemente, deverá o Acórdão recorrido ser revogado por Acórdão que julgue improcedente a alegada prescrição aplicando-se ao capital em dívida o prazo de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309.º do Código Civil.

NESTES TERMOS, E COM O MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, O PRESENTE RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL DEVERÁ SER ADMITIDO E DEVERÁ SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL, DEVENDO, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A DECISÃO DA 1ª INSTÂNCIA CONFIRMADA PELO DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO, COM TODAS AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.

JUSTIÇA”.

11. A Embargante/Executada apresentou contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade do recurso de revista excecional e, subsidiariamente, pela confirmação do acórdão recorrido. Expôs as seguintes Conclusões:

1 - Veio o Recorrente interpor recurso de revista excepcional, reconhecendo que o Acórdão recorrido confirmou, sem voto de vencido ou fundamentação essencialmente diferente a decisão da 1.ª instância, mas sustentando que no presente caso este ainda seria admissível com base em dois pressupostos estabelecidos no artigo 672.º n.º1 do CPC, mais precisamente nas alíneas b) e c).

2 - Para o efeito o Recorrente alega que a questão que se coloca neste recurso “é a de saber se à dívida exequenda, resultante de crédito ao consumo a ser reembolsado em prestações mensais de capital e juros, mas entretanto vencido na totalidade, se aplica o prazo de prescrição de 5 anos…”

3- No entanto, não é esta a questão em causa no presente processo, considerando a matéria de facto que está fixada e que não é objeto de qualquer divergência, sendo, pois, relativamente à mesma que importa aplicar o direito.

4 - A verdadeira questão é ainda mais simples e continua a ser a seguinte: Se prescrevem no prazo de 5 (cinco) anos as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros nos termos do art.º 310.º, alínea e) do Código Civil.

5 - É absolutamente fundamental realçar o seguinte: Conforme a matéria de facto considerada como provada, no presente caso em análise o Banco Recorrente não denunciou o contrato antes do vencimento de todas as prestações estipuladas. Na verdade, tentou apenas denunciar o contrato 16 (dezasseis) anos após o incumprimento, e mais de 10 (dez) anos após o vencimento da última prestação.

6 - Assim sendo, perante esta evidência, é desde já claro que o presente recurso não preenche qualquer dos pressupostos estabelecidos no artigo 672.º n.º 1 alíneas b) e c) do CPC, logo encontra-se excluída a possibilidade de revista, pelo que nos termos do n.º3 do mesmo artigo deve ser rejeitado liminarmente.

Analisando cada um dos pressupostos:

7 - Quanto aos alegados interesses de particular relevância social (artigo 672.º n.º 1 b) e conforme aponta a alínea b) do n.º2 do mesmo artigo, a lei impõe que o Recorrente indique, sob pena de rejeição, as razões pelas quais a apreciação da questão apresenta particular relevância social, razões que deve concretizar e expor em termos objectivos, o que no presente recurso se encontra claramente incumprido, limitando-se a ser invocada uma referência com um carácter tão genérico que pode ser apresentada em quase todos os casos.

8 - Portanto, é certo que o Recorrente, em cumprimento do referido ónus se queda por uma mera afirmação valorativa e conclusiva, abstendo-se de concretizar devidamente as razões a que a lei se reporta, sendo que, nesta conformidade, tem de haver-se por incumprido, relativamente ao pressuposto acolhido pela al. b) do n.º 1 do art. 672º do CPC, o ónus de alegação imposto pela norma do n.º 2, al. b) do mesmo artigo, devendo rejeitar-se o recurso quanto a esse fundamento.

9 - Porém, e caso assim não se entenda, é importante ainda voltar a sublinhar que a verdadeira questão que se coloca é se prescrevem no prazo de 5 (cinco) anos as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros, e sobre esta não existe qualquer controvérsia jurídica e muito menos social.

10 -Um prazo de 5 (cinco) anos para cobrar estas prestações vencidas, sobre o qual existe uma unanimidade jurídica, apresenta-se mais do que suficiente para uma entidade bancária iniciar a cobrança destes créditos, não tendo nunca acarretado qualquer alarme social, pelo que o presente recurso com este fundamento seria sempre de rejeitar.

11 -Quanto ao Acórdão recorrido alegadamente estar em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Tribunal da Relação … em 26/04/2016, no âmbito do processo n.º 525/14…, também quanto a este pressuposto é importante assinalar que não existe oposição na questão fundamental em relação ao Acórdão-fundamento.

12 - Efectivamente o Acórdão-fundamento que é invocado, embora faça parte de uma corrente jurisprudencial minoritária, também é inequivocamente concordante quanto à verdadeira questão que se discute nestes autos, ou seja, que prescrevem no prazo de 5 (cinco) anos as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros nos termos do art.º 310.º, alínea e) do Código Civil.

13 - E quanto a esta matéria, que é a verdadeira questão que pode estar em causa, até o Recorrente tem uma posição concordante conforme expresso nomeadamente na 5.ª conclusão do recurso.

