Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
503/16.5T8STB.E1.S1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
INTERPRETAÇÃO DA LEI
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
INCUMPRIMENTO
TRADIÇÃO DA COISA
DIREITO DE SEQUELA
Data do Acordão: 11/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO / CASOS ESPECIAIS.
Doutrina:
- ANTUNES VARELA, Sobre o Contrato-Promessa, 2.ª edição, 1989, p. 115 e 116;
- J. CALVÃO DA SILVA, Sinal e Contrato-Promessa, 13.ª edição, 2010, p. 192;
- L. CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 4.ª edição, reimpressão, 2004, p. 65;
- L. MENEZES LEITÃO, Garantias das Obrigações, 2.ª edição, 2008, p. 240.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 755.º, N.º 1, ALÍNEA F).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2014, DE 20-03-2014, IN DR, 1.ª SÉRIE, DE 19-05-2014;
- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2019, DE 12-02-2019, IN DR, 1.ª SÉRIE, DE 25-07-2019;
- DE 29-07-2016, PROCESSO N.º 6193/13.0TBBRG-B.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 27-04-2017, PROCESSOS N.º 44/14.5T8VIS-B.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-09-2018, PROCESSO N.º 25261/11.6T2SNT-D.L1.S2, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Não se inserindo o contrato-promessa resolvido no âmbito da insolvência, não lhe pode ser aplicável a doutrina específica do acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 20 de março, e, por isso, a qualidade de consumidor, quanto ao promitente-comprador, não é exigível para o reconhecimento do direito de retenção.

II. O direito de retenção– alínea f) do n.º 1 do art. 755.º do Código Civil –  destina-se ao beneficiário de qualquer contrato-promessa com traditio rei.

III. Para o reconhecimento dodireito de retenção, nesses termos, não se exige que o beneficiário tenha a qualidade de consumidor.

IV. Por efeito da sequela, característica do direito real, o direito de propriedade de terceiro é ineficaz em relação ao titular do direito de retenção, anteriormente constituído.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO


AA e mulher, BB, instauraram, em 25 de janeiro de 2016, no Juízo Central Cível de …, Comarca de …, contra Construções CC, Unipessoal, Lda., e Banco DD, S.A. (que, entretanto, se incorporou no Banco EE, S.A.), ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que fossem declarados resolvidos os contratos-promessa de compra e venda, celebrados em 1 de junho de 2006 e 22 de agosto de 2006, tendo por objeto as frações “L” e “M” do prédio descrito, sob o n.º 5…7 (…), na Conservatória do Registo Predial de …; a R. fosse condenada a restituir-lhes a quantia de € 120 000,00, acrescida de juros de mora contados à taxa legal até efetivo e integral pagamento; fosse reconhecida a sua posse sobre a fração “L”, desde 10 de janeiro de 2007; fosse reconhecido o seu direito de retenção sobre a mesma fração até efetivo e integral pagamento do crédito de € 130 000,00; o R. fosse condenado a restituir-lhes a posse do imóvel, com todos os materiais, utensílios e equipamentos, sob pena de incorrer numa penalização de € 250,00, por cada dia de atraso, bem como ainda a pagar-lhes uma indemnização, pela privação do imóvel e acesso aos bens e equipamentos que se encontram no seu interior, a liquidar em execução de sentença.


Para tanto, alegaram em síntese, que, com a celebração dos contratos-promessa, entregaram à R. a quantia de € 60 000,00, a título de sinal, e houve tradição da fração “L”; por escritura de 20 de outubro de 2017, a R. vendeu a totalidade do prédio, com as frações autónomas, ao R., credor hipotecário; realizaram várias obras na fração “L” e nela instalaram equipamentos, tendo em vista um estabelecimento de snack-bar e restaurante, despendendo a quantia de € 94 255,20; em novembro de 2015, o R. mudou as fechaduras da fração “L”, violando o seu direito de retenção e causando-lhes prejuízos.

