Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4410/16.3T8VNF-B.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
INCUMPRIMENTO
OBRIGAÇÃO
COMUNICAÇÃO
AVALISTA
CONTAGEM DOS JUROS
INTERPELAÇÃO
CITAÇÃO
AÇÃO EXECUTIVA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 10/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : I. — A ausência de comunicação ao avalista do facto legitimador do preenchimento de uma livrança em brancoem especial, do facto do não cumprimento da obrigação garantida pela livrança — tem como efeito a aplicação conjugada dos arts. 777.º, n.º 1, e 805.º, n.º 1, do Código Civil e do art. 610.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.
II. — Em consequência da aplicação conjugada do art. 777.º, n.º 1, e do 805.º, n.º 1, do Código Civil e do art. 610.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil. os juros só serão devidos desde a data da citação do avalista para a acção executiva.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. — RELATÓRIO

   1. Em apenso aos autos de execução movida por Caixa Geral de Depósitos, S.A., deduziu a co-Executada AA oposição à execução, por meio de embargos de executado.

  2. A Exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A., contestou, pugnando pela improcedência dos embargos.

  3. Em despacho de 9 de Outubro de 2018, considerou-se a coligação ilegal e convidou-se a Exequente a escolher contra quais dos Executados, com que pedidos e por que título pretendia a Exequente fazer prosseguir a execução, sob pena de absolvição da instãncia de todos os executados.

  4. A Exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A., requereu o prosseguimento da execução exclusivamente em relação às livranças referidas nas alíneas a) e b) do requerimento executivo.

  5. O Tribunal de de 1.ª instância proferiu sentença com o seguinte dispositivo:

“Nestes termos, vistos os princípios expostos e as indicadas normas jurídicas, julgo os presentes embargos de executado parcialmente procedentes e, em conformidade:

a) Absolvo todos os executados da instância executiva, quanto ao pedido respeitante à livrança da importância de € 3.659,51, com o n.º 500…30, e, em conformidade, determino a extinção da execução no que respeita ao montante peticionado, a esse propósito, no valor global de € 3.798,47 (três mil, setecentos e noventa e oito euro e quarenta e sete cent);

b) Determino a redução da quantia exequenda, quanto a todos os executados, ao montante global de € 81.610,49 (oitenta e um mil, seiscentos e dez euro e quarenta e nove cent), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa civil legal (4%), contados desde 09.11.2015, até efetivo e integral pagamento.

Custas pela embargante e pela exequente, na proporção do decaimento”.

  6. Inconformada, a Executada AA interpôs recurso de apelação.

  7. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

A - As livranças dadas à execução foram entregues ao exequente em branco, no caso concreto, não continham a data do vencimento da obrigação, nem o respetivo montante;

B - A embargante interveio no contrato que deu causa á emissão das identificadas livranças, apondo-lhe a sua assinatura na qualidade de avalista;

C - A embargante só através da citação para a execução, tomou conhecimento da existência de dívidas por parte da sociedade avalizada “Panpani”, desconhecendo, até então, aquela, qual era o respetivo montante, porquanto não foi notificada por parte do banco exequente que iria preencher as livranças que lhe haviam sido entregues;

D - Desconhecendo a embargante, a situação de incumprimento da sociedade avalizada, jamais teve possibilidade de obstar mormente a que o banco exequente, lograsse contabilizar juros e penalizações desde o início do incumprimento.

E - O embargado considerou incumpridas as obrigações da sociedade avalizada, pelo menos, desde o final do ano de 2013, calculando então, a título global, uma dívida que ascendia a €73.529,87, (aí se incluindo dívidas não avalizadas pela embargante);

F - A embargante está confrontada com uma exigência de cumprimento por parte do banco exequente, bem diferente daquela com que foi confrontada a sociedade avalizada/insolvente, o que também por este motivo, evidencia a situação de abuso de preenchimento, por parte do exequente.

