Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
528/09.7TCFUN.L2.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
PRÉDIO
ESCAVAÇÕES
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
DANO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
Data do Acordão: 02/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / NEXO DE CAUSALIDADE - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / RELAÇÕES DE VIZINHANÇA / DEVER GERAL DE PREVENÇÃO DO PERIGO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, N.º1, 2.º PARTE, 486.º, 492.º, 493.º, N.º1, 563.º, 1305.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.º 3, 682.º, N.º 2.
D.L. N.º 147/2008, DE 29-07, REGIME JURÍDICO DA RESPONSABILIDADE POR DANOS AMBIENTAIS: - ARTIGO 5.º.
LOSJ: - ARTIGO 46.º.
REGULAMENTO DE RESÍDUOS SÓLIDOS E DE COMPORTAMENTOS POLUENTES DO ... (PUBLICADO NO DR, II, DE 19-03-2004): - ARTIGO 31.º.
RGEU: - ARTIGOS 74.º, 128.º
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 26-03-1980, IN B.M.J. 295.º/426 E O SUMÁRIO EM WWW.DGSI.PT (PROCESSO N.º 068443).
-DE 27-09-1994, PROCESSO N.º 084991.
-DE 08-07-2003, PROCESSO N.º 03A2112.
-DE 28-10-2008, PROCESSO N.º 08A3005.
-DE 13-01-2009, PROCESSO N.º 08A3747.
-DE 02-06-2009, PROCESSO N.º 560/2001.S1.
-DE 27-01-2011, PROCESSO N.º 777/04.4TBALB.C1.S1, E DE 3-03-2009, PROCESSO N.º 09A0009 E DE 25-02-2014, PROCESSO N.º 5796/04.8TVLSB.L1.S1, IN BOLETIM DE 2014 DE SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS.
-DE 29-03-2012, PROCESSO N.º 6150/06.2TBALM.L1.S1
-DE 21-01-2016, PROCESSO N.º 1021/11.3TBABT.E1.S1.




Sumário :
I - No nosso ordenamento jurídico, o exercício dos poderes dos proprietários de imóveis – entre os quais se incluem os de escavação, desaterro e subsequente deposição de terras removidas – está condicionado, tanto pelas pertinentes regras urbanísticas ou de protecção do ambiente, como, primordialmente, pela necessidade de preservar, nas relações de vizinhança, o equilíbrio imobiliário existente, com a consideração das suas concretas circunstâncias.

II - Cada vez mais se acentua a evidência de que a situação de vizinhança de prédios implica limitações ao exercício do direito de propriedade – que não se quedam pelas explicitamente prevenidas no CC (como as previstas, p. ex., nas normas dos arts. 1346.º a 1348.º ou 1350.º, ou as dos arts. 492.º e 493.º) – através da ponderação dos direitos conexos com essa relação de vizinhança, para fundar um direito à protecção do proprietário através da responsabilização do proprietário do prédio vizinho por todas os actos ou omissões que provoquem uma ruptura do equilíbrio imobiliário existente e que exprimam ou realizem a violação de um dever geral de prevenção do perigo.

III - Das normas consagradas no art. 128.º do RGEU e art. 493.º, n.º 1, do CC, resulta a imposição de os donos dos prédios os manterem, permanentemente, em estado de não poderem constituir perigo para a segurança pública e dos seus ocupados ou para a dos prédios vizinhos, sob pena de responsabilidade pelos danos que a coisa imóvel causar.

IV - A violação do condicionamento advindo de regras urbanísticas ou ambientais também pode ser considerada para o efeito previsto na 2.ª parte do art. 483.º, n.º 1, do CC (disposição legal destinada a proteger interesses alheios) quando, em face da respectiva interpretação, se constate que a norma em questão também visa proteger interesses particulares e não apenas beneficiá-los enquanto interessados no bem da colectividade.

V - A aferição global da causalidade adequada, não se referindo a um facto e ao dano isoladamente considerados, deve partir de um juízo de prognose posterior objectiva, formulado em função das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis de todo o processo factual que, em concreto, desencadeou a lesão e o dano, no âmbito da sua aptidão geral ou abstracta para produzir esse dano.

VI - A causa (adequada) pode ser, não necessariamente directa e imediata, mas indirecta, bastando que a acção causal desencadeie outra condição que, directamente, suscite o dano e não pressupõe a existência de uma causa ou condição exclusiva na produção do dano, no sentido de que a mesma tenha, só por si, determinado o dano, porquanto podem ter intervindo outros factos, contemporâneos ou não.

VII - A verificar-se, a causa de forca maior ou fortuita, exterior à utilização do prédio pelos réus, emergiria como excludente da sua responsabilidade justamente, por ser idónea a romper o nexo de causalidade adequada. Todavia, uma tal anomalia haveria de resultar de uma cumulação extraordinária de circunstâncias, fenómenos naturais de carácter totalmente excepcional e imprevisível, para um cidadão medianamente diligente, ou, ainda que previstos, inevitáveis, o que não sucede com a mera chuva, mesmo que abundante.

VIII - As relações de vizinhança e o facto de terem sido os réus os causadores da situação determinante do risco para a moradia dos autores, envolveriam da parte daqueles o dever de agir no sentido da prevenção da ocorrência de danos, repondo a situação de equilíbrio imobiliário que no seu exclusivo interesse e por sua inteira responsabilidade fora perturbado. Não o tendo feito, não só se demonstrou que esse seu comportamento reprovável não foi indiferente para os danos sofridos pelos autores como se conclui, no plano geral e abstracto, que ele constituiu a causa adequada desses mesmos danos, sem que a acumulação de água provinda da chuva atenue essa eficácia causal.

Decisão Texto Integral:

Revista 528/09.7TCFUN.L2.S1

           

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

           

AA, BB, CC, DD e EE intentaram esta acção contra 1) FF e GG e 2) HH e II, pedindo a condenação solidária dos RR a pagar-lhe as quantias de € 55.714,66 e de € 20.000, para reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais, respectivamente, que alegam ter sofrido em consequência da actuação (deposição de terras previamente escavadas) dos RR que descrevem.

Os 1ºs RR contestaram, sustentando que os danos invocados pelos AA apenas se verificaram por causa de uma extraordinária intempérie então havida.

Foi proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo os RR dos pedidos.

