Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1669/17.2T8VNF-G.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
TRABALHADOR
CREDITO LABORAL
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
BEM IMÓVEL
Data do Acordão: 06/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO – CONTRATO DE TRABALHO / INCUMPRIMENTO DO CONTRATO / GARANTIAS DE CRÉDITOS DO TRABALHADOR.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS / EFEITOS E EXTINÇÃO DOS PRIVILÉGIOS – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE HORIZONTAL.
Doutrina:
- JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, Almedina, 2ª Edição, p. 175;
- MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado de Direito de Trabalho, parte II, Almedina, 4ª edição, p. 602;
- MENEZES LEITÃO, Direitos Reais, Almedina, 2012, p. 25/26;
- ORLANDO DE CARVALHO, Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, p. 163 e ss.;
- PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Anotação ao artº 204º do Código Civil;
- RUI PINTO DUARTE, Curso de Direitos Reais, Editora Principia, 2002, p. 36.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGO 333.º, N.º 1, ALÍNEA B).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 204.º, N.º 1, 209.º, 751.º E 1414.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 59.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 13-12-2007, PROCESSO N.º 07A3023, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-06-2017, PROCESSO N.º 56/14.9T8AMD.L1.S1.
Sumário :
I- De acordo com o artº 333º do Código do Trabalho, os créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação gozam de privilégios creditórios mobiliário e imobiliário. E concretamente o nº 1, al. b) deste normativo confere o privilégio imobiliário especial sobre o imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

II- A alteração introduzida pelo Código do Trabalho de 2003, consagrando um privilégio imobiliário especial, representa um indiscutível reforço da garantia conferida aos trabalhadores, que decorre, desde logo, da extensão do privilégio creditório, não apenas aos créditos salariais, mas também aos créditos decorrentes da violação do contrato ou da sua cessação

III- O privilégio imobiliário especial é um direito real de garantia, que consiste no direito que a Lei concede a certos créditos de serem pagos pelo produto da venda de um certo e determinado imóvel, com prioridade em relação a outros credores.

 IV- Os direitos reais incidem sobre coisas em sentido jurídico, ou seja, entidades do mundo externo, sem personalidade jurídica, corpóreas, dotadas de autonomia e individualidade para serem passíveis de um estatuto de direito, isto é serem objecto de relações jurídicas.

V- O princípio da especialidade refere-nos que, para se poder constituir um direito real, as coisas corpóreas sobre que o mesmo incide têm que se encontrar determinadas, ter existência presente, e ser autónomas de outras coisas, já que o mesmo não poderá incidir apenas sobre parte de uma coisa

VI- No caso em litígio, não se mostra constituída a propriedade horizontal relativamente ao prédio sobre o qual incide o privilégio imobiliário da trabalhadora/credora.

VII- Assim, o imóvel é constituído por todas as partes do mesmo, a garagem/cave, o rés-do-chão e o primeiro-andar, sendo elementos estruturais desse prédio e dele incidíveis, não sendo possível constituir sobre cada uma das partes, autonomamente, direitos reais.

VIII- E não existindo esta autonomia jurídica, não podem incidir direitos apenas sobre uma parte desse imóvel, designadamente sobre a garagem/cave, por não ser uma coisa objecto de direitos.

IX- No caso em apreço, o crédito da trabalhadora goza de privilégio imobiliário especial sobre o bem imóvel do empregador no qual prestou a sua actividade laboral. Este privilégio, como direito de natureza real, incide sobre todo o prédio e não apenas sobre a garagem, local onde exerceu a actividade laboral.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório

Por sentença de 4 de Julho de 2017 foi declarada a insolvência de AA.

Findo o prazo para a reclamação de créditos, a Sr.ª Administradora da insolvência (A.I.) juntou aos autos a lista de todos os créditos por si reconhecidos.

A credora BB veio impugnar a referida lista, defendendo que os credores reclamantes identificados como trabalhadores, mais concretamente CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, e KK, não poderão gozar do privilégio imobiliário especial, reconhecido pela Sr.ª A.I., uma vez que o imóvel sobre que incide se destina a fins habitacionais, não comportando uma utilização comercial/industrial.

