Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
102/12.0T2AND.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: FIDEICOMISSO
SUBSTITUIÇÃO
CADUCIDADE
DIREITO DE ACRESCER
VONTADE DO TESTADOR
DECLARAÇÃO TÁCITA
Data do Acordão: 05/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS SUCESSÕES / ABERTURA DA SUCESSÃO E CHAMAMENTO - SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA / SUBSTITUIÇÃO FIDEICOMISSÁRIA / DIREITO DE ACRESCER.
Doutrina:
- A. GONÇALVES COIMBRA, O Direito de Acrescer no Novo Código Civil, 1974, pp. 56 e ss..
- C. FERREIRA DE ALMEIDA, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, II, p.718.
- FERRER CORREIA, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, 225.
- GALVÃO TELLES, Direito de Representação, Substituição Vulgar e Direito de Acrescer, 171-172, 199, 217 pp. e ss., 259; BMJ 54º-1209.
- MOTA PINTO, Teoria Geral, 3.ª ed., p. 425.
- P. DE LIMA e A. VARELA, “Código Civil”, Anotado, VI, p. 462.
- P. PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª ed., p. 298.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, N.º2, 236.º, 238.º, 2041.º, N.º2, AL. A), 2187.º, 2288.º, 2293.º, N.ºS 2 E 3, 2304.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 721.º, 722.º.
Legislação Comunitária:
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 29/09/1992, PROC. 081544,EM WWW.DGSI.PT E BMJ 419º-716;
-DE 06/06/2000, IN BMJ 498º-241;
-DE 30/01/2003, PROC. 02B4448, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 23/09/2008, PROC. 08A2125, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Assentando o afastamento do direito de acrescer na presunção de existência de uma substituição tácita do substituído ao substituto para o caso de este não poder ou não querer aceitar a deixa, sem que a lei lhe atribua a natureza de inilidível ou “juris et de jure” ou, por outra via, vede o funcionamento do instituto, como o faz relativamente ao da representação, sobrará o princípio enformador, em matéria de sucessão testamentária, da prevalência da vontade do testador.

II - A norma contida no n.º 2 do art. 2293.º do CC não tem carácter imperativo, prevalecendo o conteúdo do testamento, como resultar da respectiva interpretação.

III - Nada na lei ou no sistema jurídico aplicável exige declaração expressa do testador com indicação concreta dos beneficiários da substituição (fideicomissários), como condição de afastamento da solução acolhida no n.º 2 do art. 2293.º CC.

IV - O que está em causa, em qualquer caso, seja por via de declaração expressa, seja por via de declaração tácita do testador é o conhecimento seguro da sua vontade, a revelar-se pelos meios normais admitidos em sede de hermenêutica jurídica sobre a declaração negocial.

V - Declaração expressa e declaração tácita têm, em regra, o mesmo valor.

VI - Na interpretação do testamento, vale a vontade querida pelo testador, apenas com a limitação da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa no contexto do testamento, exigida pela sua natureza formal.

VII - Essa interpretação, de cariz subjectivista, a reflectir o sentido atribuído à declaração pelo respectivo autor, deve ser acolhida reportada ao tempo da elaboração e aprovação do texto, mas sem desprezar a globalidade das circunstâncias reconhecíveis ao tempo da sua abertura.
Decisão Texto Integral:

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA e mulher, BB, instauraram acção declarativa contra CC e mulher, DD, EE e FF e mulher, GG, pedindo o reconhecimento do direito de propriedade de HH, por sucessão testamentária de II, desde da data do óbito deste, e do direito de propriedade do Autor, por sucessão hereditária de HH, dos bens imóveis que identificam, com o consequente cancelamento dos registos prediais referentes à acção judicial averbada nos referidos prédios, considerando-se definitivos os registos prediais referentes à aquisição testamentária desses prédios a favor de HH e à sua aquisição, por via hereditária, a favor do ora Autor. Pedem ainda que os terceiros Réus sejam condenados a restituir aos Autores os frutos percebidos e as rendas recebidas com a fruição e o arrendamento dos bens supra mencionados, a determinar em execução de sentença.

Alegaram, para o efeito, em síntese, que:

   em 13/1 0/1967, II outorgou um testamento nos termos do qual deixava à sua mulher, JJ, a quota disponível ou todos os seus bens, consoante o testador tivesse ou não herdeiros legitimários à data da sua morte, instituindo ainda um fideicomisso, nos termos do qual os bens herdados por força do testamento reverteriam para as irmãs dele, testador, à morte de JJ. Caso a sua mulher falecesse prévia ou simultaneamente a ele, a quota disponível da sua herança seria deferida para as suas irmãs;

  o testador não teve descendentes, faleceu em …/0…/19… e, em …/…/19…, foram habilitadas como herdeiras do falecido a viúva, como herdeira legitimária e como fiduciária da quota disponível, e as três irmãs do falecido, como fideicomissárias da mesma quota disponível;

   em 12/2/1988, foi celebrada escritura de partilha entre viúva e as três irmãs do testador, em que as partes determinaram os prédios sujeitos ao fideicomisso e que reverteriam, à morte da fiduciária, para as fideicomissárias que ainda fossem vivas, em comum e em partes iguais;

   as fideicomissárias KK e LL faleceram antes da fiduciária, JJ, apenas lhe sobrevivendo a fideicomissária HH a quem sucedeu o Autor, seu único filho;

  os terceiros Réus arrogaram-se a qualidade de proprietários dos bens sujeitos ao fideicomisso, tendo, desde 2008, usufruído indevidamente dos mesmos, dos quais recebem rendas, fazendo seus os frutos naturais (eucaliptos).