A Relação de …, julgando parcialmente procedente a apelação interposta pelos AA, condenou os RR a pagar solidariamente aos AA a quantia, a apurar em liquidação subsequente, correspondente a 1/4 dos danos patrimoniais comprovadamente sofridos pelos AA e a quantia de € 2.500, igualmente correspondente a 1/4 dos danos não patrimoniais tidos por sofridos pelos AA.

Os AA interpuseram recurso de revista desse acórdão, cujo objecto delimitaram com conclusões que colocam a questão de saber se não deve optar-se por qualquer redução indemnizatória porque, sem a deposição ilícita de terras pelos RR, que iniciou o processo causal dos danos sofridos pelos AA, estes não se teriam verificado e, a existir outra sua concausa, a mesma não seria imputável aos AA, sendo os RR, por isso, os exclusivos responsáveis pela reparação dos danos.

Também os RR interpuseram recurso de revista do acórdão, cujo objecto delimitaram com conclusões que colocam a questão de saber se não resulta da factualidade provada e da experiência comum que a actuação dos RR (depósito de terras) concorreu para a produção ou agravamento dos danos, tendo sido as chuvadas e o entupimento das levadas os factores que, com maior certeza, causaram a sua produção.

*

A Relação considerou a seguinte factualidade provada:

1. A propriedade do prédio misto localizado ao Sítio da ..., freguesia de ..., concelho do ..., com entrada pelo caminho da …, n.° 00, freguesia de ..., ..., inscrito na matriz predial respectiva, a parte rústica, sob o artigo 1/20 da Secção "L" e a parte urbana sob o artigo 65°, descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número 0000/00000617, freguesia de ..., encontra-se inscrita a [a favor dos AA].

2. A propriedade da fracção autónoma individualizada pela letra "B", com a área coberta de 228 m2 e descoberta de 502 m2, do prédio urbano localizado ao Caminho da …, freguesia de ..., concelho do ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 3554° e descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.° 0000/00000120-B, freguesia de ... encontra-se inscrita a favor dos réus FF e mulher GG pela inscrição Ap. 15 de 22-05-2002 (alínea B)).

3. A propriedade do prédio urbano com a área de 535 m2, dos quais 107,5 m2 são de superfície coberta, localizado ao Sítio da ..., Lote 2 e 3, freguesia de ..., concelho do ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 3941° e descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.° 0000/00000811, freguesia de ..., encontra-se inscrita a favor de JJ, casado com HH pelas inscrições Ap. 10 de 7-05-1987 e Ap. 26 de 29-07¬2007 (alínea C)).

4. O prédio referido em 1. confina a … com o prédio referido em 3. e os prédios referidos em 2. e 3. confinam entre si, situando-se o primeiro a … do segundo (alínea D)).

5. A casa de habitação dos AA. situa-se a cerca de 00 metros da confrontação dos prédios referidos em 2. e 3. (alínea E)).

6. JJ e a mulher anuíram e autorizaram que o réu FF despejasse terras no logradouro do prédio referido em 3. (alínea F)).

7. Na noite de 27 para 28 de Junho de 2009 ocorreu um temporal, chovendo abundantemente (alínea G)).

8. As terras e lamas atingiram toda a extensão da casa, numa altura variável até 20 cm de altura (alínea H)).

9. A casa é composta por três quartos de dormir, duas salas, casa de banho e arrecadação, onde habitavam, e habitam, sete pessoas (alínea I )) .

10. Por volta dos anos de 2007 e 2008 os réus FF e JJ procederam à construção, na parte sudoeste do prédio referido em 2., de uma piscina, de onde movimentaram cerca de 19 m3 de terra (ponto 1. conforme redacção conferida pela Relação de …).

10-A. No logradouro do prédio referido em C, foram despejadas terras amontoadas, e de forma solta, isto é, sem espalhamento e sem compactação (facto aditado pela Relação de …).

10-B. As terras foram despejadas à frente de um muro existente no logradouro do prédio referido em 3. (como se visualiza na fotografia de fls. 500 p.p.), numa zona que se situa na direcção do pombal e loja arrastados pela enxurrada, tendo esse muro funcionado como obstáculo às aguas que provinham da estrada (que se visualiza a fls. 272 p.p.), desviando-as para o interior do prédio (facto aditado em cumprimento do determinado pela Relação de …).

11. A habitação dos autores localiza-se a uma cota inferior em cerca de 35% relativamente ao prédio referido em 3. (ponto 4.).

12. Na noite de 27 para 28 de Junho de 2009 choveu de modo intenso (ponto 5.).

13. Com as chuvadas, cerca das 5 horas da madrugada do dia 28 de Junho de 2009 (Domingo), ocorreu um deslizamento em forma de enxurrada, arrastando terras, pedras, lamas, arbustos, onde se incluíam pelo menos cerca de 5,5 m3 dos 19 m3 de terra referidos em 10., e também uma loja em madeira pertencente aos autores, que se encontrava junto à casa à cota do telhado (ponto 6., clarificado conforme ordenado pelo Tribunal da Relação de …).

14. Que se precipitou sobre a casa de habitação dos AA., rompeu parte do telhado e tecto, introduzindo-se no seu interior grande quantidade de água, terra, lama e pedras (ponto 7.).

15. Em consequência do sucedido a generalidade dos bens existentes na casa dos autores, com valor não apurado, ficaram danificados, designadamente, televisão, máquinas fotográficas, relógios, colchões de cama, aparelhos electrónicos, mesas, cadeiras, sofás, roupas, roupas de cama, um desumidificador, o soalho dos diversos quartos, composto por tacos, o sistema eléctrico da casa ficou avariado, a ferramenta existente na loja referida em 13. ficou inutilizada, incluindo, máquina de soldar, alicates, atarraxador, chaves inglesas, pregos, martelos, plainas, máquina de corte, chapas de zinco, barrotes, latas de tinta, brocas, bochas, cola, pregos, enxadas e pás, etc., tendo sido necessário proceder à aquisição de materiais para a limpeza da casa, sua pintura e recuperação do soalho, portas e vestuários, colares, sapatilhas, mesa de sala, bibelots (pontos 8. e 15. conforme redacção conferida pelo Tribunal da Relação de …).

16. Existia um pombal que também foi arrastado pela enxurrada tendo morrido vários pombos em quantidade não apurada (ponto 10.).

