Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2021/16.2T8STS.P1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PROGENITOR
CONDIÇÕES PESSOAIS
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / ALIMENTOS / PESSOAS OBRIGADAS A ALIMENTOS.
Doutrina:
- J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, 2003, p. 378, 533 e 535;
- MOITINHO DE ALMEIDA, Os Alimentos no Código Civil de 1966, 1972, p. 7 e 10;
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume V, 1995, p. 392 e 580.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 2009.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 12-11-2009, PROCESSO N.º 110-A/2002.L1.S1;
- DE 29-03-2012, PROCESSO N.º 2213/09.0TMPRT.P1.S1;
- DE 08-01-2015, PROCESSO N.º 743/12.6TBVNG.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Pela inserção sistemática na Constituição do direito/dever de manutenção dos filhos, nomeadamente no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, esse direito/dever tem natureza de direito/dever fundamental.

II. Semelhante reconhecimento advém ainda das normas e princípios de direito internacional, a que Portugal está vinculado.

III. Face ao interesse superior da criança e à importância dos alimentos devidos a menor, havendo carência, os alimentos têm de ser fixados, não obstante o desconhecimento da situação económica do obrigado.

IV. Os pais, prioritariamente, estão obrigados a prover ao sustento dos filhos, cabendo-lhes desenvolver as diligências necessárias para obter os rendimentos que lhes permitam cumprir a obrigação alimentícia.

V. Existindo os pais, a obrigação de alimentos aos filhos não cabe a qualquer outra pessoa que também possa ser obrigada a prestá-los, no âmbito do disposto no art. 2009.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


     AA instaurou, em 27 de junho de 2016, no Juízo Central de Família e Menores de …., Comarca do Porto, contra BB, ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais, relativamente à filha de ambos, CC, nascida a 29 de setembro de 2009.

Para tanto, alegou, em síntese, que são casados entre si, mas encontrando-se separados desde janeiro de 2016 e sem pretensão de restabelecer a vida em comum; justifica-se a regulação das responsabilidades parentais da menor.

Foi convocada a conferência de pais, com o Requerido a ser através de editais, onde apenas compareceu a Requerente, a quem foram tomadas declarações.

Foi elaborado relatório social sobre a situação social e económica da mãe da menor.

Apresentadas as alegações e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 24 de janeiro de 2018, sentença, que, regulando o exercício das responsabilidades parentais, fixou a residência da menor junto da mãe, estabeleceu que o pai podia visitar a menor e determinou que o pai contribuiria com € 130,00 mensais, para os alimentos da filha, com atualização anual, a partir de janeiro de 2019, de acordo com os índices de preços ao consumidor, publicados pelo INE.

Inconformado com a sentença, o Requerido apelou para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 8 de outubro de 2018, negando provimento ao recurso, confirmou a sentença.


Ainda inconformado, o Requerido interpôs revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:


a) De acordo com o disposto no art. 2004.º, n.º 1, do Código Civil, no caso de ausência ou insuficiência de rendimento do obrigado a alimentos, bem como no caso de desconhecimento da sua situação económica motivada pelo paradeiro incerto, não será de fixar qualquer prestação a seu cargo.

b) Neste sentido aponta ainda o art. 2013.º, n.º 1, alínea b), do CC.

c) Entendimento contrário cairia no puro arbítrio e em clara violação do princípio ínsito no art. 2004.º, n.º 1, do CC.

d) Os menores não ficam desprotegidos, pois a obrigação passa a recair sobre os demais obrigados, nos termos do disposto nos arts. 2013.º, n.º 2, e 2009.º do CC, sendo certo, também, que poderão ser acionados outros mecanismos de proteção de menores a nível da segurança social.

e) A interpretação do art. 2004.º, n.º 1, do CC tem sido deturpada com o objetivo de acionar o FGADM.


Com a revista, o Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido e a substituição da decisão por outra que não fixe, por ora, qualquer pensão de alimentos.


Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.


Por acórdão de 21 de fevereiro de 2019, a Formação a que alude o art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC) admitiu a revista excecional.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Nesta revista, está em discussão a fixação de alimentos a menor, quando é desconhecida a situação económica do obrigado.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


1. Os pais da menor separaram-se em janeiro de 2016.

2. A menor reside com a mãe desde essa data, que lhe vem prestando todos os cuidados de que carece.

3. O agregado familiar é composto pela mãe, pela menor e por dois irmãos desta, com 17 e 18 anos.

4. A mãe aufere € 557,00 por mês, a título de rendimento do trabalho, a que acresce o abono de família, em montante pouco superior a € 100,00 mensais, e pensões de alimentos a favor dos irmãos da menor, no valor total de € 150,00 mensais.

