Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
47/17.8YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DE CONTENCIOSO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: PRINCÍPIO DA UNIDADE ESTATUTÁRIA
PRINCÍPIO DA TUTELA DA CONFIANÇA
INAMOVIBILIDADE DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS
CLASSIFICAÇÃO DE SERVIÇO
MOVIMENTO JUDICIAL
REQUISITOS
COLOCAÇÃO DE JUÍZ
PENA DISCIPLINAR
CONSTITUCIONALIDADE
JUIZ
RECURSO CONTENCIOSO
DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Data do Acordão: 01/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO CONTENCIOSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO
Área Temática:
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA – DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS E FINAIS.
DIREITO CONSTITUCIONAL – TRIBUNAIS / ESTATUTO DOS JUÍZES.
Doutrina:
-Isabel Graes, Tratado de Direito Administrativo Especial, Volume VII, Direito Administrativo da Magistratura Judicial, p. 133 e ss.;
-Noronha do Nascimento, Inamovibilidade Dos Juízes, Revista Julgar, n.º 32.º.
Legislação Nacional:
LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ), APROVADA PELA LEI N.º 40-A/16, DE 22-12:- ARTIGO 183.º, N.º 5.
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS (EMJ): - ARTIGO 6.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA: ARTIGO 216.º, Nº 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 620/07.
Sumário :

1. O regime estatutário dos magistrados judiciais decorre essencialmente das normas contidas no EMJ mas pode resultar também de outras normas para as quais é feita remissão expressa ou implícita.

2. Tal ocorre designadamente com a norma do nº 5 do art. 183º da LOSJ, introduzida pela Lei nº 40-A/16, de 22-12, segundo a qual, nos casos em que o juiz deixe de reunir a classificação mínima de Bom com Distinção exigida para o lugar em que se encontra colocado, este é posto a concurso no movimento judicial subsequente.

3. A inamovibilidade consagrada no art. 6º do EMJ é uma garantia da independência dos juízes, mas, como decorre do art. 216º, nº 1, da CRP, não constitui um valor absoluto, admitindo que, para além das excepções previstas no EMJ, outras Leis da Assembleia da República introduzam medidas justificadas pela necessidade de tutelar interesses igualmente relevantes.

4. A referida norma do nº 5 do art. 183º da LOSJ representa uma excepção à regra da inamovibilidade, potenciando que certos lugares de 1ª instância mais exigentes sejam providos de juízes de direito com melhores classificações de serviço, medida que encontra justificação racional na necessidade de o CSM, dentro dos seus poderes de gestão da magistratura judicial, contribuir para a melhoria do sistema de administração da justiça.

5. Tal norma não está ferida de inconstitucionalidade material, na medida em que:

- Não confere ao CSM um poder discricionário de movimentação judicial, antes se aplica com objectividade a todos os juízes de direito que, estando colocados em determinados lugares, não tenham a classificação mínima de Bom com Distinção;

- Permite, com a mesma objectividade, que outros juízes de direito com essa classificação mínima possam requerer a sua colocação nesses lugares.

6. A publicitação de tais lugares para efeitos de movimentação judicial não corresponde à aplicação de qualquer sanção fora de processo disciplinar, antes constitui uma medida de gestão da magistratura judicial que se inscreve na esfera de competência exclusiva do CSM.

7. Num caso em que, previamente à publicação do aviso de abertura do movimento judicial, foi concedida à recorrente - juíza de direito colocado num lugar para o qual é exigida a classificação mínima de Bom com Distinção - a possibilidade de requerer a realização de inspecção judicial extraordinária, da qual abdicou, o facto de esse lugar ter sido publicitado para efeitos do movimento judicial, ao abrigo do nº 5 do art. 183º da LOSJ, não determina violação do princípio da confiança.


A.G.
Decisão Texto Integral:

I - AA veio impugnar contenciosamente a deliberação de 9-5-17 do PLENÁRIO do CONSELHO SUPERIOR da MAGISTRATURA sobre a inclusão no Movimento Judicial Ordinário de 2017 do lugar em que se encontrava provida como juíza de direito efectiva.

Alegou para o efeito quer se encontra colocada como juíza de direito efectiva, desde Setembro de 2000 até Setembro de 2014 nos Juízos de Pequena Instância Criminal de Lisboa, 2º Juízo, 3ª secção e, por força da reforma ocorrida em 2014, na Instância Local de Lisboa, Secção de Pequena Criminalidade – Juiz-2.