14 - A corrente jurisprudencial minoritária que o Recorrente procura convocar incide sobre situações em que as instituições de crédito denunciaram o contrato e não o consideraram vigente, pelo que conforme já exposto o presente caso aqui em recurso é fundamentalmente diferente nesta matéria.

15 - É importante sublinhar a principal factualidade considerada assente neste processo:

- Em 4/2/2000 o contrato de crédito foi assinado, com um prazo de pagamento em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros, ou seja, as prestações teriam o seu vencimento até Janeiro de 2005;

- Em agosto de 2000 as prestações deixaram de ser pagas;

- Em 27/01/16 o Recorrente tentou denunciar o contrato através de carta;

- Até 27/01/16 o Recorrente não denunciou o contrato nem nada fez para cobrar o crédito; - Mas mais, nessa referida carta o Recorrente exige a totalidade do pagamento do contrato e despesas, com juros desde 8/7/2000, portanto, os juros são contabilizados a 17%, ou seja, neste caso serão remuneratórias.

16 - Portanto, de facto, o Recorrente só tentou comunicar a denuncia do contrato e que iria preencher a livrança, quando o plano de pagamento acordado tinha findado há mais de 10 (dez) anos, pelo que, em bom rigor, se encontravam já vencidas as prestações e como tal inexistiam prestações vincendas, ou seja, não se verificou o vencimento antecipado das prestações.

17 - De facto, na cobrança do crédito e no preenchimento da livrança o Recorrente visou o interesse contratual positivo, peticionando o pagamento dos juros remuneratórios, em consonância com a falta de vencimento antecipado e a ausência de denúncia até a essa data.

18 - O Recorrente vem neste processo procurar sustentar que se verificou o vencimento antecipado das prestações, resultante da falta do pagamento da primeira prestação não liquidada, ou seja, um vencimento automático e sem necessidade de interpelação, que terá alegadamente fundamentos assentes nos termos do artigo 781.º do Código Civil.   

19 - Mas conforme escreve Antunes Varela, em “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 6ª edição, pág. 53, o referido artigo 781º, ao determinar o vencimento imediato das restantes prestações, deve ser interpretado no sentido de que o inadimplemento do devedor gera o direito do credor de exigir dele a satisfação daquelas prestações, e não, no sentido de que o não pagamento de uma das prestações no prazo acordado, determina, por si só, a entrada em mora do devedor quanto ao cumprimento das demais (no mesmo sentido pode ser consultado Menezes Cordeiro, em “Direito das Obrigações”, AAFDL, 1986, 2º vol., pág. 193, nota 55.).

20 - Ao nível Jurisprudencial neste sentido destaca-se também, entre muitos outros e todos disponíveis em www.dgsi.pt: Acórdão da Relação do Porto, datado de 18.2.93, Col. Jur., 1993, Tomo I, pág. 236, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/10/2009, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/3/2013, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.11.2006, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.02.2007 e, finalmente, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ nº 7/2009, de 25/03/2009 [publicado na 1ª Série do DR de 05/05/2009].

21 - O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ nº 7/2009, de 25/03/2009 [publicado na 1ª Série do DR de 05/05/2009] fixou ainda o seguinte: “No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art.º 781º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados.”

22 - Assim, quanto à prestação não satisfeita no prazo acordado, a mora verifica-se, sem dúvida, a partir da data em que o cumprimento deveria ter ocorrido, mas quanto às demais, a entrada em mora, e o correlativo vencimento de juros moratórios, depende de interpelação do devedor para o respectivo pagamento, ou, na sua falta, da verificação da data em que cada uma delas deveria, de acordo com o plano contratual estabelecido, ser paga; a não consideração desta última hipótese, levaria a que o devedor obtivesse um benefício injustificado com o não cumprimento oportuno da sua obrigação.

23 - Portanto, independentemente das potenciais consequências jurídicas desse alegado vencimento antecipado, toda a matéria constante nos autos conduz à clara e absoluta certeza que o Recorrente não lançou mão do mecanismo previsto no citado artigo 781.º.           

24 - Em suma, as prestações venceram-se nas datas inicialmente acordadas, tendo a última tido vencimento em Janeiro de 2005, e conforme concluído na douta Sentença proferida em 1.ª Instância com total clareza:

“A restituição faseada do empréstimo com juros tinha um prazo máximo fixado pelas partes e perante o citado incumprimento reiterado das várias prestações mensais e esgotado o prazo máximo do empréstimo (com todas as prestações já vencidas e extinto o benefício do prazo a favor do devedor e existindo convenção de preenchimento), o banco credor/exequente podia ter feito há muito a interpelação para o cumprimento ou a denúncia/resolução do contrato, mas assim não quis atuar.

A execução só foi intentada em 19/10/2016.”

25 - Esta decisão veio a ser confirmada no Acórdão recorrido nos seguintes termos: “(…) tendo a dívida contraída pelos executados sido repartida por prestações mensais que englobavam capital e juros, o prazo de prescrição é o previsto na alínea e) do artigo 310.º do C. Civil. Como à data da instauração da execução aquele prazo — de cinco anos —já tinha expirado, tendo sido pela executada invocada a prescrição, teriam os embargos que proceder, nos termos decididos na sentença recorrida.”