5. O agregado suporta consumos domésticos e os irmãos da menor usam ambos óculos.

6. O pai vive na …, em paradeiro desconhecido, sendo desconhecida a sua situação económica.

7. A última visita do pai à filha foi em janeiro de 2017 e telefonou no último aniversário da menor, mas os contactos têm sido muito pontuais.

8. A mãe não coloca objeções a contactos entre pai e filha, mas objeta a pernoitas, por não confiar no pai.


***



2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de juízos conclusivos, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, e que respeita à fixação de alimento a menor, quando se desconhece a situação económica do obrigado.

As instâncias foram unânimes no julgamento dessa questão, perfilhando o entendimento de que deve fixar-se os alimentos devidos pelo obrigado.

O Requerido, porém, baseando-se em jurisprudência contrária, insiste que, a ser desconhecida a situação económica do obrigado, não será de fixar qualquer prestação de alimentos, sob pena de clara violação do princípio inscrito no art. 2004.º, n.º 1, do Código Civil (CC).

Descrita, sumariamente, a controvérsia emergente do processo, e que tem dividido a jurisprudência, ao ponto de justificar, inclusivamente, a admissibilidade da revista excecional, impõe-se tomar posição sobre a questão jurídica suscitada, em conformidade com o direito aplicável.


A jurisdição de menores é dominada em especial pelo princípio do interesse superior da criança, sendo em sua função a tomada das resoluções nos diversos casos que justificam a intervenção judicial, designadamente na decisão dos litígios que vão dividindo os pais.

Desde logo, a Constituição estabelece que as crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, discriminação e opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições (art. 69.º, n.º 1).

Evidencia-se, de uma forma indelével, serem as crianças autênticos sujeitos de direitos, que revestem diversos conteúdos, podendo citar-se, entre outros, o direito ao integral desenvolvimento físico, intelectual e moral e o direito ao respeito pelas suas ligações psicológicas profundas e pela continuidade das relações afetivas e do seu interesse.

Por outro lado, a Constituição fixa também, com particular relevo, que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos (art. 36.º, n.º 5).

Em termos de lei ordinária, está previsto que, por efeito da filiação, os pais têm para com os filhos o dever de assistência, que compreende a obrigação de lhes prestar alimentos – arts. 1874.º e 1878.º, n.º 1, ambos do Código Civil (CC).

Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, assim como, no caso de menor, à instrução e educação – art. 2003.º do CC.

Os alimentos são proporcionais aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los – art. 2004.º do CC.

Perante este conjunto normativo, para a medida dos alimentos, interessa considerar, por um lado, as necessidades do alimentado e, por outro, as possibilidades do obrigado. Trata-se, como realçam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, das “coordenadas fundamentais pelas quais o juiz, sempre apoiado nos critérios do bom senso, se há de orientar para fixar o montante da prestação alimentícia” (Código Civil Anotado, Volume V, 1995, pág. 580). Nas necessidades do alimentando há que atender, para além do custo médio normal e geral da subsistência, às circunstâncias especiais da pessoa a alimentar, como, entre outras, a idade e a situação social (MOITINHO DE ALMEIDA, Os Alimentos no Código Civil de 1966, 1972, pág. 7). Nas possibilidades do obrigado, importa ponderar o nível dos seus rendimentos e as despesas a que também está sujeito (MOITINHO DE ALMEIDA, ibidem, pág. 10).


Enunciado o quadro normativo que regula a matéria, é altura de enfrentar de forma mais direta a questão suscitada no recurso, nomeadamente a fixação de alimentos quando é desconhecida a situação económica do obrigado.

Pela inserção sistemática na Constituição do direito/dever de manutenção dos filhos, nomeadamente no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, esse direito/dever tem natureza de direito/dever fundamental, o que inegavelmente lhe confere uma “especial dignidade de proteção dos direitos num sentido formal e num sentido material”, sendo ainda diretamente exigível (J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, 2003, págs. 378, 533 e 535).

