Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18-A/2001.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: PRINCÍPIO NOMINALISTA
ACTUALIZAÇÃO MONETÁRIA
LIQUIDAÇÃO
OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA
DETERMINAÇÃO DO PREÇO
DÍVIDA DE VALOR
DIVIDA PECUNIÁRIA
PREÇO
CONTRATO DE EMPREITADA
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
ALEGAÇÕES DE RECURSO
DESPACHO DE ADMISSÃO DO RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
MATÉRIA DE FACTO
ERRO DE CÁLCULO
Data do Acordão: 05/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS / CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- António Pinto Monteiro, Inflação e Direito Civil, Estudos em Homenagem a Ferrer Correia, vol. II, Coimbra, 1989, pp. 871 e ss., 882-883.
- Vaz Serra, anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Junho de 1078, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 112º, p. 9 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 289.º, N.º1, 550.º, 762.º, 883.º, 1211.º, Nº 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 653.º, N.º4, 684.º, 671.º, N.º1, 712.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 614.º, 616.º, 619.º, N.º1, 632.º, N.ºS 2 E 3, 635.º, 637.º, N.ºS 1 E 2, 638.º, N.º1, E NºS 1 E 2, 662.º, 674.º, Nº 3, 682.º, Nº 2.
LEI Nº 41/2013, DE 26 DE JUNHO: - ARTIGOS 3.º, 7.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 1 DE JUNHO DE 1078;
-DE 10 DE JANEIRO DE 2008, REVISTA N.º 4023/07 – 1.ª SECÇÃO, COM O SUMÁRIO EM WWW.STJ.PT ;
-DE 30 DE SETEMBRO DE 2010, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 1554/04.8TBVNG.P1.S1 ;
-DE 21 DE OUTUBRO DE 2010, PROC. Nº PROCESSO Nº 454/2001. G1.S1, COM SUMÁRIO DISPONÍVEL EM WWW.STJ.PT .
Sumário :
I - Pese embora seja aplicável ao recurso o regime do NCPC (2013), o facto de o recorrente ter primeiramente apresentado um requerimento de interposição do recurso – sobre o qual recaiu um despacho de admissão – e só depois (mas ainda no prazo de 30 dias fixado pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 637.º e pelo n.º 1 do art. 638.º, ambos daquele diploma) as respectivas alegações não conduz a que se deva rejeitar o recurso por falta de alegações (pois estas foram apresentadas em tempo), tanto mais que há que ter em conta a confiança que merece aquele despacho e que, nos termos do art. 3.º da Lei n.º 41/2013, de 26-06, a parte que estava em erro sobre o regime processual aplicável podia ainda corrigi-lo.

II – A parte que se conformou com a sentença e não recorreu para a Relação não pode, no recurso de revista que interpôs, discutir a correcção do julgamento da matéria de facto efectuado em 1.ª Instância, que ninguém impugnou; nem pode, no mesmo recurso de revista, invocar erro de cálculo ou erro na definição da fórmula de cálculo, que atribui àquele julgamento de facto.

III – A desvalorização do dinheiro, acompanhando o decurso do tempo, invocada no processo de liquidação, pela autora, foi já considerada facto notório por este Supremo Tribunal.

IV – A circunstância de ser ilíquido o preço a pagar pelo réu, o que desde logo impede a autora de receber juros de mora correspondentes ao período em que se mantém a iliquidez (n.º 3 do art. 805.º do CCC), pelo menos quando não se apura que foi por culpa do devedor que a liquidação se não fez, impõe que se afaste o princípio nominalista e que, para este estrito efeito, se não trate como obrigação pecuniária uma obrigação de pagamento de um preço devido por trabalhos não concretizados no momento do acordo, e para cujo cálculo houve que recorrer a um critério supletivamente fixado na lei, que toma como referência o custo desses trabalhos na altura da conclusão do contrato, pois não foi possível encontrar nenhuma definição pelas partes – não fazendo portanto sentido observar que poderia ter sido convencionada a actualização, nos termos permitidos pelo citado art. 550.º, do CC.

V – Tal como se admite, por exemplo, que a obrigação de restituição do que foi prestado, em consequência de anulação ou de declaração de nulidade, quando deva ser cumprida mediante a entrega do valor correspondente por não ser possível a restituição em espécie (nº 1 do art. 289.º do CC), deva ser objecto de actualização ao momento da entrega, em função da desvalorização da moeda, também se deve aqui concluir no sentido da actualização do montante encontrado em aplicação do critério que, no processo de liquidação, se entendeu permitir calcular a retribuição a pagar à autora, uma vez que a liquidação também tem como objectivo determinar o valor dos serviços prestados ao réu no âmbito das empreitadas dos autos, que não ficou então fixado; solução contrária lesaria de forma inaceitável e arbitrária – porque dependente, apenas, de a liquidação ser judicialmente efectuada com maior ou menor rapidez – o equilíbrio contratual entre as partes e a boa fé que consabidamente rege a vida dos contratos (cfr. art. 762.º, do CC).

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA, na qualidade de liquidatário judicial e em representação da Massa Falida de BB, SA, veio deduzir incidente de liquidação da condenação ilíquida do Estado Português, determinada por sentença de 15 de Julho de 2005 da Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Setúbal, com as alterações introduzias pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 3 de Maio de 2007, confirmadas pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Dezembro de 2007, no pagamento de trabalhos de construção civil executados por BB, SA, em apoio a contratos de empreitada identificados nos autos principais.