Por deliberação de 14-6-16 o Conselho Permanente do CSM atribuiu à A. a classificação de serviço de Suficiente pelo seu desempenho funcional no período compreendido entre 1-1-10 e 31-8-14 no 2º Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa e, entre 1-9-14 e 31-12-14, na secção de Pequena Criminalidade da Instância Local de Lisboa – Juiz-2, da Comarca de Lisboa. Embora a recorrente entendesse que tal classificação era injusta, decidiu não reclamar nem impugnar a mesma porque em nada afectava a permanência no lugar em que estava provida como efectiva.

Considera a recorrente que:

- Subjacente a tal deliberação está a violação do princípio da unicidade estatutária, na medida em que o art. 183º, nº 5, da LOSJ, integra matéria estatutária que deveria constar obrigatoriamente do EMJ;

- A deliberação viola ainda o princípio da inamovibilidade dos juízes, uma vez que o EMJ não contém qualquer preceito que determine a transferência de juízes pelo facto de lhe ser atribuída uma classificação inferior à que detinham, violando também as condições necessárias à independência dos Tribunais;

- Ademais, a perda do lugar em decorrência da referida deliberação equivale a uma sanção disciplinar aplicada fora de qualquer processo disciplinar;

- Tal deliberação viola ainda o princípio da tutela da confiança, pois quando lhe foi atribuída a classificação de Suficiente, esta não implicava a movimentação obrigatória, a qual foi posteriormente introduzida por aquela norma.

O Conselho Superior da Magistratura respondeu no essencial da forma seguinte:

a) Negou a alegada violação do princípio da unicidade estatutária, uma vez que a reserva estatutária não exige a integração de todas as norma núm único diploma, como o EMJ;

b) Impugnou a alegada violação dos princípios da inamovibilidade dos juízes e da independência dos tribunais, considerando que a inamovibilidade constitucionalmente consagrada não assume a natureza de direito fundamental, seja como direito liberdade e garantia, seja como direito político, social ou económico e a garantia em causa não tem natureza absoluta, remetendo para a lei ordinária a definição das condições de transferência, suspensão, aposentação ou demissão. Assim, admite-se que a legislação infraconstitucional preveja situações de transferência, suspensão, aposentação ou demissão, excecionando o princípio geral da inamovibilidade.

A garantia de inamovibilidade mantém um substrato mínimo composto pela independência dos tribunais e, como tal, os preceitos infraconstitucionais não podem derrogar esta garantia ao ponto de pôr em causa a independência dos tribunais, só podendo ser derrogada para salvaguardar outro valor constitucional. No caso, a norma em causa esta devidamente justificada para garantia de um melhor exercício da função jurisdicional e aplicação da justiça.

c) Contestou a alegação de que se verifica uma perda de lugar como sanção disciplinar ilegalmente aplicada, uma vez que a figura da sanção disciplinar tem um objectivo, enquadramento e tramitação procedimental próprios, que não se confunde com a situação em presença e com os efeitos da perda de requisitos. Os efeitos da aplicação do art. 183º, nº 5, da LOSJ, traduzem-se na apreciação e garantia legítima de um adequado nível de experiência e mérito do exercício da função jurisdicional, que não se confunde com a aplicação de sanções disciplinares.

d) Impugnou que a deliberação em causa ponha em causa o princípio da tutela da confiança, esclarecendo que, na sequência da reforma do mapa judiciário introduzida pela Lei nº 62/13, de 26-8, e do movimento judicial ordinário de 2014, todos os juízes foram providos nos actuais lugares já ao abrigo da exigência de requisitos que resulta do art. 183º, nºs 1 e 2, da LOSJ. Em consequência do referido movimento, os juízes de direito titulares que não reuniam os requisitos para novo provimento no lugar que já ocupavam perderam o lugar ou foram providos a título interino.

As situações merecedoras de tutela de confiança a ponderar dizem respeito a juízes de direito que no movimento judicial ordinário de 2014, ou subsequente, detinham os requisitos para o seu provimento como titulares que entretanto perderam, na sequência de nova acção inspectiva.