Citados os Réus, contestou apenas o Réu, por exceção, arguindo designadamente a ineptidão da petição inicial, e por impugnação, e concluindo pela sua absolvição do pedido.

Os Autores responderam à matéria de exceção, no sentido da sua improcedência.

Liquidada e extinta a Ré, foi citado o seu único sócio, FF, o qual não deduziu oposição.

Na audiência prévia, foi proferido o despacho saneador, no qual se julgou improcedente a ineptidão da petição inicial, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

A requerimento do R., foi chamada a intervir, como parte principal, GG - Consultores de Gestão, Lda, a qual, depois de citada, declarou aderir aos articulados apresentados pelo R.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferido, em 21 de junho de 2018,sentença, que, julgando a ação parcialmente procedente, declarou resolvidos os contratos-promessa, por incumprimento da Ré; condenou a Ré, na pessoa de FF, a restituir aos Autores a quantia de € 120 000,00, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento; reconheceu a posse dos Autores sobre a fração “L”, desde 10 de janeiro de 2017; reconheceu aos Autores o direito de retenção sobre a fração “L”, até efetivo e integral pagamento da quantia de € 70 000,00 e das despesas efetuadas no imóvel, a liquidar em execução de sentença; condenou a Interveniente Principal a restituir aos Autores a posse do imóvel, com todos os materiais, utensílios e equipamentos, sob pena de incorrer numa penalização de € 250,00, por cada dia de atraso; e condenou o Réu a pagar aos Autores a indemnização, pelas despesas realizadas na fração “L”, a liquidar em execução de sentença.


Inconformados, o Réu e a Interveniente apelaram para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 2 de maio de 2019, julgou improcedente o recurso, mantendo a sentença.


Inconformados, o Réu e a Interveniente interpuseramentão revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiçae, tendo alegado, formularam essencialmente as conclusões:

a) No âmbito da revista será mister definir-se se a qualidade de consumidor final se aplica restritivamente ao processo de insolvência ou, se ao contrário, e atendendo ao princípio de unidade do sistema jurídico, se deverá aplicar a todo e qualquer processo, independentemente da sua natureza.

b) No caso concreto, não estamos perante consumidores, porquanto o que os AA. pretendem através do imóvel é única e exclusivamente a obtenção do lucro.

c) A ratio do AUJ n.º 4/2014 reside na proteção ao direito de habitação e ficam excluídos deste entendimento todos os promitentes-compradores comerciantes, como é o caso dos AA.

d) O legislador não pode criar normas que sacrificam, de forma injusta e ilegítima, os interesses patrimoniais de terceiros não intervenientes e completamente alheios ao contrato-promessa que se discute e que concorrem para que ónus ocultos afetem a posição jurídica do sujeito que registou o seu direito.

e) A Interveniente, proprietária da fração, vê frustrada a confiança no comércio jurídico imobiliário, no sentido de que o reconhecimento do direito de retenção, tal como no caso, frusta a legítima confiança que o proprietário deposita no Estado, enquanto garante dos seus direitos fundamentais.

f) Aos AA. não pode ser reconhecido o direito de retenção, nos termos da alínea f), n.º 1, do art. 755.º do CC, sem que lhes assista a qualidade de consumidores.

g) O facto de os AA. não serem consumidores enferma de forma inderrogável o reconhecimento do direito de retenção nos termos em que o foi.

Os Recorrentes, com a revista, pretendem a revogação da decisão recorrida.


Os Autores não contra-alegaram.


Por acórdão da Formação a que alude o art. 672.º, n.º 3, do CPC, de 31 de outubro de 2019, foi admitida a revista excecional, pela “muita importância prática” da aplicação do AUJ n.º 4/2014, mesmo que não se “coloque a questão de não se estar em processo de graduação de créditos em insolvência”.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, está essencialmente em causao reconhecimento do direito de retenção, pelo crédito resultante do não cumprimento do contrato-promessa de compra e venda, imputável à promitente-vendedora.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. Os AA. contraíram matrimónio em 14 de abril de 2000, sob o regime de comunhão de adquiridos.