17. Os autores sofreram um susto quando, de noite, viram a sua casa ser abatida pela enxurrada, receando pela sua vida (ponto 12.).

18. A família dos autores teve de viver durante cerca de duas semanas em casa de familiares e amigos (ponto 13.).

19. Os autores sofreram por ver a sua casa danificada, revelando tristeza e angústia (pontos 14. e 16.).

20. Para o deslizamento de terras referido em 13. terão contribuído as chuvadas do dia 27 para 28 de Junho de 2009 e o entupimento das levadas nas redondezas dos prédios (pontos 19., 23. e 25.).

21. O escoamento da água das chuvas foi efectuado para o prédio mais próximo que no caso foram as terras dos prédios referidos em 3. e 1. (ponto 24.).

E como não provados, entre outros, os seguintes factos:

- para a execução da piscina os réus movimentaram mais de 250 m3 de terra;

- o logradouro do prédio referido em C) encontrava-se e encontra-se em estado de abandono, com ervas e arbustos, junto à confrontação com o prédio referido em A), que aí ficam as terras despejadas amontoadas e de forma solta;

- no mesmo local, os réus FF e mulher efectuaram despejo de águas residuais que vieram da piscina e das áreas descobertas do seu prédio;

- os autores, aquando do depósito das terras e posteriormente, alertaram os réus para o perigo delas permanecerem naquele local, daquela forma, dado que em caso de escorrimento oferecia perigo para a sua habitação;

- durante o mês de Junho de 2009 choveu de modo intenso, encharcando as terras;

- os danos e prejuízos provocados pela enxurrada são os seguintes: (…)

- foram transportados do local 30 camiões de terras, zinco e madeiras; - morreram 29 pombas "correio", no valor de C 261,00;

- é necessário fazer a escavação e normalização do terreno invadido pela enxurrada e transporte de terras sobrantes o que importará no valor de E 11 405,00;

- dormem em permanente sobressalto, com medo de nova enxurrada que possa acontecer;

- nas imediações da casa de habitação dos réus existem ralos de água com o propósito de escoar as águas pluviais e residuais, encontrando-se o escoamento direccionado para o saneamento da sua habitação;

- as terras foram retiradas do prédio referido em B) e depositadas no prédio referido em C) já há mais de três anos antes dos factos ocorridos de 27 para 28 de Junho e encontravam-se já sedimentadas ao solo;

- quando procederam ao depósito das terras, os réus reforçaram o muro de sustentação das terras de forma a evitar qualquer movimentação destas;

- no ano de 2008 ocorreram grandes intempéries sem se verificar qualquer deslizamento de terras;

- as levadas encontravam-se cheias de lixos.

*

Importa apreciar e decidir as acima enunciadas questões, que demandam que se averigue do nexo de causalidade entre os danos sofridos (no prédio e nas pessoas dos AA) e a actuação dos RR, enquanto proprietários de prédios vizinhos, bem como da consequente responsabilização destes pela reparação de tais danos.

O litígio, assim configurado, remete-nos, pois, para o tema das relações entre proprietários de prédios vizinhos ([1]).

É certo que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, como emerge do art. 1305º do CC, mas, como também se salientou no Ac. desta Secção de 28-10-2008 ([2]), o direito de propriedade, não obstante o seu «âmbito pleníssimo», «está sujeito a limitações de interesse público resultantes de uma função social, tal como a limitações de interesse privado», não podendo, designadamente, «ser exercido de forma abusiva, violando o direito de propriedade dos donos do prédio confinante».

É certo que entre os poderes dos proprietários de imóveis se incluem os de escavação, desaterro e subsequente deposição de terras removidas – como sucedeu com os trabalhos relacionados com a obra levada a cabo no caso em apreço (construção de uma piscina) –, mas o exercício desses poderes está condicionado, tanto pelas pertinentes regras urbanísticas ou de protecção do ambiente, como, primordialmente, pela necessidade de preservar o equilíbrio imobiliário existente, com a consideração das suas concretas circunstâncias.

Como se sabe, nos termos do art. 483º nº 1 do CC, só são reparáveis, em sede de responsabilidade civil, os danos resultantes da violação do direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. E daí que, não sendo demonstrada a titularidade de qualquer situação absolutamente protegida (1ª parte do preceito), nem a violação de norma destinada a proteger os interesses do lesado (2ª parte da mesma norma), em princípio, resta só o recurso ao instituto do abuso do direito.

Particularmente quanto ao referido condicionamento advindo de regras urbanísticas ou ambientais, convém lembrar que estas, em geral, cuidam, em primeira linha, de interesses de ordem pública e apenas reflexamente tutelam interesses particulares. Estamos, pois, perante regras que, tutelando interesses públicos, visam ao mesmo tempo proteger interesses particulares, abarcando-os, sem que, necessariamente, atribuam um direito subjectivo ao titular do interesse lesado.

Todavia, só em face da interpretação de cada dessas normas se poderá concluir se a condição por ela regulamentada, tutelando primacialmente interesses públicos, também protege interesses particulares ou se, pelo contrário, apenas mediata ou reflexamente, beneficia interesses particulares. É o que esclarecem P. de LIMA e A. VARELA ([3]): «(…) para determinar se a violação de certa norma origina a obrigação de indemnizar, “o decisivo não é o efeito, mas sim o conteúdo e o fim da disposição”. Não basta que esta seja proveitosa também para o indivíduo lesado com a violação: é necessário que vise proteger interesses particulares.». Mas, como advertem os mesmos Mestres, «já não são abrangidas pelo art. 483° as normas que visam apenas proteger certos interesses gerais ou colectivos, embora da sua aplicação possam beneficiar, mediata ou reflexamente, determinados interesses particulares. Trata-se de normas que, “directamente, apenas protegem a colectividade como tal, especialmente o Estado, e que só beneficiam o indivíduo na medida em que cada um está interessado no bem da colectividade” (Enneccerus-Lehmann, Derecho de Obliganiones, § 235, I, 2, b)».