G - Ainda que se venha a concluir ser acertada a decisão proferida quanto á improcedência da invocação da inexigibilidade da dívida, pela omissão da prévia comunicação de que o embargado iria proceder ao preenchimento da livrança, é certo que, assistirá razão á embargante, quando a mesma alega não lhe ser exigível o pagamento dos juros que se venceram após o vencimento da obrigação, ou seja, após o final do ano de 2013. De facto,

H - Ainda que, doutamente se considere que o embargado, portador das duas livranças, se encontra legitimado para as preencher, nos termos que lhe aprouver, não se concebe que o possa fazer, apondo-lhe um montante, que resulte da soma de juros e penalidades de diversa índole, efetuados no pressuposto de um incumprimento que permaneceu no tempo, quando, de facto, essa situação de incumprimento da obrigação, não chegou ao conhecimento da “ pré- avalista”.

I - O preenchimento das livranças, apondo, nas mesmas, montantes pecuniários inexigíveis, porque extravasam o montante da obrigação vencida, (atenta a falta de comunicação do seu vencimento) colide com o paradigma da atuação de boa-fé. Consequentemente, há um abuso no preenchimento das livranças atento o valor nas mesmas aposto, porquanto é o mesmo, em parte, inexigível.

J - A defesa da posição da entidade bancária embargada tem por consequência, dupla penalização para a embargante; seja pela pretensão de obtenção de pagamento de quantia substancialmente superior àquela exigível no momento do vencimento da obrigação, seja ainda, pelo facto de tal decurso do tempo ter impossibilitado, de facto, a embargante, de poder vir a exercer, com sucesso, o direito de regresso sobre os demais obrigados cambiários.

K - Face á inexistência da dita comunicação prévia do vencimento da obrigação, o facto é que a embargante apenas tomou conhecimento da existência de tal obrigação vencida, em Maio de 2017, decorridos mais do que três anos.

L - Como tal, a defesa de tal faculdade concedida ao portador de uma livrança em branco, de a preencher no momento em que considere mais conveniente, coadjuvada, ainda, com a defesa de que o mesmo portador também se encontra isento da obrigação de comunicar em tempo razoável o vencimento da obrigação garantida, permite ao portador de tal livrança ficar totalmente desobrigado perante as regras da prescrição dos títulos cambiários;

M - Tal interpretação legal, salvo mais douta opinião, colide frontalmente com os ditames da Constituição da República Portuguesa, mormente os princípios, da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, e dos princípios da proporcionalidade e igualdade dos cidadãos, estes interpretados no sentido de que, no caso concreto, os avalistas não fiquem numa posição de total dependência, da vontade e livre arbítrio do portador da livrança em branco, (no caso uma entidade bancária), bem com, e ainda, insista-se, na violação do principio da boa-fé. O que aqui se deixa expressamente invocado.

Por outro lado, sem prescindir,

N - Nos valores inscritos nas livranças encontram-se englobados, juros calculados desde a data do vencimento da obrigação, ocorrido no final do ano de 2013 e até á data do preenchimento das livranças, ou seja, cerca de dois anos após tal vencimento, valores esses que acresceram ao montante devido no momento do vencimento da obrigação e sem que disso a embargante tivesse conhecimento.

O - Tendo-se por princípio que, os juros são, na sua essência, uma forma de indemnização, face ao incumprimento de uma obrigação pecuniária que deveria ter sido cumprida num certo momento e não o foi, (ou seja, indemnização do credor pela mora do devedor);

P - Na situação concreta, tendo-se vencido a obrigação e disso a embargante/devedora não tendo tido conhecimento, jamais a mesma entrou em mora, pelo que, e consequentemente são inexigíveis juros. Consequentemente,

Q - O embargado, ao reclamar na instância executiva juros de mora sobre juros de mora indevidamente feitos constar dos títulos dados em execução, está efetivamente, a reclamar o pagamento de juros a calcular sobre montantes pecuniários (juros de mora), indevidamente reclamados. Pelo que,

R - Tal forma de cálculo de juros sobre juros é, efetivamente, um anatocismo sem suporte legal, sendo certo que, nos termos do 560º n.º 1 1ª parte do C.C., para que os juros vencidos produzam juros é necessária convenção posterior ao vencimento, o que não é o caso dos autos.