26 - Portanto, não se verifica qualquer contradição dos julgados em relação ao Acórdão-fundamento, porém, no caso de se entender que não se encontra excluída a possibilidade de revista, é preciso ainda sublinhar as seguintes notas:

27 - Na medida em que é esclarecedor para esta questão, bem como tem vindo a ser mencionado pelo Recorrente numa interpretação incorrecta, passa-se a citar o Acórdão do STJ de 27/3/2014, no processo n.º 189/12.6TBHRT-A.L1.S1, e que foi relatado pelo Sr. Conselheiro Dr. Rodrigues Pires, em que se decidiu o seguinte:

“1. O prazo ordinário da prescrição é de vinte anos (art.º 309.º do C.Civil); todavia, prescrevem no prazo de cinco anos as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros - art.º 310.º, alínea e), do C. Civil.

2. O débito concretizado numa quota de amortização mensal de 24 prestações (iguais, mensais e sucessivas) referentemente ao capital de 7.326.147$00, enquadra-se na previsão legal do disposto no art.º 310.º, alínea e), do C. Civil.”         

28 - Nesta medida, sendo a prescrição um efeito jurídico da inércia prolongada do titular do direito no seu exercício, que se traduz no direito prescrito sofrer na sua eficácia um enfraquecimento consistente em a pessoa vinculada poder recusar o cumprimento ou a conduta a que esteja adstrita – neste sentido Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 2005, pág. 756 – e dado que o Recorrente apenas tentou comunicar que iria proceder ao preenchimento da livrança em 27/01/2016, e instaurou a execução a 19.10.2016, decorridos mais de 5 anos após a data de vencimento, sem que tenha logrado alegar e demonstrar qualquer interrupção do prazo antes do decurso do referido prazo de 5 anos, tem de se considerar verificada a excepção de prescrição, o que determina a extinção da obrigação exequenda.

29 - Mas ainda que se tivesse verificado o vencimento antecipado, o que não ocorreu mas que se problematiza aqui como hipótese académica, conforme está configurado, não releva para a sua prescrição, porque esta respeita a cada uma das quotas de amortização e não ao todo da dívida, a prescrição não pode pôr-se em relação às “quotas em dívida” como um todo, mas em relação a cada uma delas, pois o seu pagamento ficou assim escalonado, sendo que neste sentido pode ser consultada também numerosa Jurisprudência como por exemplo: Acórdão do STJ de 4/5/93 (também acessível em CJ, tomo 2, pag 82), Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/3/2014, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/12/2017 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8/3/2018.

30 - Por último, mesmo que parte da tese do Recorrente merecesse acolhimento, o que se coloca mais por hipótese académica, e se o crédito não fosse considerado totalmente prescrito, ainda haveria que referir que conforme o entre outros já citado Acordão Uniformizador de Jurisprudência do STJ nº 7/2009, de 25/03/2009 [publicado na 1ª Série do DR de 05/05/2009]: “No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art.º 781º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados.”, logo, mesmo entrando no universo criado pelo Recorrente, com os fundamentos que este pretende fazer valer, não poderia cobrar juros remuneratórios, mas apenas os moratórios vencidos nos últimos 5 anos.

31 - No entanto e em conclusão, estão efetivamente prescritas as prestações em atraso e toda a dívida aqui reclamada, por decurso do prazo previsto na alínea e) do artigo 310.º do Cód. Civil.  

Perante tudo o que foi exposto, considerando que não se verificam qualquer dos pressupostos previstos nas alíneas b) ou c) do n.º1 do artigo 672.º, encontra-se excluída a possibilidade de revista, pelo que nos termos do n.º3 do mesmo artigo deve o presente recurso ser rejeitado liminarmente.

No caso de assim não se entender, e se for considerado preenchido algum dos pressupostos identificados, deve ser negado provimento ao Recurso, mantendo-se o douto Acórdão recorrido, mantendo-se a declaração de prescrição das prestações e das quantias que foram aqui peticionadas em relação à aqui Recorrida, assim se fazendo a habitual e tão necessária JUSTIÇA!

12. Tratando-se de um recurso de revista excecional, interposto à luz dos arts. 672.º, n.º 1, do CPC, pelo Novo Banco S.A., a 28 de outubro de 2020, a Relatora remeu os autos à Formação do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 672.º, n.º 3 do CPC, em ordem à verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do mesmo preceito.

13. A 24 de novembro de 2020, a Formação admitiu o recurso de revista excecional com base no art. 672.º, n.º 1, al. b), do CPC, por considerar indiscutível a particular relevância social da questão em causa, atendendo ao impacto que a sua solução tem no domínio das relações do crédito ao consumo, tanto para as instituições de crédito como para os consumidores.

II – Questões a decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da Recorrente (arts. 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2 e 639.º, n.os 1 e 2, do CPC), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, do CPC).