Inexiste qualquer obstáculo constitucional ou infraconstitucional que impeça a aplicação imediata da lei, a tanto ensina o art. 12º, nº 2, do CC, dispondo sobre o conteúdo de relações jurídicas constituídas à partida. Por outro lado, por despacho do Exmº Vice-Presidente do CSM, de 9-1-17, foi permitida a realização de inspecções extraordinárias a todos os magistrados judiciais que tivessem perdido requisitos como consequência de notações atribuídas em data anterior a 1-1-17. Mas pese embora tal possibilidade, a recorrente, já conhecedora da nova realidade legislativa e das consequências da mesma, para as quais foi expressamente advertida, preferiu não se sujeitar a novo processo inspectivo.

Por outro lado, para que exista uma confiança digna de tutela, essa confiança tem que ser legítima, não se afigurando como tal a “certeza” invocada pela recorrente de que o seu desempenho qualitativo e quantitativo não teria consequências ao nível do lugar ocupado, sendo inadmíssivel conjecturar que um magistrado judicial poderia trabalhar menos ou de forma menos empenhada e conformar-se com a notação de Suficiente por ter a confiança de que tal não influiria no lugar ocupado.

Ademais, nunca o recorrido se pronunciou ou praticou qualquer acto que contribuísse para a alegada certeza e confiança que a recorrente alega. No passado a questão era controvertida, sendo convicção prevalecente que a perda de requisitos equivalia à perda de lugar.

Nas alegações a recorrente concluiu do seguinte modo:

a) A destituição da recorrente ao abrigo do disposto no art. 183º, nº 5, da LOSJ, é ilegal e inconstitucional por violação do princípio da unicidade estatutária, porque se é certo que o EMJ, em determinadas matérias, remete para o direito subsidiário, como é o caso, por exemplo, do disposto nos arts. 69º e 131º, o mesmo já não se verifica em matéria de destituição de juízes;

b) E a falta de uma tal norma remissiva não resulta de uma omissão e/ou lacuna do legislador, pois caso fosse sua intenção remeter a regulação da matéria de nomeação/destituição dos juízes para a LOSJ, o legislador – à semelhança do que fez a propósito das matérias referentes à aposentação, cessação e suspensão de funções e em matéria disciplinar – tê-lo-ia feito, por exemplo, no Capítulo IV do EMJ (arts. 38º a 63º) que disciplina a matéria de nomeação de juízes, incluído uma norma de Direito subsidiário;

c) Assim, atendendo à natureza do EMJ, da competência absoluta da A.R. [art. 164º, al. m), da CRP], não pode a LOSJ - emitida no uso da competência legislativa de reserva relativa, por aplicação do art. 165º, al. t), da CRP - dispor em sentido contrário, sob pena de a sua aplicação, como é o caso, ser inconstitucional, por violação da reserva de jurisdição e, consequentemente, violação do princípio da unicidade estatutária, 

d) Por outro lado, a destituição da recorrente, ao abrigo do disposto no art. 183º, nº 5, da LOSJ, viola, também, o princípio da inamovibilidade e independência dos juízes, visto que a previsão legal contida nesta norma não se enquadra nas excepções a estes princípios, conforme estipulado no art. 216º da CRP;

e) Por outro lado, ainda, a aplicação dessa norma viola as garantias constitucionais do arguido, previstas no art. 32º da CRP, pois é aplicada à A. uma sanção administrativa sem que para os devidos e legais efeitos tenha havido processo disciplinar;

f) Resulta, por fim, da sua aplicação a violação do princípio da tutela da confiança, na medida em que, à data da nomeação definitiva da A. como juíza efectiva, em 2000, e bem assim, à data da atribuição da notação de “Suficiente”, tais requisitos de nomeação e manutenção do lugar ora em discussão não existiam;

g) Razão pela qual a recorrente não tinha como prever ou conhecer que, pelo menos, à data da obtenção da notação de “Suficiente”, esta notação iria ter a consequência que agora lhe pretendem atribuir, de destituição do lugar em que estava colocada como juíza efectiva;

h) Com efeito, a expectativa e a confiança que a recorrente detinha no regime jurídico até então vigente, esse mínimo de certeza e de segurança no direito até então vigente, frustra-se, violando-se, assim, uma das garantias do princípio de Estado de direito democrático.

Nas contra-alegações o CSM insistiu na tese que desenvolvera na resposta à impugnação.