Ainda sem prescindir

DO ABUSO DO DIREITO

S - Por fim, e por mera cautela, e para o caso de não se atender ao aqui invocado pela recorrente, impõe-se a invocação da figura do abuso do direito, na medida em que, efetivamente o embargado, (atento o tempo que permitiu decorrer, sobre a data do vencimento da obrigação, (mais de três anos) sem que tivesse interpelado a recorrente para vir cumprir a obrigação garantida, imputando-lhe juros e penalizações que calcula até á data)), extravasa os limites da boa-fé contratual, e da segurança jurídica, o que se invoca para os devidos efeitos e consequências legais.

Pelo exposto, a douta decisão recorrida, julgou as questões elencadas no presente recurso de forma errónea, porquanto efetuou errónea aplicação do direito, violando, mormente o disposto nos art.s 805º e sgs do Código civil, pelo que se impõe a respetiva revogação, proferindo-se acórdão conforme a motivação de recurso aqui invocada pela embargante.

ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.

 8. A Exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A., não contra-alegou.

9. O Tribunal da Relação de Guimarães julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.

 10. Inconformada, a Executada AA interpôs recurso de revista.

 11. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I. — A recorrente não se conforma com o teor do mui douto acórdão proferido pela 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, que julgou improcedente o recurso interposto pela recorrente/embargante, pelo que, do mesmo, vem interpor recurso de revista excecional.

II - considerando o valor processual da causa, que ascende a € 81.610,49 verificar-se-ia as condições gerais de admissibilidade do recurso ordinário de Revista, caso, em concreto, não ocorresse a situação de dupla conforme.

III - Atento o disposto no nº3 do artigo 671 º do CPC, o recurso será admitido, de forma excecional, caso ocorram qualquer das circunstâncias previstas nas alíneas a) a c) do artigo 672º nº 1 do CPC.

IV - Contudo, vem a aqui recorrente sustentar o seu requerimento de Recurso no supra citado artigo 672º do CPC, porquanto o presente recurso enquadra-se na hipótese vertida na respetiva al. c), (contradição de julgados).

V - O douto acórdão recorrido encontra-se em contradição com o acórdão proferido por este mesmo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, de 19/06/2018 (acórdão-fundamento) proferido no âmbito do processo 1418/14.7TBPVZ –A.P.S1 l 033/10.4TBLSD-A.P2. , 1ª Secção, que por sua vez foi proferido também no âmbito de recurso excepcional de Revista, cujos recorrentes invocavam como acórdão fundamento aquele proferido pelo TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO em 3-04-2014 no âmbito do processo l 033/10.4TBLSD-A.P2., na parte em que, doutamente se conclui que são devidos juros moratórios desde a data da citação dos avalistas , — executados para a acção executiva ficando provada a ausência de apresentação a pagamento das livranças exequendas em momento anterior a essa citação. Mais se defendendo no identificado acórdão (fundamento) que o art. 38-I da LULL que as letras em branco são pagáveis em dia fixado, pelo que o respetivo portador deveria apresentá-las a pagamento.

VI - O acórdão recorrido quanto à invocada questão apresentada pela recorrente, da inexigibilidade dos juros de mora devidos desde o vencimento da obrigação, julgou a mesma improcedente, considerando para o efeito que, a exequente estava autorizada a preencher as livranças quando entendesse, pelo que prevendo-se no pacto de preenchimento a possibilidade da exequente as preencher com o valor, mormente de juros remuneratórios e moratórios, podia a exequente ter preenchido as livranças como o fez (Cfr. fls. 11 e 15 do acórdão recorrido).

VII - Acresce salientar que, quer o acórdão recorrido quer acórdão-fundamento foram proferidos no âmbito de um recurso de apelação interposto de sentença proferida em primeira instância, no âmbito de um processo de embargos de executado, em que estavam em causa livranças em branco.