Subsidiariamente, aceita o reconhecimento deste privilégio sobre a parcela do imóvel onde, efectivamente, as trabalhadoras exerciam actividade, ou seja, a cave.

As credoras trabalhadoras da insolvente responderam a esta impugnação, opondo-se.

Proferiu-se sentença em que se decidiu:

– «Assim, e pelo exposto, julgo parcialmente procedente a impugnação deduzida pela BB, SA, limitando o privilégio imobiliário especial concedido pelo art.º 333,1,b) CT à parcela do prédio urbano, descrito na Primeira Conservatória de Registo Predial de … sob o n.º …/ … e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art….º,efectivamente afecta a laboração pelas credoras CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, e KK, ou seja, à cave”.

Inconformada, a credora EE veio interpor recurso para o Tribunal da Relação.

O Tribunal da Relação julgou a apelação procedente, revogou a sentença recorrida, julgando improcedente a impugnação deduzida pela BB, SA (BB, SA).

Deste acórdão veio a BB, SA interpor recurso de revista, no qual formulou as seguintes conclusões:

“1.    Nos termos e tempo legalmente previstos, veio a BB reclamar os créditos que detém sobre o devedor, no total de € 125.023,29, sendo € 124.311,12 de créditos – emergentes dos empréstimos identificados pelos nºs ... e …-garantidos por  hipotecas   voluntárias constituídas sobre o prédio urbano descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … /....

2.         O imóvel em causa é composto por casa de cave, rés-do-chão e andar e destina-se a habitação, o que decorre, não só dos contratos de mútuo celebrados com a BB (destinados, respectivamente, a aquisição de habitação própria e permanente e a investimentos não especificados no mesmo imóvel), mas também do competente alvará de loteamento, nos termos do qual – e conforme se comprova da análise da sua certidão permanente - foi autorizada a “(…) construção de moradias unifamiliares (…)”.

3.        Constatou-se, porém, no âmbito do processo de insolvência, que, não obstante a afectação legal do prédio supra descrito e cuja meação foi apreendida, o insolvente instalou na cave uma pequena confecção têxtil.

4.         Por esse motivo, os créditos das suas (ex-) trabalhadoras foram qualificados como privilegiados, por beneficiarem de privilégio imobiliário especial.

5.         Prosseguida a competente tramitação legal, incluindo a realização de perícia ao imóvel e audiência de discussão e julgamento, foi julgada parcialmente procedente a impugnação aduzida pela BB e limitado o referido privilégio imobiliário à parcela do prédio “efectivamente afecta a laboração (…), ou seja, à cave”.

6.        Pelo acórdão recorrido foi revogada a decisão proferida em primeira instância, com fundamento em que não “(…) há direitos reais sobre coisas individualizadas do ponto de vista físico ou material, mas que não o estão do ponto de vista jurídico”.

7.         Não pode a BB conformar-se com tal entendimento, até porque o mesmo vai contra várias decisões, proferidas pelas diferentes instâncias, incluindo este Supremo Tribunal de Justiça.

8.        De facto, em situações que consideramos equiparáveis à presente, vem-se entendendo ser possível reconhecer direitos reais sobre parte de imóveis ainda não constituídos em propriedade horizontal. Referimo-nos aos casos em que, havendo um prédio urbano (sublinha-se, sem propriedade horizontal), são reconhecidos direitos de retenção sobre fracções autonomizáveis, sendo os créditos detidos pelos retentores pagos, não pelo produto da venda da totalidade do prédio, mas sim pelo valor correspondente à fracção objecto da garantia real.

9.        No caso vertente, resultou provado à saciedade, não só pelos testemunhos prestados, mas também pelo declarado pela Sr.ª Administradora de Insolvência e ainda pelo vertido no relatório pericial efectuado, que apenas parte da cave estava afecta à actividade de confecção, sendo que o rés-do-chão e o andar sempre se destinaram, exclusivamente, à habitação do insolvente e seu agregado familiar.

10.      Veja-se que a morada do insolvente fixada na sentença que declarou a sua insolvência corresponde, precisamente, ao imóvel em crise.

