Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
564/19.5T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
OBRIGAÇÃO DE INFORMAÇÃO
CASO JULGADO MATERIAL
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 09/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, tem como pressuposto a existência de uma situação objetiva de confiança, cuja relevância é aferida pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante, e de um elemento subjetivo, ou seja, a criação, na pessoa do confiante, de uma confiança legítima e justificada.

II. O direito de exigir a prestação de contas previsto no artigo 941º, do Código de Processo Civil, centra-se na obrigação de informação constante do artigo 573º, do Código Civil, está diretamente relacionado com a qualidade de administrador em que determinada pessoa se encontrava investida relativamente a bens que não lhe pertencem ou que não lhe pertencem por inteiro.

  

III. Não atua com abuso de direito aquele que, nos termos do disposto no artigo 491º, do Código de Processo Civil, instaura ação para prestação de contas contra o administrador de bens partilhados no processo de inventário instaurado por óbito do pai do autor e réu e de bens de que estes são comproprietários.

IV. A exceção de caso julgado e a autoridade de caso julgado não são duas figuras distintas, sendo apenas dois efeitos distintos da mesma realidade jurídica – o caso julgado material.

V. Enquanto a exceção de caso julgado comporta um efeito negativo, consistente na inadmissibilidade das questões abrangidas por caso julgado anterior voltarem a ser suscitadas, entre as mesmas partes, em ação futura, a autoridade do caso julgado tem, antes, o efeito positivo de impor a primeira decisão à segunda decisão de mérito.

VI. A sentença homologatória da desistência dos pedidos formulados pelo autor faz operar, fora do processo em que foi proferida, o efeito de caso julgado material, obstando a que aqueles mesmos pedidos venham a ser apreciados em nova ação com base no direito de cujo conhecimento o autor, com tal desistência, prescindiu.

VII. Tendo o autor desistido dos pedidos de condenação do réu no pagamento de determinadas quantias correspondentes a metade do valor das vendas realizadas, dos subsídios recebidos e dos prejuízos decorrentes da má administração do réu relativamente aos bens de que era herdeiro e aos bens de que era comproprietários juntamente com o réu, o caso julgado formado pela sentença homologatória desta desistência não impede que o autor instaure contra o mesmo ação para prestação de contas, inexistindo qualquer relação de prejudicialidade entre uma e outra ação.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




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I. Relatório


1. AA intentou a presente ação de prestação de contas contra BB, requerendo que o réu seja citado para, no prazo de 10 dias, apresentar as contas, «tanto no que se refere ao uso dos poderes que lhe foram conferidos pela procuração outorgada  por cada um dos seus pais, como da administração efetuada entre 2002  e 2018 das referidas Herdades ... e do ... sitas na freguesia de ..., concelho de ... de que o Autor é comproprietário».    

 Alegou, para tanto e em suma, que ele e o réu são irmãos e que os seus pais, em 5.02.2002, outorgaram a favor do réu uma procuração irrevogável, conferindo-lhe os mais amplos poderes de administração do seu património e rendimentos, o que o réu fez desde então, sem nunca ter prestado contas.

Mais alegou ser comproprietário, juntamente com o réu, de dois prédios agrícolas, denominados “Herdade ... “e “Herdade do ...”, sitos em ..., cuja administração vinha sendo exercida pelo pai de ambos e que, após a outorga da referida procuração e até Abril de 2018, o réu passou a administrar, sem nunca ter prestado contas.


2. O réu contestou, excecionando a ilegitimidade do autor para requerer a prestação de contas, visto ter atuado ao abrigo de uma procuração irrevogável outorgada pelos pais de ambos e sendo o autor alheio a este contrato inexiste tal obrigação.

Invocou a exceção de caso julgado, sustentando que, tendo o autor desistido do pedido de prestação de contas relativamente à administração das Herdades ... e do ... por ele formulado na ação que correu termos no Tribunal ....., sob o nº 1157/17…, extinguiu-se o direito que o mesmo pretende fazer valer através da presente ação.

Mais impugnou os factos alegados pelo autor, pedindo a condenação do autor, como litigante de má fé, em multa e indemnização a arbitrar.


3. O autor respondeu, sustentando que, não tendo os mandantes exercido o direito à prestação de contas da administração do seu património, este direito transmitiu-se aos respetivos herdeiros, manifestando-se o resultado das mesmas no seu direito à herança.

Reafirmou a sua legitimidade para exigir a prestação de contas relativamente aos bens de que autor e réu são comproprietários, alegando inexistir caso julgado por falta de identidade entre o pedido e de causa de pedir invocada num e noutro processo.

Concluiu pela improcedência das invocadas exceções.


