Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
026991
Nº Convencional: JSTJ00007429
Relator: CRUZ ALVURA
Descritores: DOCUMENTO
DESCAMINHO
FURTO DE DOCUMENTO
PECULATO
COMPARTICIPAÇÃO
AUTORIA MATERIAL
AUTORIA MORAL
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ195112190269913
Data do Acordão: 12/19/1951
Votação: MAIORIA COM 3 VOT VENC
Referência de Publicação: DG IªS 07-01-1952; BMJ N28 ANO1952 PAG164
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 3/1951
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL / CRIM C/ESTADO / CRIM C/PATRIMONIO.
Legislação Nacional: CP886 ARTIGO 1 ARTIGO 19 ARTIGO 20 ARTIGO 21 ARTIGO 22 ARTIGO 23 ARTIGO 27 ARTIGO 31
ARTIGO 32 ARTIGO 40 N2 ARTIGO 52 ARTIGO 312 PAR1 ARTIGO 313 PAR3 ARTIGO 421 ARTIGO 424.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1940/10/26 IN BOL OF N2 PAG59.
ACÓRDÃO STJ DE 1949/10/26 IN BMJ N15 PAG185.
Sumário :
As qualidades exigidas nas incriminações dos artigos 312 e 313 do Codigo Penal (de 1886) são elementos constitutivos dos respectivos crimes. As sanções desses artigos são aplicaveis tanto aos autores materiais como aos autores morais.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em sessão plenaria, os do Supremo Tribunal de Justiça:

No acordão de 26 de Outubro de 1949, a folhas 303, publicado a paginas 185 do n. 15 do Boletim do Ministerio da Justiça, foi mantida a pronuncia de A, B, C e D, mas alterou-se a incriminação dos factos indiciados e os arguidos ficaram pronunciados, o Hasse como autor material de dois crimes previstos e punidos pelo artigo 312 do Codigo Penal e mais dois pelo artigo 318 desse Codigo; o Pinto da Costa como autor moral daqueles dois crimes do artigo 312 e autor material de dois crimes previstos e punidos pelo artigo 321 do mesmo Codigo; o Costa Ribeiro como autor moral dum desses crimes do artigo 312 e dum dos do artigo 321 e autor material dum crime previsto pelo dito artigo 321 mas punido pelo seu paragrafo unico, e o D como autor moral dum crime do artigo 312 e autor material dum do paragrafo unico do artigo 321.


Os factos assim incriminados foram: o A e o B terem combinado pedir a empresas comerciais e industriais contra que houvesse processos por delitos anti-economicos na Intendencia-Geral dos Abastecimentos, da qual o primeiro era funcionario, determinadas quantias, mediante o compromisso de fazer desaparecer esses processos, quantias que seriam repartidas pelos dois; o B, que se encarregara de falar com os interessados, haver procurado o C, socio gerente de "E, Limitada", da cidade de Guimarães e ter-lhe prometido fazer desaparecer, a troco de certa quantia, o processo que, na Intendencia, pendia contra esta firma; ter o C acedido a proposta e, em Setembro de 1947 e na residencia do segundo arguido, depois de esse processo ser destruido pelo A na presença do B e do C, ter este entregue ao Hasse a quantia de 15000 escudos; ter o mesmo C pedido aos dois primeiros arguidos para destruirem um outro processo, pendente na Intendencia contra "Antonio da Costa Guimarães, Filho & Companhia, tambem de Guimarães, de que o quarto arguido era socio gerente e, depois de o B ter falado com os C e D e dito a este que viesse a Lisboa ultimar as negociações para o descaminho do processo, ter esse arguido D vindo em Outubro desse ano a esta cidade e entregue ao Hasse 75000 escudos, a seguir a estes dois arguidos haverem rasgado este processo, que, como o relativo a firma "Teixeira de Abreu & Companhia, Limitada", estava confiado a guarda do terceiro oficial A.


O D recorreu para o Tribunal Pleno daquele acordão de folhas 303, porque, enquanto pronunciou esse arguido como incurso na sanção do artigo 312, julgou em oposição da doutrina do acordão deste mesmo Tribunal, de 26 de Outubro de 1940, publicado no Boletim Oficial do Ministerio da Justiça, ano I, n. 2, pagina 59.


Verificada pela Secção Criminal a alegada oposição de doutrina, quanto a comunicabilidade da circunstancia derivada da qualidade de funcionario publico do autor material, alegaram o recorrente De o Ministerio Publico. O recorrente alega que so podia ser pronunciado, nos termos em que foi pela Relação, como autor moral do crime do artigo 424, paragrafos
2 e 4 daquele codigo, visto o evento ser o mesmo nessa incriminação e na do artigo 312 e a qualidade de empregado publico exigida por esta disposição não ser elemento de facto tipico mas simples circunstancia inerente ao agente e assim incomunicavel por força do artigo 31 do mesmo codigo, sem possibilidade de ele, autor moral, ser atingido pela agravação que tal circunstancia traz ao facto delituoso.