2. Em 1 de junho de 2006 e 22 de agosto de 2006, o A. e a R. outorgaram dois contratos-promessa de compra e venda, tendo por objeto dois imóveis.

3. Objeto desses contratos foram duas frações autónomas, atualmente designadas pelas letras “L” (loja n.º 2) e “M” (loja n.º 3), com entrada, respetivamente, pelos n.º s …-C e …-B, do prédio urbano sito na Rua …, em …, freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º 5…7.

4. Os contraentes acordaram, na cláusula 5.ª,que “a escritura respeitante a este contrato será feita assim que toda a documentação esteja em ordem”.

5. Tendo tido conhecimento de que a R. estaria com dificuldades económicas para terminar as obras de construção do edifício, estando prestes a “entregar” o prédio ao credor hipotecário, o ora R.

6. Os AA., no final de 2006, deslocaram-se à agência do R., na Av. …, em …, na qual entregaram as cópias dos contratos celebrados com a R. e solicitaram uma reunião com o Banco DD.

7. Os AA. pagaram a totalidade dos sinais acordados, que importaram no valor global de € 60 000,00 (€ 35000,00 + € 25000,00), que a promitente-compradora declarou ter recebido em 27 de dezembro de 2006.

8. Tendo de seguida ocorrido a tradição do imóvel referente à fração “L” e tendo os AA. recebido as chaves da R. e tomado a posse imediata do imóvel.

9. Os AA.reuniram com responsável do Banco DD no início de 2007, na sede do R. em … .

10. Nessa reunião, o então responsável pela área do imobiliário do R. informou os AA. De que o assunto seria analisado pelo departamento jurídico do Banco, tendo-lhes comunicado o nome do advogado com o qual teriam de reunir, o Dr. HH.

11. Decorridas cerca de 2/3 semanas após a reunião, os AA. reuniram com o Dr. HH, no seu escritório em … .

12. Nessa reunião, os AA. voltaram a relatar o negócio que realizaram com a R., tendo deixado com o Dr. HH cópia dos contratos-promessa assinados.

13. Na mesma data, os AA. informaram de que tinham a posse da loja n.º 2, bem como que pretendiam realizar obras e benfeitorias no imóvel, com vista à instalação de um snack-bar/restaurante.

14. Em resposta, o Dr. HH manifestou a intenção de apresentar uma solução amigável para a situação.

15. Em 30 de abril de 2007, a R. vendeu a totalidade do prédio identificado, com todas as suas frações autónomas, ao credor hipotecário, o Banco DD, anteriormente designado por Banco II, S.A..

16. Não existiu, por parte das RR., qualquer informação/comunicação anterior ou posterior aos AA., relativamente a esse negócio.

17. A R., tendo sido interpelada e confrontada pelos AA., alguns meses após a venda do prédio, na pessoa do seu legal representante, FF, informou-os de que lamentava o sucedido, mas que não tinha capacidade e meios financeiros para os ressarcir.

18. Não obstante a compra e venda realizada entre os RR., os AA. continuaram a ter a posse da fração “L”.

19. Os AA. realizaram várias obras no imóvel, bem como adquiriram e instalaram na loja diversos artigos e equipamentos com vista à criação de um snack-bar/restaurante, que seria explorado pela filha da A., JJ, entre os quais:

20. Montagem (de raiz) da instalação elétrica, com vista à exploração de um snack-bar/restaurante;

21. Montagem (de raiz) da instalação gás, com vista à exploração do snack-bar/ restaurante;

22. Montagem e instalação de um sistema automático de deteção e proteção de incêndio;

23. Montagem e colocação de novos pisos (mosaico);

24. Montagem e colocação de novos tetos no imóvel;

25. Edificação e adaptação (tendo em conta as dimensões específicas e o fim do imóvel) das paredes do salão, zona de apoio, cozinha, casas de banho e despensa;