Na sequência das conclusões da alegação da Recorrente, e por se tratar de revista excecional, está em causa a questão de saber “se a circunstância de o vencimento de uma quota de amortização não paga desencadear o vencimento das restantes impede ou não o funcionamento da prescrição de cinco anos”.

Na medida em que o acórdão da Formação admitiu a revista excecional ao abrigo do art. 672.º, n.º 1, al. b) do CPC, só esta parte do recurso poderá ser apreciada.

III – Fundamentação

A) De Facto

Foram considerados como provados os seguintes factos:

“l. O Exequente é o NOVO BANCO, S.A., com sede na Avenida ……, em ……, e com o capital social de € 4.900.000.000,00. Como é do conhecimento público, o Banco foi constituído, por deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal tomada em reunião extraordinária de 3 de agosto de 2014, nos termos do n° 5 do artigo 145°-G do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), e tem por objecto social, designadamente, a administração dos activos, passivos, elementos extra-patrimoniais e activos sob gestão transferidos do Banco Espirito Santo, S.A., para o Novo Banco, S.A. e o desenvolvimento das actividades transferidas, tendo em vista as finalidades enunciadas no artigo 145° - A do RGICSF, conforme respectiva certidão comercial, com o código de acesso n.° 0014-7108-1826. Lê-se, por outro lado, no n.° 9 do artigo 145 .°-H do RGICSF que "Após transferência prevista no n.° 1, deve ser garantida a continuidade das operações relacionadas com os activos, passivos, elementos extra-patrimoniais e activos sob gestão transferidos, devendo o banco de transição ser considerado, para todos os efeitos legais e contratuais, como sucessor nos direitos e obrigações transferidos da instituição de crédito originária.

2.- Em virtude de operação praticada no exercício da respectiva actividade, o Banco Exequente é legítimo dono e portador da livrança junta como título executivo, a qual, apresentada a pagamento na data do respectivo vencimento, não foi paga, então, nem posteriormente, (cfr. primeiro e segundo parágrafo do requerimento executivo).

3.- A livrança que o Exequente pretende executar nestes autos foi também assinada pela Executada aqui Embargante mas entregue em branco, para garantir/caucionar o pagamento de um empréstimo/crédito ao consumo concedido também a esta pelo Banco Espirito Santo e Comercial de Lisboa, S.A. (cfr. artigo 12° da PI).

4.- Através deste contrato foi concedido um empréstimo no valor de 2.000.000S00 (dois milhões de escudos), ou seja, €9.975,95 (nove mil novecentos e setenta e cinco euros e noventa e cinco cêntimos),sendo que o capital e juros seriam liquidados em prestações mensais e sucessivas, com inicio em Março de 2000. (cfr. artigo 14° da PI).

5.- O Exequente/Embargado intentou a presente acção apenas em 19/10/2016, ou seja, mais de 16 (dezasseis) anos após o incumprimento, (cfr. artigo 17° da PI).

6.- A Embargante autorizou o Banco ao preenchimento da livrança caução "quando este o considerasse oportuno" - cfr. documento n.° 2 junto. (cfr. artigo 3 Io da contestação).

7.- O empréstimo acima referido, denominado Crédito ao Consumo BES, foi concedido em 04/02/2000, pelo prazo de 60 meses, a ser amortizado em 60 meses, com a taxa de juro de anual e nominal de 15,0000%) e a TAEG de 17,284%, com reembolso em prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros, conforme tudo consta do documento n.° 2 junto com a contestação (a fls. 28-verso) e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

8.- As prestações mensais supra referidas deixaram de ser pagas a partir de Agosto de 2000.

9.- O exequente remeteu à executada uma carta datada de 27/01/2016, informando-a da denúncia do citado contrato, do preenchimento da livrança e a exigir a totalidade do pagamento do valor do contrato e despesas, com juros desde 08/07/2000, conforme tudo consta do documento n.° 1 junto com a contestação (a fls. 28) e cujo teor aqui se dá por  reproduzido, vindo depois tal carta a ser devolvida ao remetente, por não reclamada, como consta do expediente postal de fls. 36-verso/37 e 39, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

10.- A aqui embargante é casada com o também aqui co-executado BB., desde 04/09/1993, sem convenção antenupcial, estando a viver separados e sem contacto, o que sucede há mais de 4 anos, residindo tal executado no estrangeiro; vindo a ser citado na execução, mas não apresentou qualquer oposição, como tudo resulta dos autos de execução”.

Foram considerados como não provados os seguintes factos:

“Não resultaram provados todos os demais factos alegados relevantes, designadamente a demais factualidade constante dos temas de prova, em especial os demais artigos da petição de embargos e da contestação, mas sem prejuízo do que provado ficou”.

B) De Direito

Prazo de prescrição aplicável à situação dos autos

1. Importa, nesta sede, levar em linha de conta que, apesar de se lhe reconhecer autonomia, nomeadamente por nele se encontrarem frequentemente estipulações que não são usuais fora da atividade bancária – verbi gratia, o reembolso do capital em prestações e a vinculação do mutuário a obrigações simultaneamente amortizadoras e remuneratórias do capital -, o regime jurídico do mútuo bancário é, fundamentalmente, o do mútuo civil que, por seu turno, se revela parco.