Pediu que o montante em que o Estado foi condenado fosse “liquidado em € 1.667.770,03”, no qual se incluía a actualização do preço a pagar [(6.686.831.000$00 x 0.04) - 70.000.000$00 = 197.473.240$00, ou seja, € 984.992,39], “de modo a reflectir a desvalorização da moeda ocorrida (…) desde a data em que os serviços foram prestados e deveriam ter sido pagos, (…), 1 de Janeiro de 1993, e a presente data” ou, subsidiariamente, que fosse promovida a liquidação oficiosa e, em qualquer caso, que o Estado fosse condenado no pagamento de juros de mora sobre a quantia que fosse apurada, contados da citação até efectivo pagamento.

O Ministério Público contestou, em representação do Estado. Por entre o mais, sustentou que a autora não justificou as verbas que especificou, sendo inepta a petição inicial por falta de causa de pedir, e discordou do critério de cálculo utilizado. Considerou que, “atendendo à condenação do R. nas várias instâncias, a quantia a pagar é a que se liquidar em liquidação de sentença, ou seja, o preço a pagar corresponderá ao cômputo dos trabalhos desenvolvidos pelo A. e que se provaram terem sido executados, e esse preço será aquele que o A. praticar à data da conclusão do contrato”.

Houve resposta à contestação.

Pela sentença de fls. 81, a obrigação do réu foi liquidada em € 833.844,31€, acrescidos de juros contados à taxa dos juros comerciais desde a data em que foi proferida, até integral pagamento. O tribunal considerou provado que “O valor dos trabalhos de construção civil de apoio às quatro empreitadas referidas na decisão proferida nos autos principais é de 2,5% de 6.616.831.000$00 (6.686.831.000$00 – 70.000.000$00)” e julgou nestes termos:

“A decisão proferida nos autos relegou para execução de sentença o apuramento do valor da contraprestação dos trabalhos de construção civil desenvolvidos pelo A., de apoio às empreitadas realizadas também pelo A..

Tendo em conta a matéria que resultou provada nos autos, esse valor tem de ser fixado em 833.844,31€, ou seja, 2,5% de 33.353.772,41 € (6.616.831.000$00)).

Quanto aos juros os mesmos são devidos desde a liquidação, como foi decidido no Douto Acórdão da Relação de Évora, ou seja, são devidos desde a presente data”.

Apenas recorreu AA, na mesma qualidade de liquidatário judicial e em representação da Massa Falida de BB, SA, para o Tribunal da Relação de Évora, sustentando que a sentença não tinha apreciado o pedido de actualização e a tinha condenado indevidamente em custas. Concluiu que, o montante em que o réu tinha sido condenado, € 833.844,31, devidamente actualizado, correspondia a € 1.411.002,48, devendo ter sido essa a condenação.

A Relação, pelo acórdão de fls. 220, de 22 de Maio de 2014, observando que o recurso interposto apenas colocava três questões – nulidade da sentença, actualização da prestação e custas processuais –, uma vez que a “liquidação (…), em si mesma, não é posta em causa no recurso –, decidiu, quanto ao que agora releva, que a sentença tinha omitido indevidamente a apreciação da questão da actualização e que, tendo em conta a regra da substituição, lhe cabia decidi-la:

“E, conforme se alcança da sentença, o tribunal não só não procedeu à actualização do valor da liquidação a que procedeu (€ 833.844,31) como nem sequer se pronunciou sobre tal questão, conforme se lhe impunha, atento o disposto no n° 2 do art. 660° do CPC (n° 2 do art. 608° do novo CPC, recentemente entrado em vigor).

Desta forma, e neste âmbito, estamos perante uma das situações de nulidade da sentença prevista na al. d) do n° 1 do art. 668° do CPC (a que corresponde a ai. d) do n° 1 do art. 615° do novo CPC).

Todavia, nos termos do disposto no n° 1 do art. 715° do CPC (n° 1 do art. 665° do novo CPC), não obstante a declaração de tal nulidade, impõe-se conhecer do objecto da apelação, ou seja, se, in casu, deve ou não haver lugar à actualização da quantia que foi objecto de liquidação na sentença recorrida (liquidação essa que, em si mesma, não é posta em causa no recurso) - questão essa de que conheceremos de seguida.

(…)

Trata-se assim de uma dívida de valor que, como tal, não está sujeita ao princípio nominalista e que, por consequência, é passível de actualização.

Desta forma, conforme bem se considerou no acórdão do STJ de 17.11.94 (em que é relator Sousa Inês, in www.dgsi.pf) a liquidação, como acto pelo qual se procede à fixação do quantitativo de um crédito ilíquido também compreende a actualização monetária.

E por se tratar de uma dívida sujeita a liquidação, é que, conforme bem se salienta no acórdão desta Relação, não há mora e, como tal, não eram devidos juros, sendo estes devidos apenas a partir da sentença que procedeu à respectiva liquidação (conforme, de resto, foi decidido na sentença recorrida).Conforme já supra referimos, o autor apelante defende que a actualização deve ser feita com referência a 31.12.1992, data relativa à conclusão dos trabalhos.

Conforme resulta da factualidade dada por provada na acção declarativa (vide fls. 172 e sgs.), e com interesse específico para a questão, foi dado como provado (n°s 31 e 15) que "em 31.12.1992 o valor dos trabalhos realizados (já medidos e aceites pelo dono da obra) no âmbito das empreitadas à J.E.M era de 6.886,851 contos" e que a J.E.M facturou os trabalhos de apoio de construção civil em 26.02.1993.

Assim, afigura-se-nos que a actualização deve ser reportada ao coeficiente de desvalorização da moeda com referência ao de 1993 – coeficiente esse que, nos termos da Portaria n° 376/2013 de 30.12 é de 1,68.

E assim sendo, o valor dos trabalhos em questão, que foi liquidado em € 833.844,31, deve ser fixado, por força da referida actualização, em € 1.400.858,44 (€ 833.844,31 x 1,68).