26. Pintura de todas as paredes e tetos;

27. Fornecimento e montagem de um sistema de climatização de bomba de calor com evaporadores murais, incluindo interligações eletromecânicas;

28. Bens, utensílios e equipamentos adquiridos e instalados (à medida), com vista à exploração do snack-bar/restaurante:

29. Tubagem da instalação elétrica: 20 projetores “ducto PL 2x26w”, 36 projetores “ducto PL 2x18w”, 9 “aplique muro embutir Inox SL02030IN” e 18 lâmpadas “eco genie 11W/865 E-27 Philips”; 60 lâmpadas “megamen 9W daylight GU10”, 13 projetores fixos “zamak113 NM” e 30 suportes “GU10 c/ distanciador”;

30. Dois aparelhos de ar condicionado, marca LG, Mod. UU24W + UT24, potência 24000 btu/h;

31. Uma cortina de ar de 1,2 metros;

32. 1 conjunto/extrator de extração de fumos;

33. Uma bancada p/ forno aço inox c/ cal has, p/ tabuleiros, forra topo esq. 670x700x900;

34. Uma bancada cafetaria aço inox lav. 340 x 340;

35. Uma máquina de lavar copos mod. Steel 31;

36. Uma bancada aço inox t/borras de café c/ 2 pratos 1500 x 600 x 900;

37. Uma bancada aço inox aberta c/ 2 prateleiras 1400 x 600 x 900;

38. Uma torradeira simples mod. AT-370, marca Cosmos;

39. 1 hote aço inox c/ filtros gordura 1600 x 900 x 800;

40. Uma bancada aço inox F.T.D. 1200 x 700 x 900;

41. Uma fritadeira elétrica bancada 8L GF-8SC;

42. 1 fogão gás bancadas c/ 2 queimadores mod. FTGLT740;

43. Uma bancada de aço p/ preparar alimentos ;

44. Uma vitrine refrigerado c/ grupo A, portas acrílico mod. 105;

45. 1 canto exterior neutro, dec.Ikarus laminado, portas acrílico mod. 45;

46. Uma vitrine refrigerado c/ grupo A, portas acrílico mod. 150;

47. Uma caixa de saída Dec. Ikarus laminado c/ tampo de vidro, mod. 65;

48. Uma vitrine padaria c/ grupo A, portas acrílico mod. 105;

49. 2 grupos compressores;

50. 1 retro balcão Starnight;

51. Uma máquina registadora;

52. Uma bancada inox lavadouro duplo;

53. 1 comando de pedal c/ 1100 x 500 x 900;

54. Uma bancada inox fechada c/ 2100 x 600 x 900;

55. Uma máquina de lavar pratos Steel 41H;

56. Uma máquina cortadora de carnes HBS 250 kosmo;

57. 1 grelhador de placas GR 4.2;

58. 1 espremedor de citrinos marca Cunnil.

59. Os AA. gastaram no imóvel a quantia de €40 544,86 em bens, utensílios e equipamentos, adquiridos com vista à exploração do snack-bar/restaurante.

60. Na presente data, o valor patrimonial dos imóveis objeto dos contratos-promessa está fixado em €123 480,00, no caso da fração “L” e €122 020,00, no caso da fração “M”.

61. Em meados de novembro de 2015, ao deslocarem-se à loja, numa visita de rotina, os AA. foram confrontados com a mudança da fechadura do imóvel, que os impediu de aceder ao seu interior.

62. Tendo questionado alguns trabalhadores, que se encontravam no prédio a executar obras de reparação a mando do R., os AA. foram informados de que a fechadura tinha sido mudada por ordem do R.

63. De imediato, os AA. deslocaram-se à agência do R., na Av. …, em …, tendo sido agendada uma reunião com o responsável da área do imobiliário, Dr. KK, para o dia 30/11/2015.