VIII - Sobre a questão em apreço desconhece-se existir "acórdão de uniformização de jurisprudência”, encontrando-se, também, este requisito cumprido.

IX - Pelo exposto entende-se que o acórdão recorrido elege uma posição jurídica contraditória com a firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do acórdão fundamento, relativa à mesma questão fundamental de direito, pelo que, justifica-se, salvo melhor opinião, a admissão do recurso de revista excepcional, conforme o disposto no artigo 672º nºl, al. c), do CPC.

POSTO ISTO,

X - A recorrente nas respetivas conclusões das alegações de recurso, interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães do saneador sentença proferido, pugnou pela defesa de uma posição, no sentido de a ausência de interpelação da recorrente/embargante, no que concerne ao preenchimento das livranças em causa, deveria ter por consequência, que os juros moratórios apenas sejam passíveis de serem calculados e o respetivo pagamento imputado ao devedor/avalista desde a data da citação.

XI - Não obstante o alegado pela recorrente, o acórdão recorrido, não sufragou o entendimento desta, defendo o mesmo, no essencial que nomeadamente que a exequente podia ter preenchido as livranças como o fez, apondo-lhes os valores que aí constam, mormente a título de juros de mora.

XII - Assim, quer o Tribunal de 1ª Instancia, quer o Tribunal recorrido, radicam a sua douta posição jurídica, no pacto de preenchimento, admitindo à exequente a possibilidade de, mormente calcular juros moratórios, e fazê-los incluir no montante que é aposto no momento do preenchimento da livrança, independentemente da previa comunicação do incumprimento da obrigação avalizada ou dito de outra forma, independentemente da previa comunicação do vencimento da obrigação, e consequente apresentação da livrança a pagamento.

XIII - Tal douto entendimento, colide, com o mui douto entendimento constante do Acórdão – fundamento, porquanto neste se entende que às livranças em branco é aplicável o disposto no art. 38-1 , nos termos do art. 77º da LULL, pelo que o portador das mesmas, deveria apresenta-las a pagamento no dia em que elas eram pagáveis.

XIV - Mais se salientado no mencionado acórdão- fundamento que, no caso das livranças em branco, não pode existir mora do devedor, se as mesmas não forem apresentadas a pagamento, porquanto, a mora depende sempre de culpa; E

XV - Se o portador das livranças, que está em condições de as preencher, as dá à execução sem que, entretanto as tenha aprsentado a pagamento, só são devidos juros moratórios desde a data da citação dos avalistas – executados para a acção executiva.

XVI - A decisão recorrida é diametralmente oposta àquela proferida no acórdão fundamento, porquanto, ali, e conforme transcrição supra efectuada, o Tribunal da Relação de Guimarães, concluiu confirmar a sentença recorrida, considerando legitimo o preenchimento das livranças com a aposição das quantias que dela constam, mormente aquelas resultantes dos juros moratórios, fundando-se para o efeito na mera autorização de preenchimento concedida pela avalista/recorrente.

XVII - Saliente-se que, quer no caso dos autos, apreciado no acórdão recorrido, quer no âmbito do acórdão fundamento, há manifesta similitude de questões, porquanto, em ambos é apreciada a legitimidade do portador de letra em branco para imputar o pagamento de juros moratórios ao avalista, calculados estes juros desde momento anterior à data em que ocorreu a citação em processo executivo, quando até esse momento, não havia comunicado ao obrigado cambiário/avalista o vencimento da obrigação.

XVIII - Como se vem evidenciando o acórdão–fundamento concluiu que, nessas circunstancias são devidos juros moratórios, apenas desde a data de citação dos avalistas – executados para a acção executiva, o que, como salientado, conflitua com a decisão constante sobre tal questão, proferida no acórdão recorrido.