(…) Termos em que, julgando a apelação parcialmente procedente se acorda:

a) Em revogar parcialmente a sentença recorrida no sentido de alterar a quantia que ali foi objecto de liquidação (€ 833.844,31), a pagar pelo réu ao autor, e por força da respectiva actualização, para o valor de € 1.400.858,44 (um milhão, quatrocentos mil, oitocentos e cinquenta e oito euros e quarenta e quatro cêntimos);

b) No mais se mantendo a sentença no que se refere ao pagamento pelo réu de juros de mora, à taxa dos juros comerciais - a contar da presente data.

c) E em revogar ainda a sentença no que se refere à condenação do autor em custas, dada a isenção supra referida.

Apelação sem custas, dada a isenção de ambas as partes.”


2. O Estado recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:

«I - O que se provou no incidente de liquidação foi que o valor total das empreitadas em causa foi o que já havia ficado provado no ponto 31 da acção declarativa, e indicado pelo A. na pi do incidente de liquidação – 6.686.831.000$00 – devendo o valor dos trabalhos de apoio em dívida ser calculado por meio da aplicação de uma percentagem de 2,5% sobre a referida quantia, e só depois, ao resultado assim obtido, haveria então que deduzir os 70.000.000$00 já pagos pelo R. ao A. – conforme provado no ponto 14 da matéria de facto provada na acção declarativa – e não deduzi-los ao valor das empreitadas, como foi feito.

II - A fórmula matemática necessária para a operação de liquidação é aquela que foi apresentada pelo A. na pi do respectivo incidente, ou seja: primeiro, chegar ao montante total dos trabalhos de apoio, resultante da multiplicação da percentagem pelo valor total das empreitadas e, de seguida, subtrair a esse montante assim apurado o valor que anteriormente já fora recebido, de 70.000.000$00, pelo que o despacho que decidiu a matéria de facto em 1ª instância incorreu em erro ao usar uma fórmula de cálculo em que subtraiu os referidos 70.000.000$00 ao valor total das empreitadas.

III - Assim, a decisão sobre a matéria de facto traduziu a prova obtida numa forma de cálculo que não lhe corresponde e que contraria a prova já fixada na acção declarativa relativamente à quantia de 70.000.000$00, já paga (ponto 14 da matéria de facto) e que tinha de ser deduzida ao montante dos trabalhos de apoio e não ao valor das empreitadas.

IV - Verifica-se, pois, a existência de um erro na fixação dos factos materiais da causa, o qual pode ser objecto de recurso de revista, dado que se mostra ocorrer ofensa duma disposição expressa da lei que fixa a força de determinado meio de prova, como se prevê no art° 722° nº2 do CPC (anterior ao DL 303/2007).

V - A matéria de facto julgada provada no incidente de liquidação, nos termos e com a fórmula matemática errada ente utilizada, contraria frontalmente o facto provado nº 14 da matéria de facto provada na acção declarativa, o que constitui violação do disposto no art° 671° nº 1 do CPC, segundo o qual "transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo... ", e, em consequência, tal matéria de facto pode ser alterada em sede de recurso para o STJ, alterando-se a fórmula de cálculo erradamente utilizada.

VI - O facto provado sob nº 14 da matéria de facto na acção declarativa conduz necessariamente a que o valor de 70.000.000$00, já pago, tenha de ser deduzido, não ao valor total das empreitadas, como ficou a constar da matéria de facto do incidente, mas sim ao montante dos trabalhos de apoio, obtido por meio da aplicação de 2,5% sobre 6.686.831.000$00, ou seja, ao montante de 167.170.775$00.

VII - Assim, o montante em dívida pelo R. corresponde à diferença entre os referidos 167.170.775.000$00 e os já pagos 70.000.000$00, ou seja, 97.170.775$00, a que corresponde, na moeda actual, o valor de 484.685,78 euros.

VIII - Mas, mesmo que, por mera hipótese, se pudesse considerar que a fórmula de cálculo usada na decisão sobre a matéria de facto estava correcta – o que não sucede – mesmo assim o próprio cálculo com essa fórmula se mostra incorrectamente realizado, dado que o montante de 6.616.831.000$00 corresponde a uma quantia de 33.004.613,88 euros (e não de 33.353.772,41 euros) pelo que, aplicando a percentagem fixada de 2,5%,obter-se-ia um valor de 825.115.347 euros e não o montante que foi indicado na sentença de 833.844,31 euros.

IX - Verifica-se, assim, a existência de erro de julgamento, dado que se mostram violadas as normas constantes dos art°s 669° n° 2 al. b), 671° n° 1 e 722° n° 2 do CPC, as quais devem ser interpretadas no sentido que se descreve nos pontos antecedentes e, em consequência, devendo ser fixada em 484.685,78 euros a quantia em dívida pelo R. no presente incidente de liquidação.

X - Ao contrário do que se refere no douto acórdão recorrido não estamos "no domínio da mera liquidação de uma indemnização" já que a dívida em causa não tem a natureza de uma indemnização, constituindo o preço devido pela realização de uma empreitada, nos termos do disposto nos artigos 1207°, 1211° e 1216° do C.Civil.

XI - A quantia objecto de liquidação constitui uma obrigação pecuniária resultante de um acréscimo de preço devido por uma empreitada em que foram realizadas alterações exigidas pelo dono da obra, situação que se encontra prevista no art° 1216° do Código Civil.

XII - A dívida em causa, não tem a natureza de dívida de valor, sendo antes uma obrigação pecuniária ilíquida, que necessita para a sua determinação do recurso à avaliação ou à liquidação judicial.

XIII - Tal obrigação pecuniária encontra-se, pois, sujeita ao princípio nominalista consagrado no art° 5500 do C. Civil, não sendo legalmente admissível a sua actualização, dado que não se mostra legalmente prevista tal possibilidade, como se exige no art° 5510 do mesmo código.