O Ministerio Publico entende que a autoria moral tem estrutura diferente da autoria material, não necessitando o autor moral de possuir os requisitos pessoais do autor material; que esses requisitos podem consistir em simples qualidades pessoais e influir so na responsabilidade criminal e na aplicação da pena e isso em todas as infracções ou podem consistir na "posição" pessoal do agente e influir na modificação do crime e isto somente em determinadas infracções; que se a posição do agente e elemento constitutivo do crime, e evidente que respeita ao facto mas ainda que seja so elemento modificativo tambem diz respeito ao facto; que no crime do artigo 312, o requisito ai exigido ao autor material representa a posição do agente - empregado publico - em relação ao titular do direito violado - o Estado - e aos interesses protegidos, e que, assim, deve ser negado provimento ao recurso e tirar-se assento no sentido do acordão recorrido.
Ja quando o processo tinha os vistos para este julgamento, veio o recorrente juntar um parecer juridico.


O acordão cuja doutrina se contrapõe a do recorrido tratou do crime de peculato previsto no artigo 313 daquele codigo e, assim, diverso do dos autos. Mas, como esse acordão alterou a incriminação do autor moral e do cumplice do facto criminoso para responderem não por esse crime de peculato mas pelo do artigo 421 do mesmo diploma legal, por faltar a estes agentes a qualidade ou circunstancia pessoal de funcionario publico que determinava a incriminação do autor material pelo dito artigo 313, a questão do alcance de tal elemento apreciada e decidida nos dois acordãos, quanto a crimes de empregados publicos no exercicio das suas funções e de furto, foi a mesma resolvida em sentidos opostos.


Assim e porque não ha duvidas sobre os outros pressupostos legais para a uniformização da jurisprudencia cumpre decidir o recurso.


As normas incriminadoras, tendentes a defesa da sociedade, dirigem-se a todos em geral. Desde que os factos declarados puniveis se deem, todos os seus agentes, em que não concorrer alguma circunstancia derimente de responsabilidade criminal, tem obrigação de reparar o dano causado na ordem moral da sociedade, cumprindo a pena estabelecida na lei (artigo 1, 27 e 52 do Codigo Penal) e agentes são não so os mencionados no livro segundo desse Codigo mas todos os referidos nos seus artigos 19 a 23.
Assim e porque não ha qualquer preceito ou principio que dispense dessa regra os crimes de que tratam os dois acordãos, não pode duvidar-se da possibilidade de comparticipação em tais delitos.


Esses crimes, de descaminho de papeis confiados em razão de emprego publico e de peculato, afectam não so o interesse patrimonial do Estado mas tambem o da fidelidade dos seus empregados e ordem do serviço publico. Esses dois interesses e que são o objecto complexo da tutela penal constante de cada um dos referidos artigos 312 e 313, do titulo - Dos crimes contra a ordem e tranquilidade publica. Enquanto essas incriminações protegem esse interesse complexo, os artigos 421 e 424 so atendem a propriedade, ao interesse patrimonial. E que a protecção da função publica e caracteristica daqueles crimes ve-se claramente dos paragrafos 1 do artigo 312 e 3 do artigo 313, que dispensaram a qualidade de empregado publico para as respectivas incriminações.
Os factos prevenidos nestes artigos tem gravidade propria, pela ofensa a honorabilidade, prestigio e autoridade naturais do exercicio da função publica.
E são estes interesses da função, da ordem publica, que preponderam nos interesses visados nessas incriminações e, assim, sobre o patrimonial.
A qualidade de empregado publico dum dos agentes desses delitos corresponde a estrutura destes e aos interesses especiais protegidos pelas respectivas normas, e essa qualidade ou posição pessoal e requisito elementar ou constitutivo dos factos tipicos incriminados e não um elemento circunstancial, acessorio dessas infracções (artigo 40, n. 2, do Codigo Penal).


E, consequentemente, nesses crimes e quanto a referida qualidade, não pode haver lugar a aplicação do disposto nos artigos 31 e 32 desse Codigo. Qualquer que seja a melhor doutrina sobre a natureza da comparticipação criminosa, todos os que conscientemente concorram para o cometimento dessas unidades criminais ou a elas adiram, nos termos dos artigos 20 a 23 do mesmo Codigo, são seus autores, cumplices ou encobridores, conforme as respectivas actividades, desde que os mesmos crimes se deem.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e formula-se o seguinte assento:
"As qualidades exigidas nas incriminações dos artigos
312 e 313 do Codigo Penal são elementos constitutivos dos respectivos crimes. As sanções desses artigos são aplicaveis tanto aos autores materiais como aos autores morais".


Imposto de justiça, pelo recorrente, 1000 escudos.


Lisboa, 19 de Dezembro de 1951

A. Cruz Alvura (Relator) - Bordalo e Sa - Julio de Lemos -
- Piedade Rebelo - Campelo de Andrade - Jaime de Almeida Ribeiro - A. Bartolo - Raul Duque - Artur A. Ribeiro -
- Lencastre da Veiga (Vencido: entendi que a qualidade de funcionario publico, por ser inerente a pessoa, e, em quaisquer condições, incomunicavel consoante o artigo 31 do Codigo Penal; alem disso, e a orientação que melhor se coaduna com o criterio da individualização da pena e o caracter inteiramente pessoal da culpabilidade e da perigosidade) - Rocha Ferreira (Vencido pelos mesmos fundamentos)- Roberto Martins (Vencido pelos mesmos fundamentos) - Jose de Abreu Coutinho (Vencido pelas mesmas razões). Tem voto de conformidade dos excelentissimos Juizes Conselheiros Senhores Pedro de Albuquerque e Correia Marques, que não assinam, por não estarem presentes - A. Cruz Alvura.