4. Considerando não ser necessária a produção de outra prova, o Tribunal de 1ª Instância proferiu decisão que julgou:

- parcialmente procedente a exceção de caso julgado, no respeitante às herdades em compropriedade do autor e do réu, relativamente ao período posterior a Dezembro de 2004, absolvendo o réu da instância quanto ao pedido de prestação dessas contas, quanto a tal período;

- a ação parcialmente procedente, condenando o réu a prestar contas sobre a administração dessas herdades, designadas ... e do ..., desde 5.02.2002 até Dezembro de 2004 bem como do mandato exercido relativamente à administração do património comum dos pais e dos bens próprios de cada um e do que tenha integrado as respetivas heranças.


5. Inconformado com esta decisão, dela apelou o réu o Tribunal da Relação do Porto, reafirmando não ter obrigação de prestar contas em relação a qualquer dos patrimónios.

O autor também apelou, discordando do reconhecimento da exceção de caso julgado e da consequente limitação de prestação de contas, relativamente à administração das herdades, ao período decorrente entre 05.02.2002 e Dezembro de 2004.


6. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão proferido em 08.09.2020, decidiu:

i) julgar improcedente o recurso de apelação do réu.

ii) julgar procedente o recurso de apelação do autor e, revogando parcialmente a decisão recorrida na parte em que deu por verificada a exceção de caso julgado relativamente ao dever de prestação de contas, pelo réu, quanto à administração das herdades ... e do ..., entre Dezembro de 2004 e 24/3/2017, determinou que, também em relação a tal período, deveria o réu prestar contas da administração desenvolvida sobre as duas herdades.

iii) confirmar, em tudo o mais, a sentença recorrida.


7. Inconformado com este acórdão, o réu dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« 1. Por despacho de 18 de Novembro de 2020 foi interrompido o prazo de recurso do Acórdão da Relação do Porto no dia 14 de Outubro de 2020, iniciando-se a sua contagem, nos termos do artigo 24º nº: 4 da Lei nº: 34/2004, com a nomeação de patrono que, ocorreu no dia 5 de Janeiro de 2021. Assim, o prazo recursivo de 30 (trinta) dias começou a contar no dia 7 de Janeiro de 2021, suspendendo-se em 23 de Janeiro de 2021 e, reiniciou-se em 6 de Abril de 2021. (Lei nº: 13-B/2021) pelo que, o recurso é tempestivo.

2. Os pedidos de prestação de contas decompõem-se em 2 (dois) segmentos. Por um lado, o Autor na qualidade de herdeiro, pede prestação de contas pela administração dos bens de seus pais que o recorrente exerceu; por outro lado, pede prestação de contas na qualidade de comproprietário com o Recorrente de 2 (duas) herdades.

3. Não se discute a legitimidade do Autor em ambas as situações para intentar ação de prestação de contas.

4. Quanto ao primeiro segmento, o que as instâncias não analisaram e, agora se suscita, é o instituto do Abuso do Direito na vertente de “venire contra factum proprium “que, embora seja de conhecimento oficioso, deverá ser objeto de apreciação e decisão.

5. Como resulta dos autos, houve 3 (três) processos de inventário. Um que correu termos no Tribunal Judicial ....., por óbito do pai do Autor e do Recorrente.

Este processo terminou em 2009 com a partilha.

6. Em 14/12/2015 foi homologada transação em que foram partilhados todos os bens da herança dos ascendentes da mãe do Autor e Recorrente; Processo que tramitou no Tribunal Judicial ..., ....

7. Foi, ainda, instaurada, como consta dos autos, processo de inventário por óbito da mãe das partes que, terminou por acordo, por desistência da instância, devido à inexistência de bens a partilhar.

8. Em nenhum destes processos o Autor/Recorrido enquanto herdeiro legitimário, requereu prestação de contas ou questionou eventuais inoficiosidades, por excesso de legítima do irmão/procurador.

9. Nestes processos de inventário o Autor, aceitou e beneficiou das partilhas efetuadas, nada exigiu ao irmão ora Recorrente, pelo que, este ficou convencido que as questões relacionadas com a herança dos pais estavam resolvidas.

10. Passados 12 (doze) anos sobre a partilha da herança do pai do Autor e do Recorrente e 6 ( seis ) anos sobre a desistência da partilha da mãe, por não haver bens a partilhar, vem agora o Autor intentar ação de prestação de contas sobre a administração dos bens da herança que já foi partilhada.

11. Há um manifesto abuso de direito, violando o Autor com esta conduta os princípios da boa-fé e da confiança, sendo o exercício do seu direito de ação, abusivo ou ilegítimo.

12. Quanto ao segundo segmento, a questão que importa analisar é se se verifica a autoridade de caso julgado.

13. Está assente que, Autor e Recorrente são irmãos e foram comproprietários das herdades “...” e “...”.

14. Na prestação de contas em questão, o Autor refere a administração pelo Recorrente dos seguintes bens:

a) Venda de pastagens;

b) Subsídios do Ministério da Agricultura;

c) Extração de cortiça;

d) Colheita de azeitonas;

e) Prejuízos vários que identificou nos artigos 14º e 15º da petição inicial.