Ora, analisadas as normas referidas na invocação feita pelos AA e secundada pelo acórdão recorrido, constata-se que as mesmas também visam proteger interesses particulares e não apenas beneficiá-los enquanto interessados no bem da colectividade. Na verdade, enquanto o artigo 31º do citado Regulamento de Resíduos Sólidos e de Comportamentos Poluentes do ... (publicado no DR, II, de 19-03-2004) proíbe, além do mais, o despejo de terras e similares em qualquer terreno privado sem prévio licenciamento Municipal, consentimento do proprietário e sem prejuízo de terceiros, o artigo 74º do RGEU preceitua que o pejamento de logradouros das edificações com materiais ou volumes de qualquer natureza só pode efectuar-se com expressa autorização das câmaras municipais quando se verifique não advir daí prejuízo, nomeadamente, para a segurança de todas as edificações directa ou indirectamente afectadas.

E, mesmo que não citada na decisão recorrida, afigura-se-nos pertinente a evocação da obrigação imposta pelo art. 128º do mesmo RGEU aos donos de prédios urbanos de os manterem, permanentemente, em estado de não poderem constituir perigo para a segurança pública e dos seus ocupantes ou para a dos prédios vizinhos.

 Por conseguinte, nestes casos, o condicionamento advindo de tais regras urbanísticas ou ambientais, porque também destinadas a proteger interesses alheios, tutelam o direito subjectivo do dono do prédio vizinho.

E o mesmo se diga da responsabilidade de quem tiver em seu poder coisa imóvel pelos danos que esta causar, imposta pelo art. 493º nº 1 do CC.

O que, tudo, permite concluir que qualquer violação, tanto deste dever de conservação como daquelas regras, de acordo com o princípio geral do art. 483º e, ainda, nos termos do art. 486º do CC, pode fundar a obrigação de reparar os danos por ela causados.

Por outro lado, cada vez mais se acentua a evidência de que a situação de vizinhança de prédios, sobretudo se nele existirem construções confinantes, implica limitações ao exercício do direito de propriedade, que não se quedam pelas explicitamente prevenidas no CC, como as previstas, p. ex., nas normas dos arts. 1346º a 1348º ou 1350º, ou as que estabelecem regras directamente atinentes à responsabilidade civil, como as dos arts. 492º e 493º, normas que abarcam as situações de ruína, de vício de construção ou de incumprimento do dever legal de conservação de imóvel.

Expendeu o Ac. deste Tribunal de 29-03-2012 ([4]), citando MENEZES CORDEIRO ([5]): «a apreciação da concreta situação» ou «a “normatividade dos factos”, cuja “ponderação dogmática pela necessidade reconhecida de redução dos problemas, passa pelo sistema”, cria a convicção de que os danos que ocorrerem na moradia dos AA. são de imputar à actuação ou omissão da R., reclamando do sistema uma solução que sustente a sua responsabilização». E acrescentou: «A integração jurídica de situações que, como a dos autos, se mostram merecedoras de protecção semelhante à que aflora em determinados preceitos que regulam o exercício do direito de propriedade sobre imóveis tem conduzido ao seu aprofundamento teórico».

Segundo OLIVEIRA ASCENSÃO ([6]), «A lei parte de uma noção de equilíbrio imobiliário». «(…) Mas a lei não desconhece que em cada tempo há um equilíbrio imobiliário reinante que toma como base da disciplina que estabelece. Procura antes de mais evitar rupturas desse equilíbrio. A preocupação crescente com a ecologia veio reforçar grandemente esta fundamentação. Cada titular não está vinculado a impedir que elementos naturais alterem a situação imobiliária estabelecida, nem a corrigir a acção destes. Mas já não pode influir com a sua conduta na quebra desse equilíbrio.». Depois de referenciar o aluvião e a avulsão, regulados nos arts. 1328º e 1329º, respectivamente, do CC, para afirmar que, nessas situações, o proprietário superior não incorre em deveres e não pode ser responsabilizado por essa vicissitudes naturais, rematou a extrair o princípio: «cada vizinho pode agir livremente in suo, no respeito das normas específicas vigentes. Mas não o pode fazer à custa da condição natural preexistente do prédio vizinho. Se o fizer, terá de reconstituir a situação primitiva, independentemente de qualquer consideração de responsabilidade civil.».

Em diversas decisões deste Tribunal tem sido feita a ponderação dos direitos conexos com essa relação de vizinhança, a partir da violação do dever geral de prevenção do perigo, ou de um dever geral de diligência ([7]), das quais se invoca, em particular, a proferida no Ac. de 2-06-2009 ([8]), sustentando que a «relevância jurídica da omissão está ligada ao “dever genérico de prevenção de perigo”»:

«A este propósito, José Carlos Brandão Proença, in “Direito das Obrigações – Relatório Sobre o Programa, o Conteúdo e os Métodos do Ensino da Disciplina” – 2007, págs. 180 /181 escreve:“A defesa de um “dever genérico de prevenção do perigo” ou, como lhe chama Sinde Monteiro, “dever de segurança no tráfico” ou simplesmente “deveres do tráfico” (Verkehrspflichten) significa, nas palavras de Antunes Varela (in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 114. °, pp. 77-79) que “o criador ou o mantenedor da situação especial de perigo tem o dever jurídico de o remover, sob pena de responder pelos danos provenientes da omissão (…).

Como projecções legais desse dever (não consagrado especialmente na lei, mas enquadrável, de qualquer modo, nos artigos 483° e 486º)” o mesmo jurista cita as normas aos artigos 492.°, 493.°, 502.°, 1347.°-1350.° e 1352.° do Código Civil.

[…] O conteúdo destes deveres depende da gravidade dos efeitos danosos, da probabilidade do acidente, das medidas preventivas possíveis (ou exigíveis) e da possibilidade de auto-protecção do lesado já que os avisos de perigo terão que ser mais intensos para as crianças do que para os adultos, mas mesmo estes, intrusos ou não, tem que ser “avisados” dos perigos especiais — à partida não há responsabilidade do criador do perigo se o dano resultar da exposição voluntária do lesado ao perigo, tendo aquele adoptado medidas suficientes para evitar a intromissão abusiva”.».

Parece-nos que o direito geral de vizinhança, tal como vem sendo defendido, oferece argumentos bastantes para fundar um direito à protecção do proprietário, através da responsabilização do proprietário do prédio vizinho por todas os actos ou omissões que provoquem uma ruptura do equilíbrio imobiliário existente e que exprimam ou realizem a violação de um «dever geral de prevenção do perigo» ([9]).