XIX - Pelo exposto, resulta evidenciado que o acórdão-fundamento, no âmbito da mesma questão jurídica e perante a mesma factualidade provada, permite concluir que assiste razão à aqui recorrente, quando, para além de mais, esta defende que a falta de interpelação por parte da exequente, determina que a mesma não possa preencher as livranças, calculando e nelas apondo, montantes decorrentes de juros de mora, porquanto estes apenas serão exigíveis após o conhecimento transmitido pelo credor à avalista, que a respetiva obrigação se encontra vencida e é exigível, por se encontrar a pagamento; facto que, no caso dos autos, apenas ocorreu com a citação, conforme invocado pela embargante.

XX - Consequentemente, com o devido respeito, que é muito, entende-se que o acórdão recorrido encontra-se ferido por erro de interpretação e aplicação das normas da LULL aplicáveis - constituindo, portanto, fundamento do presente recurso, nos termos do preceituado no art. 674° nº 1 al. a) do CPC).

XXI - Assim, e conforme tem vindo a preconizar a jurisprudência mais recente, o entendimento proferido no acórdão-fundamento, para além de cumprir a legislação vigente, atende, ainda, às exigências que a factualidade concreta impõe com vista à concretização de uma efetiva justiça .

XXII - Termos em que, deverá o presente recurso ser admitido, e concedido provimento ao mesmo nos termos invocados, sendo proferido douto acórdão que revogue aquele que motiva o presente Recurso de Revista Excepcional, na parte em que, confirmando o Saneador-sentença proferido, condenou a aqui recorrente no pagamento da quantia de € 81.610,49 acrescido dos juros de mora vencidos desde 09/11/2015 (note-se que os valores feitos constar dos títulos dados á execução já tinham neles incluído juros de mora); devendo tais juros moratórios á taxa legal, serem contabilizados, sobre o capital em dívida, e desde a citação da aqui recorrente para a ação executiva.

  12. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a questão a decidir in casu é, tão-só, a seguinte: — se os juros de mora devidos pelo avalista devem ser calculados a partir da data do vencimento da obrigação garantida pela livrança ou a partir da data da citação do avalista para a acção executiva.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

        OS FACTOS

  13. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:

1. Na execução a que os presentes autos estão apensos foi apresentada à execução a livrança com o original junto as fls. 12 da execução, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo inscrito, em algarismos e por extenso, a importância de € 27.808,46, com a referência “PT00350385000803191”, donde consta: no local da data de emissão, 08-05-06; no local da data de vencimento, 2015-11-09, no local do subscritor, “Panpani – Indústria Alimentar, Lda.”; e, no verso, a seguir à expressão “Dou o meu aval à firma subscritora”, as assinaturas desenhando os nomes dos executados BB, CC, DD, EE, FF e AA.

2. A “Panpani – Indústria Alimentar, Lda.”, na qualidade de devedora/cliente e primeira outorgante, os executados (BB, CC, DD, EE, FF e AA), na qualidade de avalistas de livrança e segundos outorgantes, e a exequente, na qualidade de mutuante e terceira outorgante, apuseram as suas assinaturas no documento intitulado “Contrato de Abertura de Crédito à Construção”, datado de 07.04.2008, o qual se mostra junto a fls. 63 a 65 destes embargos, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, constando do mesmo, além do mais, o seguinte:

“(…) 2.Contrato n.º: 038…91 (…)

  

5. Montante: Até € 75.000,00 (…)

23. Livrança em Branco:

1. — Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, a CLIENTE e os AVALISTAS entregam uma livrança com montante e vencimento em branco e autorizam a preencher quanto tal se mostre necessário, a juízo da própria CAIXA, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:

a) A data de vencimento será fixada quando, em caso de incumprimento a CAIXA decida preencher a livrança;

b) A importancia corresponderá ao total das responsabilidades… (…)”.