15. Na ação nº 1157/…, o Autor cumulou vários pedidos, com relevo para os autos interessam os seguintes:

a) Condenação do Réu (ora Recorrente) a entregar metade dos valores pela venda das pastagens (alínea i);

b) Condenação do Réu (ora Recorrente) a pagar metade do valor dos subsídios do Ministério da Agricultura (alínea m) );

c) Condenação do Réu (ora Recorrente) a indemnizar o Autor pelo valor de metade do valor da cortiça e das azeitonas (alínea k) );

d) Condenação do Réu (ora. Recorrente) a pagar indemnização equivalente a metade dos prejuízos pela má gestão.

16. O Autor neste processo veio a desistir dos pedidos, sendo proferida sentença homologatória.

17. As instâncias analisaram esta questão à luz da exceção de caso julgado, decidindo a 1ª instância pela verificação da exceção e o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão objecto de recurso, decidiu “inexistir uma coincidência de pedidos entre as duas acções o que impede o reconhecimento do efeito de caso julgado “.

18. Salvo o devido respeito por estas decisões, a questão deverá ser analisada à luz da figura da autoridade de caso julgado.

19. A autoridade de caso julgado de sentença transitada, pode atuar independentemente dos requisitos da exceção de caso julgado, desde que, o objeto seja o mesmo.

20. Assim, a autoridade de caso julgado visa garantir a coerência e dignidade das decisões judiciais, de forma que o já decidido não pode ser contraditado ou apontado por alguma das partes em ação posterior, estando relacionada com a existência de relações entre ações, já não de identidade jurídica, mas de prejudicialidade entre ações.

21. Como refere o douto Acórdão do Supremo Tribunal Justiça, citado nestas alegações,” a autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de prejudicialidade entre objetos processuais.

22. É o que se verifica nos presentes autos, pois por força da sentença homologatória da desistência dos pedidos e extinção desses direitos de crédito, fica prejudicado o exercício da ação de prestação de contas.

23. A desistência dos pedidos do Autor na ação referida, fez desaparecer quaisquer reflexos patrimoniais decorrentes da administração das herdades pelo recorrente.

24. Assim por argumentos jurídicos diferentes dos analisados pelas instâncias, deverão proceder o abuso do direito e a autoridade do caso julgado, não havendo lugar a prestação de contas pelo recorrente».

Termos em que requer seja revogado o acórdão recorrido e a sua substituição por outro que absolva o réu dos pedidos de prestação de contas.

8. O autor respondeu, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.



9. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.



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II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber se:

1ª- a atuação do autor integra venire contra factum proprium;

2ª- a autoridade de caso julgado formado pela sentença homologatória da desistência dos pedidos proferida na ação nº 1157/… que correu termos no juízo central cível de ..., impede que na presente ação se aprecie e decida sobre a obrigação do réu de prestar contas ao autor. 



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


As Instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1º- AA, aqui Autor, nasceu a … .04.1959, no …, sendo filho de CC e de DD (cfr. assento de nascimento, junto a fls. 11).

2º- BB, aqui Réu, nasceu a … .12.1960, no …, sendo filho de CC e de DD ( cfr. assento de nascimento, junto a fls. 9 verso).

3º- Por escrito epigrafado “Procuração” lavrado no Cartório Notarial  ..., a 5.04.2002, CC e DD, residentes na ..., …, ..., declararam “constituem procurador com a faculdade de substabelecer, seu filho BB (…) a quem conferem os mais amplos poderes, para com livre e geral administração civil, praticar sem excepção, nem limitação alguma, todos os respectivos actos e contratos, em juízo e fora dele, requerendo, praticando e assinando tudo o que for próprio, preciso e conveniente, incluindo depósitos, constituídos ou a constituir, sua movimentação e levantamento, quitação e recibos de cheques e outros designadamente:

(…)

Que a presente procuração é irrevogável no interesse do mandatário, o qual poderá celebrar negócio consigo mesmo, pelo que não poderá ser revogada nos termos do nº 3 do artigo 265º, e não caduca por morte, interdição ou inabilitação dos outorgantes, nos termos do artigo 1175º, ambos do Código Civil”. (cfr.  Certidão notarial, junta a fls. 14 verso).

4º- CC faleceu a 26.12.2004, em ..., no estado de casado com DD (cfr. assento de óbito junto a fls. 13 verso)

5º- Correu termos pelo … Juízo do Tribunal Judicial…... os autos de inventário por óbito de CC, cujo cargo de cabeça de casal foi exercido por DD (cfr. documentos junto a fls. 42).

6º- DD faleceu a 19.09.2011, em ..., no estado de viúva de CC e com ultima residência habitual na Rua ..., …, …, ... ( cfr.  assento de óbito, junto a fls. 12 verso).

7º- Correu termos pelo juízo local ... sob o nº 1198/05… os autos de inventário nos quais foi proferida, a 9.10.2015, sentença homologatória da desistência da instância quanto á partilha do acervo hereditário de DD, apresentada por BB a 2.09.2015 e aceite por AA a 18.09.2015 ( cfr. sentença junta a fs. 54 verso).