2. O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido aplicar-se o prazo de prescrição quinquenal previsto no art. 310.º, al. e), do CC, às dívidas fracionadas, liquidáveis em prestações e, por isso, às obrigações híbridas ou mistas, normalmente acordadas no mútuo bancário. O objeto global está previamente determinado e não depende da duração da relação contratual, não influenciando o decurso do tempo o seu conteúdo. Tratando-se de uma obrigação unitária, em que o pagamento do capital tem lugar ao mesmo tempo que o pagamento dos juros vencidos, aplica-se-lhe o prazo quinquenal de prescrição[1].

3. A divergência no seio da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quanto ao prazo de prescrição aplicável, surge nos casos de incumprimento do mutuário, vencendo-se imediatamente a totalidade das prestações[2].

4. No caso dos autos, esta querela apenas teria relevância se se concluísse pela verificação do vencimento imediato e automático das prestações em falta na data em que o Executado incumpriu a sua obrigação de pagamento, em agosto de 2000. Ainda que a questão a apreciar, nos termos do acórdão da Formação do Supremo Tribunal de Justiça, não seja diretamente essa, não se afigura despicienda a consideração do art. 781.º do CC.

As obrigações que visam simultaneamente amortizar e remunerar o capital - obrigações híbridas ou mistas – geram algumas dificuldades na determinação do regime jurídico aplicável às perturbações contratuais. É que não são nem obrigações de reembolso de capital e nem obrigações de pagamento de juros. São obrigações unitárias – e não autónomas -, ainda que se destinem a cumprir uma dupla função: restituição e remuneração do capital mutuado[3].

Com efeito, no caso de as partes acordarem o reembolso fracionado do capital, esta obrigação é cumprida através de várias prestações, sem que se dissolva a unidade da obrigação do mutuário, que não é incompatível com o fracionamento ou repartição da obrigação em diversas prestações. O tempo não apresenta aqui qualquer dimensão constitutiva, respeitando apenas à execução da prestação e, por isso, limitando-se a fixar o momento em que a prestação deve ser realizada. Neste moldes, segundo a doutrina dominante, o incumprimento de uma das prestações em que a obrigação de reembolso é dividida ou repartida preenche a facti-species do art. 781.º , ainda que o incumprimento se reporte a uma prestação com função simultaneamente amortizadora e remuneratória do capital, ou seja, a obrigações com um componente de restituição do capital e outro de pagamento de juros[4].

De acordo com o disposto no art. 781.º do CC, “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.

Conforme mencionado supra, no caso sub judice, o mutuário deixou de proceder ao pagamento das prestações mensais a partir de agosto de 2000.

A determinação do sentido e do alcance com que o texto do art. 781.º deve valer tem sido, efetivamente, objeto de querela doutrinal e jurisprudencial. Em causa está a questão de saber se este preceito estabelece o vencimento das prestações futuras da dívida incumprida ou, diversamente, se apenas atribui ao credor o poder de as exigir antes do momento estipulado para a sua exigibilidade, provocando o seu vencimento antecipado. Para alguns, com base em argumentos de natureza gramatical e histórica, o incumprimento de uma prestação de uma obrigação fracionada constitui automaticamente o devedor em mora quando à realização das prestações futuras[5]. Para outros, não atribuindo valor determinante aos referidos argumentos, o incumprimento de uma prestação, em lugar de operar automaticamente o vencimento antecipado das restantes prestações, permite ao credor decidir sobre esse vencimento. Este sentido encontra-se, de resto, em harmonia com a ideia fundamental de que os efeitos que a ordem jurídica estabelece em vista da proteção de um sujeito devem ficar na sua disponibilidade, dependendo, por isso, da sua vontade. Com efeito, o credor pode não querer o benefício do vencimento antecipado com que a lei o contempla. Atendendo ao princípio da autodeterminação dos sujeitos, deve entender-se o preceito do art. 781.º como atribuindo ao credor o poder de provocar o vencimento da obrigação e não como produzindo ope legis esse vencimento, independentemente de uma decisão sua[6]. Assim, o incumprimento de uma prestação de uma dívida pagável em prestações acarreta apenas a exigibilidade antecipada das restantes prestações e não o seu vencimento automático. É, por isso, necessário que o credor interpele o devedor para que se produza o vencimento de todas as prestações e, deste modo, exigir antecipadamente o pagamento das restantes prestações. Reitere-se: o art. 781.º apenas atribui ao credor o poder de exigir o cumprimento da obrigação - ainda que essa exigência, nos termos do acordo das partes, apenas pudesse ser feita mais tarde –, não colocando automática e imediatamente, independentemente da respetiva interpelação, o devedor numa situação de incumprimento[7].

  A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[8] tem sufragado a última tese, sustentando que o vencimento imediato de todas as prestações, nos termos do art. 781.º, do CC, pressupõe a interpelação do devedor.