O Ministério Público junto deste Supremo pronunciou-se no sentido do não acolhimento de cada uma das questões suscitadas, concluindo pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir, com base nos elementos que foram sintetizados no anterior relatório e que espelham quer os antecedentes e o teor da deliberação impugnada, quer as posições assumidas por cada uma das partes.

II – Decidindo:

1. Pretende a requerente, em sustentação da anulação da deliberação do CSM relacionada com a preparação do movimento judicial ordinário de 2017, que se aprecie a inconstitucionalidade do nº 5 do art. 183º da LOSJ, introduzido pela Lei nº 40-A/16, de 22-12, objecto de aplicação na deliberação impugnada.

Invoca para o efeito as seguintes razões essenciais:

- Por se tratar de norma que não consta formalmente do EMJ, diploma que deve concentrar tudo o que de relevante respeite ao estatuto sócio-profissional dos juízes, como sucede com as condições para a movimentação do lugar que ocupam, sái violado o princípio da unicidade estatutária;

- Por resultar da aplicação de tal preceito a violação do princípio da inamovibilidade que só poderia ser afectado por alguma norma que constasse do EMJ;

- Pelo facto de a sua aplicação colocar em crise as condições de independência dos tribunais (ou melhor, dos juízes);

- Porque a aplicação de tal preceito traduz a aplicação de uma sanção disciplinar afastada de qualquer processo disciplinar;

- Finalmente, pelo facto de ser colocado em causa o princípio da confiança, na medida em que constitui uma solução que vem ao arrepio do statu quo legal que existia na altura em que à recorrente foi atribuída a nota de Suficiente de que não reclamou.

2. Nem todas as questões são de fácil resolução, mas desde já se antecipa que não se detectam motivos para a anulação da deliberação do CSM, entidade que, aliás, se limitou a aplicar, como se lhe impunha, a norma em causa para efeitos de preparação, aprovação e execução do movimento judicial ordinário de 2017.

Considerando a estrutura judiciária aprovada resultante da LOSJ de 2014, a recorrente encontrava-se colocada num lugar pertencente à Instância Local de Lisboa, Secção de Pequena Criminalidade – Juiz-2, o qual, de acordo com art. 45º do EMJ (conjugado com o art. 183º, nºs 1 e 2, da LOSJ, com nova terminologia quanto à identificação dos tribunais) deve ser provido de juiz de direito com classificação de serviço não seja inferior a Bom com Distinção.

A recorrente não reúne esta condição, uma vez que lhe foi atribuída pelo Conselho Permanente do CSM a classificação de Suficiente da qual nem sequer reclamou.

A recorrente não o diz, mas o CSM trouxe aos autos uma relevante informação complementar, segundo a qual, em tempo oportuno, antes da publicitação do movimento judicial ordinário de 2017, lhe foi facultada (assim como aos demais juízes de direito em circunstâncias idênticas) a possibilidade de requerer a realização de uma inspecção extraordinária, por via da qual, em caso de atribuição daquela classificação mínima, lhe seria garantida a manutenção no lugar, evitando os efeitos projectados pela aplicação do nº 5 do art. 183º da LOSJ.

A recorrente abdicou dessa iniciativa procedimental por motivos que não explicitou – embora se intuam – mas que nos levam a antecipar um juízo de razoabilidade do novo regime legal e a negar qualquer violação do princípio da confiança.

3. Argumenta a recorrente que o nº 5 do art. 183º da LOSJ, tendo natureza estatutária, está integrada num diploma que não corresponde ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, representando a violação de um apelidado princípio da unicidade estatutária sustentado no art. 215º, nº 1, da CRP que, na sua leitura, tornaria inconstitucionais normas daquela natureza formalmente deslocadas do EMJ.

Trata-se de uma argumentação que não procede. O facto de o art. 215º da CRP prever que os juízes se regem por um só estatuto não tem aquele sentido que a recorrente enuncia, mas antes o que o Tribunal Constitucional – que tem a última palavra nesta matéria – já explicitou no Ac. nº 620/07:

“Exigência de um estatuto unificado, constituído por um complexo de normas que apenas são aplicáveis aos juízes dos tribunais judiciais e de um estatuto específico, no sentido de que são as suas disposições, ainda que de natureza remissiva, que determinam e conformam o respectivo regime jurídico-funcional”.