8º- Correu termos pelo juízo local cível de ... sob o nº 3924/07… os autos  de inventário por óbito de EE e FF, avós e bisavós dos interessados, entre os quais os aqui Autor e Réu, os quais terminaram por transacção homologada por sentença datada de 14.12.2015 (cfr.  relação de bens, transacção e sentença, juntos a fls. 43 a 54)

9º- Conforme resulta da certidão predial, junta a fls. 18 verso, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 745/…, da freguesia de ..., o prédio denominado “Herdade ...”, sito em ..., com a área de 86,4 hectares, composto por 5 parcelas, sendo de terreno estéril, com dependência a parcela nº 1; de olival com solo subjacente, cultura arvense, a nº 2; de cultura arvense as parcelas nº 3, 4 e 6; de montado de sobro com solo subjacente, cultura arvense a nº 5, tem sobreiros dispersos e leito de curso de água e morada de casas para habitação; a confrontar a Norte com Herdade …; do Sul, Nascente e Poente com Herdade .... (Cfr. certidão predial, junta a fls. 18 verso)

10º- O direito de propriedade do referido prédio foi inscrito a favor do Autor e Réu, pela apresentação nº 6 de 12.03.1981 aí constando como causa “Sucessão com Adjudicação em Inventário” aberto por óbito de GG. (Cfr. certidão predial, junta a fls. 18 verso)

11º- Pela apresentação nº 94, de 24.03.2017 foi registada a aquisição a favor de HH casado com II “por compra” de ½ a BB. (Cfr. certidão predial, junta a fls. 18 verso)

12º- Pela apresentação nº 507, de 26.07.2018 foi registada a aquisição a favor de AA “por permuta” de ½ com HH. (Cfr. certidão predial, junta a fls. 18 verso)

13º- Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 575/…, da freguesia …., o prédio denominado “...” sito em ..., com a área de 32,74 hectares, composto por 5 parcelas – cultura arvense, montado de azinho, solo subjacente, cultura arvense, a confrontar do Norte com ..., do Nascente e Poente com ... e do Sul com JJ. (cfr. certidão predial, junta a fls. 20 verso e 78 verso)

14º- O direito de propriedade do referido prédio foi inscrito a favor do Autor e Réu, pela apresentação nº 6 de 17.09.1991, aí constando como causa “Divisão de Coisa Comum”. (cfr. certidão predial, junta a fls. 20 verso e 78 verso)

15º- Pela apresentação nº 94, de 24.03.2017 foi registada a aquisição a favor de HH casado com II “por compra” de ½ a BB. (cfr. certidão predial, junta a fls. 20 verso e 78 verso)

16º- Correu termos pelo juízo central cível de ... sob o nº 1157/17…, os autos de processo comum, em que era Autor AA e Réus BB, HH e mulher II tendo o Autor formulado os seguintes pedidos:

a) – declarado que o Autor é comproprietário, na proporção de metade dos prédios:

Herdade ..., prédio misto denominado “Herdade ...”, situado em ..., da freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob nº …45, da referida freguesia, com o registo de aquisição a seu favor nos termos da inscrição Ap. 6 de 1981.03.12, a parte urbana inscrita na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo 787, com o valor patrimonial de IMT de 6.340,00 (e declarado de 6.347,00 €) e a parte rústica inscrita na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o artigo 6, secção EE, com o valor patrimonial de IMT de 40.083,66 €;

Herdade do ..., prédio rústico denominado “...”, situado em ..., da freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº …75, da referida freguesia, com o registo de aquisição a seu favor nos termos da inscrição Ap. 6 de 1991.09.17, inscrito na respectiva matriz da referida freguesia sob o artigo 4, secção I, com o valor patrimonial de IMT de 13.621,32 €.

b) – declarado que o Autor é, ainda, titular de um quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de LL, falecida a 14 de Março de 1980;

c) – declarado o direito de preferência do Autor na compra realizada pelo 2º Réu ao 1º Réu de metade indivisa do prédio misto denominado “Herdade ...”, situado em ..., da freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob nº …45, da referida freguesia, com o registo de aquisição a seu favor nos termos da inscrição Ap. 6 de 1981.03.12, a parte urbana inscrita na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo 787, com o valor patrimonial de IMT de 6.349,00 (e declarado de 6.347,00 €) e a parte rústica inscrita na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o artigo 6, secção EE, com o valor patrimonial de IMT de 40.083,66 € (e declarado de 180.060,00 €), realizada pela escritura de compra e venda celebrada em 22 de Março de 2017, no Cartório Notarial do Dr. MM, sito na Rua ..., em …, pelo valor declarado de 194.400,00 €, declarando-se consequentemente o Autor substituído ao 2º Réu como comprador daquele direito e ordenando-se o cancelamento do registo a favor do 2º Réu e o registo de aquisição a favor do autor, com todas as consequências legais;