Parece ser este o sentido da norma do art 781.º do CC que se deve eleger. Com efeito, “tem como objectivo esta disposição proteger o credor que, em consequência da falta de pagamento de uma das prestações, deixou de confiar na pessoa do devedor. Concede-lhe o benefício de não se sujeitar aos prazos previstos no contrato, podendo exigir a totalidade das prestações, mas não o dispensa da interpelação do devedor para que a mora se verifique. O "vencimento automático" teria como consequência o direito a juros sobre a totalidade das prestações desde a data em que uma delas deixou de ser paga, o que se afigura manifestamente excessivo[9].

No caso em apreço, apenas resultou provado que as prestações acordadas deixaram de ser pagas a partir de agosto de 2000, nada se provando sobre uma eventual interpelação dos Executados pela credora antes da instauração da execução a que respeitam estes autos.

Revestindo-se o preceito do art. 781.º do CC de natureza supletiva, à luz do princípio da autonomia negocial, as partes podem afastar a disciplina nele consagrada, acordando, designadamente, o vencimento automático das prestações vincendas, sem necessidade, para tal efeito, de interpelação do devedor. Compulsada a matéria de facto dada como provada pelas instâncias, verifica-se que não se encontra provada a existência de qualquer acordo das partes sobre um regime diverso do que resulta do artigo 781.º do CC.

Note-se, todavia, que não é pacífica a aplicação do art. 781.º do CC – exigibilidade antecipada – à obrigação de reembolso do capital que recai sobre o mutuário, tal como ela é, via de regra, estabelecida pelas partes no mútuo bancário. As obrigações híbridas ou mistas em apreço – que não se limitam a reembolsar fracionadamente o capital mutuado, visando também remunerar a disponibilização do capital - não se subsumem à hipótese do art. 781.º, que apenas comtempla prestações fracionadas ou repartidas. Contudo, mesmo que se aceitasse essa suscetibilidade de exigibilidade antecipada da obrigação de reembolso, no caso do incumprimento de obrigações simultaneamente amortizadoras do capital, mediante a aplicação por analogia desse preceito, na medida em que esse incumprimento correspondesse à não realização de uma prestação do reembolso do capital, apenas se verificaria a exigibilidade do valor total do capital mutuado em dívida. Tal como as obrigações de juros não estão abrangidas pela facti-species do art. 781.º, os componentes de juro destas obrigações híbridas ou mistas não são igualmente compreendidos pelo mesmo. Portanto, da aplicação por analogia do art. 781.º às obrigações híbridas ou mistas em apreço resultaria, como consequência do incumprimento de uma prestação que visasse parcialmente a amortização do capital mutuado, o “vencimento antecipado” das restantes parcelas do capital[10].

5. Importa, por outro lado, ter em devida conta que o tratamento diferenciado das prestações em função dos seus componentes de capital e de juro não consente, necessariamente, resolver todos os problemas surgidos a propósito destas obrigações híbridas ou mistas. Não permite, designadamente, resolver todas as questões em que a solução abranja necessariamente a obrigação na sua totalidade ou globalidade, como acontece, verbi gratia, com a determinação do respetivo prazo prescricional[11].

6. Considerando-se estarem em causa dívidas a prestações, uma vez que o objeto da prestação se encontra pré-determinado, o valor da prestação não depende da duração da relação contratual e, por isso, aplicar-se-ia, o prazo ordinário de prescrição de vinte anos. Porém, e de modo a evitar que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, para tutelar o devedor contra a acumulação da sua dívida – e, até, a eventual insolvência -, deve aplicar-se o prazo de prescrição do art. 310.º, als. d) e e) do CC - de cinco anos a contar do respetivo vencimento[12]. De facto, “a lei funda-se no intuito de evitar que o credor deixe acumular os seus créditos a ponto de ser mais tarde ao devedor excessivamente oneroso pagar[13].

7. Pode, pois, dizer-se que o facto de o incumprimento de uma prestação implicar, nos termos acordados pelas partes ou em virtude de interpelação do devedor pelo credor, o vencimento antecipado e automático das restantes prestações, em “nada releva para o problema em causa, porque nesse caso a prescrição respeitará a cada uma das quotas de amortização e não ao todo em dívida[14].

8. A hipótese do art. 310.º, al. e), do CC contempla, precisamente, essas obrigações híbridas ou mistas, que têm um componente de reembolso e outro de juro. Pretende-se estimular o credor na cobrança pontual das diversas prestações periódicas em que essas obrigações se dividem, evitando-se, assim, o protelamento do exercício do direito de crédito para o termo do contrato de mútuo, que teria por objeto a totalidade do montante em dívida.

9. Deste modo, a Exequente poderia ter exercido o seu direito de crédito a partir de agosto de 2000 (data de vencimento da correspondente prestação), tendo então começado a correr, conforme o art. 306.º, n.º 1, do CC, o respetivo prazo de prescrição. Por conseguinte, o seu direito de exigir da Executada o cumprimento das obrigações híbridas em apreço deve considerar-se prescrito deste março de 2011 (data em que se completa o prazo de cinco anos desde o momento em que o direito à última prestação podia ser exercido). Até março de 2011, foi prescrevendo, sucessivamente, o direito às prestações anteriores.