É claro que idealmente seria mais adequado que todas as regras estatutárias aplicáveis aos juízes de direito estivessem concentradas num único diploma, ao qual, aliás, deveria ser atribuído um valor reforçado que impusesse ao legislador ordinário determinadas exigências acrescidas quando pretendesse introduzir modificações. O facto de os Tribunais, representados pelos respectivos magistrados judiciais, constituírem um órgão de soberania, justificaria precisamente essa garantia acrescida quando um outro órgão de soberania – a Assembleia da República – pretendesse modificar as normas estatutárias. Afinal, a independência dos Tribunais (e dos Juízes que os integram) pode ser precisamente afectada por via de alterações legislativas conjunturais.

Ocorre, porém, que a CRP, embora preveja no seu art. 215º a existência de um Estatuto destinado a reger os Juízes dos Tribunais Judiciais, não foi ao ponto de prescrever a necessária concentração num único diploma de todas as normas de cariz estatutário. Sendo inegável que os preceitos que se reportam aos vectores essenciais da magistratura judicial estão concentrados no EMJ, tal não impede (nem tem impedido, aliás) a coexistência de outras normas que regulam alguns aspectos específicos, como ocorre precisamente com o nº 5 do art. 183º da LOSJ a respeito da orgânica dos Tribunais Judiciais.

Não é de estranhar sequer esta opção. Atenta a interconexão entre o EMJ e a LOSJ, é compreensível a regulação neste diploma de uma situação específica como aquela de que trata o presente recurso, o que já ocorreu também com anteriores leis de organização judiciária que sempre integraram preceitos semelhantes, que, apesar de implicarem com o estatuto sócio-profissional dos juízes, também se relacionavam com a orgânica judiciária.

Noutros casos é o próprio EMJ que prevê a aplicação subsidiária de preceitos que constam de outros diplomas. Tal ocorre designadamente em matéria de equiparação a bolseiro (art. 10º-A), direitos de deveres dos magistrados judiciais (art. 32º), estatuto de aposentação aplicável a magistrados judiciais (art. 69º), diverso do estatuto da jubilação que é específico, matéria disciplinar (art. 131º) ou impugnação das deliberações do CSM (art. 178º).

Enfim, no que concerne à concreta norma sob apreciação, sendo inegável que a sua aplicação interfere directamente na situação dos juízes providos nos lugares a que se reporta, abrindo a possibilidade de a tais lugares concorrerem outros juízes, apresenta natureza instrumental, à semelhança de muitas outras que figuram na LOSJ e que já figuraram noutros diplomas de organização judiciária, sendo a sua constitucionalidade formal assegurada pelo facto de emergir de outra Lei da Assembleia da República que mantém neste campo reserva legislativa.

Improcede, assim, a primeira questão.

4. Invoca a recorrente a violação do princípio da inamovibilidade, um dos mecanismos de garantia da independência dos Tribunais e dos respectivos juízes (art. 215º, nº 2, da CRP).

O princípio da inamovibilidade está constitucionalmente previsto com aquele objectivo, mas não se apresenta com natureza absoluta, a qual é contrariada, aliás, pelo facto de o EMJ, na decorrência da abertura prevista no art. 215º, nº 2, da CRP, prever a ocorrência de transferências ou outras modificações da situação em que o juiz se encontra (sobre a evolução histórica do princípio da inamovibilidade cfr. Isabel Graes, Tratado de Direito Administrativo Especial, vol. VII, Direito Administrativo da Magistratura Judicial, págs. 133 e segs.).

Seguramente que as excepções decorrentes do direito ordinário e que, no essencial, constam do EMJ não podem ser arbitrárias, esvaziando o objectivo que com a previsão de tal princípio constitucional se procurou atingir. Quer a interpretação do princípio da inamovibilidade, quer a delimitação dos casos em que o mesmo pode ser afectado devem ser apreciadas no contexto de outros princípios constitucionais, como o da independência dos tribunais e dos juízes ou o da legalidade dos actos da administração (in casu, a administração da magistratura judicial a cargo do CSM). Também devem ser ponderados os interesses que subjazem a medidas legislativas que coloquem em causa a manutenção de determinados juízes em determinados lugares.

Sem embargo, não deixa de existir, como existe em toda a actuação do poder legislativo actuando dentro do quadro constitucional, uma larga margem de discricionariedade, permitindo que sejam adoptadas as soluções que conjunturalmente se considerem mais ajustadas para tutelar outros interesses igualmente relevantes.