Mais articularam que era intenção de II que os referidos bens se mantivessem na sua família de origem, pelo menos no âmbito da quota disponível da sua herança, sendo que a fideicomissária sobreviva teve ainda direito a acrescer as quotas ideais das suas irmãs nos ditos bens, após o falecimento destas.

Os Réus FF e mulher, GG, contestaram e deduziram pedidos reconvencionais.

Sustentaram que, por força da escritura de partilhas referida, todos os bens integrantes da herança do falecido II foram então adjudicados à viúva e ali primeira outorgante, JJ, abrangendo os três imóveis sujeitos ao fideicomisso, passando, assim, a fiduciária JJ a exercer, por força daquela escritura, em relação aos três imóveis sujeitos ao fideicomisso, o legítimo direito de titularidade sobre coisa própria, apenas com os ónus definidos no art. 2286º do Código Civil, situação que se manteve até à data da sua morte, ocorrida em 23/01/2008, altura em que, em virtude de terem já falecido, as fideicomissárias LL e KK não puderam aceitar a deixa, ficando sem efeito a respectiva substituição e passando a radicar no acervo da fiduciária, desde a morte do testador, o direito definitivo sobre tais bens (art.º 2293º, n.º 2 do CC). Porque os três bens deveriam ser transmitidos às fideicomissárias em comum e partes iguais, e duas delas não puderam aceitar a deixa, apenas em relação à terça parte respeitante à fideicomissária HH a substituição se operou, não podendo aquela receber mais do que aquilo que lhe foi deixado, ou seja, um terço indiviso de cada um dos três imóveis em causa, tendo-se as restantes duas terças partes daqueles imóveis consolidado definitivamente, desde a morte do referido II, na esfera jurídica de sua esposa (herdeira legitimária e fiduciária) JJ, por força da disposição legal imperativa constante do n.º 2 do art. 2293º do Código Civil, não podendo a fideicomissária sobrevivente invocar qualquer direito de representação (art. 2041º, n.º 2. alínea b), do CC) nem de acrescer ou de não decrescer (arts. 2301º a 2306º), direitos inexistentes no caso em virtude de disposição legal expressa que define a situação jurídica e os seus efeitos (art. 2293º, n.º 2. do CC).

Admitem terem recebido rendas daqueles prédios e procedido ao corte de algumas árvores (eucaliptos) que se encontravam em estado de corte e em risco de perecer por perigo de incêndio, disponibilizando-se para apresentar contas, proporcionalmente ao direito que aos Autores venha a ser atribuído.

Reconvencionalmente, pediram que fosse reconhecido que, por caducidade das substituições fideicomissárias instituídas a favor de LL e KK no testamento outorgado por II em 13.10.1967 e na escritura de partilhas celebrada em 12.02.1998, as duas terças partes dos imóveis aí definidos como objecto do fideicomisso passaram a integrar definitivamente a esfera jurídica da fiduciária JJ, desde a data da morte daquele II ocorrida em 31.10.1985; que os Réus reconvintes são legítimos donos e proprietários de duas terças partes indivisas de cada um dos imóveis por eles identificados e questionados na presente acção, por os terem adquirido por sucessão testamentária de JJ e que os AA. sejam condenados a absterem-se de praticar qualquer acto ou facto que impeça o livre exercício por parte dos Réus do seu direito assim definido; e, ainda, que seja determinado o cancelamento de todos os registos efectuados na Conservatória do Registo Predial competente que contrariem a situação ora peticionada e, consequentemente, reduzir os registos existentes à exacta dimensão do direito dos AA., isto é, a uma terça parte dos imóveis referenciados.

Após audiência de discussão e julgamento, a acção foi julgada totalmente procedente.

Os Réus contestantes interpuseram este recurso de revista “per saltum” visando a revogação da sentença e, com ela, a sua absolvição dos pedidos e a procedência da reconvenção.

Para tanto, argumentam nas conclusões da respectiva alegação:

   “1.ª Aceita-se, como correcta e legal, a decisão da douta sentença recorrida segundo a qual não se verifica, in casu, o instituto jurídico do direito de acrescer ou sequer de não decrescer previsto no art. 2031, n.º 1, do Código Civil;

   2.ª Não havendo lugar à aplicação normativa daqueles institutos, não pode nunca verificar-se a transferência, da esfera jurídica da fiduciária para a esfera jurídica da fideicomissária sobreviva, das partes que deveriam caber às fideicomissárias pré-falecidas;

   3.ª Isto porque, para a hipótese sub-judice, rege o disposto no art. 2293, n.º 2, do Código Civil, que impõe que, no caso de as fideicomissárias não poderem aceitar a herança, esta não chega a sair da esfera jurídica da fiduciária, por esta se considerando definitivamente adquirida;

   4.ª Tal regime é imposto por lei, não podendo ser derrogado por vontade ou desejo das partes, embora possa ceder perante declaração em contrário produzida pelo testador (PIRES DE LIMA e ANTUNES V ARELA, Cód. Civil Anotado, vol. VI, pág. 462/463);

   5.ª Tal declaração tem que ser expressa, contrariando inequivocamente a solução decorrente daquele preceito legal (art. 2292, n.º 3, do CC) e indicando concretamente os beneficiários da substituição directa;

   6.ª Tais exigências decorrem apodicticamente do facto de aqui não vigorarem as regras do instituto da representação (art. 2041, n.º 2, alínea b), do CC) nem do instituto do direito de acrescer (art. 2301, n.º 1, do CC), conforme a própria sentença reconhece;