XIV - Assim, o douto acórdão recorrido, ao proceder à actualização monetária da quantia em dívida, violou o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 550°, 551°, 883°, 1207°, 1211° e 1216° do Código Civil, normas que devem ser interpretadas no sentido descrito nos pontos antecedentes, pelo que tal quantia deverá ser fixada nos termos que decorrem das operações de cálculo descritas nos pontos VI, VII e IX das presentes conclusões, sem qualquer actualização.»

AA contra-alegou, defendendo a confirmação do acórdão recorrido.

Começou por sustentar que o recurso interposto pelo Estado devia ser liminarmente rejeitado, uma vez que o requerimento de interposição de recurso não continha alegações. Em seu entender, sendo o acórdão recorrido posterior à entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013, é aplicável ao recurso de revista o que neste Código se dispõe, nomeadamente quanto ao modo de interposição de recurso e à consequência da falta de apresentação das alegações, a imediata rejeição do recurso (nº 2 do artigo 637º e al. b) do nº 2 do artigo 641º do Código de Processo Civil).

Quanto ao mais, o recorrido formulou as conclusões seguintes:

(…) Sem conceder:

6. Como referem literalmente as conclusões III e V das suas doutas alegações e se infere das VIII e IX, o que o Recorrente aí impugna – resumindo quanto alegou no capítulo com a epígrafe "Do erro de julgamento" – foi a "decisão da matéria de facto" ínsita na douta sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Setúbal, a 26.09.2012, não tendo a questão suscitada nesse capítulo, e nas conclusões I a IX (a "errónea" liquidação do valor dos trabalhos de apoio de construção civil, a 31.12.1992), sido apreciada pela Relação de Évora, nem sido decidida no douto Acórdão objecto da Revista.

7. Enuncia o douto Acórdão recorrido: "impõe-se conhecer do objecto da apelação, ou seja, se, in casu, deve ou não haver lugar à actualização da quantia que foi objecto de liquidação na sentença recorrida (liquidação essa que, em si mesmo, não é posta em causa no recurso)" [...] "considera o apelante que o valor dos trabalhos de apoio às quatro empreitadas, que foi objecto de liquidação – liquidação essa que, conforme já referido, não é posta em causa no recurso – deve ser objecto de liquidação".

8. Tal restrição resulta: (i) do facto de a ora Recorrida, nas alegações da Apelação de que resultou o douto Acórdão ora posto em crise, ter suscitado, a propósito da sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Setúbal, tão só, a apreciação de duas questões: a actualização do valor dos trabalhos que tinha sido liquidado na sentença (conclusões 1.a a 9.a das suas alegações) e a sua isenção de custas (conclusão 10.a), requerendo a modificação dessa decisão, tão só, nesses dois pontos, tendo restringido, tacitamente, nas suas conclusões, o objecto do recurso e, nessa medida, do acórdão que o decidiria; (ii) do facto de o ora Recorrente não ter apresentado recurso de Apelação, seja a título principal, seja a título subordinado, tendo-se conformado, assim, com a decisão de facto e de Direito vertida pelo Tribunal da Comarca de Setúbal na sua sentença de 26.09.2012.

9. Os recursos visam impugnar as decisões judiciais de que se recorre, e não outras, em especial aquelas que, não tendo sido impugnadas no prazo legal, transitaram em julgado, passando, por força do n.° 1 do art.° 619.° do novo CPC "a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele", já não sendo, portal, passíveis de recurso ordinário.

10. O disposto no n.° 2 do art.° 722.° "do CPCivil, na redacção anterior ao DL 303/2007 de 24/8" não permite o efeito visado pelo Recorrente, pois o pretenso "erro de julgamento" arguido por este nas conclusões I a IX das suas alegações não foi da decisão recorrida, nem resulta da apreciação ou decisão do tribunal "a quo" – ou foi sujeito a tal apreciação e decisão – estando, sim, inscrito noutra decisão, proferida por outro Tribunal, decisão com a qual ambas as partes se conformaram e que, por tal, transitou em julgado.

11. Tal arguição é ainda mais insólita e inaceitável pois o Recorrente pagou, a 27.12.2012, o valor liquidado que ora veio impugnar, acrescido dos juros de mora vencidos até à data, sem efectuar qualquer ressalva – conduta que só podia (e pode) interpretar-se como de aceitação tácita de que era devido tal valor pois consiste na prática, sem reserva alguma, de um facto incompatível com a vontade de recorrer, n.° 3 do art.° 632.° do novo CPC.

12. Por tal, a matéria alegada sob a epígrafe de "Do erro de julgamento" e as conclusões I a IX são patentemente inadmissíveis no âmbito do presente recurso, extravasando o seu âmbito e contrariando a prévia conduta processual e extra-processual do Recorrente.

13. Ao contrário do que alega o Recorrente, a decisão impugnada não assentou na qualificação do valor liquidado pelo Tribunal da Comarca de Setúbal como uma "indemnização", mas no entendimento segundo o qual "o valor dos trabalhos [de apoio de construção civil às empreitadas de especialidade] não foi acordado em termos de uma qualificação do valor concreto valor, mas sim em função de um determinado critério, com base no qual se teria que vir a proceder, por via da necessária liquidação, conforme se procedeu, à respectiva quantificação" [...] "trata-se assim de uma dívida de valor que, como tal, não está sujeito ao princípio nominalista e que, por conseguinte, é passível de actualização"; [...] "a liquidação, como acto pelo qual se procede à fixação de um crédito ilíquido também compreende a actualização monetária"; [...] "Por se tratar de uma dívida sujeita a liquidação é que, conforme bem se salienta no acórdão desta Relação, não há mora e, como tal, não eram devidos juros, sendo estes devidos a partir da sentença que procedeu à respectiva liquidação", pelo que, não se fundamentando o douto Acórdão recorrido na qualificação do valor objecto de actualização como uma "indemnização", e nunca tendo a Recorrida qualificado desse modo tal valor, v.g. no requerimento de liquidação ou nas alegações da Apelação, não têm sentido as alegações do Recorrente que assentam nesse pressuposto.