d) – declarado que o preço pago por essa compra pelo 2º Réu ao primeiro foi inferior ao preço declarado na escritura, e não superior a 120.000,00 €;

e) – ordenado que, do montante de 194.400,00 €, depositado pelo Autor à ordem do Tribunal, nos termos do artigo 1410º, nº 1, do Código Civil, a titulo de preço devido, acrescido dos inerentes custos e encargos, nomeadamente, do custo da escritura e do respectivo registo (de valor não superior a 796,84 €), bem como dos encargos fiscais devidos a titulo de IMT e I (no valor apurado de 11.021,60 €), seja entregue ao 2º Réu, comprador substituído pelo autor, o montante que for apurado ter sido efetivamente por ele pago como preço dessa compra, considerando-se ainda os inerentes custos e encargos com a escritura, registo e pagamento das obrigações fiscais, e, caso o preço que o tribunal apurar seja inferior ao montante depositado seja ordenada a restituição desse excesso ao autor;

f) – declarado que os preços efectivamente pagos pelo 2º Réu ao 1º Réu, a titulo de compra da metade do prédio rústico denominado “...”, situado em ..., da freguesia e concelho  ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº …75, da referida freguesia, com o registo de aquisição a seu favor nos termos da inscrição Ap. 6 de 1991.09.17, inscrito na respectiva matriz da referida freguesia sob o artigo 4, secção I, com o valor patrimonial de IMT de  13.621,32 €, e da cessão de quinhão hereditário, realizada em 4 de Abril de 2017, pela qual o dito 1º réu declarou que vendeu ao segundo réu o seu quinhão hereditário na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de LL, falecida a 24 de Março de 1980, não foi o preço declarado em tais escrituras (53.202,50 € e 61.303,13 €), mas sim montantes inferiores, nunca mais de 30.000,00 € e 35.000,00 €, respetivamente, que o Tribunal irá apurar;

g) declarado que o Autor tem o direito de exercer, dentro do prazo previsto no nº 1, do artigo 1410º, do Código Civil, contado a partir do apuramento dos preços pelo Tribunal – os quais constituem elemento essencial das respectivas alienações – o direito de preferência sobre tais vendas, de modo a poder adquirir, por essa via, a propriedade dos direitos vendidos pelo 1º Réu aos 2ºs, por essas escrituras, ou seja, da metade indivisa da Herdade do ..., acima identificada, e o quinhão hereditário pertencente ao 1º Réu na herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito de LL, de que o autor é titular do restante quinhão hereditário;

h) declarar-se anulados os contratos celebrados entre o 1º Réu e o 2º Réu para ocupação das referidas herdades de que o Autor é comproprietário, incluindo a venda das respectivas pastagens, condenando-se os segundos Réus a desocupá-las e a deixá-las livres de pessoas e coisas;

i) condenar-se o 1º Réu, solidariamente com os 2ºs Réus, a entregar ao Autor metade de todos os valores que lhe foram pagos pelos 2ºs como contrapartida da ocupação das herdades e da venda das respectivas pastagens, valor a liquidar em incidente posterior, por tais pagamentos ainda não terem cessado e se não poder neste momento determinar o seu montante;

j) - condenar-se solidariamente os Réus a pagar ao Autor a indemnização que se vier a liquidar em incidente posterior, equivalente a metade dos prejuízos causados nas herdades, nas casas e mais construções nelas existentes, incluindo vedações, caminhos interiores, sistemas de rega e de escoamento de águas bem como pela perda de produtividade dos olivais e sobreiros que nelas se encontram implantados, e correspondente aos valores que vierem a ser necessários para recuperar os estragos causados pela ocupação e exploração das herdades pelos Réus;

l) – condenados os Réus a indemnizar o Autor pelo valor de metade do valor da cortiça que o mesmo colheu e das azeitonas que os olivais das herdades produziram ou podiam ter produzido enquanto se mantiver a sua ocupação pelos Réus, bem como pela diferença entre o valor pago pelos segundos Réus ao primeiro pelas pastagens das herdades desde 2004, e o seu valor real, que era acentuadamente superior, sendo os valores de tais indemnizações a liquidar também em incidente ulterior à sentença;

m) declarar-se anulados os contratos celebrados entre o primeiro Réu e o segundo para ocupação das referidas herdades de que o autor é comproprietário, incluindo a vendas das respectivas pastagens, condenando-se os segundos réus a desocupá-las e a deixá-las livres de pessoas e coisas, designadamente do gado que lá mantêm, abstendo-se de praticar quaisquer actos que impeçam, dificultem ou limitem de algum modo o exercício do direito de compropriedade do autor;

n) condenar-se os Réus a pagar solidariamente ao Autor metade do valor dos subsídios que tenham recebido de organismos e relativos à ocupação e exploração das ditas herdades, valor esse a determinar também em incidente posterior de liquidação. (cfr. peças processuais juntas a fls. 56 a 118).