3. Na execução a que os presentes autos estão apensos foi apresentada à execução a livrança com o original junto as fls. 13 da execução, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo inscrito, em algarismos e por extenso, a importância de € 53.802,03, com a referência “PT00350…92”, donde consta: no local da data de emissão, 09-04-21; no local da data de vencimento, 2015-11-09, no local do subscritor, “Panpani – Indústria Alimentar, Lda.”; e, no verso, a seguir à expressão “Bom para aval à subscritora”, as assinaturas desenhando os nomes dos executados BB, CC, DD, EE, FF e AA.

4. A “Panpani – Indústria Alimentar, Lda.”, na qualidade de devedora/cliente e primeira outorgante, os executados (BB, CC, DD, EE, FF e AA ), na qualidade de avalistas de livrança e segundos outorgantes, e a exequente, na qualidade de mutuante e terceira outorgante, apuseram as suas assinaturas no documento intitulado “Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente”, datado de 13.04.2009, o qual se mostra junto a fls. 66 a 69 destes embargos, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, constando do mesmo, além do mais, o seguinte:

“(…) 2.Contrato n.º: 0385….92. (…)

5.Montante: Até € 50.000,00 (…)

23.Livrança em Branco:

23.1. — Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, a CLIENTE e os AVALISTAS entregam uma livrança com montante e vencimento em branco e autorizam a preencher quanto tal se mostre necessário, a juízo da própria CAIXA, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:

a) A data de vencimento será fixada quando, em caso de incumprimento a CAIXA decida preencher a livrança;

b) A importancia corresponderá ao total das responsabilidades (…)”.

5. A exequente preencheu posteriormente a livrança referidas em 1 e 3, nomeadamente com o valor e data de vencimento que delas constam.

6. A exequente deduziu execução em 01.07.2016.

     O DIREITO

 14. Em primeiro lugar, deverá apreciar-se a questão prévia da admissibilidade do recurso.

15. O art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

 

“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

16. O acórdão da Relação confirmou, sem voto de vencido, a decisão proferida na 1.ª instância, pelo que o problema do preenchimento dos pressupostos do art. 671.º, n.º 3, está, tão-só, em averiguar se o confirmou com ou sem fundamentação essencialmente diferente.

 17. O Tribunal de 1.ª instância considerou oito questões, das quais interessam sobretudo a terceira — sobre a exequilibilidade ou inexequibilidade dos títulos —, a quarta — sobre o (alegado) abuso do direito, relacionado com a violação do pacto de preenchimento — e a quinta — sobre o (alegado) excesso de valor da livrança de 53.802,03 euros.

           

  18. Entendeu que o portador da livrança não tinha o ónus de interpelar o avalista antes do preenchimento do título; que não houve preenchimento abusivo; e que, ainda que o contrato previsse que o máximo de crédito fosse de 50 000 euros, “o facto de a livrança ter sido preenchida pelo valor de 53 802,03 euros não [traduzia] por si só violação do pacto de preenchimento, na perspectiva do excesso de valor”:

“a livrança podia ser preenchida com valor superior ao capital em dívida do contrato subjacente, incluindo-se aí juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos”.

   19. O Tribunal da Relação pronunciou-se sobre uma questão que não tinha sido apreciada e decidida no Tribunal de 1.ª instância — em concreto, sobre a questão da exigibilidade ou inexigibilidade dos juros devidos desde o vencimento da obrigação garantida pela livrança (ainda em 2013) até à data do preenchimento da livrança pelo portador Caixa Geral de Depósitos (em 9 de Novembro de 2015).

           

20. O facto de o objecto do recurso corresponder exactamente à questão que não tinha sido apreciada e decidida no Tribunal de 1.ª instância exclui a dupla conforme — e, ainda que não a excluísse, sempre a fundamentação das duas decisões, do Tribunal da 1.ª instância e do Tribunal da Relação, seria uma fundamentação essencialmente diferente.

21. Esclarecida a questão prévia da admissibilidade, deverá, em segundo lugar, apreciar-se a questão principal de saber se os juros de mora devem ser calculados a partir da data do vencimento da obrigação garantida pela livrança ou a partir da data da citação do avalista para a acção executiva.

22. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que o efeito da ausência de comunicação ao garante (avalista) do facto legitimador do preenchimento — em especial, do facto do não cumprimento da obrigação garantida pela livrança — está na aplicação conjugada dos arts. 777.º, n.º 1, e 805.º, n.º 1, do Código Civil e do art. 610.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil:

“… a obrigação que o avalista assumiu [vence-se] apenas com a citação para a execução fundada nas livranças, que foram preenchidas de acordo com os respetivos pactos de preenchimento” [1].

 23. Explicando a (chamada) teoria do ónus de informar [2], diz-se que

“… é injusto que o avalista venha a ter de suportar juros de mora contados desde uma data anterior à da citação. O avalista ficou assim privado da possibilidade de ter pago, na data aposta na livrança como de vencimento, o valor nela preenchido como de dívida. Esta injustiça deveria então ser corrigida reduzindo os juros de mora aos que se vencerem apenas da data da citação, perdendo o exequente os juros de mora vencidos entre a data do vencimento do título e a data da citação do avalista.

Em termos técnico-jurídicos, este regime é qualificado como um ónus de informação pelo portador ao avalista do preenchimento da livrança, cujo desrespeito tem como consequência a perda dos juros que se venceriam desde a data do vencimento aposta na livrança e até à data da citação do avalista na execução da mesma” [3]

 24. Em consequência da aplicação conjugada do art. 777.º, n.º 1, e do 805.º, n.º 1, do Código Civil e do art. 610.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil. os juros só serão devidos desde a data da citação do avalista para a acção executiva [4].

 25. O ponto foi recentemente sublinhado no acórdão do STJ de 24 de Outubro de 2019 — processo 1418/14.7TBPVZ-B.P2.S2 —, em cuja fundamentação de direito se diz:

“… a falta de interpelação do avalista do incumprimento do devedor principal não conduz à inexigibilidade do título cambiário dado à execução, apenas relevando para efeitos de determinação do momento a partir do qual se inicia a contagem dos juros – sendo que, nas livranças pagáveis à vista o obrigado cambiário só se constitui em mora após ter sido interpelado, judicial ou extrajudicialmente, para as pagar – art. 805.º, n.º 1, do Código Civil”.

III. — DECISÃO

      Face ao exposto, concede-se a revista e, em consequência,

 I. — revoga-se o acórdão recorrido, na parte em que confirmou a alínea b) do dispositivo do despacho saneador-sentença proferido pelo Tribunal de 1.ª instância;

  II. — determina-se que os juros de mora devidos pela Recorrente sejam, tão-só, os juros vencidos e vincendos à taxa civil legal (4%), contados desde a data da citação do avalista para a acção executiva.

     Custas pela Recorrida Caixa Geral de Depósitos, S. A.

Lisboa, 8 de Outubro de 2020

Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

José Maria Ferreira Lopes

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

    Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exma. Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e do Exmo. Senhor Conselheiro José Maria Ferreira Lopes.

______

[1] Cf. designadamente o acórdão do STJ de 30 de Abril de 2019 — processo n.º 1959/16.1T8MAI-A.P1.S1.

[2] Pedro Pais de Vasconcelos, em “Aval, informação e responsabilidade”, in: Revista de direito comercial, ano 4 (2020), págs. 1135-1179 (1152).

[3] O texto segue a exposição de Pedro Pais de Vasconcelos em “Aval, informação e responsabilidade”, cit., pág. 1153 — ainda que o artigo em causa seja particularmente crítiico para com a doutrina exposta e para com os argumentos em que a doutrina exposta se sustenta.

[4] Cf. acórdãos do STJ de 25 de Maio de 2017 — processo n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1 —, de 28 de Setembro de 2017 — processo n.º 779/14.2TBEVR-B.E1.S1 —, de 30 de Abril de 2019 — processo n.º 1959/16.1T8MAI-A.P1.S1 — e de 24 de Outubro de 2019 — processo n.º 295/14.2TBSCR-A.L1.S1.