14. Segundo o entendimento que prevaleceu na acção declarativa que precedeu o presente incidente de liquidação – por força de doutas decisões do Tribunal da Comarca de Setúbal, da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça – a determinação de um eventual acréscimo ao "tecto" do preço originalmente convencionado entre as partes para os trabalhos de apoio de construção civil às empreitadas de especialidades adjudicadas à ora Falida, dependeria de uma prévia operação de liquidação.

15. Só depois de liquidado é que esse eventual acréscimo ao preço originalmente convencionado "constitui uma obrigação pecuniária, sujeita ao princípio nominalista consagrado no art.° 550° do C. Civil.". Enquanto é apenas eventual e potencial, e necessariamente ilíquido, tal valor não pode estar sujeito ao princípio nominalista pois não tem valor nominal, nem pode (nem pôde), enquanto quantia pecuniária concreta – com valor nominal – ser exigido ao devedor, o qual, por isso mesmo, não entra em mora.

16. Não faz sentido argumentar, simultaneamente, como faz o Recorrente, que o acréscimo eventual ao preço, a liquidar, está sujeito ao princípio nominalista por corresponder "desde o início, [a] uma prestação em dinheiro, apesar de o respectivo montante não estar acordado ou determinado", e que a eventual "indemnização por perdas e dados por infracção dum contrato" não está sujeita ao princípio nominalista, quando, em regra, também esta corresponde, nos contratos e, "desde o início, [a] uma prestação em dinheiro, apesar de o respectivo montante não estar acordado ou determinado", vindo a ser ambos determinados por referência ao valor que visam compensar: num caso, o valor dos danos incorridos, no outro o valor dos trabalhos não contratados e executados

17. Tal como não faz sentido argumentar de boa-fé-que ao liquidar-se, em 2012, um valor unicamente com base em montantes facturados por uma parte à outra em 1993 – se possa omitir os efeitos sobre o valor a liquidar (determinar/quantificar) do decurso desses 19 anos, sob pena da operação de liquidação produzir, necessariamente, um resultado distorcido, pois o valor (utilidade económica a preços de mercado) resultante de tal "liquidação" não teria qualquer correspondência com o valor (utilidade económica a preços de mercado) dos trabalhos que o "valor liquidado" tem por fim compensar.

18. Em suma: tendo o douto acórdão da Relação de Évora de 03.05.2007 (confirmado pelo STJ, por douto acórdão de 13.12.2007) que constitui o título da execução da qual o presente incidente é preliminar, decidido "relegar para liquidação em execução [d]e sentença o valor dos trabalhos levados a efeito pelo A.", mais determinando que, dada a iliquidez desse "valor", os juros moratórios sobre o mesmo apenas seriam "devidos desde a liquidação", deve considerar-se que o "valor dos trabalhos levados a efeito pelo A.", a cujo pagamento o Requerido Estado Português foi condenado, corresponde ao valor que estes trabalhos tinham em Dezembro de 1992, data em que foram completados, sucessivamente actualizado, até à data da sua liquidação, por efeito da aplicação dos vários índices de preços no consumidor, divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística;

19. Tendo, de igual modo, a douta sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Setúbal a 26.09.2012, considerado provado "o valor dos trabalhos de construção civil de apoio às quatro empreitadas referidas na decisão proferida nos autos principais é de 2,5% de 6.616.831.000$00", e decidido fixar o pedido da ora Recorrida nesse valor, é manifesto que foi o "valor dos trabalhos" a grandeza que foi expressamente considerada, quer no acórdão da Relação de Évora de 03.05.2007, quer naquela sentença, e não o dinheiro, em si mesmo, o qual apenas corresponde ao meio necessário da liquidação desse valor.

20. Nas dívidas que correspondem a um "valor", a desvalorização decorrente da inflação constitui um elemento do respectivo cômputo, uma vez que, entre a data em que se "realiza" o direito a esse valor, e o momento em que ele é liquidado e é fixada a obrigação de o pagar, o "valor nominal" deixou, necessariamente, de corresponder ao "valor efectivo/real", na precisa medida da inflação entretanto verificada

21. Considerando que os "trabalhos levados a efeito pelo A" foram entregues em 1992, que o seu valor foi fixado pelo Tribunal da Comarca de Setúbal com expressa referência ao valor das empreitadas em 31.12.1992; e que a douta sentença recorrida foi proferida em 2012, sendo notório que um valor nominal de 1992 não tem correspondência com um valor nominal em 2012, configurara uma violação dos princípios da Justiça, da equidade e da boa-fé, considerar-se que estaria sujeita ao "princípio nominalista" uma obrigação contratual que permanece ilíquida durante duas décadas e que, por virtude dessa iliquidez, tão pouco vence quaisquer juros de mora.

22. Esses princípios, traduzindo-se na "atribuição objectiva a cada qual do que lhe é devido", obrigam a dar relevo ao decurso do tempo na determinação do valor da compensação por trabalhos dos quais o Recorrente esta, há vinte anos, a tirar partido, e da qual a ora Recorrida está, há vinte anos, desembolsada, e não são compatíveis com o pagamento à ora Recorrida, em 2012, do mesmo valor nominal que se provou que esses trabalhos tinham, quando esta os entregou, em 1992, ou seja, necessariamente, apenas de uma degradada fracção da efectiva compensação que lhe era "devida" pelo Recorrente.