   7.ª As regras de interpretação dos testamentos constantes do art. 2187, n.º 1, do Código Civil, a que deve deitar-se mão em caso de dúvidas sobre a vontade do testador, não podem ser chamadas para se concluir pela inaplicabilidade do regime legal consignado no art. 2293, n.º 2, do CC, sobretudo quando não existe qualquer declaração do testador que contrarie a adequação da aplicação ao caso daquele regime legal;

   8.ª Caso em que deve aplicar-se o regime daquele preceito legal (art. 2293, n.º 2, do CC);

   9.ª A tal não obsta, como é óbvio, a matéria de facto dada como provada sobre a intenção do testador, pois que precisamente esta surtiu efeito em relação a uma das fideicomissárias e, em relação às outras, é por efeito legal impeditivo decorrente do disposto no art. 2293, n.º 2, do CC (morte das fideicomissárias) que a aceitação se não pôde dar;

   10.ª Não é mais legal nem menos legal qualquer das situações previstas no n.º 1 ou no n.º 2 daquele preceito legal (art. 2293 do CC), pois cada uma delas pressupõe a verificação dos requisitos que fazem desencadear o respectivo (diverso) tratamento legal;

   11.ª A intenção assinalada ao testador, mau grado definida nos termos assinalados, nunca poderia ter o condão de surtir efeito de transferência dos bens para qualquer das fideicomissárias, desde que não se tivesse verificado a condição de que se fizera depender tal acto, isto é, desde que estas não tivessem sobrevivido à fiduciária (art. 2293, n.º 2, do CC);

   12.º Tudo conforme aliás, na escritura de partilhas referida em G dos factos assentes (facto n.º 7 elencado na sentença a pág. 10/11), fiduciária e fideicomissárias estabeleceram, em cumprimento - conforme expressamente declararam - das disposições testamentárias do testador, definindo claramente que tais disposições só eram válidas se as fideicomissárias sobrevivessem à fiduciária, ou seja, o mesmo é dizer que só as fideicomissárias que sobrevivessem poderiam beneficiar das deixas que lhe estavam sendo definidas e atribuídas;

   13.ª Termos em que a douta sentença recorrida, ao conceder procedência à acção, violou, por errada interpretação e aplicação, as disposições legais citadas nas conclusões precedentes, que aqui se dão como repetidas”.

         Os Autores responderam em defesa da manutenção do sentenciado.

         2. - A questão decidenda, como resulta das conclusões dos Recorrentes, vem definida na sentença impugnada e admitida pelos Recorrentes, consiste em saber se, declarando o testador, ao instituir o fideicomisso, que “a sua quota disponível pertencerá às irmãs do testador”, mas sobrevivendo apenas uma das três irmãs à fiduciária, todos os bens que constituíram o fideicomisso são herdados pela fideicomissária sobrevivente ou a parte que caberia às fideicomissárias pré-falecidas integra o património da fiduciária.     

         3. - Vem assente o quadro factual que segue.

 

1. Com data de 13/10/1967, II outorgou um testamento público no Cartório Notarial de ..., declarando, além do mais que: "sua mulher JJ herdará toda a sua quota disponível ou todos os seus bens, consoante o testador tenha ou não herdeiros legitimários. À morte de sua mulher, porém, os bens por ela herdados por força deste testamento, reverterão para as irmãs do testador, mas sem prejuízo da faculdade concedida pelo disposto no artigo dois mil duzentos e noventa e um do Código Civil. Se sua mulher lhe não sobreviver e mesmo na hipótese de um e outro falecerem simultaneamente, a sua quota disponível pertencerá às irmãs do testador." (documento de fls. 19 e ss).

2. As irmãs do testador eram LL, HH e KK.

3. O testador não teve descendentes e faleceu em 31/01/1985, conforme consta do averbamento no testamento referido em 1.

4. Em escritura de habilitação de herdeiros outorgada em 16/05/1986, no Cartório Notarial de ..., em que compareceram MM, FF e NN, por todos foi declarado:

"Que no dia trinta e um de Janeiro de mil novecentos e oitenta e cinco nesta cidade, freguesia e concelho de ..., onde teve a sua última residência habitual (..) faleceu II no estado de casado em primeiras núpcias de ambos e sob o regime de comunhão geral de bens com JJ (..)"

"Que o falecido deixou testamento outorgado no dia treze de Outubro de mil novecentos e sessenta e sete neste Cartório (..) no qual dispôs dos seus bens pela forma seguinte:

" sua referida esposa, JJ, herdaria toda a sua quota disponível ou todos os seus bens, consoante à data da sua morte ele testador tivesse ou não herdeiros legitimários; que à data da morte daquela sua mulher, porém, os bens por ela herdados por força do testamento, reverteriam para as irmãs dele testador. "

"Que as irmãs do falecido e testador são as seguintes: "- LL (. . .)

"- KK (..) "- HH (..)

"Que porém face às alterações introduzidas no Código Civil, e particularmente no direito das sucessões, pelo Decreto-Lei quatrocentos e noventa e seis barra setenta e sete de vinte e cinco de Novembro - alterações posteriores à feitura do referido testamento (..) - se deve considerar o fideicomisso imposto no referido testamento como restringido à quota disponível do falecido, uma vez que a referida JJ passou a ser, em consequência das referidas alterações, herdeira legitimária de seu marido." (doc. de fls. 21 e ss.)

   5. Através da Apresentação n.º 3 de 1986/1 0/24 foi registada sobre os prédios descritos na Conservatória de Registo Predial de ... sob n.º …; n.º …; e n.º …, em que figuram com Sujeito Activo JJ e como Sujeito Passivo II, aquisição por sucessão legítima e testamentária com "cláusula fideicomissária que recai sobre a quota disponível do autor da herança, instituída a favor de LL (..); HH (..); e KK (..)." (doc. de fls. 40 e ss)

   6. No dia 12/02/1988, no Cartório Notarial de ..., da Licenciada DD, Notária, foi outorgada escritura de "Partilha" em que compareceram como outorgantes:

"Primeira: JJ, viúva, natural da freguesia e concelho de ..., residente nesta Cidade, na Avenida …."