E se o dono do prédio tem o dever «dever geral de prevenção do perigo», para que seja preservado o equilíbrio imobiliário, quando a ruptura deste equilíbrio seja causada por uma sua conduta – activa ou omissiva –, com violação de tal dever de prevenção e com repercussão relevante nesse resultado, ainda que com ela concorra um fenómeno natural – desde que previsível, «de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas» ([10]) –, não se pode ter como estranha aos princípios gerais que imperam no nosso ordenamento jurídico a reputação dessa actuação como ilícita e a aplicação das regras gerais da responsabilidade civil, em relação aos danos dela advindos para o dono de um dos prédios vizinhos, nomeadamente inferior. «Traduzindo uma faceta de desenvolvimento do direito que melhor corresponde às necessidades da vida corrente, essa via segue a linha já anunciada por ANTUNES VARELA, para quem as normas dos arts. 492º, 493º, 1347º e 1348º do CC representam “afloramentos especiais de um princípio geral de recorte mais amplo” em que se funda, além do mais, “o dever de adopção das medidas destinadas a evitar o perigo criado pelo proprietário”» ([11]).

Introduzida a questão, revisitemos o que, em suma, se apurou:

Em 2007/2008 o R FF e JJ procederam à construção, no prédio do primeiro, de uma piscina, de onde movimentaram cerca de 19 m3 de terra que, depois, com a autorização de JJ e a mulher, foram despejadas e amontoadas no prédio destes, de forma solta, sem espalhamento e sem compactação. As terras foram despejadas à frente de um muro existente no logradouro do prédio de JJ e a mulher, numa zona situada na direcção de um pombal e uma loja então existentes no prédio dos AA.

Na noite de 27 para 28 de Junho de 2009 choveu de modo intenso, abundantemente, tendo o referido muro funcionado como obstáculo às águas que provinham da estrada, desviando-as para o interior do prédio.

Com as chuvadas, ocorreu um deslizamento em forma de enxurrada, arrastando terras, pedras, lamas, arbustos, onde se incluíam pelo menos cerca de 5,5 m3 dos 19 m3 de terra referidos e também os aludidos pombal e loja em madeira pertencentes aos AA. A loja encontrava-se junto e à cota do telhado da habitação dos AA, a qual, por sua vez, se localiza a uma cota inferior em cerca de 35% relativamente ao prédio ora das 2ªs RR.

Essa enxurrada precipitou-se sobre a casa de habitação dos AA, rompeu parte do telhado e tecto, introduzindo-se no seu interior grande quantidade de água, terra, lama e pedras, tendo atingido toda a extensão da casa, numa altura variável até 20 cm de altura. Em consequência do sucedido a generalidade dos bens existentes na casa dos autores ficaram danificados.

Para tal deslizamento de terras “terão” (sic) contribuído as referidas chuvadas e o entupimento das levadas nas redondezas dos prédios, tendo-se escoado a água das chuvas para as terras dos prédios das 2ªs RR e dos AA.

Sobre o nexo de causalidade discutido nos recursos, a Relação, perante tal factualidade, considerou, essencialmente, que «a acção dos RR, muito embora não passível, por si só, de desencadear os resultados, confluiu num contexto multifactorial para o agravamento desses mesmos resultados», «ampliou em determinada medida os danos dos AA. e, por conseguinte, não pode concluir-se senão pela verificação do nexo de causalidade que gera responsabilidade daqueles (art.° 563.° C.C.)». Afirmando a impossibilidade de um juízo de precisão rigorosa quanto à medida da contribuição da intervenção (ilícita) dos RR para o agravamento do resultado, entendeu «ser razoável concluir que o despejo das terras contribuiu em cerca de 1/4 para o agravamento dos danos sofridos pelos AA».

No recurso interposto, os AA registam que foi a deposição ilícita de terras que iniciou o processo causal e que quer as chuvadas quer o deslizamento de terras não são uma inevitabilidade ou uma imprevisibilidade, impendendo sobre os RR «deveres de controlo destinados a impedir ou, ao menos, a reduzirem a probabilidade de factores externos, fortuitos ou não, intervierem como causa ou concausa de eventos danosos».

Por sua vez, os RR/recorrentes sustentam que o acórdão recorrido, ao considerar «que o depósito de terras pelos RR terá agravado a enxurrada que vitimou os AA», fê-lo «à revelia da factualidade assente nos autos», da qual resulta que «terão sido» os factores chuvadas e entupimento das levadas «que com maior certeza causaram a produção de danos» (ponto 20), pelo que, falta o nexo de causalidade, «de acordo com a natureza geral e o curso normal das coisas», entre a actuação dos RR e o deslizamento de terra.

Vejamos.

«A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que provavelmente não teriam ocorrido se não fosse a lesão» (art. 563º do C).

É consensual o entendimento de que o nosso sistema jurídico, com a citada norma, acolheu a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual, para que um facto seja causa de um dano, é necessário que, no plano naturalístico, ele seja uma condição sem a qual o dano não se teria verificado e, além disso, que, no plano geral e abstracto, ele seja causa adequada desse mesmo dano.

É matéria de facto o nexo causal naturalístico e é matéria de direito o juízo sobre o segundo momento da causalidade, referente ao nexo de adequação, de harmonia com o qual o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais ou extraordinárias ([12]).

O STJ, sendo, organicamente, um Tribunal de revista, apenas conhece de matéria de direito, fora dos casos previstos na lei (arts. 46º da LOSJ e 674º nº 3 e 682º nº 2 do CPC). Como consequência, o nexo naturalístico, tal como vem estabelecido pelas instâncias, não é sindicável por este Tribunal, em cuja competência apenas está integrada a matéria referente ao nexo de adequação, por respeitar à interpretação e aplicação do citado art. 563º.

Segundo a referida doutrina, essa aferição global da adequação deve partir de um juízo de prognose posterior objectiva, formulado em função das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis de todo o processo factual que, em concreto, desencadeou a lesão e o dano, no âmbito da sua aptidão geral ou abstracta para produzir esse dano, pois que a causalidade adequada não se refere a um facto e ao dano isoladamente considerados.

A causa (adequada) pode ser, não necessariamente directa e imediata, mas indirecta, bastando que a acção causal desencadeie outra condição que, directamente, suscite o dano.