23. Sendo a existência da inflação e a evolução do índice geral de preços factos notórios, tinha o Tribunal da Comarca de Setúbal o dever de os conhecer e de os ter aplicado ao "valor dos trabalhos de construção civil de apoio às quatro empreitadas referidas na decisão proferida nos autos principais", o qual definiu por aplicação de uma percentagem a valores nominais (o das empreitadas) datados de 31.12.1992, e de condenar o ora Recorrente a pagar tal valor (833.844,31€) "actualizado de modo a reflectir a desvalorização da moeda ocorrida por efeito necessário da inflação verificada desde a data em que os serviços foram prestados e deveriam ter sido pagos, ou seja, 1 de Janeiro de 1993 e a presente data [...] de acordo com os sucessivos índices de preços no consumidor, divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística", conforme o peticionado e nos termos dos art.°s 551.°, 406.°, 762.° e ° 798.°, e ainda 334.°, todos do Código Civil.

24. Não merece, assim, qualquer censura o douto Acórdão recorrido quando, para liquidar o valor efectivamente devido peia Recorrente à ora Recorrida, a título de "trabalhos de construção civil de apoio às quatro empreitadas referidas na decisão proferida nos autos principais", procedeu à multiplicação do valor referido na conclusão anterior pelos sucessivos índices anuais de preços, termos em que, confirmando-o, SE FARÁ JUSTIÇA!


3. Vem apenas provado, da 1ª Instância, que “O valor dos trabalhos de construção civil de apoio às quatro empreitadas referidas na decisão proferida nos autos principais é de 2,5% de 6.616.831.000$00 (6.686.831.000$00 – 70.000.000$00)”, como atrás se disse.

Encontram-se juntas aos autos cópias das decisões proferidas no processo principal, de que esta liquidação depende.


4. Cumpre começar por apreciar a questão da rejeição do recurso, suscitada pelo recorrido.

É certo que é aplicável ao recurso que se aprecia o regime definido pelo Código de Processo Civil de 2013, uma vez que o acórdão da Relação foi proferido após a respectiva entrada em vigor: assim resulta expressamente do disposto no nº 1 do artigo 7º da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho; e que o recurso foi interposto pelo Ministério Público como se lhe fosse aplicável o regime anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto – apresentação, em dez dias, do requerimento de interposição de recurso, sem a alegação –, o que é incorrecto. Mas é igualmente certo que o recurso foi admitido, pelo despacho de fls. 232; e que, independentemente dessa admissão, o Ministério Público, dentro do prazo de trinta dias que o Código de Processo Civil de 2013 fixa para a interposição de recurso com a alegação (nº 1 do artigo 638 e nºs 1 e 2 do artigo 637º), apresentou as alegações, sendo irrelevante saber se haveria um recurso anteriormente interposto que se completou com as alegações ou um novo recurso. Ao que acresce que sempre haveria que ter em conta a confiança que merece o despacho de fls. 232 e a razão que informou o artigo 3º da Lei nº 41/2013, de cuja alínea a) decorre a possibilidade de a parte, que se equivocou quanto ao regime de aplicação no tempo da nova lei, poder corrigir o erro. Quando esse erro foi sancionado pelo juiz, a parte não há-de ser mais penalizada do que se não tivesse ocorrido essa sanção. Repare-se que o recurso foi interposto em 5 de Junho de 2014, ou seja, antes de terminado o ano subsequente à data da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013.

Não se justifica, assim, rejeitar o recurso, por falta de alegação.

Considera-se portanto que o recurso de revista foi interposto em 5 de Junho de 2014 e admitido na Relação.


5. O recorrente suscita dois grupos de questões:

– O que identifica como erro de julgamento e erro de cálculo;

O que respeita à actualização do montante liquidado.


6. Antes de tratarmos especificamente destas questões, cumpre ter presente o seguinte:

– Como se observou já, por exemplo, no acórdão deste Supremo Tribunal de 30 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 1554/04.8TBVNG.P1.S1, «A liquidação (processada como incidente, nos termos definidos pelos artigos 378º do Código de Processo Civil, aplicáveis ao caso porque a sentença foi proferida depois de 15 de Setembro de 2003nº 3 do artigo 21º do Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março, na redacção resultante do artigo 4º do Decreto-Lei nº 199/03, de 10 de Setembro”, e, acrescenta-se agora, antes da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013) «destina-se a “fixar o objecto ou a quantidade” da condenação proferida em termos genéricos, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil; Se a sentença de condenação optou por remeter para liquidação a fixação do montante, nos termos previstos nesse nº 2 do artigo 661º, não pode a sentença proferida no incidente alterar o que ali foi decidido, nomeadamente fixando a indemnização segundo critérios de equidade. A opção por uma ou outra das duas vias obedece a pressupostos diversos, mas é seguramente feita na sentença que julga a acção; O mesmo se diga do mais que ficou decidido na mesma sentença, que não pode ser contrariado pela sentença de liquidação; (…)»

– Não podem suscitar-se no recurso de revista questões apreciadas na sentença que não foram objecto do recurso de apelação, o que teve como efeito ficarem cobertas pela força de caso julgado nessa parte formado pela sentença, e não poderem, portanto, ser afectadas, nem pelo acórdão da Relação, nem no âmbito da revista (actual artigo 635º, nºs 2 e segs., correspondente ao artigo 684º do Código de Processo Civil anterior);

– No que em particular respeita ao julgamento de facto, que, no caso deste processo, foi realizado nos moldes previstos na lei anterior ao actual Código de Processo Civil e não na sentença, a reacção contra um erro que a parte entendesse que o afectava podia, em primeiro lugar, ser objecto de reclamação (nº 4 do artigo 653º do Código de Processo Civil anterior) e, em segundo lugar, ser invocado em recurso, de acordo com o regime previsto no então artigo 712º (hoje, 662º do Código de Processo Civil); a apreciação da Relação poderia seguidamente ser objecto de recurso de revista, desde que respeitados os limites em que o Supremo Tribunal de Justiça podia (e pode) controlar o julgamento de facto (actuais artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2 do Código de Processo Civil);