"Segunda: HH, que também usa HH, viúva, natural da freguesia de …, deste concelho, residente na Rua …, …, 1º direito em Lisboa, a qual outorga por si e como procuradora de:

"LL, viúva, natural de …, …, Brasil, residente em Lisboa, na Avenida …, …, 4.º andar, direito".

"Terceira: KK, casada com PP sob o regime de separação de bens, natural da freguesia de …, deste concelho e residente nesta Cidade de .... "

"E por elas foi dito:

"Que no dia trinta e um de Janeiro de mil novecentos e oitenta e cinco, nesta cidade, freguesia e concelho de ..., onde teve a sua última residência habitual na Avenida ..., faleceu II, no estado de casado em primeiras núpcias de ambos e sob o regime de comunhão geral de bens com a primeira outorgante JJ, o qual era natural da freguesia de …, deste concelho. "

"Que o falecido deixou testamento outorgado em treze de Outubro de mil novecentos e sessenta e sete neste Cartório, lavrado a fls. seis verso e seguinte do livro próprio número catorze, no qual dispôs de seus bens pela forma seguinte: "

"Sua referida esposa, JJ, herdaria a sua quota disponível ou todos os seus bens, consoante à data da sua morte ele, testador, tivesse ou não herdeiros legitimários; que à morte daquela sua mulher, porém, os bens herdados por força do testamento reverteriam para as irmãs do testador. "

"Que, porém, face às alterações introduzidas no Código Civil, particularmente no direito das sucessões pelo decreto-lei quatrocentos e noventa e seis barra setenta e sete, de vinte e cinco de Novembro - alterações posteriores à feitura do referido testamento - se deve considerar o fideicomisso imposto no referido testamento como restringido à quota disponível do falecido, uma vez que a viúva, JJ, passou a ser, em consequência das referidas alterações, herdeira legitimária de seu marido. "

"Que, assim, foram únicas herdeiras do falecido: a viúva, como sua herdeira legitimária e como fiduciária da quota disponível de seus bens e as referidas três irmãs LL, KK e HH, como fideicomissárias da mesma quota disponível do testador" (doc. de fls. 26 e ss);

   7. Declararam ainda que "Que os bens que constituíam o património comum do casal dissolvido são os constantes de um documento complementar elaborado nos termos do artigo setenta e oito, número um do Código do Notariado, que fica arquivado e faz parte integrante desta escritura.

"Todos os prédios - situados no concelho de ... e de Aveiro - estão descritos nas Conservatórias do Registo Predial respectivas, encontrando-se lá regista dos a favor da viúva (com a cláusula fideicomissária que recai sobre a quota disponível do autor da herança instituída a favor das irmãs dela) cada um dos situados neste concelho de ... por uma inscrição G-um e o situado em Aveiro pela inscrição G-dois; os rústicos não confinam com outros pertencentes à herança e atribuem a todos, para efeitos desta partilha, valores iguais aos matriciais referidos, no total de nove milhões e doze mil quatrocentos e cinquenta escudos"

"Deste modo, quatro mil quinhentos e seis mil duzentos e vinte e cinco escudos é o valor da meação da viúva e igual montante o da herança do falecido, representando dois milhões duzentos e cinquenta e três mil cento doze escudos e cinquenta centavos o valor da quota disponível do mesmo. "

"Todos os bens são por esta escritura adjudicados à viúva e primeira outorgante, JJ, acordando todas em que, para cumprimento das disposições testamentárias do falecido, os prédios sujeitos ao fideicomisso são os identificados sob os números dois, onze e catorze, que assim, reverterão à morte da fiduciária, se ocorrer antes da das fideicomissárias, para estas em comum e partes iguais. "(doc. de fls. 26 e ss)

   8. Os prédios identificados sob os números dois, onze e catorze a que aludiu a escritura referida em 7., foram identificados na relação de bens anexa à dita escritura, como:

a) "DOIS - Terreno de cultura (..) sito na "Quinta ..." (..) inscrito na matriz. rústica sob o artigo seis mil quatrocentos e oitenta e um (..) descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número zero zero cinco sete dois."

b) "ONZE - Casa com dois pavimentos (..) sita no ..., inscrita na matriz urbana sob o artigo seiscentos e sessenta e cinco ( . .) descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número zero zero cinco oito zero."

c) "CATORZE - Terreno a eucaliptal (..) sito no "P..." (..) inscrito na matriz  rústica sob o artigo mil quinhentos e cinquenta e seis (..) descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número zero zero seis zero oito." (doc. de fls. 26 e ss, a fls. 34 e ss);

   9. KK faleceu em …/…/19… (doc. de fls. 58/59).

   10. LL faleceu em …/…/19… (doc. de fls. 60/61).

   11. JJ faleceu em …/…/20… (doc. de fls. 62/63).

   12. HH faleceu em …/…/20… (doc. de fls. 64).

   13. Por escritura de habilitação de herdeiros lavrada em 01/10/2009, no Cartório Notarial da Notária QQ, de fls. 96 a 97 do livro de notas para escrituras diversas n.º 153-A, foi habilitado AA como único herdeiro de HH. (doc. de fls. 65 e ss).