E, como considerou o Ac. desta Secção de 13-01-2009 ([13]), o «facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum se mostra indiferente para a verificação do dano, não modificando o “círculo de riscos” da sua verificação, tendo presente que a causalidade adequada “não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano” no âmbito da aptidão geral ou abstracta desse facto para produzir o dano.».

Por outro lado, não é pressuposta a existência de uma causa ou condição exclusiva na produção do dano, no sentido de que a mesma tenha, só por si, determinado o dano, porquanto podem ter intervindo outros factos, contemporâneos ou não. Na verdade, a lesão e a consequente produção do dano podem resultar de um concurso real de causas, da contribuição de vários factos, não sendo qualquer deles, singularmente considerado, suficiente para alcançar o efeito danoso, embora se imponha que um deles seja causa adequada do por ele desencadeado, imputável a outro agente.

Todavia, como decidiu o mesmo Ac. de 13-01-2009, «Quando ocorre um tal concurso de causas adequadas, simultâneas ou subsequentes, qualquer dos autores é responsável pela reparação de todo o dano, como se infere do que se dispõe nos arts. 490º e 570º C. Civil (cfr. P. COELHO “O Problema da Relevância da Causa Virtual...”, 31-34)»..

Com tais parâmetros, cumpre retirar a pertinente conclusão sobre a questão da causalidade, por referência ao referido juízo de prognose.

Segundo pensamos, a razão está do lado dos AA, pois extrai-se, patentemente, daquela factualidade que os danos pelos mesmos sofridos resultaram da não adopção pelos RR das cautelas impostas, objectivamente, pela relação de vizinhança entre os prédios de uns e outros: o despejo de 19 m3 de terras amontoadas, soltas, sem espalhamento e sem compactação, junto ao prédio dos AA e num local em que o terreno tem um significativo declive (a habitação destes situa-se a uma cota inferior em cerca de 35% do prédio das 2ªs RR), cuja habitação veio a ser afectada pelo deslizamento de, pelo menos, 5,5 m3 de tais terras e pelo consequente arrastamento de um pombal e uma loja então existentes no prédio dos AA.

Na sequência desse despejo, os RR quedaram-se na mais completa omissão, inertes, tal como as terras que haviam depositado, mantendo-as no estado em que o haviam feito (soltas e sem compactação), durante mais de um ano, simplesmente à espera que, num dia de chuva mais abundante, essas terras, ou parte delas, deslizassem para o prédio vizinho, tal como, efectivamente, veio a acontecer. A directa afectação da moradia dos AA, assim como os daí decorrentes danos não patrimoniais que os mesmos sofreram foram o resultado expectável da objectiva violação pelos RR de dever geral, inerente às aludidas regras de vizinhança, de prevenção do perigo, que, para mais, eles próprios tinham activamente gerado. Qualquer cidadão medianamente diligente, perante a falta do cuidado necessário para a prevenção desse perigo, manifestada pelos RR, atendendo às concretas circunstâncias, em especial, ao acentuado declive do terreno, poderia prever a possibilidade de esses danos ocorrerem, mais tarde ou mais cedo, num período de maior concentração pluvial.

É certo que, em termos de normalidade, “terá” sido a acumulação de água provinda da chuva que, imediatamente, desencadeou o deslizamento da referida substância (5,5 m3 de terras), que, arrastando tudo na sua passagem, entrou com os demais detritos, na moradia dos AA.

Para essa reacção (precipitação) das terras depositadas pelos RR sobre o prédio dos AA contribuiu, por certo, a chuva abundante reflectida nos factos apurados. Mas, a conduta dos RR – para além de ilícita, como acima vimos – sujeita-os a um intenso juízo de reprovação, formulado a partir das enunciadas circunstâncias efectivamente conhecidas e da cognoscível possibilidade de precipitação pluvial, ainda que, no caso, esta se mostrasse ser mais abundante do que o habitual ou, eventualmente, mais concentrada em determinado lapso de tempo. Na região geográfica em questão, a chuva abundante não é contemplável como um caso de força maior ou fortuito e, por isso, não representa uma anomalia resultante de uma cumulação extraordinária de circunstâncias, imprevisível para um cidadão medianamente diligente colocado na posição dos RR, (apenas) perante a qual soçobraria o nexo de imputação exigido para o acionamento da responsabilidade civil: a responsabilidade seria afastada se os danos fossem devidos a causa de força maior.

A acuidade da referência ao aludido conceito de “causa de força maior”, uma causa exterior independente da utilização da coisa pelos RR, emerge de o mesmo ser excludente da responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, justamente, por ser idóneo a romper o nexo de causalidade adequada. Mas, como tal, só se verifica se se tratar de um facto (necessário) que «não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências» ([14]). Logo, subjazendo-lhe a ideia de inevitabilidade e a de acontecimento natural fora do alcance do poder humano, também se exige que para essa “causa” não tenha concorrido qualquer acto ou omissão do devedor, ou seja que o facto também não proceda de culpa deste.

Contudo, por um lado, a (mera) chuva abundante não se ajusta ao conceito de «fenómenos naturais de carácter totalmente excepcional imprevisível ou que, ainda que previstos, sejam inevitáveis», oferecido, p. ex., pelo art. 2º do DL 147/2008 de 29/7 (que estabelece o regime jurídico da responsabilidade por danos ambientais). E é por isso que fenómenos naturais comuns e correntes, como trovoadas, chuva e vento, mesmo que intensos, embora sejam, evidentemente, exteriores, p. ex.,, aos prédios em questão, não são concebíveis como independentes da sua utilização. Realmente, não pode aceitar-se como “causa de força maior” excludente da responsabilidade aqueles fenómenos que, precisamente por serem comuns e correntes, têm efeitos que os RR poderiam prever e precaver, pois, como se disse, só são abarcáveis por tal conceito as consequências de fenómenos que, em termos de normalidade, seriam inevitáveis ou insusceptíveis de serem dominadas pelo homem.