– Não se confunde o erro de julgamento, cuja correcção só por via de recurso pode ser obtida (ou, nos termos fortemente restritivos em que a lei admite a reforma de uma decisão judicial, através de um pedido de reforma ­ – artigo 616º do Código de Processo Civil), com o erro material cuja rectificação pode ser conseguida nos termos previstos no artigo 614º do Código de Processo Civil, e que abrange, por exemplo, “erros de escrita ou de cálculo” detectáveis no contexto da decisão; os erros materiais podem ser rectificados, mas, “em caso de recurso, a rectificação só pode ter lugar antes de ele subir…” (nº 2);

– Não pode recorrer (não tem legitimidade) a parte vencida que, expressa ou tacitamente, tenha renunciado ao recurso, depois de proferida a decisão (artigo 632º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Civil). A prática de “qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer”, como será o caso do pagamento da quantia em que a parte foi condenada, implica aceitação da decisão (nº 3); mas estas regras não são aplicáveis ao Ministério Público (nº 4).


7. A 1ª Instância, como se viu já, após apreciação da prova produzida, deu como provado que “O valor dos trabalhos de construção civil de apoio às quatro empreitadas referidas na decisão proferida nos autos principais é de 2,5% de 6.616.831.000$00 (6.686.831.000$00 – 70.000.000$00)”.

O recorrente alega:

– que o valor que se apurou para as quatro empreitadas, na acção declarativa, foi de 6.686.831$00 (facto provado nº 31, na sentença proferida na acção declarativa);

– que a quantia de 70.000$00 já fora paga, como vem provado dos autos principais, remetendo para o ponto 14º da lista de factos provados que consta da respectiva sentença e que, portanto, a fórmula que ficou provada no incidente da liquidação “contraria a prova já fixada na acção declarativa quanto à quantia de 70.000$00, já paga (ponto 14 da matéria de facto) e que tinha de ser deduzida ao montante dos trabalhos de apoio e não ao valor das empreitadas”. Assim:

– há “erro na fixação dos factos materiais da causa, o qual pode ser objecto de revista”, por “ocorrer ofensa duma disposição expressa da lei que fixa a força de determinado meio de prova” , o nº 1 do artigo 671º do Código de Processo Civil anterior (caso julgado material), equivalente ao actual artigo 619º, nº 1, do Código de Processo Civil. Não procede manifestamente esta observação, que equivale a dizer que foi violada a força de caso julgado adquirida pelo julgamento de facto constante daquele ponto 14º, pressuposto que carece de demonstração. Na realidade, porém, o recorrente está a pretender discutir na revista a correcção do julgamento de facto efectuado em 1ª instância, do qual, nem reclamou, nem recorreu para a Relação, o que não é admissível;

– há ainda “erro aritmético notório”, pois, mesmo que a fórmula de cálculo estivesse correcta, porque “o montante de 6.616.832.000$00 corresponde sim a uma quantia de 33.004.613,88 euros, pelo que, aplicando a esta quantia a percentagem fixada de 2,5%, obter-se-ia um valor de 825.115,347 euros e não o montante que foi indicado na sentença de 833.844,31 euros”. Ora, ainda que assim seja, o erro de cálculo devia ter sido invocado em 1ª instância, estando ultrapassada há muito qualquer possibilidade de correcção, nos termos já indicados. E, de qualquer forma, o réu não colocou a questão, em recurso de apelação.

É pois insusceptível de apreciação a existência de qualquer erro aritmético ou de qualquer erro na definição da fórmula de cálculo, mesmo apelando àquela que a recorrida indicou na petição de liquidação.


8. Resta apreciar a questão da actualização do montante a que a sentença chegou, € 833.844,31, que o acórdão recorrido fixou em € 1.400.858,44, por aplicação do “coeficiente de desvalorização da moeda com referência ao [ano] de 1993 – coeficiente esse que, nos termos da Portaria n° 376/2013 de 30.12 é de 1,68.”. Recorde-se que, para encontrar essa data, o acórdão recorrido escolheu o momento em que se estabilizou o valor dos trabalhos realizados nas empreitadas relevantes: “Conforme resulta da factualidade dada por provada na acção declarativa (vide fls. 172 e sgs.), e com interesse específico para a questão, foi dado como provado (n°s 31 e 15) que "em 31.12.1992 o valor dos trabalhos realizados (já medidos e aceites pelo dono da obra) no âmbito das empreitadas à J.E.M era de 6.886,851 contos" e que a J.E.M facturou os trabalhos de apoio de construção civil em 26.02.1993.”

Não há controvérsia entre recorrente e recorrido quanto a este momento de referência. A controvérsia respeita antes à questão de saber se o montante encontrado pela aplicação da percentagem de 2,5 deve ou não ser actualizado (e independentemente agora da correcção ou incorrecção da forma como se procede à dedução dos 70.000.000$00 pagos, da qual se tratou já). Também não há divergência quanto ao critério de actualização escolhido pelo acórdão recorrido.

O recorrente sustenta que se trata de uma obrigação pecuniária que, embora ilíquida, se encontra sujeita ao princípio nominalista, definido pelo artigo 550º do Código Civil; que, portanto, o montante encontrado para o pagamento do preço, apesar de referido a 1992/1993, não pode ser objecto de actualização; a recorrida defende a confirmação do acórdão recorrido.