   14. Sobre os prédios descritos na Conservatória de Registo Predial de ... sob n.º …; n.º …; e n.º … encontra-se recusada a Ap. 3317 de 2009/11/17 e lavrada provisória por natureza a Ap. 3318 de 2009/11/17 - Aquisição/Sucessão hereditária, em que figura como Sujeito Activo AA e como Sujeito Passivo HH (doc. de fls. 40 e ss).

   15. Sobre os mesmos prédios descritos na Conservatória de Registo Predial de ... sob n.º …; n.º …; e n….  encontra-se registada através de Ap. 19 de 2008/11/27 Acção, figurando como Sujeitos Activos EE e CC, e como Sujeitos Passivos RR, FF e mulher, SS, TT, UU, DD, VV, sendo o pedido "a) que seja reconhecida e declarada a falsidade do testamento lavrado a 23 de Fevereiro de 2007, com a consequente ineficácia das deixas testamentárias dele objecto; b) subsidiariamente, que seja reconhecida a anulabilidade do aludido testamento, decretando-se a respectiva nulidade, com as respectivas consequências legais; c) de que, em consequência da procedência de qualquer um dos pedidos anteriores, seja determinado o cancelamento nas competentes Conservatórias do Registo Predial de quaisquer inscrições já efectuadas ou que venham a ser efectuadas, de direitos emergentes do aludido testamento, incluindo do direito de propriedade que, por força do mesmo se transmitiu para os 6.ºs RR (FF e mulher GG) e 7.ª  Ré (UU)." (doc. de fls. 40 e ss).

   16. Corre termos na Comarca do Baixo Vouga, no Juízo de Grande Instância Cível da Anadia, Juiz 2, sob o n.º 2388/08.6TBAGD, acção declarativa em que são Autores os aqui 1.º e 2.º RR., CC e EE, e em que são Réus, além de outros, os aqui 3.ºs RR FF e mulher GG, em que se discute a validade de testamento outorgado em 23 de Fevereiro de 2007 por JJ.

   17. Por testamento outorgado em 2302/2007 na Avenida …, n.º 49, da cidade de ..., perante a Licenciada DD, Notária, JJ declarou "Que, pelo presente testamento, lega a UU, sua casa de habitação, com pátio, logradouro e quintal, sita na Avenida …, nesta cidade, descrita na Conservatória do Registo Predial concelhia sob o número quinhentos e oitenta e dois, instituindo únicos herdeiros do remanescente de sua herança FF e mulher GG (..)." e que constitui o documento n.º  5 da petição inicial dos autos referidos em 16. (doc. de fls. 79 e ss, a fls. 104 e ss).

   18. Naqueles autos referidos em 16, os ali Autores e aqui 1.º  e 2.º  RR identificaram no art. 119.º da sua petição, como fazendo parte da herança de JJ os bens referidos em 8. (doc. de fls. 79 e ss).

   19. Sobre os prédios referidos em 8, descritos na Conservatória de Registo Predial de ... sob n.º …; n.º …; e n.º … encontra-se recusada a Ap. 3317, de 2009 11/17 e lavrada provisória por natureza a Ap. 3318, de 2009/11 17. ¬Aquisição/Sucessão hereditária, em que figura como Sujeito Activo AA e como Sujeito Passivo HH (doc. de fls. 40 e ss).

   20. Através da Apresentação n.º 2452, de 2009/03/25, foi registada sobre os prédios descritos na Conservatória de Registo Predial de ... sob n.º … e n.º …, aquisição, provisória por natureza e dúvidas, por sucessão testamentária, em que figuram com Sujeitos Activos FF e GG e como Sujeito Passivo JJ. (doc. de fls. 318 e ss).

   21. Encontram-se averbadas em nome dos Réus FF e GG as cadernetas prediais dos prédios descritos na Conservatória de Registo Predial de ... sob n.º … e n.º …, respectivamente artigos matriciais …, … e …(doc. de fls. 72 a 75).

   22. Nos autos referidos em 16, os aqui e ali Réus FF e GG juntaram à sua contestação o testamento outorgado por II, referido em 1.

   23. Os Réus FF e GG arrogaram-se da qualidade de comproprietários de 2/3 indivisos dos bens referidos em 8.

   24. E desde 2008 que têm recebido as rendas da propriedade agrícola constituída pelos prédios identificados em a) e b) de 8.

   25. Procederam ainda ao corte e venda dos eucaliptos do prédio identificado em c) de 8.

   26. Os Réus FF e GG são conhecedores da instituição do fideicomisso pelo testador II a favor de suas irmãs.

   27. Os familiares próximos sabiam desta deixa testamentária e os Autores sempre privaram com II e sua mulher JJ, sendo visitas de sua casa.

   28. Era intenção de II que os seus bens se mantivessem na sua família de origem, pelo menos no âmbito da quota disponível da sua herança.

   29. Nunca os Autores comunicaram aos Réus FF e GG quaisquer indicações sobre a administração que eles vêm fazendo dos bens referidos em 8.

   30. Nunca os Autores se disponibilizaram ou ofereceram para colaborar com os Réus FF e GG para suportar qualquer despesa referente aos imóveis.

         4. - Mérito do recurso.

         4. 1. - Na sentença impugnada entendeu-se que, apesar de parecer unânime o entendimento que a falta de aceitação do fideicomissário faz caducar a instituição ou o direito de acrescer, porque a situação do fiduciário, como titular do direito a termo incerto, demanda que a disposição fique sem efeito, como resulta do art. 2293º C. Civil, o que leva a afastar o direito de acrescer ou de não decrescer invocados pelos Autores, essa solução do n.º 2 do referido preceito não tem carácter imperativo, porque nenhuma razão há para não se acatar a vontade do testador, em contrário do disposto na norma, desde que não envolva uma substituição em 2º grau. Depois, por se ter ponderado que, no caso, a vontade do testador se revela no sentido de afastar a referida solução, decidiu-se no sentido de atribuir todos os bens que integraram o fideicomisso à fideicomissária que sobreviveu à fiduciária.