10. No que respeita às dívidas correspondentes a despesas e comissões, que não estão em causa no presente recurso, seria já de aplicar o prazo ordinário de prescrição.

11. Não merece, assim, provimento, o recurso apresentado pela Exequente/Embargada, uma vez que, aplicando-se o prazo especial de prescrição, de curta duração, previsto no art. 301.º, al. e), do CC, o seu direito de exigir o cumprimento das obrigações híbridas em causa encontra-se prescrito na sua totalidade desde março de 2011. A ação de execução foi intentada apenas a 19 de outubro de 2016, tendo a Executada/Embargante oportunamente invocado a prescrição.

           

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela Exequente/Embargada, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente/Exequente/Embargada.

Lisboa, 26 de janeiro de 2021.

 

SUMÁRIO: I – No mútuo bancário, as obrigações que visam simultaneamente amortizar e remunerar o capital - obrigações híbridas ou mistas não são nem obrigações de reembolso de capital e nem obrigações de pagamento de juros. São obrigações unitárias, ainda que se destinem a cumprir uma dupla função: restituição e remuneração do capital mutuado. II - Segundo a doutrina dominante, o incumprimento de uma das prestações em que a obrigação de reembolso é dividida ou repartida preenche a facti-species do art. 781.º, ainda que o incumprimento se reporte a uma prestação com função simultaneamente amortizadora e remuneratória do capital. III - De modo a evitar que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, para tutelar o devedor contra a acumulação da sua dívida, deve aplicar-se o prazo de prescrição do art. 310.º, als. d) e e) do CC - de cinco anos a contar do respetivo vencimento. IV - O facto de o incumprimento de uma prestação implicar o vencimento antecipado das restantes prestações em “nada releva para o problema em causa, porque nesse caso a prescrição respeitará a cada uma das quotas de amortização e não ao todo em dívida”.

Este acórdão obteve o voto de conformidade dos Excelentíssimos Senhores Conselheiros Adjuntos António Magalhães e Fernando Dias, a quem o respetivo projeto já havia sido apresentado, e que não o assinam por, em virtude das atuais circunstâncias de pandemia de covid-19, provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, não se encontrarem presentes (art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, que lhe foi aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio).

Maria João Vaz Tomé (Relatora)