64. Realizada a reunião na data agendada e exposta a situação, o Dr. KK manifestou o seu total desconhecimento.

65. Ao longo dos últimos nove anos, os AA. insistiram junto do R. para que se obtivesse uma resposta com vista à resolução da situação, tendo sido informados de que se teria de aguardar mais algum tempo, tendo em conta os vários processos judiciais, entretanto intentados contra os RR., relacionados com a venda do prédio e as exigências urbanísticas promovidas pela Câmara Municipal de …, que só veio a emitir a licença de utilização do edifício em 7 de dezembro de 2010 (alvará n.º …/11).

66. Até à presente data, os AA. nunca foram contactados pelos representantes do R., para resolver a situação.

67. Presentemente, os AA. não têm acesso ao imóvel, desconhecendo o estado e destino dado aos equipamentos, que se encontravam no seu interior.

68. Tendo interpelado o Banco DD, assim como o Dr. KK, com vista à restituição imediata da posse do imóvel e à resolução extrajudicial da situação, até à presente data, os AA. não receberam qualquer resposta por parte do R., com exceção de um e-mail do Dr. KK dirigido ao seu mandatário, a dar conta de que “o assunto foi remetido para o departamento jurídico do Banco”.

69. Em … de dezembro de 2017, ocorreu a fusão por incorporação do Banco DD, S.A., no Banco EE, SA.

70. As chaves do prédio foram entregues pelo gerente da R. ao R., na sequência da venda outorgada em 2007.

71. Na altura da entrega das lojas aos colaboradores do R., a loja 3 estava desocupada.

72. A R. foi objeto de dissolução e encerramento da liquidação, datado de 31.10.2014.

73. Em 26 de setembro de 2016, o R. vendeu à Interveniente a loja n.º 2.

74. A Interveniente tem por objeto social “a prestação de serviços de consultoria para a aquisição e gestão de carteiras de crédito ou quaisquer direitos reais e na aquisição e gestão de carteiras de crédito, da titularidade de instituições de crédito. A sociedade poderá ainda proceder à compra e venda de imóveis, incluindo a revenda dos adquiridos para esse fim, à gestão e administração de bens imóveis pertencentes à sociedade ou a terceiros, bem como à realização de projetos, avaliações, inspeções e, em geral, todo o tipo de prestação de serviços de consultadoria, relacionados com as atividades atrás referidas e ainda a prestação de serviços de consultoria nos domínios da gestão, da realização de estudos técnicos, económicos, financeiros, comerciais, de organização administrativa, revisão de contas e formação profissional”.


***


2.2. Delimitada a matéria de facto provada, expurgada de redundâncias e juízos conclusivos, importa então conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, designadamentedoreconhecimento do direito de retenção, pelo crédito resultante do não cumprimento do contrato-promessa de compra e venda, imputável à promitente-vendedora.

As instâncias convergiram emjulgar o reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel (fração “L”) a favor dos Recorridos.

No entanto, os Recorrentes, invocando o acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 20 de março de 2014, advogam que o direito de retenção não pode ser reconhecido, devido ao facto do promitente-comprador do imóvel nãoter a qualidade de consumidor.

Feito o enquadramento, sumário, da questão jurídica emergente do recurso, vejamos então o direito aplicável ao caso subjudice.


Decidida já definitivamente a questão do incumprimento dos contratos-promessa de compra e venda de imóveis, imputável à promitente-vendedora, mantém-se em aberto, no âmbito da revista, a discussão quanto à questão do direito de retenção sobre a fração autónoma a favor do promitente-comprador.


Assim, a discussão cinge-se, essencialmente, em saber se é exigível que o promitente-comprador tenha a qualidade de consumidor, para lhe ser reconhecido o direito de retenção previsto no art. 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil (CC), atento o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2014, de 20 de março de 2014 (Diário da República, 1.ª Série, de 19 de maio de 2014), no qual se fixou que, “no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção, nos termos estatuídos no art. 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil”.

Entretanto, foi proferido o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2019, de 12 de fevereiro de 2019 (Diário da República, 1.ª Série, de 25 de julho de 2019) sobre o conceito de consumidor, nos termos do qual se estabeleceu que, “na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para efeitos do disposto no acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.