         Os Recorrentes insurgem-se contra tal posição, a pretexto de que a solução do n.º 2 do art. 2293º – de ficar sem efeito a substituição e a titularidade dos bens hereditários se considerar adquirida definitivamente pelo fiduciário – só pode vir a ceder se existir declaração expressa do testador em contrário, se o testador tiver declarado, de forma expressa, que quer afastar a solução decorrente da lei, indicando concretamente outros beneficiários.

         Ou seja, como vem alegado, o regime do art. 2293º-2 é imposto por lei, tem de ser aplicado, e só pode ceder perante declaração expressa do testador que o contrarie inequivocamente e indique concretamente os beneficiários da substituição directa, o que decorre do facto de não vigorarem as regras do instituto da representação nem do do direito de acrescer.

Tais os limites em que os Recorrentes aceitam a derrogação ou não imperatividade da norma em causa.

 

         4. 2. - Do que vem de dizer-se já se vê que o que, mais restrita e essencialmente, está sob disputa é saber qual o alcance da quebra de imperatividade da norma do art. 2293º-2, que os Recorrentes parece acabarem por admitir: - se nos termos adoptados na sentença, isto é, se por interpretação do testamento, designadamente por recurso ao regime da declaração tácita; ou, - se apenas, e só, quando o testador tenha declarado, de forma expressa, que quer afastar a solução acolhida pela dita norma, indicando concretamente outros beneficiários.

         4. 3. - Parece não se colocarem grandes dúvidas sobre o alcance do n.º 2 do art. 2293º no sentido de afastar, como regra, o direito de acrescer na substituição fideicomissária.

         O direito de acrescer, consagrado nos arts. 2301º e ss. do C. Civil, opera ope legis e funda-se na vontade presumida do testador.

         Tal fundamento revela-se bem na norma do art. 2304º, ao estabelecer uma presunção “juris tantum” de acrescimento, pois que imediatamente ressalva ou exclui o direito “se o testador tiver disposto outra coisa”.

         Consequentemente, verificados os pressupostos de acrescer - unidade de objecto e pluralidade de sujeitos chamados -, não estabelecendo o testador uma substituição e não resultando do testamento uma diversa vontade do “de cujus”, funciona o instituto do direito de acrescer.

Traduz-se, assim, o acrescer, numa “vocação autónoma que, colocando o beneficiário da porção vaga no lugar daquele a quem era destinada, tem a forma de uma vocação indirecta, isto é, de uma substituição, tendo por fundamento a vontade do testador, sendo, pois, uma substituição vulgar presumida pela lei …porque o herdeiro que recebe a porção acrescida sucede nela como sucederia aquele que faltou, a título de substituto e por a lei presumir que o testador assim o quis” (vd. A. GONÇALVES COIMBRA, “O Direito de Acrescer no Novo Código Civil”, 1974, pp. 56 e ss.; GALVÃO TELLES, “Direito de Representação, Substituição Vulgar e Direito de Acrescer”, 217 pp. e ss.).

4. 4. - O n.º 2 do art. 2293º, corresponde ao art. 1868º do Código de Seabra, preceito que já dispunha que “se o fideicomissário não aceitar a herança ou o legado, ou se falecer antes do fiduciário, caducará a substituição, ficando o fiduciário com a propriedade definitiva dos bens”.

Não se encontra, assim, diferença de substância entre a norma actual e o artigo anterior, pois que se equivalem as expressões «caducará a substituição» e «fica sem efeito a substituição», consagrando-se, no mais, a consolidação da propriedade no herdeiro fiduciário, no caso de o herdeiro fideicomissário, igualmente herdeiro do testador, não querer ou não poder aceitar.

 Ora, como ensinou GALVÃO TELLES, que foi, como é sabido, o Autor do Projecto que deu origem ao vigente art. 2293º (cfr. BMJ 54º-1209), o que, na substituição fideicomissária, explica a inverificação do direito de acrescer é a existência de uma substituição implícita ou tácita, uma substituição vulgar presumida do substituído ao substituto para o caso de este não poder ou não querer aceitar, substituição que prevalece sobre o direito de acrescer, impedindo-o.

Assim, escreve (Ob. cit., 171-172), “A opinião exacta é, na verdade, a de que o testador, designando um indivíduo como substituto indirecto de outro, só não o designou também como substituto directo, para a eventualidade de o primeiro instituído não suceder, por essa eventualidade se não ter apresentado ao seu espírito. Se o testador queria que a herança ou o legado passasse ao substituto, apesar de, antes dele, a haver gozado ao substituído, é lógico supor que, se previsse a hipótese de este a não aceitar, teria atribuído ao substituto o direito do mesmo modo a si, e desde logo.

“O ânimo de beneficiar o substituto é manifesto; e se também existe o ânimo de beneficiar o substituído, contudo a aquisição dos bens por parte deste não é, aos olhos do testador (nem se compreenderia muito bem que fosse), essencial para a realização daquela primeira vontade.    

  Em resumo: no silêncio do testador, a substituição indirecta compreende sempre uma substituição vulgar tácita”.

Esta substituição vulgar tácita e presumida prevalece, então, sobre o direito de acrescer, por isso que “o testador, declarando que determinado indivíduo sucederá se outro não puder ou não quiser, exprime o desejo que, pela só falta do substituído, tenha o substituto direito aos bens, o que é incompatível com a exigência de que também se verifique a falta de outros sucessores.