11.      Ora, a ratio do art. 333º do CT não é conferir privilégio imobiliário especial sobre todo e qualquer bem que seja da propriedade do insolvente, pois que o que justifica a sua concessão é, sem dúvida, a especial ligação funcional do trabalhador ao imóvel, através do exercício da sua actividade, a qual, tem de ser circunscrita no espaço e no tempo, ligação funcional essa que será apenas a efectiva.

12.       Considerar-se, como se considerou no acórdão recorrido, que o privilégio imobiliário especial deverá incidir sobre a totalidade do prédio em que era exercida a actividade representa uma inversão total do espírito do legislador ao prever e consignar esse mesmo privilégio.

13.      Cabe, pois, levar a cabo uma interpretação teleológica da norma que prevê tal privilégio, adequando-o à medida do que o legislador pretendeu salvaguardar.

14.      Assim se explica, por exemplo, a jurisprudência uniformizada no sentido de que “Os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial” – v.g. AUJ nº8/2016.

15.      No caso vertente, em nosso entender, o privilégio imobiliário especial de que gozam os créditos laborais apenas pode incidir sobre a parte do imóvel afecta à prossecução da actividade de confecção, desse privilégio se excluindo a sua parte afecta à habitação do insolvente.

16.       E nada impede, ao contrário do decidido no acórdão recorrido, que a garantia real decorrente daquele privilégio incida sobre apenas uma parte do imóvel, a qual, sendo materialmente autónoma, não o é juridicamente.

17.       Atento tudo o exposto, deverá o acórdão recorrido - por violar o disposto no art. 333º do Código do Trabalho (ao “alargar” o privilégio imobiliário especial para além da ratio do normativo e da sua letra) e no art. 686º do Código Civil (por preterir a garantia de pagamento que as hipotecas voluntárias registadas consubstanciam) - ser revogado, julgando-se procedente a impugnação aduzida pela BB”.

A recorrida EE não apresentou contra-alegações.

II- Apreciação do Recurso:

Objecto do Recurso

 Admitido o recurso, importa fixar o seu objecto.

 Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir é a seguinte:

“O privilégio imobiliário especial da credora EE incide sobre a totalidade do imóvel, ou apenas sobre a garagem/cave”.

 

Fundamentação:

Factos provados:

1. Foi apreendido à ordem dos presentes autos o prédio urbano, descrito na Primeira Conservatória de Registo Predial de Braga sob o n.º …/ … e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art….º.

2. Tal imóvel, é composto por casa de cave, rés-do-chão e andar e destina-se a fins habitacionais – cfr. certidão permanente, junta fls. 10 e ss.

3. O referido imóvel é a morada da residência do insolvente, fixada na declaração de insolvência.

4. O espaço afecto à actividade laboral do insolvente consistia numa parte da garagem do imóvel supra referido, onde montou uma pequena confecção têxtil, onde as trabalhadoras exerciam a sua actividade.

5. O rés-do-chão e o primeiro andar daquele prédio eram utilizados, exclusivamente, como habitação do insolvente e da mulher.

III- O Direito

Nos autos de insolvência de AA foram reconhecidos à recorrida EE e aos demais trabalhadores do insolvente, créditos emergentes de contrato de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação. 

Estes créditos foram reconhecidos pelo Tribunal da Relação como gozando do privilégio imobiliário especial, nos termos do artº 333º, nº 1, al. b) do Código do Trabalho, sobre todo o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo …º.

A Recorrente discorda desta decisão por entender que este privilégio abrange somente o local onde os trabalhadores exerciam a sua actividade laboral, ou seja a garagem/cave do prédio em causa. Argumenta que o imóvel é composto por cave, rés-do-chão e primeiro andar, sendo que apenas na cave era exercida a actividade laboral da credora e demais trabalhadoras, sendo o rés-do-chão e o 1º andar utilizados para a habitação do insolvente e da sua mulher.