_______

[1] Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de junho de 2020 (Maria João Vaz Tomé), Proc. n.º 23762/15.6T8PRT-A.P1.S1; de 29 de setembro de 2016 (Lopes do Rego), Proc. n.º 201/13.1TBMIR-A.C1.S1; de 27 de março de 2014 (Silva Gonçalves), Proc. n.º 189/12.6TBHRT-A.L1.S1; de 5 de junho de 2018 (Hélder Almeida), Proc. n.º 9678/16.0T8PRT.P1.S1; de 18 de outubro de 2018 (Olindo Geraldes), Proc. n.º 2483/15.5T8ENT-A.E1.S1.
  Vide, ainda, Ana Filipa Morais Antunes, “Algumas Questões sobre Prescrição e Caducidade”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 44-45.
[2] No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de junho de 2018, Proc. n.º 9678/16.0T8PRT.P1.S1, entendeu-se que a resolução do contrato, licitamente efetuada pelo mutuante, com fundamento no incumprimento do mutuário, considerando vencidas todas as prestações ainda não pagas - na linha do que fora decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de abril de 2016 -, “significa[ou] que o plano de pagamento escalonado anteriormente acordado deixa[ou] de estar em vigor, ocorrendo uma perda do benefício do prazo de pagamento contido em cada uma das prestações: desfeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado, os valores em dívida voltam [ram] a assumir a sua natureza original de capital e de juros. Desfeita a ligação anteriormente contida em cada uma das prestações entre uma parcela de capital e outra a título de juros, nenhuma razão subsiste para sujeitar a dívida de capital e a dívida de juros ao mesmo prazo prescricional: os juros que se forem vencendo prescreverão no prazo de cinco anos, e o capital, [...], encontrar-se-á sujeito ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos”.
   Em sentido contrário se pronunciaram os Acórdãos de 3 de novembro de 2020 (Fátima Gomes), Proc. n.º 8563/15.T8STB-A.E1.S1; de 10 de setembro de 2020 (Rijo Ferreira), Proc. n.º 805/18.6T8OVR-A.P1.S1, segundo o qual “às quotas de amortização do capital integrantes das prestações para amortização de contratos de financiamento aplica-se a prescrição quinquenal prevista no art.º 310º, al. e), do CCiv, ainda que se verifique o vencimento antecipado das mesmas”; de 16 de junho de 2020 (Maria João Vaz Tomé), Proc. n.º 23762/15.6T8PRT-A.P1.S1; de 23 de janeiro de 2020 (Nuno Pinto de Oliveira), Proc. n.º 4518/17.8T8LOU-A.P1.S1; de 6 de junho de 2019 (Abrantes Geraldes), Proc. n.º 902/14.7T8GMR-A.G1.S1; de 18 de outubro de 2018 (Olindo Geraldes), Proc. n.º 2483/15.5T8ENT-A.E1.S1, no qual se defendeu que o legislador equiparou a amortização do capital, designadamente do mútuo, realizada de forma parcelar ou fracionada por numerosos anos, como o mútuo bancário destinado a habitação própria, ao regime dos juros, ficando sujeito ao mesmo prazo de prescrição, nomeadamente cinco anos – art. 310.º, al. e), do CC.  A circunstância de tal direito de crédito se vencer na sua totalidade, em resultado do incumprimento, não altera o seu enquadramento em termos da prescrição; de de 29 de setembro de 2016 (Lopes do Rego), Proc. n.º 201/13.1TBMIR-A.C1.S1; de 27 de março de 2014 (Silva Gonçalves), Proc. n.º 189/12.6TBHRT-A.L1.S1.
[3] Cfr. Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, pp.186-188.
[4] Cfr. Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p.204.
[5] Cfr. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 1997, pp.270-271.
[6] Cfr. Bruno Ferreira, Contratos de crédito bancário e exigibilidade antecipada, Coimbra, Almedina, 2011, pp.186 e ss; João de Matos Antunes Varela, Direito das Obrigações em Geral, II, Coimbra, Almedina, 2005, pp.52-53; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, Coimbra, Almedina, 2006, p.164;Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2007, pp.1018-1020; Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário – Ensaio sobre a estrutura sinalagmática do contrato de mútuo, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p. 209; Nuno Manuel Pinto de Oliveira, Princípios de direito dos contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp.391 e ss..
[7] Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário – Ensaio sobre a estrutura sinalagmática do contrato de mútuo, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p. 210.
[8] Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de maio de 2017 (Olindo Geraldes), Proc. n.º 1244/15.6T8AGH-A.L1.S2; de 11 de julho 2019 (Ilídio Sacarrão Martins), Proc. n.º 6496/16.1T8GMR-A.G1.S1 (segundo o qual o vencimento das prestações referido no art. 781.º do CC traduz-se num benefício concedido por lei ao credor que, querendo beneficiar dele, deverá manifestar a sua vontade nesse sentido, interpelando o devedor para cumprir imediatamente a totalidade da obrigação); de 15 de março de 2005 (Moitinho de Almeida), Proc. n.º 282/05; e de 17 de janeiro de 2006 (Azevedo Ramos), Proc. n.º 3869/05 (defendendo-se que o vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não vencera constitui um benefício que a lei concede (mas não impõe) ao credor, pelo que não prescinde da interpelação do devedor. A interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação, realizando todas as restantes prestações, constitui a manifestação de vontade do credor em aproveitar o benefício que a lei lhe atribui).
[9] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de março de 2005 (Moitinho de Almeida), Proc. n.º 282/05.
[10] Pode, contudo, dizer-se que esta construção se afigura incompatível – tal como a exigibilidade antecipada da obrigação de reembolso como consequência do incumprimento de uma prestação puramente amortizadora – com o sinalagma existente entre a obrigação de pagamento de juros e a disponibilização do capital. Com efeito, o art. 781.º consagra um mecanismo que apenas respeita à obrigação objeto de incumprimento, deixando incólume o direito do mutuante aos juros. A extinção da obrigação de pagamento de juros remuneratórios da futura disponibilização do capital não pode ser considerada como um dado adquirido, pois tem de encontrar fundamento em qualquer critério normativo, que não se descortina facilmente e que não é, normalmente, indicado. Pode, por isso, dizer-se que o respeito pelo sinalagma justifica a inaplicabilidade do regime de exigibilidade antecipada ao mútuo oneroso. Propõe-se, assim, a redução teleológica do art. 781.º, de modo a não compreender o incumprimento de obrigações fracionadas cujo vencimento antecipado – provocado como que potestativamente pelo credor- quebre a relação de sinalagmaticidade estipuladas pelas partes, permitindo ao mutuante beneficiar do pagamento dos juros sem que seja privado do capital pelo correspondente período de tempo. Daí que a tutela do credor, permitindo a recuperação do capital mutuado em virtude do incumprimento de uma prestação do reembolso, resida antes num outro mecanismo, suscetível de fazer cessar cessar tanto a disponibilização do capital, como a respetiva remuneração: a resolução (art. 1150.º do CC). Cfr. Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, pp.206, 210-211.
[11] Cfr. Miguel Brito Bastos, O mútuo bancário, Coimbra, Coimbra Editora, 2015, p.192.
[12] Cfr. Fernando Gravato Morais, Manual da Locação Financeira, Coimbra, Almedina, 2011, p.110.
[13] Cfr. Manuel A. Domingues de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Coimbra, 1972, p.452.
[14] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de maio de 1993, in CJ STJ, Ano I, tomo II, p.82. No mesmo sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de março de 2014, Proc. n.º 89/12.6TBHRT-A.L1.S1.