No entanto, o testador, no uso da liberdade que lhe assiste, pode subordinar a substituição vulgar ao direito de acrescer, determinando que não se dê a primeira se o segundo puder ter lugar”(loc. cit.,199).

         4. 5. - Assim se vê que, tal como a existência do direito de acrescer encontra fundamento na vontade presumida do testador de que os vários herdeiros instituídos relativamente a uma unidade de objecto acresçam entre si, também o afastamento, como regra, desse direito na substituição fideicomissária assenta na existência de uma substituição directa presumida, tacitamente admitida pelo testador.

         Na verdade, a lei, excluindo o direito de representação em relação ao fideicomissário, com expressa referência ao n.º 2 do art. 2293º - art. 2041º-2-a) C. Civil -, não o faz no tocante ao direito de acrescer, antes parecendo admiti-lo sempre que o testador “não tiver disposto outra coisa”, pois que apenas neste caso (ao que aqui importa referir) o afasta. 

         Poderá, portanto, concluir-se que, assentando o afastamento do direito de acrescer na referida presunção, sem que a lei lhe atribua a natureza de inilidível ou “juris et de jure” ou, por outra via, vede o funcionamento do instituto, como o faz relativamente ao da representação, sobrará o princípio básico enformador, em matéria de sucessão testamentária, da prevalência da vontade do testador (no mesmo sentido parece ser o entendimento seguido (ou pressuposto na decisão) no acórdão deste Supremo de 29-9-92, proc. 081544 ITIJ e BMJ 419º-716).

         Relativamente ao tema, escrevem P. DE LIMA e A. VARELA (“Código Civil, Anotado, VI, pp. 462) que a solução vertida no “art. 2293º-2 (caducidade da substituição e consequente consolidação da instituição do fiduciário desde a morte do testador) não reveste, de modo nenhum, carácter imperativo, como poderia supor-se por argumento a contrario tirado do disposto no n.º 3, onde expressamente se pressupõe o silêncio do testamento.

            “É que não há nenhuma razão, absolutamente nenhuma – para se não acatar qualquer declaração do testador em contrário do disposto no n.º 2 – contanto que ela não envolva uma substituição em 2º grau, que a lei proíbe (art. 2288º).

            “ Note-se, no entanto, que em nenhum dos casos previstos no n.º 2 do art. 2293º existe direito de representação em benefício dos descendentes do fideicomissário (art. 2041º, nº 2)”.

          

         Vale, então, a vontade real do testador.

         4. 6. - Argumentam os Recorrentes, como se viu, que só por declaração expressa do testador, que contrarie inequivocamente a solução decorrente do art. 2293º-2 e indique concretamente os beneficiários da substituição directa, pode ser afastada a dita solução.

         Ora, ressalvada a necessidade de a declaração ser inequivocamente contrária ao regime supletivo estabelecido no n.º 2 do artigo em causa, pensa-se que nada na lei ou no sistema jurídico aplicável exige declaração expressa do testador com indicação concreta dos beneficiários da substituição.

         O que está em causa, em qualquer caso, seja por via de declaração expressa, seja por via de declaração tácita do testador é o conhecimento seguro da sua vontade, a revelar-se pelos meios normais admitidos em sede de hermenêutica jurídica sobre a declaração negocial.

Como é sabido, a interpretação do negócio mortis causa que nos ocupa deve obedecer aos critérios estabelecido no art. 2187º do Código Civil, que dispõe assim:

 «1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.

 2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa».

         É pacífico o entendimento segundo o qual o preceito acolhe uma orientação subjectivista na interpretação do testamento, o que é o mesmo que dizer que o negócio jurídico de disposição testamentária deve valer em conformidade com vontade real do testador, de acordo com aquilo que ele verdadeiramente quis.

Assim, quando confrontado com disposição que comporte a possibilidade de valer com mais que um sentido, impõe-se ao intérprete a tarefa de averiguar com recurso a todos os meios disponíveis a efectiva vontade do testador.

Trata-se, afinal, de - em divergência com as regras gerais que regem sobre interpretação do negócio jurídico (arts. 236º a 238º C. Civil) - cumprir a vontade do testador (a vontade que manifestou e manteve até ao fim dos seus dias, pois que o testamento incorpora justamente as disposições de última vontade do seu autor), matéria em que “nenhum (outro) interesse, de destinatários ou do tráfego, prevalece sobre este objectivo substancial” (cfr. ac. STJ, de 30/01/2003, proc. 02B4448).

De referir ainda que, valendo, no testamento, a vontade querida pelo testador, apenas com a limitação da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa no respectivo contexto, exigida pela sua natureza formal, essa interpretação de cariz subjectivista, a reflectir o sentido atribuído à declaração pelo respectivo autor, deve ser acolhida, reportada ao tempo da elaboração e aprovação do texto, mas sem desprezar a globalidade das circunstâncias reconhecíveis ao tempo da sua abertura (cfr. FERRER CORREIA, “Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico”, 225).

         Finalmente, ainda em tese geral, importa referir, como também é jurisprudência pacífica, que a determinação da vontade do testador, ou seja, a interpretação do testamento, quando feita apenas com base no conteúdo das cláusulas que o corporizam, isto é, sem recurso a meios complementares de prova, bem como a verificação do «mínimo de correspondência» entre a vontade real e o contexto do testamento, é matéria de direito, por isso que as normas que fixam o respectivo regime, contidas no dito art. 2187º C. Civil, são de direito substantivo e, a sua violação constitui fundamento de recurso de revista, como previsto no art. 721 ° e 722° do CPC (cfr., vg., acs. de 06/06/2000, in BMJ 498º-241 e de 23/9/2008- proc. 08A2125).

         4. 7. - A propósito da declaração tácita e respectivo valor, importa ainda dizer o que segue.