Vejamos:

De acordo com o artº 333º do Código do Trabalho, os créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação gozam de privilégios creditórios mobiliário e imobiliário. E concretamente o nº 1, al. b) deste normativo confere o privilégio imobiliário especial sobre o imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade. Este regime de privilégio dos créditos dos trabalhadores é tradicional no nosso sistema jurídico, justificando-se directamente na função alimentar da retribuição.[1]

A alteração introduzida pelo Código do Trabalho de 2003, consagrando um privilégio imobiliário especial, representa um indiscutível reforço da garantia conferida aos trabalhadores, que decorre, desde logo, da extensão do privilégio creditório, não apenas aos créditos salariais, mas também aos créditos decorrentes da violação do contrato ou da sua cessação; por outro lado, passou a ser inquestionável a sua sujeição ao regime do artº 751º do CCivil, assegurando-se a prevalência do privilégio sobre direitos reais de gozo e de garantia de terceiros, ainda que estes sejam anteriores.

Esta protecção tradicionalmente conferida aos créditos dos trabalhadores concretiza, desde logo, uma imposição constitucional – os salários gozam de garantia especial, nos termos da lei (art. 59º, nº 3 da CRP) – traduzindo uma discriminação positiva dos créditos salariais em relação aos demais créditos sobre os empregadores.

Consubstancia uma preocupação evidente do legislador em assegurar uma protecção reforçada dos créditos salariais, tendo em conta a sua dimensão social ou alimentar e não puramente retributiva ou patrimonial, sublinhando a inerência do salário à satisfação das necessidades pessoais e familiares do trabalhador.

Analisemos, então, em pormenor, o privilégio imobiliário especial de que beneficia a credora EE.

Resulta do probatório que, efectivamente, o espaço afecto à actividade laboral do insolvente consistia numa parte da garagem do imóvel supra referido, na qual montou uma pequena confecção têxtil, onde as trabalhadoras exerciam a sua actividade.

E que o rés-do-chão e o primeiro-andar daquele prédio eram utilizados, exclusivamente, como habitação do insolvente e da mulher.

O privilégio imobiliário especial é um direito real de garantia, que consiste no direito que a Lei concede a certos créditos de serem pagos pelo produto da venda de um certo e determinado imóvel, com prioridade em relação a outros credores.

Os direitos reais incidem sobre coisas em sentido jurídico, ou seja, entidades do mundo externo, sem personalidade jurídica, corpóreas, dotadas de autonomia e individualidade para serem passíveis de um estatuto de direito, isto é serem objecto de relações jurídicas.

Um dos princípios dos direitos reais é o princípio da especialidade, o qual exige que se possa individualizar concretamente a coisa que constitui objecto do direito real. O princípio da especialidade refere-nos que, para se poder constituir um direito real, as coisas corpóreas sobre que o mesmo incide têm que se encontrar determinadas, ter existência presente, e ser autónomas de outras coisas, já que o mesmo não poderá incidir apenas sobre parte de uma coisa.[2]

O art° 204º, nº 1 do CCivil define como coisas imóveis:

a) Os prédios rústicos e urbanos.

E no nº 2 “Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”.[3]

Assim sendo, o prédio representa, em regra, uma unidade ou coisa materialmente indivisível, sendo a sua divisibilidade apenas possível no caso previsto no artº 209º do CCivil. Nos termos deste normativo “São divisíveis as coisas que podem ser fracionadas sem alteração da sua substancia, diminuição de valor ou prejuízo par o uso a que se destinam”.

Da leitura desta disposição resulta que a divisibilidade ou indivisibilidade de uma coisa não se afere em termos físicos mas jurídicos. Uma coisa susceptível de divisão em termos físicos será uma coisa indivisível em termos jurídicos, caso se verifique qualquer das situações contemplados do no artº 209º do CCivil. Os critérios definidos neste preceito são de aplicação cumulativa, bastando a existência de um deles para que a coisa seja indivisível.

“A relevância desta classificação em direitos reais, incide desde logo ao nível do objecto do direito real. Se a coisa se divide noutra ou noutras, teremos de admitir que a coisa não é mais a mesma. Ora, se o direito real tem inerência à coisa, se esta se divide, deixando de ser o que era, para passar a existir duas ou mais coisas novas, diferentes da anterior, extinguem-se os primitivos direitos reais que incidiam sobre a coisa dividida, passando a haver uma nova atribuição jurídico-real sobre as novas coisas objecto de divisão”[4].