17º- Por sentença datada de 18.12.2018 foi homologada a desistência dos pedidos formulados pelo Autor contra os Réus (cfr. peças processuais juntas a fls. 56 a 118).



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3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente, com as questões de saber se a atuação do autor integra venire contra factum proprium e se a  autoridade de caso julgado formado pela sentença homologatória da desistência dos pedidos proferida  na ação  nº 1157/17… que correu termos no juízo central cível ...,  impede  que na presente  ação se aprecie e decida sobre a   obrigação do réu de  prestar contas ao autor. 


3.2.1. Abuso de direito

Sustenta o réu/recorrente que o facto  de terem decorridos  12 anos sobre a partilha da herança do pai de ambos e 6 anos sobre a desistência  da instância por parte do autor do inventário para  partilha da mãe de ambos sem que o autor tivesse requerido, em algum destes  processos, que o réu/procurador prestasse contas e sem ter questionado eventuais inoficiosidades, por excesso de legítima do réu,  criou nele a convicção de que as questões relacionadas  com a herança dos pais estavam resolvidas, pelo que a instauração pelo autor da presente ação para prestação de contas integra abuso de direito na modalidade de venire  contra factum proprium.


Vejamos.

A proibição do " venire contra factum proprium", ou do comportamento contraditório enquadra-se na figura do abuso de direito prevista no art. 334°, do C. Civil.

Trata-se de uma aplicação do princípio da proteção da confiança, que, na expressão de Baptista Machado[2], tem como ponto de partida  « uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira» [3].

Quer a doutrina[4], quer a jurisprudência[5] aceitam serem pressupostos do abuso de direito, na invocada modalidade do venire contra factum proprium:

i) a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança;

ii) que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a atual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente;

iii) que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, ou seja, que tenha confiado na situação criada pelo ato anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente;

iv) que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma atividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa atividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente;

v) que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjetiva objetivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objetiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano.

E, dentro desta linha de orientação, sublinham a necessidade de todos estes pressupostos serem «globalmente ponderados, em concreto, para se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo»[6].

Em suma, podemos dizer que o abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, tem por base a existência de uma situação objetiva de confiança, cuja relevância é aferida  pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante,  e de um elemento subjetivo, ou seja, a criação, na pessoa do confiante, de uma  confiança legítima e  justificada.

Ora, no caso concreto dos autos, nada disto se verifica uma vez  que a simples circunstância do ora autor não ter requerido a prestação de contas por parte do ora réu no âmbito  do  processo de inventário instaurado para partilha dos bens da herança aberta por óbito do pai de ambos e de o ora autor ter desistido  da instância  no processo de inventário por ele instaurado para partilha dos bens da herança da mãe deles não assume qualquer relevo, no sentido de impor ao mesmo, à luz dos ditames da boa fé e da confiança, o dever de abster-se de instaurar a presente ação para prestação de contas. 

É que o autor instaurou a presente ação ao abrigo do disposto no art. 941º, do CPC, que estipula que «A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se».

Significa isto que, no caso dos atos, o direito de exigir a prestação de contas está diretamente relacionado com a qualidade de administrador em que o réu se encontrava investido relativamente a bens da herança aberta óbito dos seus pais e a bens  dos quais o autor e  réu são comproprietários, o que, por si só, justifica  a instauração da ação de prestação de conta, que não está, por isso, dependente  do processo de inventário.

Trata-se de uma obrigação centrada na obrigação de informação prevista no art. 573º, do C. Civil.  

Na verdade, já ensinava Alberto dos Reis que « Pode formular-se este princípio geral: quem administra bens alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses»[7], afirmando ainda que « a prestação de contas pressupõe que a pessoa a quem são pedidas as contas exerceu gerência ou administração de interesses da pessoa que as pede »[8] e que o fim  desta ação é o de estabelecer o montante das receitas  cobradas e das despesas efetuadas de modo a obter um saldo e determinar se uma situação é de credor ou de devedor do “titular  dos interesses geridos” [9]  .  

E este mesmo entendimento tem sido seguido pacificamente pela jurisprudência,  como se constata, entre muitos outros, dos Acórdãos do STJ, de 14.01.1975[10] e de 29.10.2002 ( processo 03B824)[11], no quais se afirma, respetivamente, que o que justifica  o uso da ação de prestação de contas « é a unilateralidade do dever de uma das partes  prestar contas à outra, por imperativo da lei ou disposição do contrato relativamente a bens  ou interesses que lhe foram confiados», e que « há lugar á prestação de contas sempre que alguém administra interesses alheios (ainda que só em parte)».

Mas se assim é e consabido que no processo de inventário apenas se consideram definitivamente resolvidas as que questões neles decididas, não vislumbramos que a  realização  da partilha da herança aberta por óbito do pai do autor e do réu e/ou a desistência  da instância levada a cabo pelo ora autor  no processo de inventário por ele instaurado para partilha dos bens da herança aberta por óbito da  mãe deles, possa  ter criado no réu criar uma legítima expetativa de que  o autor não instauraria a presente ação.