Por outro lado, a manutenção pelos RR, durante mais de um ano, da alteração que haviam provocado à relação de natural equilíbrio entre os prédios, uma e outra unicamente aos mesmos imputáveis, redunda, enfim, na omissão de deveres de prevenção de danos insistentemente exigidos pelas regras da boa-fé, na conjugação com essas diversas circunstâncias concretas – com especial realce para a configuração do terreno e a contiguidade dos prédios. O facto de terem sido os RR os causadores da situação determinante do risco para a moradia dos AA e as relações de vizinhança envolveriam da parte daqueles o dever de agir de modo diverso: sobre eles recaía o dever de agir no sentido da prevenção da ocorrência de danos, repondo a situação de equilíbrio imobiliário que no seu exclusivo interesse e por sua inteira responsabilidade fora perturbado. Não o tendo feito, não só não se demonstra ter sido esse seu comportamento indiferente para os danos sofridos pelos AA como se conclui, no plano geral e abstracto, que ele constituiu a causa adequada desses mesmos danos.

Como preceitua o art. 5º do citado DL 147/2008, «A apreciação da prova do nexo de causalidade assenta num critério de verosimilhança e de probabilidade de o facto danoso ser apto a produzir a lesão verificada, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e considerando, em especial, o grau de risco e de perigo e a normalidade da acção lesiva, a possibilidade de prova científica do percurso causal e o cumprimento, ou não, de deveres de protecção».

É o que, em suma, também nos transmite o ensinamento do Prof. VAZ SERRA, invocado pelos RR ([15]) de que a causa em sentido jurídico se deve restringir àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação tal que seja razoável impor ao agente a responsabilidade por esse mesmo resultado, independentemente de este ter sido, exclusivamente, condicionado por tal causa:

«O problema não é um problema de ordem física, ou, de um modo geral, um problema de causalidade tal como pode ser havido nas ciências da natureza, mas um problema de política legislativa: saber quando é que a conduta do agente deve ser tida como causa do resultado, a ponto dele ser obrigado a indemnizar. Ora, sendo assim, parece razoável que o agente só responda pelos resultados para cuja produção a sua conduta era adequada e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária.».

É por isso que os RR não podem eximir-se à reparação dos danos causados pelo incumprimento de tal dever com a invocação da contribuição dos factores chuvadas e entupimento das levadas, os quais, manifestamente, não se adequam ao conceito de “força maior”, com os contornos que o labor jurisprudencial e doutrinal dele tem extraído.

 Posto isto, se os danos sofridos pelos AA foram adequadamente causados pelo apurado comportamento (activo e omissivo) dos RR, sem que a acumulação de água provinda da chuva diminua ou atenue a eficácia causal daquele, cabe perguntar: afinal que espaço fica para a concausalidade aludida na decisão recorrida?

Nenhum, como é evidente, porque não se apurou que com aquele comportamento tenha concorrido qualquer outro facto ou acto externo, necessariamente imputável aos lesados ou a terceiro.

E, assim sendo, atendendo a que, segundo a matéria apurada, todos os danos sofridos pelos AA advieram adequadamente da actuação dos RR, são estes os únicos responsáveis pela sua reparação, quer quanto aos de natureza patrimonial, que, na decisão recorrida, foram relegados para liquidação subsequente, quer aos de natureza não patrimonial.

No que a estes últimos respeita, convém relembrar que, contra o aduzido no recurso dos RR, foi feita a prova da sua efectiva verificação (cf. itens 8, 9 e 13 a 19 dos factos) e que o respectivo montante foi fixado com recurso a puros juízos de equidade. Assim sendo e conhecendo o STJ apenas matéria de direito, o decidido com a aplicação de tais juízos ou critérios não normativos, «assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso», sem traduzir, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito, «deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade» ([16]).

Por conseguinte, à luz das razões expostas, só haveria fundamento bastante para censurar o juízo formulado pela Relação e alterar o decidido, com apelo à equidade, se pudesse afirmar-se, tendo em conta os critérios que vêm sendo adoptados, generalizadamente, por este Tribunal ([17]), que o montante em apreço é manifestamente desproporcionado à gravidade objectiva e subjectiva dos efeitos da actuação ilícita dos RR. O que, segundo pensamos, não ocorre, não havendo, por isso, fundamento bastante para alterar o decidido.

Tudo visto, improcede o recurso dos RR e procede o dos AA.

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Síntese conclusiva.

1. - No nosso ordenamento jurídico, o exercício dos poderes dos proprietários de imóveis – entre os quais se incluem os de escavação, desaterro e subsequente deposição de terras removidas – está condicionado, tanto pelas pertinentes regras urbanísticas ou de protecção do ambiente, como, primordialmente, pela necessidade de preservar, nas relações de vizinhança, o equilíbrio imobiliário existente, com a consideração das suas concretas circunstâncias.

2. - Cada vez mais se acentua a evidência de que a situação de vizinhança de prédios implica limitações ao exercício do direito de propriedade – que não se quedam pelas explicitamente prevenidas no CC (como as previstas, p. ex., nas normas dos arts. 1346º a 1348º ou 1350º, ou as dos arts. 492º e 493º) – através da ponderação dos direitos conexos com essa relação de vizinhança, para fundar um direito à protecção do proprietário através da responsabilização do proprietário do prédio vizinho por todas os actos ou omissões que provoquem uma ruptura do equilíbrio imobiliário existente e que exprimam ou realizem a violação de um dever geral de prevenção do perigo.

3. - Das normas consagradas no art. 128º do RGEU e art. 493º nº 1 do CC resulta a imposição de os donos dos prédios os manterem, permanentemente, em estado de não poderem constituir perigo para a segurança pública e dos seus ocupantes ou para a dos prédios vizinhos, sob pena de responsabilidade pelos danos que a coisa imóvel causar.

4. - A violação do condicionamento advindo de regras urbanísticas ou ambientais também pode ser considerada para o efeito previsto na 2ª parte do art. 483º nº 1 do CC (disposição legal destinada a proteger interesses alheios), quando, em face da respectiva interpretação, se constate que a norma em questão também visa proteger interesses particulares e não apenas beneficiá-los enquanto interessados no bem da colectividade.

5. - A aferição global da causalidade adequada, não se referindo a um facto e ao dano isoladamente considerados, deve partir de um juízo de prognose posterior objectiva, formulado em função das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis de todo o processo factual que, em concreto, desencadeou a lesão e o dano, no âmbito da sua aptidão geral ou abstracta para produzir esse dano.