É o que sucede no caso da propriedade horizontal em que o edifício pode ser objecto de divisão jurídica em fracções, em condições de constituírem unidades independentes, e que podem pertencer a diversos proprietários (artº 1414º do CCivil).

Caso a propriedade horizontal não haja sido constituída, validamente, não é possível que o direito de propriedade incida sobre uma fracção do edifício. Neste caso a propriedade (ou compropriedade) terá por objecto todo o prédio e não cada uma das suas partes ou fracção.  

Ora, no caso em litígio, não se mostra constituída a propriedade horizontal relativamente ao prédio sobre o qual incide o privilégio imobiliário da trabalhadora/credora. Assim, o prédio é constituído por todas as partes do mesmo, a garagem/cave, o rés-do-chão e o primeiro-andar, sendo elementos estruturais desse prédio e dele incidíveis, não sendo possível constituir sobre cada uma das partes, autonomamente, direitos reais. E não existindo esta autonomia jurídica, não podem incidir direitos apenas sobre uma parte desse imóvel, designadamente sobre a garagem/cave, por não ser uma coisa objecto de direitos.[5]

Como bem refere o acórdão recorrido, o “princípio Salomónico (equitativo) aplicado na sentença recorrida não pode prevalecer sobre as supracitadas normas, por se traduzir num desvio não consentido aos “princípios constitucionais dos direitos reais”, no caso, ao princípio da especialidade. Este princípio, subjacente a toda a regulação deste Instituto, diz-nos que só há direitos reais sobre coisas certas e determinadas, isto é, sobre coisas individualizadas. É que só pode haver o direito de excluir todos (só há uma obrigação passiva universal) em relação a uma coisa, se esta for certa e determinada”.  

No caso em apreço, e como decorre da al. b) do nº 1 do art.º 333º do Código do Trabalho, o crédito da trabalhadora goza de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel do empregador no qual prestou a sua actividade laboral. Embora resulte do probatório que a actividade laboral foi exercida numa parte (garagem/cave) do imóvel do empregador, não estando esta divisão autonomizada do prédio, este privilégio, como direito de natureza real, incide sobre a totalidade do imóvel e não apenas sobre essa parte.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar provimento à revista, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente

Lisboa, 18 de Junho de 2109

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Assunção Raimundo

_____________________________

[1] Sobre este privilégio, vide MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado de Direito de Trabalho, parte II, Almedina, 4ª edição, p. 602.
[2] Sobre o princípio da especialidade, vide: RUI PINTO DUARTE, Curso de Direitos Reais, Editora Principia, 2002, p. 36; MENEZES LEITÃO, Direitos Reais, Almedina, 2012, p. 25/26; ORLANDO DE CARVALHO, Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, p. 163 e ss.
Obviamente que o princípio da especialidade admite excepções consagradas expressamente na nossa lei, como sejam as servidões, o direito de superfície e a propriedade horizontal.
[3] Sobre a categoria de coisas imóveis, vide, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, anotação ao artº 204º do CCivil.
[4] JOSÉ ALBERTO VIEIRA, Direitos Reais, Almedina , 2ª Edição., p. 175
[5] O mesmo sucede com a aquisição por usucapião. Veja-se como exemplo o Acórdão do STJ de 13/12/2007, processo nº 07A3023, Relator Mário Cruz, in www.dgsi.pt., no qual se refere: “Não pode adquirir-se a propriedade de parte física de fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal antes que haja alteração do título constitutivo que autonomize essa parte física da fracção da outra em que estava inserida”. No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 20/0672017, processo 56/14.9T8AMD.L1.S1., quando refere: “Em suma, a usucapião deve incidir sobre algo que possa ser autonomizado no comércio jurídico - o que não é o caso de uma parte de uma fracção – e não deve servir para contornar a exigência legal de unanimidade para qualquer alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal. Não podendo incidir direitos sobre apenas uma parte de uma fracção, a qual não tem autonomia jurídica suficiente para ser uma coisa objecto de direitos, não se poderá adquirir um direito sobre essa parte de fracção através da usucapião”.