A boa administração da justiça, a eficiência dos Tribunais Judiciais e dos demais serviços judiciários em prol da resolução célere e justa dos conflitos de interesses ou a boa gestão dos meios humanos, in casu, do corpo de magistrados afectos ao CSM, não são estranhos a essa equação formada em torno dos limites intrínsecos do princípio da inamovibilidade. Nisto dissentimos, aliás, de entendimento diverso exposto por Noronha do Nascimento, na Revista Julgar, nº 32º, em artigo intitulado “A inamovibilidade dos juízes”.

Deste modo, se não forem encontrados motivos fortes que assinalem a verificação daqueles riscos e se, por outro lado, forem identificados outros interesses igualmente pertinentes que possam beneficiar da aplicação da norma do nº 5 do art. 183º da LOSJ, cede a argumentação da recorrente.

5. A norma em causa foi introduzida na LOSJ em 2016 com um objectivo que parece claro e que também encontra sustentação em normas do EMJ: determinados lugares de maior responsabilidade ou complexidade, ou em que se pretenda uma especial eficiência no exercício da administração da justiça devem ser providos de juízes de direito que apresentem melhores resultados (avaliado em processos de inspecção, a cargo de inspectores judiciais designados pelo CSM e apreciados por este mesmo órgão), reflectidos através de uma classificação de serviço de mérito (critério objectivo).

Tal desiderato conjuga-se com a norma do art. 45º do EMJ (ainda não adaptada à nova terminologia constante da LOSJ) que prevê precisamente que determinados lugares (que, atento a necessário adaptação, serão, agora, os previstos no art. 183º, nºs 1 e 2, da LOSJ) devem ser providos de juízes de direito que detenham a classificação mínima de Bom com Distinção, encontrando apoio formal no art. 217º, nº 1, da CRP, que remete para a lei ordinária a regulação da colocação ou da transferência de juízes.

Trata-se de uma opção legal que, de forma objectiva e totalmente razoável, permite projectar melhores resultados, evitando a cristalização nesses lugares de juízes de direito com classificações inferiores, designadamente com a classificação de Suficiente (que corresponde ao segundo grau classificativo).

Tal alteração legislativa decorreu da constatação de que casos havia em que certos juízes colocados em determinados lugares deixaram de deter essa classificação mínima em resultado daquela avaliação inspectiva dotada possibilitando (ou, melhor, impondo) que, a partir de 2016, os referidos lugares fossem postos a concurso no movimento judicial subsequente.

Neste contexto, não encontramos motivo algum para afirmar a violação do princípio da inamovibilidade. A referida norma é susceptível de interferir objectivamente na situação em que se encontram os juízes de direito que não têm ou deixaram de deter aquela classificação mínima de Bom com Distinção, mas, em contrapartida, permite satisfazer outros objectivos que também foram delegados no legislador ordinário, como sejam o de tutelar os interesses relacionados com a boa administração da justiça, com a eficácia dos Tribunais ou com a celeridade da resposta que se mostram mais compatíveis com a colocação nos referidos lugares dos juízes com melhores classificações de serviço (critério objectivo).

O facto de o art. 6º do EMJ prevenir que a modificação da situação dos juízes apenas possa decorrer dos casos previstos nesse diploma não tem o significado que a recorrente pretende extrair, se considerarmos, como já o expusemos anteriormente, que as normas estatutárias integram não apenas os preceitos que formalmente constam do EMJ, mas ainda outros inseridos noutros diplomas como os que regulam a organização judiciária.

A alteração legal foi introduzida, como o exigia a CRP, por Lei da A.R., tendo sido sugerida, aliás, pelo próprio CSM no quadro da gestão do corpo de juízes e da promoção da melhoria do serviço de administração da justiça.

Assim o revela o Parecer que foi emitido pelo CSM no decurso do processo legislativo, ao qual se pode aceder através de http//app.parlamento.pt.

Nele se refere, além do mais, que “o art. 183º deveria prever as consequências da perda de requisitos que actualmente suscita dúvidas e que a Lei 38/87, de 23-12, prevenia”, renovando o CSM, assim, a proposta “de aditamento à norma de um nº 5 com a seguinte redacção: «A perda dos requisitos exigidos pelos nºs 1 e 2 determina que o lugar seja posto a concurso no movimento judicial seguinte»”.