6. - A causa (adequada) pode ser, não necessariamente directa e imediata, mas indirecta, bastando que a acção causal desencadeie outra condição que, directamente, suscite o dano e não pressupôe a existência de uma causa ou condição exclusiva na produção do dano, no sentido de que a mesma tenha, só por si, determinado o dano, porquanto podem ter intervindo outros factos, contemporâneos ou não.

7. – A verificar-se, a causa de força maior ou fortuita, exterior à utilização do prédio pelos RR, emergiria como excludente da sua responsabilidade justamente, por ser idónea a romper o nexo de causalidade adequada. Todavia, uma tal anomalia haveria de resultar de uma cumulação extraordinária de circunstâncias, fenómenos naturais de carácter totalmente excepcional e imprevisível, para um cidadão medianamente diligente, ou, ainda que previstos, inevitáveis, o que não sucede com a (mera) chuva, mesmo que abundante.

8. - As relações de vizinhança e o facto de terem sido os RR os causadores da situação determinante do risco para a moradia dos AA, envolveriam da parte daqueles o dever de agir no sentido da prevenção da ocorrência de danos, repondo a situação de equilíbrio imobiliário que no seu exclusivo interesse e por sua inteira responsabilidade fora perturbado. Não o tendo feito, não só se demonstrou que esse seu comportamento reprovável não foi indiferente para os danos sofridos pelos AA como se conclui, no plano geral e abstracto, que ele constituiu a causa adequada desses mesmos danos, sem que a acumulação de água provinda da chuva atenue essa eficácia causal.

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Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista interposta pelos AA e negar a revista interposta pelos RR e, por consequência, em:

1º) revogar parcialmente o acórdão recorrido e condenar os RR a pagar solidariamente aos AA a quantia que se apurar em liquidação subsequente, correspondente aos danos patrimoniais comprovadamente sofridos pelos AA, bem como a quantia de € 10.000 (dez mil euros) para reparação dos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos.

Custas pelos RR neste Tribunal e nas instâncias.     

Lisboa, 14/2/2017

Alexandre Reis - Relator

Lima Gonçalves

Sebastião Póvoas

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[1] Utiliza-se aqui um conceito relativo de vizinhança, na explicação de OLIVEIRA ASCENSÃO (no artigo “A preservação do equilíbrio imobiliário como princípio orientador da relação de vizinhança”, ROA, 67º, 2007, 5ss): «é vizinho o prédio cuja utilização pode entrar em conflito com a esfera reservada a outro titular imobiliário».

[2] P. 08A3005 - SEBASTIÃO PÓVOAS.

[3] In CC Anot, I, 4ª ed., pp. 472 e 473.

[4] P. 6150-06.2TBALM.L1.S1 - ABRANTES GERALDES.

[5] “Da Boa Fé no Direito Civil”, pág. 831, nota 669.

[6] No já citado artigo.

[7] Para além dos acórdãos, já citados de 28-10-2008 e de 29-03-2012, v., entre outros, o de 8-07-2003 (P. 03A2112 - AFONSO CORREIA.

[8] P. 560/2001.S1 - FONSECA RAMOS.

[9] Como sustentou o Prof. A. VARELA (na RLJ 114º), discordando da fundamentação do Ac. do STJ de 26-03-1980 [Relator Cons. OCTAVIO GARCIA, pub. in BMJ 295º/426 e o sumário também em www.dgsi.pt (P. 068443)], que assentara a responsabilidade por danos provocados no prédio vizinho no abuso do direito do proprietário que, ao demolir o seu prédio, actuara sem as necessárias precauções. Criticando a aplicação da figura do abuso do direito, mas afastando também a aplicação directa das normas legais reguladoras das relações da vizinhança, o Sr. Professor considerou ter perfeito cabimento, em face do direito português, o reconhecimento de que tais situações de conflito sejam reguladas pelo princípio geral do dever de prevenção do perigo, pois que «sobre cada um de nós recai o dever (geral) de não expor os outros a mais riscos ou perigos de dano que são, em princípio, inevitáveis». E acrescenta: «Algumas destas disposições [arts. 1347º e ss do CC] vão, sem dúvida, até ao ponto de imporem ao dono do prédio a obrigação de reparar os danos sofridos pelo proprietário vizinho, mesmo no caso de terem sido tomadas as medidas consideradas necessárias para os prevenir. Mas tal circunstância não obsta a que de todas elas resulte o dever de adopção das medidas destinadas a evitar o perigo criado pelo proprietário ou pelas coisas ou animais que lhe pertencem. Nesse aspecto não repugna considerar tais disposições como simples afloramentos especiais dum princípio geral de recorte mais amplo, semelhante ao que tem sido aceite na jurisprudência e, em seguida, na doutrina germânica».

Já para MENEZES CORDEIRO (ob. cit. II, n° 76, IV), a resposta para uma tal situação deve ser encontrada nas regras sobre o abuso de direito, embora, como regista o citado acórdão de 29-03-2012, não deixe de referir que se trata de uma solução que acaba por ser sustentada num dever geral de prevenção cuja descoberta constitui, no seu entender, um «prenúncio feliz de um activar definitivo das potencialidades contidas no Código de 1966».

[10] Parafraseando a invocação feita pelos RR/Recorrentes das palavras do Prof. VAZ SERRA.

[11] Acórdão, já citado, de 29-03-2012.

[12] V., a título de ex., os Acs. deste Tribunal de 27-01-2011 (P. 777/04.4TBALB.C1.S1 - ÁLVARO RODRIGUES) e de 3-03-2009 (P. 09A0009 - NUNO CAMEIRA) e de 25-02-2014 (5796/04.8TVLSB.L1.S1, in Boletim de 2014 de Sumários de Acórdãos).

[13] (P. 08A3747 - ALVES VELHO).

[14] Acórdão do STJ de 27-09-1994 (084991 - TORRES PAULO), também sustentando que o caso fortuito assenta na ideia de imprevisibilidade.

[15] Cit. in CC Anotado, de P. LIMA e A. VARELA, I, 4ª ed. p. 578.

[16] Ac. do STJ de 21/1/2016 (1021/11.3TBABT.E1.S1 – LOPES DO REGO).

[17] Não obstante o intenso relativismo e, por isso, o pouco rigor objectivo de tal confronto, perante o condicionalismo imposto pela diversidade dos particularismos de cada caso e, como tal, dos pressupostos dos critérios que foram sendo estabelecidos.