Observe-se, desde logo, que a questão da qualidade de consumidor para o reconhecimento do direito de retenção apenas entrou na discussão no âmbito da apelação, não tendo sido alegada nos articulados, designadamente na contestação.

O acórdão recorrido, porém, no âmbito da respetiva pronúncia, concluiu que tal questão era irrelevante para a decisão, porquanto a situação era alheia à relação entre o promitente-comprador e o administrador da insolvência, que não cumpre o contrato-promessa, o que motivava também, nos autos, a não aplicação do acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014.

Na verdade, a doutrina firmada neste acórdão uniformizador de jurisprudência constitui o reconhecimento de um regime específico no âmbito da insolvência, de modo a que apenas o promitente-comprador consumidor, cujo contrato tenha sido resolvido depois da declaração de insolvência, goze do privilégio (direito de retenção) em relação à hipoteca, em sede de graduação de créditos.Consequentemente, às situações excluídas desse âmbito da insolvência, não se aplica a doutrina do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2014, como,aliás, se vem entendendo neste Supremo Tribunal, designadamente no acórdão de 11 de setembro de 2018 (25261/11.6T2SNT-D.L1.S2), acessível em www.dgsi.pt.


No caso destes autos, não se inserindo o contrato-promessa resolvido no âmbito da insolvência, não lhe pode ser aplicável a doutrina específica do acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 20 de março, e, por isso, a qualidade de consumidor, quanto ao promitente-comprador, não é exigível para o reconhecimento do direito de retenção, redundando numa irrelevância.


Por outro lado, a norma prevista no art. 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, segundo a qual goza do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito do não cumprimento, imputável à outra parte, nos termos do art. 442.º”, não exige, para o efeito, a qualidade de consumidor quanto ao beneficiário.

Este direito de retenção especial foi concedido através do DL n.º 236/80, de 18 de julho, com o objetivo expresso,pelo legislador,de conferir “mais eficiente tutela do promitente-comprador”, nomeadamente“no caso de ter havido tradição da coisa para o promitente-comprador, em que se criou forte expetativa de estabilização do negócio e uma situação de facto socialmente atendível”. Deste modo, foi clara intenção da introdução normativa do direito de retenção de salvaguardara confiança e a boa-fé nos contratos e garantir a segurança jurídica.

Inicialmente, o direito de retenção estava inserido no âmbito do art. 442.º, n.º 3, do CC, mas,através do DL n.º 379/86, de 11 de novembro, foi deslocado para o capítulo das garantias especiais das obrigações, nomeadamente para a secção do direito de retenção já existente.

Este direito de retenção destina-se ao beneficiário de qualquer contrato-promessa com traditio rei, embora se tivesse pensado diretamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou frações autónomas deles, como se afirma no preâmbulo do DL n.º 379/86 (J. CALVÃO DA SILVA, Sinal e Contrato-Promessa, 13.ª edição, 2010, pág. 192).A opção legislativa alargada para o direito de retenção valeu, no entanto, forte crítica do Professor ANTUNES VARELA (Sobre o Contrato-Promessa, 2.ª edição, 1989, págs. 115/116).

Como se reconhece generalizadamente, o direito de retenção a favor do promitente-comprador que obteve a traditio da coisa, designadamente de imóvel, pode ter uma vasta aplicação, a nível de beneficiários, não sendo indispensável que estes possuam a qualidade de consumidores.

Na verdade, do texto da norma legal não ressalta qualquer elemento literal que possa induzir tal sentido normativo. Por outro lado, do espírito da lei, como se viu, também não é possível inferir tal intenção legislativa, não obstante se possa reconhecer que a “lógica da defesa do consumidor” também teve influência na mente do legislador. Contudo, este foi além desse âmbito específico.

Por isso, é certo que o direito de retenção, consagrado na alínea f) do n.º 1 do art. 755.º do Código Civil, não exige que o seu beneficiário tenha a qualidade de consumidor. Neste sentido, decidiram os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de abril de 2017(44/14.5T8VIS-B.C1.S1) e de 29 de julho de 2016 (6193/13.0TBBRG-B.G1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.