Tal sugestão integrou oportunamente uma proposta de aditamento do nº 5 do art. 183º da LOSJ, a qual foi aprovada por unanimidade, como resulta dos trabalhos preparatórios também acessíveis através daquele site da Assembleia da República.

Significativo também, no sentido de esvaziar o argumento de ordem formal tecido em redor da absolutização quer dos princípio da unidade estatutária e da inamovibilidade, é o facto de tal medida, depois de ter sido aprovada, ter contado também com a expressa adesão da ASJP, qual foi veiculada numa exposição datada de 10-1-17 dirigida ao CSM, a respeito da aplicação do novo preceito (acessível através de www.asjp.pt).

Aí se consignou: “admite-se que o referido princípio da inamovibilidade não obste, em abstracto, à perda de um lugar e consequente transferência de um juiz que não tem os requisitos para exercer funções num determinado tribunal (por a sua classificação ter baixado, o que mostrará, em regra, que não estará naquele momento apto para aí estar colocado), o que permitirá, em geral, um melhor e mais adequado funcionamento do sistema judicial, que é, claro, objecto de tutela constitucional e permitirá a existência dessa excepção ao princípio da inamovibilidade” (pág. 4). Acrescentou-se ainda na pág. 5 que, no seio da ASJP “e depois de amplo (e aceso) debate interno”, foi “defendido também que a perda dos requisitos em causa poderia ter esta consequência”, salvaguardada que fosse a possibilidade de ser requerida inspecção judicial extraordinária (faculdade de que, como já se disse, a recorrente beneficou, mas da qual abdicou).

Ou seja, quer o órgão constitucional independente (CSM) ao qual foi conferida a gestão do corpo de magistrados judiciais nos Tribunais Judiciais envolvendo também a tarefa de zelar pela independência dos juízes e pela boa administração da justiça, quer a aludida entidade de natureza sócio-profissional (ASJP) comungaram da conveniência de uma norma como a do aludido nº 5 que, embora sendo susceptível de alterar a situação de determinados juízes de direito, teria também a virtualidade de potenciar uma melhor administração da justiça e, além disso, transportaria consigo um incentivo que valoriza e privilegia aqueles que precisamente dão mostras de mais competência, diligência ou eficiência no desempenho das suas funções (o que soe apelidar-se de meritocracia).

6. Não deixaremos, no entanto, de focar um aspecto acerca dos limites materiais da inamovibilidade.

No primeiro EMJ que foi aprovado pela Lei nº 85/77, de 6-12, o Dec. Lei nº 264-C/81, de 3-9, introduziu uma norma (a do nº 2 do art. 43º) que veio permitir ao CSM proceder à movimentação de magistrados judiciais, por conveniência de serviço, quando fossem classificados de Suficiente ou de Medíocre.

Segundo tal preceito, “independentemente dos prazos referidos no número anterior, o Conselho Superior da Magistratura pode proceder à transferência, por conveniência de serviço, de magistrados que a tal hajam dado a sua anuência ou que tenham sido classificados de Suficiente ou Medíocre”.

Oportunamente a referida ASJP (à semelhança do que ocorreu com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público no que respeita a semelhante alteração que foi introduzida na LOMP) solicitou ao Provedor de Justiça de então que promovesse a apreciação da inconstitucionalidade material de tal preceito (informação recolhida a partir do “Extracto do 7º Relatório do Porvedor de Justiça à Assembleia da República – 1982”, no D.A.R. de 4-1-84).

Na sequência de Parecer elaborado pela Comissão Constitucional, foi emitida a Resolução do Cons. da Revolução nº 189-A/82 (no D.R., I Série, de 25-10) declarando a inconstitucionalidade material do referido preceito.

Em tese, tal resolução poderia ser invocada agora para integrar o caso, mas só na aparência se verifica uma similitude de situações.

Na verdade, a situação que então foi apreciada não é idêntica nem sequer semelhante à que agora se nos coloca: aquele preceito legal atribuía ao CSM um poder discricionário (“por conveniência de serviço”) que está afastado da actual solução legal. Agora, a norma do nº 5 do art. 183º da LOSJ, apresenta-se com carácter geral e abstracto e aplica-se com objectividade a todas as situações que nela se integrem, sem deixar ao CSM qualquer margem de dircricionariedade, afastando-se, deste modo, qualquer receio no que concerne à violação do princípio da inamovibilidade que poderia ocorrer se a aplicação desta outra norma ficasse dependente de factores de ordem subjectiva.