Desde logo porque, no caso dos autos, a prestação de contas respeita à administração exercida pelo réu, desde 5.02.2002 até 24.03.2017, por força do mandato que lhe foi conferido pela procuração outorgada pelos seus pais, quer relativamente a bens do património comum destes, a bens próprios de cada um deles e dos bens que tenham integrado as respetivas heranças,  quer relativamente às Herdades ... e do ... de que autor e réu são comproprietários, abarcando, por isso, não só um período de tempo que vai muito para além do termo do processo de inventário instaurado por óbito de CC, pai do autor e réu, como bens que não fazem parte da herança de seus pais.

Acresce que, mesmo após a realização da partilha da herança aberta por óbito do pai do autor e do réu e da desistência da instância no processo de inventário que o autor instaurou por óbito da mãe deles, o autor sempre demonstrou estar em desacordo com a administração exercida pelo réu por força do mandato que lhe foi conferido pela procuração outorgada pelos seus pais, quer relativamente a bens do património comum destes, quer relativamente às Herdades ... e do ... de que autor e réu são comproprietários, tendo instaurado contra o réu, em 2017, quando haviam decorrido apenas cerca de 2 anos sobre a prolação da sentença homologatória da sobredita desistência da instância ( 09.10.2015),  a ação  nº 1157/.... e, em 2019, a presente ação.

Mas se assim é, ou seja, se existe, desde 2002, um continuado contencioso entre as partes não se descortina que a atuação do autor possa ter criado no réu uma confiança, legítima e justificada, de que aquele não instauraria a presente ação, de nada valendo a convicção por este formada no sentido de que todas as questões relacionadas com a administração levada a cabo pelo réu ficaram resolvidas com a realização da partilha da herança aberta por óbito do seu pai e com a desistência da instância ocorrida no processo de inventário instaurado por óbito da mãe deles.

Concluímos, assim, não integrar a autuação do autor abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.


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3.2.2. Autoridade de caso julgado


Sustenta o recorrente que, tendo o autor desistido dos pedidos  por ele  formulados na alíneas i), m), k) e j) da petição inicial da ação nº 1157/…, ou seja, dos pedidos de condenação do mesmo a entregar metade dos valores pela venda das pastagens, a pagar metade do valor dos subsídios do Ministério da Agricultura, a indemnizar o autor pelo valor de metade do valor da cortiça e das azeitonas e a pagar indemnização equivalente, equivalente a metade dos prejuízos pela má gestão, a autoridade de caso julgado formada pela sentença homologatória dessa desistência, não permite  que se venha, agora, decidir nesta ação que o réu está obrigado a prestar contas ao autor, dado existir uma relação de prejudicialidade entre estas duas ações.

E porque as instâncias analisaram esta questão apenas à luz da exceção de caso julgado, tendo o acórdão recorrido decidido “inexistir uma coincidência de pedidos entre as duas ações, o que impede o reconhecimento do efeito de caso julgado”, importa, agora, analisá-la à luz da figura da autoridade de caso julgado.


Que dizer?


Desde logo, que a exceção de caso julgado e a autoridade de caso julgado não são duas figuras distintas, mas antes dois efeitos distintos da mesma realidade jurídica – o caso julgado material (cfr. arts. 619º e 621º do CPC).

Todavia, enquanto que a exceção de caso julgado comporta um efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, obstando a nova decisão de mérito da causa e impondo ao juiz a absolvição do réu da instância (cfr. art. 576º, nº 2 do CPC), a autoridade do caso julgado tem, antes, o efeito positivo de impor a primeira decisão à segunda decisão de mérito[12].

Dito de outro modo e nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa[13], a exceção de caso julgado tem por finalidade «evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente ( Zweierlei), mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica ( Zweimal) ».

 Diversamente, «quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão antecedente».

Assim sendo e porque o recorrente não questiona a inexistência da exceção de caso julgado, centraremos a nossa atenção apenas na vertente da autoridade de caso julgado formado pela sentença homologatória da desistência dos pedidos proferida na dita ação nº 1157/17….

Vejamos, então, qual o alcance do caso julgado formado por esta decisão.

Dispõe o art. 283º, nº 1, do CPC, que «O autor pode em qualquer altura, desistir do pedido ou de parte dele (…)».

Por seu turno, estabelece o art. 285º, nº 1, do mesmo Código que «a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer », pelo que verificada, pelo juiz, a validade do ato, nos termos do art. 290º, nºs 1 a 3, do CPC, a sentença homologatória dessa desistência, faz extinguir a situação controvertida « precludindo a questão da sua existência e conformação anteriores»[14].

Significa isto que, transitada em julgado a decisão que julgou válida a desistência, a composição do litígio ficou definitivamente resolvida, precludindo o direito que o autor pretendia fazer valer.