Semelhante reconhecimento advém ainda das normas e princípios de direito internacional, a que Portugal está vinculado nos termos do art. 8.º da Constituição da República Portuguesa, designadamente a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12 de setembro (art. 6.º, n.º 2).

A importância atribuída à fixação dos alimentos permite explicar a tutela penal conferida à violação da obrigação de alimentos (art. 250.º do Código Penal), a particular compressão, na execução, quando o crédito é de alimentos (art. 738.º, n.º 4, do CPC) e ainda a garantia, oferecida pelo Estado, quanto aos alimentos devidos a menores (Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, e DL n.º 164/99, de 13 de maio). Este realce encontra-se expresso e desenvolvido, nomeadamente no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de novembro de 2009 (110-A/2002.L1.S1), acessível em www.dgsi.pt.

Face ao afirmado interesse superior da criança e à importância dos alimentos devidos a menor, havendo carência, os alimentos têm de ser fixados, não obstante o desconhecimento da situação económica do obrigado.

Os pais, prioritariamente, estão obrigados a prover ao sustento dos filhos, cabendo-lhes desenvolver as diligências necessárias para obter os rendimentos que lhes permitam cumprir a obrigação alimentícia.

Conhecendo embora as necessidades do menor, o desconhecimento da situação económica do obrigado a prestar alimentos, não obsta à fixação dos alimentos.

Na verdade, os pais, não podendo ignorar a necessidade de alimentos dos filhos menores, têm o dever de adquirir os meios económicos de modo a poderem satisfazer condignamente os alimentos devidos aos filhos. Não estando o obrigado impossibilitado, total ou parcialmente, de adquirir os meios económicos, o que lhe competia demonstrar, poderá partir-se da presunção, que as instâncias podem utilizar, de que o obrigado dispõe de meios económicos, designadamente do chamado rendimento mínimo garantido, com probabilidades de ser superior ao vigente em Portugal.

Deste modo, com natural prudência, pode observar-se a regra da proporcionalidade prevista no art. 2004.º do CC.

É certo que as circunstâncias para a fixação dos alimentos, nomeadamente quanto ao obrigado, padecem de imprecisão, mas, no entanto, não são inexistentes. Inversamente, as necessidades do alimentado são certas, carecendo de satisfação por parte de quem tem obrigação, em especial pelos pais.

Nesta ponderação de valores, não pode deixar de prevalecer o interesse superior da criança, nomeadamente o direito a alimentos, sobre a imprecisão ou desconhecimento da situação económica do obrigado.

Nesta matéria, não pode esquecer-se a predominância da aplicação, legal, do juízo de equidade (não confundível com o arbítrio ou a subjetividade), para além das resoluções poderem ser alteradas, nomeadamente nos termos do art. 988.º do CPC.

Ao contrário do que se alega no recurso, a obrigação de prestar alimentos, por outras pessoas que também podem ser obrigadas, nos termos do art. 2009.º do CC, só nasce quando os obrigados prioritários faltam. Assim, existindo os pais, a obrigação de alimentos aos filhos não cabe a qualquer outra pessoa que também possa ser obrigada a prestá-los (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ibidem, pág. 392).


Garantindo ainda o Estado os alimentos devidos a menores, como antes se aludiu, não pode desvalorizar-se a sua fixação, de modo a que, em caso de incumprimento do obrigado, o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores possa assegurar o pagamento dos alimentos e permitir a sua sub-rogação.

De outro modo, os menores poderiam ficar abandonados e desprotegidos e ainda comprometer o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade e, por outro lado, frustrar a garantia oferecida pelo Estado.

Neste contexto, apresenta-se como legal a fixação dos alimentos devidos a menor, como decidiram as instâncias, não obstante o desconhecimento (concreto) da situação económica do obrigado a alimentos.

Neste mesmo sentido, tem vindo a pronunciar-se o Supremo Tribunal de Justiça, designadamente nos acórdãos de 29 de março de 2012 (2213/09.0TMPRT.P1.S1) e de 8 de janeiro de 2015 (743/12.6TBVNG.P1.S1), também acessíveis em www.dgsi.pt.


Nega-se, assim, a revista e confirma-se o acórdão recorrido, o qual não violou qualquer disposição legal, designadamente as especificadas pelo Recorrente.


2.4. O Recorrente, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.


2) Condenar o Recorrente (Requerido) no pagamento das custas.


Lisboa, 11 de abril de 2019


Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

José Sousa Lameira