Ao invés do que aquele regime permitia, o nº 5 do art. 183º da actual LOSJ é aplicável com total objectividade e transparência a todos os lugares enunciados nos nºs 1 e 2 (ou, na antiga terminologia, no art. 45º do EMJ) providos de juízes de direito que deixaram de deter a classificação mínima de Bom com Distinção, os quais são obrigatoriamente postos a concurso pelo CSM no movimento judicial imediato.

Ao mesmo tempo, para tais lugares é admitida a apresentação de candidaturas subscritas por quaisquer juízes que detenham as condições mínimas exigidas, sendo a movimentação subsequente, a deliberar e executar pelo CSM, o resultado objectivo do binómio classificação de serviço/antiguidade, sem qualquer margem para a discricionariedade ou o subjectivismo.

Reforça-se, assim, a improcedência da alegada violação do princípio da inamovibilidade.

7. Improcede também a alegação em torno da violação do princípio da independência que constitui inegavelmente um dos pilares essenciais do sistema judiciário (art. 203º da CRP) e do estatuto dos juízes.

Como é óbvio, para que tal princípio seja protegido, não são absolutamente indiferentes as normas que regulam a transferência ou a modificação da situação dos juízes.

Todavia, no caso concreto, não se identifica esse risco, na medida em que ao preceito em causa subjaz um interesse cujo relevo é inegável e que está ligado à boa administração da justiça potenciada por um regime legal que confere ao CSM poderes reforçados na gestão dos meios humanos, mais concretamente na gestão do corpo de magistrados em função das suas características (antiguidade e classificação) e das necessidades que se verificam no terreno judiciário integrado por Tribunais com diversas competências, com múltiplos graus de complexidade e com variadas exigências no campo da aplicação dos recursos humanos.

Não cremos que deva atribuir-se relevo ao interesse pessoal da recorrente (ou de outros juízes de direito em semelhantes condições), em detrimento dos interesses, não menos importantes, que estão envolvidos num sistema de administração da justiça ao serviço dos cidadãos.

Não existe, assim, motivo para afirmar, de uma forma abstracta, que o simples facto de a lei prever naquelas circunstâncias a transferência de um juiz afecte o referido princípio, no pressuposto, que no caso se manifesta com total inequivocidade, que tal apenas ocorre (e ocorreu) no âmbito da aplicação pelo CSM, a quem compete a gestão da magistratura judicial (art. 217º), de uma norma abstracta que abarcou a recorrente e outros juízes em idênticas circunstâncias.

8. Também não existe motivo algum para se concluir que a transferência da requerente corresponde à aplicação de sanção disciplinar afastada de qualquer processo disciplinar.

A transferência de juízes apenas é encarada como sanção disciplinar quando decorre da existência de um processo disciplinar que comine dessa forma a conduta, não havendo motivo algum para lhe ser atribuída a referida qualificação ou conotação no caso concreto.

De todo o modo, o anúncio da possível transferência foi publicitado a coberto de uma Lei da Assembleia da República que foi aprovada ao abrigo de normas constitucionais.

9. A alegada violação do princípio da confiança já foi anteriormente afastada, na medida em que foi conferida à recorrente a faculdade de requerer a realização de uma inspecção extarordinária, opção de que abdicou por motivos que não explicitou, sendo totalmente injustificada a invocação de tal violação.

O facto de a recorrente ter a classificação de Suficiente numa determinada ocasião não pode de modo algum ser invocado para justificar a inviabilização de qualquer modificação funcional e a eternização no exercício de funções num lugar para o qual, segundo as regras de avaliação do desempenho funcional, parece não revelar as necessárias competências.

Parece, aliás, inadmissível que se invoque um tal princípio para justificar a manutenção da recorrente num concreto lugar para o qual deixou de reunir as condições que o legislador, de modo abstracto, considerou serem imprescindíveis.

III – Face ao exposto, acorda-se nesta Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto da deliberação do Conselho Plenário do CSM de 19-5-17.

A requerente suportará a taxa de justiça de 6 UC. O valor da acção é de € 30.000,01.

Notifique.

Lisboa, 23-1-18


Abrantes Geraldes (Relator)

Roque Nogueira

Pires da Graça

Ribeiro Cardoso

Isabel São Marcos

Júlio Gomes

Fernanda Isabel Pereira

Salazar Casanova (Presidente)