E ainda que uma tal decisão não aplique o direito aos factos, a verdade é que a mesma não deixa de ser uma sentença de mérito, na medida em que julga extinto o direito que o autor pretendia fazer valer contra o réu, constituindo, enquanto tal, efeito de caso julgado material[15].

Aliás, este é o sentido que se retira da decisão do Assento do STJ, de  15.06.1988, publicado no DR, Iª Série, de 01.08.1988 (hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência – cfr. artº 17, nº 2, do acima citado DL nº 329-A/95), onde se concluiu que « O desistente do pedido de simples apreciação prescinde do conhecimento do respectivo direito e, por isso, o caso julgado impedi-lo-á de estruturar nele um pedido de condenação ».

Podemos, assim, concluir que uma sentença judicial homologatória de uma desistência do pedido, devidamente transitada, constitui caso julgado material, isto é, produz eficácia de caso julgado material em relação ao direito que na respetiva ação o desistente pretendia fazer valer, impedindo o autor de, com base na relação jurídica que pelo mesmo ali foi configurada, vir a formular os mesmos pedidos.

Daí que, tendo o ora autor  desistido de todos os pedidos  por ele  formulados na ação nº 1157/..., nomeadamente dos  pedidos de condenação  do ora réu a entregar metade dos valores pela venda das pastagens, a pagar metade do valor dos subsídios do Ministério da Agricultura,  a indemnizar o  autor pelo valor de metade do valor da cortiça e das azeitonas e a  pagar indemnização equivalente a metade dos prejuízos pela má gestão, a sentença homologatória ali proferida, faz operar, fora daquele processo, o efeito de caso julgado material, obstando a que aqueles mesmos pedidos venham a ser apreciados  em nova ação com base no direito de cujo conhecimento o autor, com tal desistência,  prescindiu.

Ora, analisando neste contexto o caso dos autos, impõe-se, desde logo, referir, tal como considerou o acórdão recorrido, que inexiste, de facto, identidade dos pedidos formulados numa e noutra ação.

É que, enquanto na presente  ação, o autor pede a prestação de contas, ou seja, a discriminação das receitas e despesas realizadas de modo a obter um saldo e determinar se uma situação é de credor ou de devedor do titular dos bens ou interesses geridos,  na sobredita ação nº 1157/... o autor pediu a  condenação do réu no pagamento  das indicadas quantias, correspondentes a metade do valor das vendas realizadas, dos subsídios recebidos e dos prejuízos decorrentes da má administração do réu relativamente aos bens de que era herdeiro aos bens de que era comproprietários juntamente  com o réu.

E se é certo, que o pedido de prestação de contas envolve necessariamente um pedido de condenação, certo é também que este pedido reporta-se apenas ao pagamento do saldo que vier a ser apurado[16], estando fora do âmbito da presente ação   a responsabilização do administrador por eventual má administração[17].

Mas sendo assim, como é de facto, evidente se torna que o caso julgado formado pela sentença homologatória de uma desistência dos pedidos proferida na ação nº 1157/... que correu termos no juízo central cível de ..., não impede que na presente ação se aprecie e decida sobre a obrigação do réu de prestar contas ao autor, inexistindo qualquer relação de prejudicialidade entre a sobredita  ação e a presente ação.


Improcedem, por isso, todas as conclusões do recorrente.



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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Notifique.


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Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira que compõem este coletivo.

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Supremo Tribunal de Justiça, 8 de setembro de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Cfr. o estudo Tutela da confiança e “venire contra factum proprium”, in “Obra Dispersa”, vol. I, pág. 415 e ss.
[3] In “Obra Dispersa”, vol. I, pág. 415 e ss.
[4] Cfr, entre outros, Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil”, 1984, pág. 752 e segs.
[5] Conforme se vê, entre muitos outros, dos Acórdãos do STJ, de 12.11.2013 (processo nº 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1) e de 19.11.2015 (processo nº 884/12.0TVLSB.L1.S1), ambos acessíveis in www.dgsi/stj.pt.
[6] Cfr. citados Acórdãos do STJ, de 12.11.2013 (processo nº 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1) e de 19.11.2015 ( processo  nº 884/12.0TVLSB.L1.S1).
[7] In “Processos Especiais”, Vol. I, pág. 302.
[8] In RLJ, ano 82º, pág. 413.
[9] In RLJ, ano 74, pág. 46.
[10] In BMJ, nº 243.
[11] Acessível in www.dgs/stj.pt.
[12] Neste sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 23.01.2014 (revista nº 3076/03.5TVPRT.P1.S1)
[13] In, “Objecto da Sentença e Caso Julgado Material”, publicado no BMJ, nº 325, págs. 171ª 179.
[14] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. I, 3ª ed., págs. 559 -562.
[15] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. I, 3ª ed., pág.571 e in “Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais”, págs. 34-37, 125-128.
[16] Neste sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 30.04.2003 (processo nº 03B824), acessível in www.dgsi/stj.pt.
[17] Neste sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 03.04.2003 (processo nº 03A073), acessível in www.dgsi/stj.pt.