A declaração tácita é admitida como modalidade de declaração negocial, a par da declaração expressa – “feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação de vontade” -, definindo--a a lei como aquela que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” – art. 217º-2 C. Civil.

Declaração expressa e declaração tácita têm, em regra, e têm no caso, o mesmo valor.

A declaração tácita será, então, constituída por um “comportamento do qual se deduza com toda a probabilidade a expressão ou a comunicação de algo, embora esse comportamento não tenha sido finalisticamente dirigido à expressão ou à comunicação daquele conteúdo” (P. PAIS DE VASCONCELOS, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2.ª ed., 298), ou, nas palavras de MOTA PINTO “Teoria Geral”, 3.ª ed. 425), “quando do seu conteúdo directo se infere um outro, isto é, quando se destina a um certo fim, mas torna cognoscível, a latere, um auto-regulamento sobre outro ponto – em via oblíqua, imediata, lateral”.

Tal comportamento declarativo pode estar contido ou ser integrado por comunicações escritas, verbais ou por quaisquer actos significativos de uma manifestação de vontade, incorporem ou não uma outra declaração expressa.

Há-de, porém, tratar-se de “comportamentos positivos, compreendidos com um valor negocial e que neles se não vislumbre uma finalidade directamente dirigida ao negócio jurídico em causa” (C. FERREIRA DE ALMEIDA, “Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico”, II, 718).

4. 8. - Isto posto, importa passar ao caso sob apreciação.

Como corolário do expendido, o que se questiona, e apenas tem de se questionar, insiste-se, é a vontade do testador.

Trata-se de saber se a decisão impugnada, na conclusão a que chegou sobre o sentido das disposições testamentárias, respeitou os critérios estabelecidos pelo referido art. 2187º, obedecendo aos princípios e regras expostos.

 

         Ora, a resposta não pode deixar de ser afirmativa.

         Desde logo, ficou directamente apurado (facto 28.) que era intenção do testador que os seus bens se mantivessem na sua família de origem, pelo menos no âmbito da quota disponível da sua herança.

         Pretendia, pois, acautelar a situação patrimonial do seu cônjuge sobrevivo, mas à sua morte, fazer reverter esses bens para as irmãs.

        

E, neste ponto, note-se, o testador não instituiu herdeiras as suas três irmãs, que então tinha, mas, o que é significativo, designou, em conjunto, as irmãs, que, assim, poderiam ser as três vivas à data do testamento, apenas duas ou uma à data da sua morte e/ou do chamamento.

         Se bem se pensa, esta forma de designação, assim utilizada, em conjunção, das fideicomissárias, como representantes de uma concreta estirpe, que pretendia contemplar, ou seja, sem determinar sequer o número de irmãs ou as identificar, apresenta-se como indício seguro de que o de cujus pretendia constituí-las beneficiárias da totalidade daquela quota, independentemente do número ou da pessoa das sobreviventes à fiduciária.

Com efeito, uma forma de dar realidade ao direito de acrescer é a instituição de herdeiros de forma conjunta e não a designação unitária de sucessores (cfr. GALVÃO TELLES, cit,, pg. 259).

         Acresce que, como, a par do aludido facto 28. se convoca na sentença recorrida, o facto de uma das irmãs do testador ser mais velha cerca de vinte anos, sendo natural o seu pré-decesso à fiduciária, também induz a ideia de que pretendia transmitir toda a deixa às sobreviventes.

         4. 9. - Perante o que se deixou expendido, a decisão recorrida não merece a censura que lhe vem dirigida nas doutas conclus dos Recorrentes, as quais, por isso, têm de improceder e, com ela o recurso.

         4. 10. - Respondendo à questão colocada, pode, em síntese final, deixar-se alinhado o que segue.

         Assentando o afastamento do direito de acrescer na presunção de existência de uma substituição tácita do substituído ao substituto para o caso de este não poder ou não querer aceitar a deixa, sem que a lei lhe atribua a natureza de inilidível ou “juris et de jure” ou, por outra via, vede o funcionamento do instituto, como o faz relativamente ao da representação, sobrará o princípio enformador, em matéria de sucessão testamentária, da prevalência da vontade do testador.

         A norma contida no n.º 2 do art. 2293º do Código Civil não tem carácter imperativo, prevalecendo o conteúdo do testamento, como resultar da respectiva interpretação.

Nada na lei ou no sistema jurídico aplicável exige declaração expressa do testador com indicação concreta dos beneficiários da substituição (fideicomissários), como condição de afastamento da solução acolhida no n.º 2 do art. 2293º C. Civil.

O que está em causa, em qualquer caso, seja por via de declaração expressa, seja por via de declaração tácita do testador é o conhecimento seguro da sua vontade, a revelar-se pelos meios normais admitidos em sede de hermenêutica jurídica sobre a declaração negocial.

Declaração expressa e declaração tácita têm, em regra, o mesmo valor.

Na interpretação do testamento vale a vontade querida pelo testador, apenas com a limitação da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa no contexto do testamento, exigida pela sua natureza formal.

 Essa interpretação, de cariz subjectivista, a reflectir o sentido atribuído à declaração pelo respectivo autor, deve ser acolhida reportada ao tempo da elaboração e aprovação do texto, mas sem desprezar a globalidade das circunstâncias reconhecíveis ao tempo da sua abertura.

5. - Decisão.

Em conformidade com o exposto, acorda-se em:

- Negar a revista;

- Confirmar a sentença impugnada; e,

- Condenar os Recorrentes nas custas.

                            Lisboa, 13 Maio 2014

                            Alves Velho (relator)

                            Paulo Sá

                            Garcia Calejo