Não sendo exigível a qualidade de consumidorao promitente-comprador e, por outro lado, não vindo posta em causa a satisfação dos demais requisitos para o reconhecimento do direito de retenção,apresenta-se como correta a decisão do acórdão recorrido, confirmativa da sentença proferida em 1.ª instância.


Importa ainda esclarecer que o reconhecimento do direito de retenção, previsto na alínea f) do n.º 1 do art. 755.º do CC, não ofende a confiança ou a segurança jurídicas, nomeadamente do adquirente do imóvel.

A questão tem sido posta, sobretudo, por o direito de retenção por em causa a hipoteca, nomeadamente a favor de instituições de crédito, o que originou grande controvérsia (veja-se L. MENEZES LEITÃO, Garantias das Obrigações, 2.ª edição, 2008, pág. 240), mas em relação à qual o legislador, assumindo conscientemente o conflito de interesses, atribuiu, de forma considerada “razoável”,a “prioridade à tutela dos interesses particulares” (preâmbulo do DL n.º 379/86, de 11 de novembro).

A questão, nos autos, aparece deslocada para o adquirente do imóvel, nomeadamente por efeito de um contrato de compra e venda.

Efetivamente, se a questão,quanto ao titular da hipoteca, foi sendo resolvida como estando, razoavelmente, em conformidade com os valores da confiança e segurança jurídicas, mais se justifica essa solução,quando o confronto é entre o titular do direito de retenção e o titular do direito de propriedade, constituído depois do direito de retenção.


O direito de retenção, como um direito real, tem como característica inerente a sequela, nos termos da qual o direito real pode ser exercido sobre a coisa que constitui o seu objeto, onde quer que se encontre (L. CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 4.ª edição, reimpressão, 2004, pág. 65).

A sequela permite, assim, que o titular do direito de retenção possafazer vender a coisa, independentemente da mesma estar no património do devedor ou de terceiro, para com o produto da venda satisfazer o seu direito de crédito.

Perante as características reais do direito de retenção, nomeadamente por efeito da sequela, o direito de propriedade de terceiro, derivado do contrato de compra e venda,é ineficaz em relação ao titular do direito de retenção, sendo certo que foi anteriormente constituído.

Por isso, é completamente injustificada a alegação do sacrifício, injusto e ilegítimo, dos interesses patrimoniais de quem tem, atualmente, o direito de propriedade do imóvel, objeto do direito de retenção, alegação que corresponde a uma invocação genérica e vaga, sem sequer especificar a norma legal violada.

Contudo, com isto, não se pretende afirmar que tais interesses patrimoniais estão desprotegidos, mas apenas reforçar a ideia de que não podem prevalecer sobre o interesse do titular do direito de retenção.


Nesta conformidade, improcedendo totalmente as conclusões da revista, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido. 


2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. Não se inserindo o contrato-promessa resolvido no âmbito da insolvência, não lhe pode ser aplicável a doutrina específica do acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 20 de março, e, por isso, a qualidade de consumidor, quanto ao promitente-comprador, não é exigível para o reconhecimento do direito de retenção.

II. O direito de retenção– alínea f) do n.º 1 do art. 755.º do Código Civil –  destina-se ao beneficiário de qualquer contrato-promessa com traditio rei.

III. Para o reconhecimento dodireito de retenção, nesses termos, não se exige que o beneficiário tenha a qualidade de consumidor.

IV. Por efeito da sequela, característica do direito real, o direito de propriedade de terceiro é ineficaz em relação ao titular do direito de retenção, anteriormente constituído.

2.4. Os Recorrentes, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.

III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:

1) Negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

2) Condenar os Recorrentes (Réu e Interveniente) no pagamento das custas.


Lisboa, 10 de dezembro de 2019


Olindo dos Santos Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

Oliveira Abreu