9. Não resulta do processo que o atraso na liquidação seja imputável à credora ou ao devedor. Pese embora o que a recorrida alega, o que se pode retirar dos autos é a existência de uma divergência quanto à obrigação de proceder a pagamentos que excedam os 70.000.000$00 convencionados e pagos (autos principais) e quanto ao cálculo desses pagamentos (autos da liquidação). A acção principal foi proposta em 2001 e veio a terminar com uma condenação ilíquida, seguindo-lhe o processo de liquidação, iniciado em 2009. Em ambos os processos, houve decisão da 1ª Instância e recurso para a Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça.

A desvalorização do dinheiro, acompanhando o decurso do tempo, para além de ter sido invocada no processo de liquidação, pela autora, foi já considerada facto notório por este Supremo Tribunal; assim, por exemplo, no seu acórdão de 21 de Outubro de 2010, proc. nº Processo nº 454/2001. G1.S1, com sumário disponível em www.stj.pt (”IX - A inflação é um facto notório que não carece de alegação nem prova (art. 514.º do Código de Processo Civil").

Não há dúvida de que não está em causa nenhuma indemnização, como alega o recorrente; o que se pretende nesta acção é liquidar o montante do preço a pagar pelo réu, pelos trabalhos realizados em apoio de determinadas empreitadas. Para o efeito, foi necessário encontrar um critério de cálculo, definido no contexto do disposto no artigo 883º do Código Civil, aplicável à empreitada, como se sabe (artigo 1211º, nº 1, do Código Civil).

Mas esta qualificação como preço não implica necessariamente que se conclua pela aplicação (ou pela não aplicação) do princípio nominalista, definido pelo artigo 550º do Código Civil para as obrigações de quantidade, modalidade das obrigações pecuniárias, e cuja consagração genérica pela lei portuguesa, neste âmbito, não cabe agora discutir. Todos conhecemos as razões que determinaram essa opção legislativa (basicamente, de certeza e segurança) e as dificuldades que levanta quando conjugado com a inflação, ao fazer recair apenas sobre o credor o risco decorrente da depreciação monetária, como recorda, por exemplo, António Pinto Monteiro, Inflação e Direito Civil, Estudos em Homenagem a Ferrer Correia, vol. II, Coimbra, 1989, pág. 871 e segs, págs, 882-883.

Com efeito, a circunstância de ser ilíquido o preço a pagar pelo réu, o que desde logo impede a autora de receber juros de mora correspondentes ao período em que se mantém a iliquidez (nº 3 do artigo 805º do Código Civil), pelo menos quando não se apura que foi por culpa do devedor que a liquidação se não fez, impõe que se afaste o princípio nominalista e que, para este estrito efeito, se não trate como obrigação pecuniária uma obrigação de pagamento de um preço devido por trabalhos não concretizados no momento do acordo, e para cujo cálculo houve que recorrer a um critério supletivamente fixado na lei, que toma como referência o custo desses trabalhos na altura da conclusão do contrato, pois não foi possível encontrar nenhuma definição pelas partes – não fazendo portanto sentido observar que poderia ter sido convencionada a actualização, nos termos permitidos pelo citado artigo 550º do Código Civil.

A justificação geralmente apontada para excluir as chamadas obrigações de valor do âmbito de aplicação é a de que, nestas obrigações, a quantia em dinheiro a que se chega quando são liquidadas é apenas um meio de fixar o valor de um bem ou de reintegrar um património, como sucede, por exemplo, no enriquecimento sem causa ou na indemnização com fundamento em responsabilidade civil, por contraposição com as obrigações cujo objecto é, desde logo, uma quantia em dinheiro (obrigações pecuniárias). Por essa razão, admite-se, por exemplo, que a obrigação de restituição do que foi prestado, em consequência de anulação ou de declaração de nulidade, quando deva ser cumprida mediante a entrega do valor correspondente por não ser possível a restituição em espécie (nº 1 do artigo 289º do Código Civil), deva ser objecto de actualização ao momento da entrega, em função da desvalorização da moeda (assim, nomeadamente, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Junho de 1078, com anotação concordante de Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 112º, pág.9 e segs.; ver ainda também, por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Janeiro de 2008, Revista n.º 4023/07 – 1.ª Secção, com o sumário em www.stj.pt) .

Não se encontra justificação material que suporte um tratamento diametralmente oposto para o caso dos autos, nomeadamente por confronto com esta hipótese. Aqui, a liquidação também tem como objectivo determinar o valor dos serviços prestados ao réu no âmbito das empreitadas dos autos, que não ficou então fixado.

Impõe-se, assim, a actualização do montante encontrado em aplicação do critério que, no processo de liquidação, se entendeu permitir calcular a retribuição a pagar à autora; solução contrária lesaria de forma inaceitável e arbitrária – porque dependente, apenas, de a liquidação ser judicialmente efectuada com maior ou menor rapidez – o equilíbrio contratual entre as partes e a boa fé que consabidamente rege a vida dos contratos (cfr. artigo 762º do Código Civil).


10. Aqui chegados, cumpre ter em conta a alegação do autor de que o réu Estado, após ter sido liquidado, em 1ª instância, o montante de € 833.844,31€, acrescido dos juros de mora então vencidos, procedeu ao respectivo pagamento (somando 851.023,81€, conforme figura no doc. junto com as alegações, a fls. 283). Embora tal pagamento não pudesse ser considerada como renúncia tácita ao recurso, como acima se disse – nem a questão tem agora relevo autónomo, tendo em conta que o réu não interpôs recurso de apelação –, a verdade é que a alegação pela autora de que foi efectuado o pagamento daquela quantia não pode ser ignorada.

Assim, o montante de € 833.844,31€ tem de ser abatido ao preço em dívida; e o restante tem de ser deduzido dos juros de mora que cumpra pagar.


11. Ressalvada esta correcção, resta negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido.


Sem custas, tendo em conta a isenção do recorrente.


Lisboa, 07 de Maio de 2015


Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego