Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1592/19.6T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: COOPERATIVA
COOPERATIVA DE HABITAÇÃO
VINCULAÇÃO DE PESSOA COLETIVA
CAPACIDADE JURÍDICA
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
CONTRATO-PROMESSA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
SINAL
FORMA DO CONTRATO
FORMA ESCRITA
FORMA LEGAL
CONDIÇÃO RESOLUTIVA
MORA DO DEVEDOR
IMPOSSIBILIDADE DEFINITIVA
IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
DECISÃO SURPRESA
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 06/17/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Está provado que, à data da celebração do contrato-promessa dos autos, os réus pessoas singulares integravam a direcção da ré cooperativa e dispunham de poderes estatutários para, em conjunto, a vincularem; mas, ainda que assim não fosse, a falta de poderes não determinaria a nulidade do acto, mas apenas e tão-só a não vinculação da ré, cabendo exclusivamente a esta invocá-lo (art. 49.º Cód. Coop.).

II. Também a preterição de deveres estatutários apenas relevaria no plano das relações internas entre os membros da direcção e a cooperativa, podendo aqueles vir a ser responsabilizados por esta última por eventuais danos causados (art. 71.º, n.º 1 e n.º 2, al. a) do Cód. Coop.).

III. O princípio da especialidade do fim é aplicável às cooperativas, seja por se considerar aplicável o art. 6.º do CSC, ex vi art. 9.º do Cód. Coop., ou o art. 160.º do CC, por força do carácter subsidiário geral deste código, pelo que, de acordo com tal princípio, a capacidade da cooperativa se delimita em função do respectivo fim.

IV. A admissibilidade da realização de operações com terceiros, encontra-se consagrada, como regra geral, no n.º 2 do art. 2.º do actual Cód. Coop., em vigor à data da celebração do contrato-promessa dos autos; contudo, no domínio das cooperativas de habitação, vigora ainda, de acordo com o disposto no n.º 1 do 14.º do DL n.º 502/99, de 19/11, a regra da mutualidade preferente.

V. Na medida em que, tal como as demais pessoas colectivas e singulares que actuam no comércio jurídico, se encontram as cooperativas obrigadas a cumprir as suas obrigações, entre as quais se contam as respectivas obrigações financeiras, não pode senão reconhecer-se a faculdade de a ré cooperativa proceder à venda, e concomitantemente, à promessa de venda, de património, no intuito de alcançar tal desiderato, não podendo acolher-se uma interpretação da regra da mutualidade preferente que inviabilize a possibilidade de uma cooperativa respeitar os compromissos assumidos com entidades financiadoras e, com isso, inviabilize o acesso ao crédito, e, no limite, impeça a prossecução do fim mutualista.

VI. Importando apreciar se o contrato-promessa foi válida e eficazmente alterado, tendo a condição resolutiva nele prevista sido substituída por acordo entre as partes, constata-se que a ilisão da presunção do art. 223.º, n.º 1, do CC foi realizada pela prova desse acordo, por confissão do autor.

VII. No que respeita à eventual aplicabilidade das exigências legais de forma - de conhecimento oficioso - a conduta das partes revela, de forma patente, que a cláusula na qual a condição resolutiva estava ínsita não revestia, para as mesmas, carácter essencial, não devendo, assim, considerar-se abrangida pelas razões da exigência da forma legal para a celebração do contrato (art. 221.º, n.º 2, do CC).

VIII. Quanto à eficácia do acordo modificativo do contrato, não tendo sido apurado em que momento teve lugar tal acordo, configuram-se duas hipóteses: (i) se o acordo teve lugar antes de decorrido o prazo contratualmente previsto para o funcionamento da condição resolutiva, dúvidas não subsistem que o contrato foi válida e eficazmente alterado, com a revogação da condição; (ii) se o acordo modificativo teve lugar depois de decorrido esse prazo, entende-se que a conduta das partes revela, de forma evidente, que ambas quiseram manter-se vinculadas à celebração do contrato prometido, marcando, também por acordo, sucessivas datas para a outorga da correspondente escritura pública; pelo que, estando em causa interesses disponíveis, tal configura uma renúncia tácita à invocação da condição resolutiva prevista no contrato e a sua concomitante substituição pelo acordo modificativo.

IX. Ao acordar com a ré a marcação de sucessivas datas para a celebração do contrato prometido, a que o mesmo autor não compareceu, apresentando diversas justificações circunstanciais, mas sem nunca invocar a falta de cancelamento das hipotecas, ou sequer aludir ao funcionamento da condição resolutiva originariamente prevista em cláusula do contrato, a conduta do autor contradiz frontalmente – com desrespeito pelo princípio da boa fé que preside tanto ao cumprimento dos contratos como ao exercício dos direitos (cfr. arts. 762.º e 334.º do CC) – a pretensão de, na presente acção, fazer valer a sobredita cláusula contratual.

X. Assim, perante o teor do acordo modificativo, válido e eficaz, provado por confissão do autor, forçoso é concluir que as sucessivas não comparências ao acto de celebração do contrato prometido (e subsequente desinteresse, não juridicamente justificado, em tal celebração), configuram uma situação de mora no cumprimento do contrato-promessa, imputável ao autor, a qual veio a redundar numa situação de impossibilidade de celebração do contrato definitivo, imputável ao mesmo.

XI. Quanto aos réus membros da direcção da cooperativa, não sendo parte no contrato-promessa dos autos, apenas poderiam ser pessoalmente responsabilizados em sede de responsabilidade extracontratual se se verificassem os respectivos pressupostos e se o autor tivesse peticionado indemnização com tal fundamento, o que não sucedeu.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1.  AA instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra UCHALGAR – Promoção de Habitação Cooperativa, U.C.R.L., BB e CC, pedindo a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia de € 308.000,00 (trezentos e oito mil euros), acrescida de juros moratórios à taxa civil desde a data da cobrança dos cheques a que correspondem os documentos n.os 24 e 25, até integral pagamento, que, à data da propositura da acção, somavam € 31 761,97 (trinta e um mil, setecentos e sessenta e um euros e noventa e sete cêntimos).

Para o efeito alegou, em síntese, que: em 23.09.2016 celebrou, por escrito, com a 1.ª R., representada pelos 2.º e 3.º RR., respectivamente, na qualidade de tesoureiro e de vogal da direcção, um contrato-promessa de compra e venda de lotes de terreno para construção, pelo preço de € 4.900.000,00; os lotes prometidos vender estavam hipotecados a favor da Caixa Económica Montepio Geral, e foi expressamente acordado que a 1.ª R. ficava obrigava a conseguir o efectivo cancelamento das hipotecas que incidiam sobre os lotes prometidos vender, o que deveria concretizar no prazo de 60 dias, decorridos os quais, na falta de cancelamento, o “acordo de compra e venda” seria resolvido e ficaria sem efeito. Entregou aos 2.º e 3.º RR., a título de sinal, as quantias de € 245.000,00 e € 63.000,00, respectivamente, na data de assinatura do contrato e no dia 07.10.2016, destinadas à 1.ª R..

Os RR. nunca marcaram a escritura de compra e venda prometida e devidamente instruída com os documentos legalmente necessários, assim como não prepararam qualquer documentação interna da cooperativa tendo em vista o cumprimento do negócio.

Mais alegou que os 2.º e 3.º RR. sabiam que a 1.ª R. não tinha qualquer possibilidade de fazer cancelar as hipotecas que incidiam sobre os lotes, por falta de liquidez e que a 1.ª R. não podia vender os lotes a um terceiro, como o autor, numa operação comercial, por tal negócio atentar contra o escopo cooperativo e ainda por carecer de deliberações prévias das cooperativas cooperadoras e da sua própria assembleia geral, sendo que entretanto os lotes em causa foram penhorados e vendidos a outrem, em acção executiva, pelo que a promessa não pode ser já cumprida.

Por isso, seja por via de declaração de nulidade, seja por via de resolução, seja por via da impossibilidade de incumprimento, fundamentos subsidiária e sucessivamente aplicáveis – o que expressamente invoca – devem os RR. restituir ao A. o valor do sinal e dos reforços de sinal entregues.

Contestaram os RR.: o 2.º e 3.º RR. suscitaram a sua ilegitimidade, dado terem assinado o contrato-promessa na qualidade de representantes da 1.ª R. e não a título pessoal, invocando ser o contrato válido e ter sido celebrado pelos representantes da 1.ª R., ter a escritura pública sido várias vezes agendada, tendo sido o A. que sucessivamente a ela faltou por não ter meios financeiros para pagar o remanescente, e sendo que havia sido acordado, incluindo com o credor hipotecário, que o cancelamento das hipotecas seria feito mediante o pagamento que o A. tinha de efectuar para liquidação do preço da compra e venda.

Imputaram ao A. o incumprimento definitivo do contrato-promessa e pugnaram pela improcedência da ação.

Em sede de audiência prévia de 10.10.2019, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade dos 2.º e 3.º RR..

Por sentença de 23 de Janeiro de 2020, foi proferida a seguinte decisão:

«Face ao exposto, decido julgar a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, por conseguinte, condenar os réus, em regime de solidariedade, ao pagamento da quantia peticionada (€ 308 000,00 – trezentos e oito mil euros), acrescida dos juros vencidos a contar da data da citação e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento, absolvendo do demais peticionado».

Inconformados, interpuseram os RR. recurso para o Tribunal da Relação  ….., pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 24 de Setembro de 2020, foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a sentença na parte em que condenou os Réus BB e CC, que vão absolvidos dos pedidos contra si deduzidos, mantendo a condenação da Ré UCHALGAR – PROMOÇÃO DE HABITAÇÃO COOPERATIVA, U.C.R.L.” nos termos sentenciados.»


2. Vem o A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«a) O douto acórdão recorrido fez errado julgamento de direito quando declarou que o negócio proposto pelos réus não era nulo, que os réus BB e CC não violaram deveres que lhes estavam impostos por lei e pelos estatutos da cooperativa 1ª ré, quando julgou que aqueles dois réus tinham poderes para fazer por si o negócio, sem intervenção do presidente da direção, sendo eles tesoureiro e secretário da mesma, e ainda quando decidiu pelo abuso de direito;

b) Dos factos provados 2, 11 e 23 apura-se que o objeto da 1ª ré cooperativa apenas lhe permitia fazer negócios com terrenos destinados a membros das cooperativas suas filiadas e que a venda de lotes prometida ao autor não foi autorizada por qualquer deliberação;

c) Dos factos 8 e 12 apura-se que os réus BB e CC prometeram vender ao autor, por € 4.900.000,00, 18 lotes de terreno da cooperativa 1ª ré, que estavam hipotecados por € 5 363 425,98;

d) Dos factos 13, 14 e 22 apura-se que aqueles réus agiram sem dar conhecimento ao presidente da direcção da cooperativa 1ª ré, sem estarem autorizados por deliberação da assembleia geral e que não entregaram à 1ª ré os € 308.000,00 que receberam do autor a título de sinal da prometida venda;

e) Aqueles réus “sabiam que a 1ª ré não tinha qualquer possibilidade de fazer cancelar as hipotecas que incidiam sobre os lotes, por falta de liquidez” (facto 19) e “sabiam que não podiam vender os prédios que prometeram vender e não informaram a cooperativa e os órgãos competentes da mesma para aprovar tal negócio, tal como jamais reuniram a documentação necessária à celebração do negócio ou sequer conducente à autorização para a venda a terceiro de prédios destinados a fins cooperativos” (facto 21);

f) “O 2º réu confirmou diversas vezes que procederia à devolução do dinheiro do sinal pago pelo autor pela entrega e cobrança dos cheques em causa” (facto 37).

g) Não há no caso supletividade do Código das Sociedades Comerciais, que só ocorre, como dispõe o art. 9 do Código Cooperativo, “na medida em que se não desrespeitem os princípios cooperativos” e não haja norma cooperativa expressa;

h) A cooperativa prossegue fins sociais, não visa o lucro e não pratica atos de comércio, salvo na estrita medida em que o seu objeto social o permita;

i) Em caso algum é admitida a transferência do capital comum da cooperativa para fora do sector social, sob cominação da nulidade estabelecida no artigo 111 do Código Cooperativo, tanto para os atos de transformação jurídica das cooperativas em sociedade comerciais, como para as operações que afetem bens cooperativos a fins privados;

j) As operações das cooperativas com terceiros apenas são permitidas quando a legislação do sector e os respetivos estatutos as prevêem (art. 2, nº 2 do Código Cooperativo) e não podem desvirtuar o mesmo objecto nem prejudicar as posições adquiridas pelos seus cooperadores, devendo o seu montante ser escriturado em separado do realizado com os cooperadores” (art. 14, nº 1, do Decreto-Lei n.º 502/99, de 19/11);

k) Os estatutos da cooperativa ré não prevêem operações com terceiros e o seu objeto social restringe toda a atuação à realização dos interesses das cooperativas associadas, sendo os terrenos e fogos destinados aos membros destas (art. 6, nº 1);

l) No caso concreto dos autos, a venda dos lotes contrariava a deliberação da assembleia geral da Uchalgar, mencionada no facto provado nº 11, que mandava a direção da cooperativa edificar habitações nos lotes de terreno, destinados aos cooperadores, pelo que a compra e venda e a sua promessa, que nunca havia sido deliberada pelos órgãos da cooperativa (facto provado nº 23);

m) O negócio prometido é nulo, por ofensa ao disposto no art. 111 do Código Cooperativo, com violação do objeto social e não prevista nos estatutos da Uchalgar, além de que envolvia a transferência para o sector privado de todo o património votado a fins cooperativos;

n) Os 2º e 3º réus vez alguma tomaram medidas conducentes à concretização ou convalidação, designadamente promovendo as necessárias deliberações internas da Uchalgar e desipotecando os prédios ou demonstrando que a venda a terceiro não excedia os limites legais, não reuniram os documentos necessários para o efeito e que nem sequer o presidente da direção conheceu do negócio (factos provados nºs 21 e 22);

o) Como ensina Antunes Varela, corroborando o acórdão do STJ de 15/10/1981, quando o contrato definitivo é proibido por lei, também será proibido, e portanto nulo, o contrato-promessa correspondente;

p) É inaplicável ao caso o disposto no art. 409 do Código das Sociedades Comerciais, respeitante às sociedades anónimas, que se refere à liberdade contratual privatística, onde se presume a correspondência do ato de administração com o interesse de lucro da sociedade, enquanto critério da boa fé nos negócios com terceiros;

q) Nas cooperativas, os administradores têm o dever de “Praticar os atos necessários à defesa dos interesses da cooperativa e dos cooperadores, bem como à salvaguarda dos princípios cooperativos” (art. 46, nº 1, a), do Código Cooperativo);

r) Os 2º e 3º réus, secretário e tesoureiro da direcção da cooperativa, não tinham poderes para outorgar a promessa, sem intervenção do presidente da direção (factos provados nºs 5, 13 e 23) e nada fizeram para convalidar tais poderes ou para justificarem tal atuação, pelo que o ato que praticaram não tem eficácia externa (art. 49 do Código Cooperativo);

s) Os 2º e 3º réus não destinaram os valores recebidos do autor a título de sinal para a cooperativa que representavam no negócio, mas sim a uma outra entidade (facto provado nº 14, in fine), furtando desse modo valores que caberiam à 1ª ré e, simultaneamente, mantendo os órgãos próprios da 1ª ré e o seu presidente no desconhecimento do negócio;

t) A responsabilidade daqueles réus é elevadíssima: deram causa a um negócio que sabiam contrário à lei, desviaram em desproveito do autor e da sua representada os valores que receberam, fizeram crer que cumpririam a promessa que não poderiam cumprir, prometeram devolver aqueles valores, mas não cumpriram (facto provado nº 37);

u) Aliás, como superiormente conclui a douta sentença, o negócio resultante da promessa de compra e venda dos autos seria ruinoso para a cooperativa, na medida em que perdia todo o património por valor inferior ao passivo – factos 12 e 36;

v) Os 2º e 3º réus, tendo desviado o valor do sinal para entidade distinta da 1ª ré (facto nº 14), são também por esse motivo – além dos supra referidos – responsáveis solidários pela restituição do sinal, nos termos do disposto no art. 74 do Código Cooperativo (facto nº 37);

w) O acórdão ora recorrido aprecia oficiosamente um abuso de direito do autor, por ter invocado em juízo a nulidade do negócio, o que constitui decisão surpresa, por falta de oportunidade de contraditório, donde há nulidade na sua aplicação, por violação do art. 3, nº 1 do CPC;

x) Está provado no facto nº 16 que “O autor não é membro da 1ª ré ou de qualquer das cooperativas suas filiadas e não conhecia a origem dos prédios, o objecto social da 1ª ré, bem como qualquer norma relativa ao sector cooperativo da habitação”, pelo que não podia portanto conhecer da nulidade do negócio, pelo que não há abuso de direito no exercício da acção;

y) O acórdão recorrido violou as disposições supra mencionadas»


Os RR. BB e CC contra-alegaram, concluindo da seguinte forma:

«A. O artigo 23.º n.º 6 dos estatutos da UCHALGAR, estabelece que “compete à Direcção, como órgão colegial de gestão da União, proceder à administração e desenvolvimento das suas actividades, designadamente comprar, vender, ceder, permutar e hipotecar terrenos, edifícios e fogos, contratar empreitadas e serviços técnicos, em ordem à prossecução do objecto social da União, dando execução às deliberações sobre a matéria havidas em reunião de Programa”.

B. A Direcção da UCHALGAR é, por isso, o órgão competente para vender terrenos e, evidentemente, prometer vendê-los.

C. Consta da Certidão Permanente da UCHALGAR que a Direção é constituída por DD; BB; CC, e EE. FF, GG, HH, II

D. Consta da certidão permanente do registo comercial da Ré UCHALGAR que a cooperativa fica obrigada com as suas assinaturas conjuntas do Presidente da Direção e do Tesoureiro ou, no impedimento de algum deles, com as assinaturas conjuntas de quaisquer dois membros da Direcção.

E. Resulta inequivocamente de todo o comportamento da Cooperativa, a partir da assinatura do contrato-promessa, que, em nenhum momento quer dos actos de execução desse contrato, quer do desenvolvimento do presente processo, a UCHALGAR pôs em causa a sua vinculação ao cumprimento do contrato-promessa. Sempre assumiu as obrigações contratuais, procurou cumpri-las, dentro das possibilidades que lhe conferia a sua situação financeira e sempre se dispôs a cumprir a promessa contratual de outorgar a escritura notarial de compra e venda.

F. Todo o efectivo comportamento da direcção da UCHALGAR constituiu inequívoca ratificação da assinatura do contrato-promessa pelos dois membros da direcção, os 2.º e 3.º Réus, BB e CC, e das obrigações por eles assumidos em nome da Cooperativa.

G. A ratificação da operação por parte do Presidente da UCHALGAR, DD, no que toca ao contrato definitivo de compra e venda dos dezoito lotes é expressa e muito detalhada no depoimento que prestou em julgamento, aos minutos 8:19, 1:54 e 12:15, transcritos a fls. 33 e 34 das alegações de recurso de apelação.

H. Os princípios cooperativos da Aliança Cooperativa Internacional agem como directrizes ou critérios de acção, válidos como referências de prática interna cooperativa, mas sem eficácia de natureza externa. Como se diz no acórdão recorrido, uma operação da cooperativa com terceiros não é nula por violar um princípio cooperativo.

I. O legislador do Decreto-Lei n.º 502/99 não pretendeu com a norma do art. 14 fixar às cooperativas de habitação e construção quaisquer limites à realização de operações com terceiros não cooperadores, mas apenas chamar a atenção dos órgãos competentes para que a realização dessas operações não possam desvirtuar o objecto da cooperativa levando-a a actuar no mercado como mais um operador em concorrência directa com os operadores puramente comerciais, e, nessa perversão, a secundarizar o carácter social da sua acção e a prejudicar os seus cooperadores nas posições e direitos por eles já adquiridos.

J. O art. 14 do Decreto-lei n.º 502/99 não condiciona a licitude das operações com terceiros à sua previsão expressa no elenco dos actos que se incluem no objecto social constante dos estatutos.

K. A previsão do art. 14 não implica que, na definição do objecto social das cooperativas a que se aplica, conste especificamente a possibilidade da realização de operações com terceiros para que essa realização seja lícita. No caso dos autos, em relação à UCHALGAR, a inclusão das operações com terceiros no objecto social de que fala o artigo aponta para a conformidade dessas operações com o tipo previsto no objecto social estatutário, isto é, com as operações que tenham a ver com “a defesa dos interesses comuns das cooperativas suas associadas, no que respeita à promoção e execução de empreendimentos habitacionais, nomeadamente, a compra, venda, cedência, permuta e hipoteca de terrenos, edifícios e fogos destinados aos membros das cooperativas filiadas e ainda à gestão, reparação, manutenção ou remodelação dos fogos construídos, espaços envolventes e todas as infraestruturas, podendo também promover outras iniciativas de interesse para os cooperadores das cooperativas-membros nos domínios social, cultural, material e de qualidade de vida”.

L. A norma do art. 111 CCoop comina com a nulidade a transformação de uma cooperativa em sociedade comercial, seja por via directa seja por negócio indirecto que tenha a mesma finalidade. O negócio objecto do contrato-promessa era um mero negócio de compra e venda de imóveis, sendo que o comprador nem sequer era uma sociedade comercial. É, por tal razão, impossível subsumir o negócio de compra e venda objecto do contrato prometido, à transformação da UCHALGAR em sociedade comercial ou a algum outro negócio susceptível de conduzir à mesma finalidade.

M. Com a conclusão do negócio prometido tinha a UCHALGAR o único objectivo de pagar a dívida proveniente do contrato de mútuo em vigor com o Montepio Geral, garantido por hipoteca sobre os lotes prometidos vender, mútuo que estava em situação de incumprimento na data em que foi celebrado o contrato-promessa com o Autor.

N. Não há princípio cooperativo que exima as cooperativas de cumprir os princípios básicos do tráfego jurídico. A norma do art. 601 CC, que diz que pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, aplica-se a todos os sujeitos de direito, incluindo as cooperativas e não colide com nenhum dos princípios cooperativos enunciados no art. 3.º CCoop.

O. A única solução viável para a UCHALGAR solver a dívida ao Montepio Geral era realizar a operação de compra e venda dos lotes com um terceiro não cooperador, negociando ao mesmo tempo com o credor a redução da dívida ao valor do preço negociado com o comprador, com perdão do remanescente. O Montepio Geral aceitou a solução.

P. Este era, na circunstância, o único negócio que permitia à UCHALGAR continuar a existir, prestando os serviços aos seus cooperadores, no âmbito da manutenção e reparação dos imóveis construídos, do arranjos e manutenção das áreas envolventes, da representação dos interesses das cooperativas seus membros e dos cooperadores destas junto das entidades públicas centrais e locais, e ainda de relançar novos programas de construção, quando a conjuntura económica e social o permitisse. Esta era a forma, a única, de continuar a observar os princípios cooperativistas afirmados no art. 3.º CCoop.

Q. O contrato-promessa só não foi cumprido porque o Autor, irresponsavelmente, assumiu a obrigação de celebrar o contrato de compra e venda sem que tivesse a capacidade financeira necessária para o cumprir. O que a UCHALGAR só mais tarde veio a verificar, quando o Autor faltou sucessivamente a cinco marcações da escritura de compra e venda, marcadas com o seu acordo, e acabou por se desinteressar do negócio (pontos 26 a 35 da matéria de facto).»

Termina pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Também a R. UCHALGAR interpôs recurso de revista, concluindo nos seguintes termos:

«A. O segmento condenatório da Ré UCHALGAR da sentença da primeira instância e do acórdão da Relação proferido em recurso de apelação ora recorrido de revista não formam dupla conforme nos termos do art. 671.3 CPC, uma vez que o acórdão da Relação embora seja tirado sem voto de vencido, tem fundamentação essencialmente diferente da sentença da primeira instância, pelo que é admissível o presente recurso de revista.

B. Da ilegitimidade do exercício pelo Autor de um direito em que ele excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito, decorre a consequência de que uma acção proposta em juízo, fundamentada nesse direito, tem necessariamente de improceder. Se o exercício de um direito é ilegítimo não pode o tribunal acolher validamente o seu exercício.

C. Os negócios jurídicos que violem disposições legais imperativas são nulos, nos termos do art. 294 CC

D. A presunção contida no art. 223.1 CC é juris tantum, admitindo por isso prova em contrário, nos termos do art. 350.2 CC. Implica por isso a inversão do ónus da prova (art. 344.1 CC), uma vez que quem tem presunção legal a seu favor escusa de provar o facto que a ela conduz (art. 350.1).

E. Contudo, o mesmo princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual consignado no art. 405.1 CC que permite convencionar validamente uma forma especial para a declaração negocial permite revogar essa mesma convenção.

F. A alegação da existência do acordo entre as partes no sentido de que o cancelamento dos registos das hipotecas sobre os lotes objecto do contrato-promessa seria feito antes da celebração da escritura, mediante o pagamento, pelo Autor, do preço da compra e venda foi feita pelos Réus no art. 24 da contestação.

G. Era aos Réus que interessava a prova deste facto. Por tal razão, os Réus requereram a prestação de depoimento de parte pelo Autor, sobre esta matéria.

H. Em audiência de julgamento, o Autor confessou, livre e espontaneamente a matéria do art. da contestação dos Réus.

I. O negócio jurídico concluído com preterição duma forma convencionalmente determinada não pode ser nulo.

J. Coerentemente com a sua consideração do comportamento do Autor ao propor a acção em juízo com base no direito à resolução do contrato por incumprimento do prazo constante da cláusula 2.ª do contrato, depois de ter acordado em que a Ré cancelasse as hipotecas antes da celebração da escritura de compra e venda e depois de reiteradamente não ter comparecido às marcações sucessivas para a celebração dessa escritura sem nunca ter levantado a questão de o contrato estar resolvido por força do incumprimento daquela cláusula contratual, deveria o acórdão da Relação ter julgado a pretensão do Autor improcedente por violação das regras da boa fé contratual protegidas pelo art. 334 CC.

K. A presunção do art. 223.1 CC é juris tantum, admitindo por isso prova em contrário, nos termos do art. 350.2 CC. Implica por isso a inversão do ónus da prova (art. 344.1 CC), uma vez que quem tem presunção legal a seu favor escusa de provar o facto que a ela conduz (art. 350.1).

L. Contudo, o mesmo princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual consignado no art. 405.1 CC que permite convencionar validamente uma forma especial para a declaração negocial permite revogar essa mesma convenção.

M. No caso dos autos, a ilisão da presunção do art. 223.1 CC é feita pela prova do facto constante do ponto 25 da matéria de facto: “Não obstante o teor da clausula 2.ª do referido acordo, no sentido de que, a ré/promitente vendedora se comprometia a eliminar os ónus que incidiam sobre os referidos lotes, no prazo de 60 dias, findos os quais, caso tal não sucedesse, operava-se a resolução do acordo, com a devolução em singelo do sinal prestado, foi acordado entre o autor e a ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, que o cancelamento das hipotecas seria efetuado até ao ato da celebração da escritura notarial de compra e venda, tudo com a concordância do Montepio Geral, mediante o pagamento que o autor tinha de efetuar para liquidação do preço de compra e venda.”

N. Esta prova está feita nos autos, por confissão do Autor, em depoimento de parte prestado em audiência de julgamento, a requerimento dos Réus.

O. A alegação da existência do acordo entre as partes no sentido de que o cancelamento dos registos das hipotecas sobre os lotes objecto do contrato-promessa seria feito antes da celebração da escritura, mediante o pagamento, pelo Autor, do preço da compra e venda foi feita pelos Réus no art. 24 da contestação.

P. Era aos Réus que interessava a prova deste facto. Por tal razão, os Réus requereram a prestação de depoimento de parte pelo Autor, sobre esta matéria.

Q. Em audiência de julgamento, o Autor confessou, livre e espontaneamente a matéria do art. 24 da contestação dos Réus.

R. A confissão foi reduzida a escrito e consta de assentada exarada na acta da audiência de julgamento.

S. Trata-se, por isso, de confissão judicial escrita, feita pelo Autor, de factos que o desfavorecem e favorecem os Réus, a qual faz prova plena, no sentido de que não pode ser afastada por nenhum outro meio de prova. (vd. art 352 CC).

T. A cláusula 2.º do contrato-promessa não é uma verdadeira condição resolutiva antes faz parte do que a doutrina denomina de condições impróprias, constituindo exemplo da chamada condição resolutiva tácita ou resolução por inadimplemento, que resulta, quanto ao inadimplemento definitivo (impossibilidade do cumprimento), do artigo 801.º, n.º 2, e, quanto à mora, do artigo 808.º, n.º 1, que permite a aplicação das normas sobre a falta de cumprimento e, portanto, daquele artigo 801º, n.º 2.

U. Diz a cláusula 7.ª do contrato-promessa, que “considera-se que houve incumprimento definitivo se, uma vez ultrapassada a data prevista e assumida neste contrato, a parte faltosa (em mora) depois de interpelada para cumprir, deixar de o fazer no prazo que lhe vier a ser estipulado pela parte contrária, que as partes acordam nunca ser superior a trinta dias.”

V. O contrato contém duas situações sujeitas a prazo: a da cláusula 2.º (o prazo para o cancelamento das hipotecas) e a da cláusula 5.ª n.º 1 (o prazo para a celebração da escritura de compra e venda), pelo que a cláusula 5.º se aplica a ambos os prazos.

W. Interpretado à luz da cláusula 7.ª, o acordo verbal a que as partes chegaram e vem provado no ponto 25 surge não como uma estipulação acessória que contradiz a cláusula 2.ª, mas, ao contrário, como a concretização de um acordo que viabiliza uma solução para a purga da mora em que a promitente vendedora tinha incorrido. Não atinge a validade da cláusula mas está para além da sua previsão, numa relação de complementaridade.

X. O comportamento das partes posterior ao vencimento da obrigação de cancelamento das hipotecas nos sessenta dias posteriores à assinatura do contrato-promessa, tal como vem descrito e provado nos pontos 25 a 35 da matéria de facto, é inconsistente com a resolução do contrato por efeito do incumprimento do prazo previsto na cláusula 2.ª do contrato.

Y. O prazo que vem estabelecido na cláusula 2.ª do contrato-promessa não gera a resolução automática do contrato, antes defere ao credor, o Autor, a faculdade de conferir um prazo admonitório, fixo ou indexado a outra prestação contratual, por forma a obter a satisfação do real interesse prosseguido com a sua estipulação.

Z. Por efeito do acordo a que as partes chegaram de que o cancelamento das hipotecas seria efectuado até ao acto da celebração da escritura notarial de compra e venda, ficou a obrigação da Ré UCHALGAR de cancelar as hipotecas indexada ao cumprimento pelo Autor da obrigação de celebrar a escritura de compra e venda. A Ré deixou de estar em mora e o momento do cumprimento da sua obrigação ficou na dependência do cumprimento da obrigação do Autor.

AA. o Autor, reiteradamente, não compareceu à celebração da escritura nas muitas datas em que a mesma foi marcada, com a sua anuência, pelo que foi o Autor que entrou em mora até que, pela adjudicação dos lotes em processo executivo à CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL, o cumprimento do contrato-promessa se tornou impossível.

BB. A caducidade do contrato-promessa de compra e venda pela superveniente impossibilidade de cumprimento é apenas imputável ao Autor.

CC. Nos termos do art. 442.2 CC, se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue. Por tal razão, tem a Ré UCHALGAR o direito de fazer suas as quantias de € 245.000,00 e € 63.000,00, que lhe foram entregues pelo Autor, a título de sinal, respectivamente na data da assinatura do contrato-promessa e em 7/10/2016, conforme consta do ponto 14 da matéria de facto provada.

DD. O acórdão recorrido violou, entre muitas outras as disposições dos artigos 223.1, 294, 334, 344.1, 350.2, 352, 436.2 e 442, todos do Código Civil, conforme descrito aio longo do texto das presentes alegações.»

Termina pedindo que:

a) Seja admitida a revista;

b) Seja revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que absolva totalmente a R. Recorrente do pedido formulado pelo A..


O A. contra-alegou, concluindo:

«a) A confissão em audiência não pode ter por efeito convalidar uma declaração de vontade não manifestada sob a forma exigida na vigência da promessa.

b) O objecto da revista deve ser ampliado, subsidiariamente, ao abrigo do disposto no art. 636 do CPC, para além dos fundamentos exarados no douto acórdão da Relação, de modo a tomar em consideração igualmente os fundamentos vertidos na douta sentença de 1ª instância, que são da maior relevância para a boa decisão da causa, bem como a matéria que resulta do provado no nº 37 (o 2º réu prometeu devolver o sinal ao autor), que implica reconhecimento de que não havia incumprimento culposo da parte deste e ainda de que não ocorre abuso de direito imputável ao autor.

c) A Uchalgar jamais quis celebrar o negócio definitivo: O seu presidente não teve conhecimento da promessa; não foi praticado qualquer ato interno de preparação ou efectivação do negócio; e não existiam meios financeiros para os concretizar – conforme factos provados nºs 13, 21, 22 e 23.

d) Não se provou qualquer acordo entre a Uchalgar e o Montepio que viesse a permitir a redução do passivo hipotecário.

e) O negócio prometido seria um negócio ruinoso para a ré Uchalgar, como observado na douta sentença da 1ª instância, que vendia os lotes por valor inferior à dívida hipotecária.

f) Provado está no facto nº 14 que os 2 e 3 réus desviaram o valor do sinal que receberam em nome da ré Uchalgar, montante que não entrou nos seus cofres, pelo que qualquer acordo com o Montepio estaria necessariamente prejudicado e a Uchalgar achar-se-ia – como sucedeu – na impossibilidade de eliminar a dívida hipotecária.

g) Todos os potenciais investidores procurados pelo autor se afastaram e recusaram comprometer-se no negócio, pelas hipotecas não destratadas, – ao que acresceu, no desconhecimento à data do autor, as dúvidas dos investidores quanto à legalidade do negócio, posto que se tratavam de bens cooperativos.

h) A ré Uchalgar havia destinado os lotes de terreno em causa aos seus fins estatutários, de promoção da habitação cooperativa – factos provados nºs 10 e 11 – pelo que jamais poderia vender os lotes tal como prometido pelos 2º e 3º réus.

i) Daqueles factos resulta que o negócio jamais poderia ser concretizado e que as marcações de escrituras de compra e venda pelos 2º e 3º réus se limitaram a procurar obter um pretexto para protelar a cobrança do passivo hipotecário pelo Montepio.

j) Donde se compreende o facto provado nº 37: gorado o negócio prometido mas conseguida a inação do Montepio, o 2º réu prometeu ao autor devolver o montante do sinal.

k) Aquele reconhecimento de que o sinal seria devolvido ao autor afasta qualquer interpretação, meramente formal, sobre os efeitos de um hipotético incumprimento imputável ao autor – pelo que o sinal deve ser restituído em singelo.

l) O negócio prometido é nulo, por violar os princípios cooperativos, os estatutos e as deliberações da ré Uchalgar e as regras que regulam as vendas a terceiros por parte das cooperativas de habitação, posição que se colhe da douta sentença proferida na 1ª instância e que aqui se reitera, nos termos aí consignados.

m) A cominação de nulidade mostra-se estabelecida no artigo 111 do Código Cooperativo, tanto para os atos de transformação jurídica das cooperativas em sociedade comerciais, como para as operações que afetem bens cooperativos a fins privados.

n) As operações das cooperativas com terceiros apenas são permitidas quando a legislação do sector e os respetivos estatutos as prevêem (art. 2, nº 2 do Código Cooperativo). No sector da habitação rege o Decreto-Lei n.º 502/99, de 19/11, que no seu art. 14, nº 1 dispõe: “As operações com não cooperadores, incluídas no objecto social das cooperativas, realizadas a título complementar não podem desvirtuar o mesmo objecto nem prejudicar as posições adquiridas pelos seus cooperadores, devendo o seu montante ser escriturado em separado do realizado com os cooperadores”.

o) Da conjugação daquelas disposições resultam 6 requisitos de legalidade das operações com terceiros, donde avultam e aqui relevam a (1) obrigatoriedade de constarem dos estatutos, (2) não excederem o objeto social e (3) serem meramente complementares.

p) Os estatutos da Uchalgar (juntos com a p.i.) não prevêem operações com terceiros e o seu objeto social restringe toda a atuação à realização dos interesses das cooperativas associadas, sendo os terrenos e fogos destinados aos membros destas (art. 6, nº 1).

q) Os lotes de terreno prometidos vender ao autor eram os únicos prédios da Uchalgar, pelo que a compra e venda prometida representava uma operação com terceiros que eliminava a totalidade do capital da cooperativa e a totalidade das suas existências.

r) A venda prometida contrariava a deliberação da assembleia geral da ré Uchalgar, mencionada no facto provado nº 11, que mandava a direção da cooperativa edificar habitações nos lotes de terreno, destinados aos cooperadores, pelo que a compra e venda e a sua promessa, que nunca havia sido deliberada pelos órgãos da cooperativa (facto provado nº 23) desrespeitava tal orientação, como violava o objeto social, sendo certo que os lotes de terreno destinavam-se “à prossecução dos seus fins estatutários”, e não a qualquer negócio privado.

s) Conclui-se que se trata de um negócio nulo, por ofensa ao disposto no art. 111 do Código Cooperativo, com violação do objeto social e não prevista nos estatutos da ré Uchalgar, além de que envolvia a transferência para o sector privado de todo o património votado a fins cooperativos.

t) Constatando-se que a venda dos autos ofendia tanto o objeto social como deliberação expressa da assembleia geral da ré cooperativa, não pode aplicar-se o disposto no art. 409 do Código das Sociedades Comerciais, respeitante às sociedades anónimas, que se refere à liberdade contratual privatística, onde se presume a correspondência do ato de administração com o interesse de lucro da sociedade, enquanto critério da boa fé nos negócios com terceiros, devendo antes aplicar-se o art. 46, nº 1, a), do Código Cooperativo).

u) Estando provado no facto nº 16 que “O autor não é membro da 1ª ré ou de qualquer das cooperativas suas filiadas e não conhecia a origem dos prédios, o objecto social da 1ª ré, bem como qualquer norma relativa ao sector cooperativo da habitação”, não pode considerar-se que o autor agiu em abuso de direito, pois não podia conhecer da nulidade do negócio.»

Termina pugnando pela ampliação do objecto do recurso e a manutenção da decisão de condenação da R. UCHALGAR.


3. Podendo suscitar-se dúvidas sobre a admissibilidade do recurso interposto pela R. UCHALGAR, à luz do regime do n.º 3 do art. 671.º do Código de Processo Civil, uma vez que, quanto a esta, o acórdão recorrido manteve a decisão de condenação da 1.ª instância, alega aquela Recorrente que não se verifica o obstáculo da dupla conforme por existir fundamentação essencialmente diferente.

Constata-se, porém, e desde logo, que, tendo a sentença da 1.ª instância condenado solidariamente todos os RR. e tendo o acórdão recorrido absolvido os 1.º e 2.º RR. e condenado apenas a R. UCHALGAR, não ocorre dupla conformidade entre as decisões das instâncias, desde logo porque aquela decisão constituiria título executivo contra os co-devedores solidários.

Assim, ambos os recursos são admissíveis.


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a identificação das instâncias):

1. A cooperativa “Nova Terra – Cooperativa de Habitação e Construção Económica de ...., CRL” foi constituída em 28/12/1984, tendo por objeto “a promoção, construção e aquisição de fogos para habitação dos seus membros”, figurando os 2.º e 3.º réus como membros do conselho de administração.

2. A 1ª ré é uma União de Cooperativas, no ramo da habitação e construção, constituída em 8/7/2004, tendo por objeto social “a defesa dos interesses comuns das cooperativas suas associadas, no que respeita à promoção e execução de empreendimentos habitacionais, nomeadamente, a compra, venda, cedência, permuta e hipoteca de terrenos, edifícios e fogos destinados aos membros das cooperativas filiadas e ainda à gestão, reparação, manutenção ou remodelação dos fogos construídos, espaços envolventes e todas as infraestruturas, podendo também promover outras iniciativas de interesse para os cooperadores das cooperativas-membros nos domínios social, cultural, material e de qualidade de vida”.

3. De início, a 1.ª ré era constituída por duas outras cooperativas: a “Cooperativa de Construção e habitação Económica Lagoense, CRL” e a “Nova Terra – Cooperativa de Habitação e Construção Económica  ...., CRL”.

4. Nos termos dos pontos 5.º e 6.º do artigo 23.º dos estatutos da 1.ª ré, a direção poderia delegar no presidente ou em qualquer outro dos seus membros poderes coletivos de representação e mandatar qualquer pessoa para a prática de atos que caibam nas suas atribuições, sendo que, competia à direção, entre outros, comprar, vender, ceder, permutar e hipotecar terrenos, edifícios e fogos, em ordem à prossecução do objeto social da União, dando execução às deliberações sobre a matéria havidas em reunião de Programa.

5. Nos termos do artigo 25.º dos mesmos estatutos, a 1.ª ré ficaria obrigada com as suas assinaturas conjuntas do presidente da direção e do tesoureiro ou, no impedimento de algum deles, com as assinaturas conjuntas de quaisquer dois membros da direção ou por quem esta designar através de procuração. 

6. Através de escritura pública de compra e venda e empréstimo com hipoteca, mandato e renúncia datada de 26/7/2004, a cooperativa “M.C.H. – Promoção de Habitação Cooperativa, CRL” vendeu à 1.ª ré, que comprou, o prédio misto descrito na Conservatória de Registo Predial  ….. sob o n.º …., pelo preço de € 9 059 944,37 (nove milhões e cinquenta e nove mil, novecentos e quarenta e sete euros e trinta e sete cêntimos), mediante constituição de hipoteca a favor da CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL, para garantia do contrato de abertura de crédito em conta corrente até ao montante de € 8 200 000,00 (oito milhões e duzentos mil euros).

7. Daquele prédio foi desanexado o prédio descrito na ficha 8274 da Conservatória de Registo Predial  ....., que foi submetido a loteamento.

8. A hipoteca suprarreferida passou a incidir sobre os lotes constituídos segundo o alvará de loteamento n.º 2/2005, sendo que, em 9/9/2016, a dívida para com a entidade bancária ascendia a € 5 363 425,98 (cinco milhões, trezentos e sessenta e três mil, quatrocentos e vinte e cinco euros e noventa e oito cêntimos).

9. Assim, os lotes prometidos vender estavam hipotecados a favor do Montepio, como se discrimina:

i. O Lote n.º 5, sob a ficha 8279;

ii. O lote n.º 6, sob a ficha 8280;

iii. O lote n.º 7, sob a ficha 8281;

iv. O lote n.º 8, sob a ficha 8282;

v. O lote n.º 11, sob a ficha 8285;

vi. O lote n.º 23, sob a ficha 8297;

vii. O lote n.º 24, sob a ficha 8298;

viii. O lote n.º 25, sob a ficha 8299;

ix. O lote n.º 26, sob a ficha 8300;

x. O lote n.º 27 sob a ficha 8301;

xi. O lote n.º 28 sob a ficha 8302;

xii. O lote n.º 29 sob a ficha 8303;

xiii. O lote n.º 30 sob a ficha 8304;

xiv. O lote n.º 34 sob a ficha 8308;

xv. O lote n.º 38 sob a ficha 8312;

xvi. O lote n.º 39 sob a ficha 8313;

xvii. O lote n.º 40 sob a ficha 8314; e,

xviii. O lote n.º 79 sob a ficha 8353.

10. Do livro de atas referente à 1.ª ré consta a ata n.º 7, datada de 25/2/2007, onde se pode ler: “(…) esteve reunida a assembleia geral extraordinária da UCHALGAR – Promoção de Habitação Cooperativa UCRL (…) para deliberar sobre os assuntos constantes da convocatória que continha a seguinte ordem de trabalhos: ponto único: autorizar a Nova Terra – Cooperativa de habitação e Construção Económica de ...., CRL, como membro do conselho fiscal a adquirir por compra lotes de terreno do loteamento de Vale das Rãs, titulado pelo alvará n.º 2 de 2005”.

11. Do livro de atas referente à 1.ª ré consta a ata n.º 9, datada de 30/5/2007, onde se pode ler: “A assembleia geral, analisando o enquadramento e o contexto em que decorrem os loteamentos, decidiu que, no concelho  ….., a edificação das habitações será feita no âmbito da CUPH-……., cabendo à cooperativa Nova Terra, angariar os cooperadores, articular, orientar, dirigir e administrar todo o processo de edificações (…)”

12. A 23/09/2016, o autor acordou, por escrito, com os 2º e 3º réus prometer comprar à 1ª ré, e esta prometer vender, pelo preço global de € 4.900.000,00 (quatro milhões e novecentos mil euros) o prédio misto, sito em ............, freguesia  ........., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo …. e na urbana sob os artigos …. e …., descrito na Conservatória de Registo Predial de ..... sob o n.º ..../....2001, para o qual fora aprovada uma operação de loteamento, entre outras construções, de 18 lotes de terreno (lotes nºs 5, 6, 7, 8, 11, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 34, 38, 39, 40 e 79) para construção de habitação, comércio e serviços, titulado pelo alvará nº 2/2005.

13. Os 2º e 3º réus assinaram o referido escrito na qualidade de, respetivamente, tesoureiro e vogal da direção da 1ª ré, mas sem estarem autorizados para o efeito por deliberação da assembleia geral.

14. Tal como consta da cláusula 3ª, n.º 1, alíneas a) e b), do referido escrito, o autor entregou aos 2º e 3º réus as quantias de € 245.000,00 (duzentos e quarenta e cinco mil euros) e de € 63.000,00 (sessenta e três mil euros), nas datas de assinatura do mesmo escrito e no dia 7/10/2016, destinadas à 1ª ré, para satisfazer o sinal e antecipação de pagamento do preço da compra e venda prometida, através da entrega, aos 2º e 3º réus, dos cheques, sacados sobre o Banco BIC, emitidos à ordem da 1ª ré, respetivamente, nº ......0951, datado de 27/09/2016 e nº ......0952, datado de 07/10/2016, os quais foram depositados em contas abertas na Caixa Geral de Depósitos que pertencem e são tituladas pela “Cooperativa Nova Terra”.

15. Nos termos das clausulas 3.ª e 5.ª, o remanescente do preço (€ 4 592 000,00) seria pago na data da celebração da escritura pública, a qual se realizaria 90 dias após a assinatura da escritura definitiva, ficando a marcação da mesma a cargo da promitente compradora.

16. O autor não é membro da 1ª ré ou de qualquer das cooperativas suas filiadas e não conhecia a origem dos prédios, o objeto social da 1ª ré, bem como qualquer norma relativa ao sector cooperativo da habitação.

17. Mas conhecia os ónus e encargos que incidiam sobre os lotes.

18. Os réus nunca levantaram, cancelaram ou destrataram as hipotecas que incidiam sobre os lotes de terreno prometidos vender.

19. Os 2º e 3º réus sabiam que a 1ª ré não tinha qualquer possibilidade de fazer cancelar as hipotecas que incidiam sobre os lotes, por falta de liquidez

20. [eliminado pela Relação]

21. Os 2.º e 3.º réus sabiam que não podiam vender os prédios que prometeram vender e não informaram a cooperativa e os órgãos competentes da mesma para aprovar tal negócio, tal como jamais reuniram a documentação necessária à celebração do negócio ou sequer conducente à autorização para a venda a terceiro de prédios destinados a fins cooperativos.

22. O presidente da direção da 1ª ré nunca foi contactado para comparecer naquele cartório notarial [alterado pela Relação]

23. Não foi tomada qualquer deliberação interna de qualquer órgão da 1ª ré no sentido de autorizar a venda prometida ao autor e destratar as hipotecas sobre os lotes prometidos.

24. Uma semana antes do Natal de 2016 e na posse das certidões prediais e caderneta predial, o autor contratou os serviços do Dr. JJ.

25. Não obstante o teor da cláusula 2.ª do referido acordo, no sentido de que, a ré/promitente vendedora se comprometia a eliminar os ónus que incidiam sobre os referidos lotes, no prazo de 60 dias, findos os quais, caso tal não sucedesse, operava-se a resolução do acordo, com a devolução em singelo do sinal prestado, foi acordado entre o autor e a ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, que o cancelamento das hipotecas seria efetuado até ao ato da celebração da escritura notarial de compra e venda, tudo com a concordância do Montepio Geral, mediante o pagamento que o autor tinha de efetuar para liquidação do preço de compra e venda.

26. Nesse sentido, autor e ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, tentaram, por acordo, marcar a escritura notarial de compra e venda, na qual estaria presente o Montepio Geral, a fim de se proceder ao cancelamento das hipotecas.

27. A escritura notarial de compra e venda esteve inicialmente marcada para o dia 27/12/2016, no Cartório Notarial da Dra. KK, em …...

28. O autor informou a ré Uchalgar, através do 2.º e 3.º réus de que não lhe seria possível comparecer nessa data, solicitando nova marcação.

29. Por acordo entre o autor e a ré Uchalgar, através do 2.º e 3.º réus, foi marcada escritura de compra e venda para o dia 16/1/2017, no atrás citado Cartório Notarial.

30. Mais uma vez, o autor não compareceu à escritura, na data e local acordados, invocando motivos de aúde e tratamento médico.

31. O autor e a ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, acordaram, mais uma vez, que a escritura notarial de compra e venda seria celebrada em 24/2/2017.

32. Mais uma vez o autor não compareceu para celebrar a escritura em causa.

33. O autor e a ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, acordaram, mais uma vez, que a escritura notarial de compra e venda seria celebrada em 18/4/2017.

34. Mais uma vez o autor não se disponibilizou para celebrar a escritura em causa, nessa data, tendo proposto a data de 24/4/2017, que foi aceite pela ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, tendo para tal sido contactado o Montepio Geral.

35. Após essa data, o autor desinteressou-se do negócio.

36. Pela Ap. 3748 de 20/9/2017 mostra-se registada a penhora, no âmbito de processo executivo instaurado pela CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL, pela quantia exequenda de € 6 984 672,92 (seis milhões, novecentos e oitenta e quatro mil, seiscentos e setenta e dois euros e noventa e dois cêntimos), sobre os lotes em causa, no âmbito do processo executivo n.º 2310/17.9T8LLE, do Juízo de Execução .......

37. O 2º réu confirmou diversas vezes que procederia à devolução do dinheiro do sinal pago pelo autor pela entrega e cobrança dos cheques em causa.

38. Pela Ap. 228 de 29/6/2018 mostra-se registada a adjudicação à exequente, em processo de execução, dos lotes com nºs 8, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 34, 38, 39, 40 e 79.

Facto aditado pela Relação:

39. Consta da Cláusula Nona do contrato promessa o seguinte:

“O presente contrato constitui acordo celebrado entre as Partes Contratantes, só podendo ser alterado ou modificado por documento escrito e assinado por ambas as partes”.


5. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, os presentes recursos têm por objecto as seguintes questões:

Recurso do A. e pedido de ampliação do objecto do recurso da 1.ª R. pelo mesmo apresentado:

- Nulidade do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes;

- Responsabilidade pessoal dos 2.º e 3.º RR. pela devolução do sinal entregue pelo A. (seja com base em nulidade do contrato, seja com base no seu incumprimento não imputável ao A., seja com base em reconhecimento da obrigação de devolução pelo 2.º R.);

- Desrespeito pelo princípio da proibição das decisões surpresa ao ter a Relação conhecido oficiosamente do abuso do direito do A. ao vir invocar a nulidade do contrato-promessa;

- Não verificação de abuso de direito do A. ao invocar a nulidade do contrato-promessa.

Esclareça-se que, tanto em sede de alegações de recurso como de contra-alegações ao recurso da 1.ª R., formula o A., indistintamente, questões que se inserem tanto no âmbito do recurso da decisão de absolvição dos 2.º e 3.º RR. como no âmbito do pedido de ampliação do objecto do recurso da 1.ª R., o que se compreende por, ao ter formulado pedido de condenação solidária de todos os RR., se verificar que umas e outras questões são entre si indissociáveis.

Recurso da 1.ª R.:

- Substituição da cláusula 2.ª do contrato por acordo descrito no facto 25, tendo sido ilidida, por confissão judicial, a presunção prevista no n.º 1 do art. 223.º do Código Civil;

- Em consequência, ao não comparecer para celebrar a escritura pública nas sucessivas datas marcadas para o efeito (cfr. factos provados 25 a 35), ficou o A. constituído em mora, sendo-lhe imputável a impossibilidade superveniente de celebração do contrato definitivo e sendo contraditório com a sua conduta, à luz do princípio da boa fé no cumprimento dos contratos, vir invocar judicialmente a dita cláusula 2.ª.

As questões serão apreciadas pela seguinte ordem de precedência:

- Nulidade do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes;

- Desrespeito pelo princípio da proibição das decisões surpresa, ao ter a Relação conhecido oficiosamente do abuso do direito do A. por ter vindo invocar a nulidade do contrato-promessa;

- Não verificação de abuso de direito por parte do A. com tal fundamento;

- Substituição da cláusula 2.ª do contrato por acordo descrito no facto 25, tendo sido ilidida, por confissão judicial, a presunção prevista no n.º 1 do art. 223.º do Código Civil; e consequentemente, constituição em mora do A., sendo-lhe imputável a impossibilidade superveniente de celebração do contrato definitivo e sendo contraditório com a sua conduta, à luz do princípio da boa fé no cumprimento dos contratos, vir invocar judicialmente a dita cláusula 2.ª;

- Responsabilidade pessoal dos 2.º e 3.º RR. pela devolução do sinal entregue pelo A..


6. Antes de mais, considera-se conveniente ter presente os termos em que as instâncias decidiram.

A 1.ª instância entendeu que o contrato-promessa dos autos «foi celebrado com violação de normas de carácter imperativo, designadamente a proibição de celebração de negócios, com terceiros, contrários aos fins da 1.ª ré/cooperativa, atuando os 2.º e 3.º réus sem estarem munidos de poderes de representação e na ausência de deliberação da assembleia geral da 1.ª ré, sendo nulo, vício que origina a obrigação por parte dos réus, em regime de solidariedade, restituírem tudo quanto houver sido prestado, nos moldes peticionados (artigos 289.º e 294.º, ambos do Código Civil), ficando prejudicado o conhecimento do eventual incumprimento das obrigações estabelecidas no contrato e respetiva resolução».

A Relação, por sua vez, entendeu:

- Que o contrato-promessa dos autos foi celebrado entre o A. como promitente-comprador e a 1.ª R., União de Cooperativas UCHALGAR, como promitente-vendedora, tendo o mesmo sido assinado pelos 2.º e 3.º RR. na qualidade de membros da direcção da 1.ª R. e com poderes estatutários para o efeito;

- Assim, a validade do contrato não se encontra afectada; e, ainda que os 2.º e 3.º RR. não tivessem legitimidade para vincular a 1.ª R., tal não afectaria a validade nem o carácter vinculativo do contrato, apenas podendo os 2.º e 3.º RR. ser responsabilizados internamente pelos danos causados à União de Cooperativas pela «preterição de deveres legais e estatutários, regulamentos internos e deliberações da assembleia geral»;

- No plano das relações externas, os 2.º e 3.º RR. respondem perante os credores da 1.ª R., nos termos previstos no art. 73.º do Código Cooperativo, e perante terceiros, nos termos gerais, pelos danos causados no exercício das funções, conforme dispõe o art. 74.º do mesmo Código; contudo, como nos presentes autos não foi alegada nem provada qualquer causa que permita responsabilizá-los a título pessoal, devem ser absolvidos;

- Tampouco a validade do contrato-promessa está afectada pelo invocado desrespeito pelo objecto social da R. União de Cooperativas, seja porque tal desrespeito não se verifica, seja porque, a existir, não geraria a invalidade do negócio;

- De qualquer forma, sempre será de entender que, face aos factos provados 25 a 35, a invocação da nulidade do contrato pelo A. configura exercício abusivo do direito por venire contra factum proprium;

- Concluindo-se pela validade do contrato-promessa, constata-se que, tendo os lotes de terreno prometidos vender sido adquiridos pelo credor hipotecário no âmbito de acção executiva instaurada contra a R. União de Cooperativas, se tornou impossível realizar o contrato prometido;

- Deve ter-se em conta que as partes acordaram que a promitente-vendedora, a aqui R. União de Cooperativas, se comprometia a «eliminar os ónus que incidiam sobre os referidos lotes, no prazo de 60 dias, findos os quais, caso tal não sucedesse, operava-se a resolução do acordo, com a devolução em singelo do sinal prestado»;

- Ainda que tenha sido provado (facto 25) que as partes acordaram, em momento superveniente em relação ao contrato, que o cancelamento das hipotecas seria efectuado até à celebração da escritura pública de compra e venda, certo é que, de acordo com a cláusula 9.ª do contrato, a modificação do mesmo apenas poderia ser feita por escrito;

- Não tendo a R. União de Cooperativas conseguido ilidir a presunção do n.º 2 do art. 350.º do Código Civil, «por força do incumprimento do acordado no n.º 2 da cláusula segunda, operou-se a resolução do contrato-promessa, com a devolução em singelo do sinal prestado»;

- Tendo o A. formulado o pedido de restituição com base em resolução do contrato, tem direito a exigir da 1.ª R. esse montante, sendo assim de manter, embora com diferente fundamento, (apenas) a sua condenação;

- E ficando prejudicado o conhecimento da questão da existência de incumprimento definitivo do contrato e sua imputação.


7. Antes de passar a apreciar cada uma das questões recursórias, importa assinalar que, não obstante o carácter equívoco da primeira parte da redacção do facto 12 («A 23/09/2016, o autor acordou, por escrito, com os 2º e 3º réus prometer comprar à 1ª ré, e esta prometer vender, pelo preço global de € 4.900.000,00 (quatro milhões e novecentos mil euros) o prédio misto (...)»), tanto o teor do facto 13 («Os 2º e 3º réus assinaram o referido escrito na qualidade de, respetivamente, tesoureiro e vogal da direção da 1ª ré, mas sem estarem autorizados para o efeito por deliberação da assembleia geral»), como a fundamentação do acórdão da Relação, que em seguida transcrevemos, na parte relevante, permitem clarificar a identidade das partes do contrato dos autos.

«Não restam dúvidas quanto à existência de um acordo de vontades vinculativo, estabelecido entre o Autor e a 1.ª Ré, mediante a emissão de declarações de vontade recíprocas, visando a produção de determinado efeito jurídico – a celebração de um contrato definitivo de compra e venda dos lotes de terreno para construção (facto n.º 12).

Por isso que, atendendo à factualidade apurada nestes autos, urge concluir que as partes celebraram, por escrito particular, um típico contrato – promessa de compra e venda de lotes de terreno para construção, no âmbito de um loteamento legal (porque titulado pelo Alvará 2/2005, emitido em 2/6/2005 pela Câmara Municipal  ....) tal como vem definido no art.º 410, n.º 1, do C. Civil.

O contrato promessa foi subscrito por BB, na qualidade de Tesoureiro da Direção da 1.ª Ré, e CC, na qualidade de Vogal da Direção, ou seja, os 2º e 3º réus, respetivamente (facto n.º 12).

Aliás, consta expressamente do identificado contrato promessa que a 1.ª Outorgante é a 1.ª Ré “UChalgar – Promoção de Habitação Cooperativa, UCRL, representada neste ato por BB, na qualidade de Tesoureiro da Direção, e CC, na qualidade de Vogal, doravante designada Promitente Vendedora.

Assim, apenas são partes no contrato promessa o Autor (promitente comprador) e a 1.ª Ré (promitente vendedora), já que os 2.º e 3.º Réus nele intervieram na qualidade dos seus representantes legais, não a título pessoal [negrito nosso]

Deste modo, não oferece dúvidas que, no contrato-promessa dos autos, a 1.ª R. União de Cooperativas ocupa a posição de promitente-vendedora e o A. a posição de promitente- comprador, pelo que tanto a questão da nulidade do contrato como a questão da resolução/incumprimento do mesmo devem ser apreciadas nesse contexto.


8. Cumpre reapreciar a questão da invocada nulidade do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes, a qual, segundo alega o A., resultaria dos seguintes fundamentos:

(i) Da falta de poderes dos 2.º e 3.º RR. para vincular a cooperativa;

(ii) Da inexistência de deliberação da assembleia geral da cooperativa a autorizar a outorga do contrato;

(iii) Do desrespeito pelo objecto social da cooperativa, em violação de regras estatutárias e de normas legais imperativas (arts. 2.º, n.º 2, e 111.º do Código Cooperativo; art. 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 502/99, de 19 de Novembro).

8.1. Antes de mais, consideremos os fundamentos enunciados em (i) e (ii), sobre os quais o acórdão recorrido se pronunciou da seguinte forma:

«O contrato promessa foi subscrito por BB, na qualidade de Tesoureiro da Direção da 1.ª Ré, e CC, na qualidade de Vogal da Direção, ou seja, os 2º e 3º réus, respetivamente (facto n.º 12).

Aliás, consta expressamente do identificado contrato promessa que a 1.ª Outorgante é a 1.ª Ré “UChalgar – Promoção de Habitação Cooperativa, UCRL, representada neste ato por BB, na qualidade de Tesoureiro da Direção, e CC, na qualidade de Vogal, doravante designada Promitente Vendedora.

Assim, apenas são partes no contrato promessa o Autor (promitente comprador) e a 1.ª Ré (promitente vendedora), já que os 2.º e 3.º Réus nele intervieram na qualidade dos seus representantes legais, não a título pessoal.

Com efeito, resulta da Certidão Permanente de Registo e do art.º 25.º dos Estatutos da 1.ª Ré que esta “fica obrigada com as suas assinaturas conjuntas do Presidente da Direção e do Tesoureiro ou, no impedimento de algum deles, com as assinaturas conjuntas de quaisquer dois membros da Direção ou por quem esta designar através de procuração” – facto n.º 5.  

E consta expressamente da referida Certidão Permanente que a Direção é constituída por: DD; BB (1.º Réu); CC (2.º Réu), e EE.

E decorre do art.º 19.º/1, alínea b), e 5 dos Estatutos da 1.ª Ré, juntos nos autos com a p.i., que a Direção é um órgão social, “composto por três ou cinco membros, que elegerão de entre si o Presidente e o Tesoureiro, sendo os restantes membros Vogais”.

E de acordo com o seu art.º 23.º, n.º 6, “Compete à Direção, como órgão colegial de gestão da União, proceder à administração e desenvolvimento das suas atividades, designadamente comprar, vender, ceder, permutar e hipotecar terrenos, edifícios e fogos, contratar empreitadas e serviços técnicos, em ordem à prossecução do objeto social da União, dando execução às deliberações sobre a matéria havidas em reunião de Programa”.

Deste modo, sendo o 2.º e 3.º Réus Tesoureiro e Vogal, respetivamente, da Direção da 1.ª Ré, tinham toda a legitimidade para celebrar o referido contrato promessa, em representação da 1.ª Ré, com as duas assinaturas conjuntas exigidas no art.º 25.º dos seus Estatutos e cujas identidades figuram no Registo Comercial como fazendo parte da Direção, em consonância, aliás, com o regime previsto no art.º 49.º do C. Coop., aplicável por força do seu art.º 119.º, aprovado pela Lei n.º 119/2015, de 31/8.

Mas ainda que assim se não entendesse, o contrato promessa não podia deixar se ser válido e vincular a 1.ª Ré, podendo, quando muito, os Réus responder apenas (internamente) perante a 1.ª Ré, pelos danos a esta causados com a preterição dos deveres legais e estatutários, regulamentos internos e deliberações da assembleia geral, salvo se provarem não ter agido com culpa, nos precisos termos estabelecidos no art.º 71.º do citado C. Coop.». [negritos nossos]

Em sede de revista, impugna o A. este juízo da Relação sem, contudo, contraditar, nesta parte, de forma especificada a fundamentação do acórdão recorrido, que, no essencial, merece a nossa concordância.

Prescreve o art. 49.º do Código Cooperativo, aprovado pela Lei n.º 119/2015, de 31 de Agosto, e em vigor à data da celebração do contrato-promessa dos autos (23.09.2016):

«Caso os estatutos sejam omissos, a cooperativa fica obrigada com as assinaturas de dois dos administradores, salvo quanto aos atos de mero expediente, em que basta a assinatura de um deles

Está provado (cfr. certidão junta aos autos e factos 4 e 5), que, à data da celebração do contrato-promessa, os 2.º e 3.º RR. integravam a direcção da R. União de Cooperativas e dispunham de poderes estatutários para, em conjunto, a vincularem. Mas, ainda que assim não fosse – e como resulta precisamente da regra do art. 49.º do Código Cooperativo – , a falta de poderes não determinaria a nulidade do acto, mas apenas e tão-só a não vinculação da R. União de Cooperativas, cabendo exclusivamente a esta invocá-lo.

Também a preterição de deveres estatutários – entre os quais se conta a falta de deliberação da assembleia geral da R. União de Cooperativas, assim como a falta de alegação e prova do impedimento (jurídico ou fáctico) do presidente da respectiva direcção – apenas relevaria no plano das relações internas entre os 2.º e 3.º RR. e a cooperativa, podendo aqueles vir a ser responsabilizados por esta última por eventuais danos causados (art. 71.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do Código Cooperativo).

Ora, em momento algum a R. União de Cooperativas pretendeu considerar-se desvinculada do contrato ou alegou terem os 2.º e 3.º RR. actuado irregularmente; antes, ao longo de todo o processado, assumiu como válidos e vinculantes os actos por estes praticados em seu nome.

Em suma, está vedado ao A. invocar em seu benefício – de modo a obter a sua desvinculação do contrato dos autos – a tutela de regras estatutárias que têm como finalidade proteger os interesses da cooperativa ré, contraparte do mesmo contrato.


8.2. Passemos a apreciar a questão da nulidade do contrato, com fundamento no alegado desrespeito pelo objecto social da cooperativa, em violação de regras estatutárias e de normas legais imperativas (arts. 2.º, n.º 2, e 111.º do Código Cooperativo; art. 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 502/99, de 19 de Novembro).

8.2.1. Antes de mais, assinale-se que o regime do art. 111.º do Código Cooperativo, que prescreve a nulidade do acto de transformação de uma cooperativa numa sociedade comercial, não tem aqui aplicação, uma vez que o contrato-promessa dos autos nem na aparência nem na substância corresponde a um acto de transformação do tipo de pessoa colectiva.

8.2.2. Quanto à delimitação do objecto social da R. União de Cooperativas, dispõe o art. 2.º, n.º 1, dos respectivos estatutos, juntos com a p.i., o seguinte:

«A União tem como objecto a defesa dos interesses comuns das cooperativas suas associadas, no que respeita à promoção e execução de empreendimentos habitacionais, nomeadamente, a compra, venda, cedência, permuta e hipoteca de terrenos, edifícios e fogos destinados aos membros das cooperativas filiadas e ainda à gestão, reparação, manutenção ou remodelação dos fogos construídos, espaços envolventes e todas as infraestruturas, podendo também promover outras iniciativas de interesse para os cooperadores das cooperativas-membros nos domínios social, cultural, material e de qualidade de vida»

Nesta cláusula estatutária não estão previstas, ao menos expressamente, quaisquer restrições à realização de operações com terceiros pela R. União de Cooperativas. Importa, porém, esclarecer que, ainda que tais restrições existissem, os negócios jurídicos celebrados com terceiros não estariam feridos de nulidade, na medida em, de acordo com o princípio geral, válido para todas as pessoas colectivas, a capacidade das mesmas é definida em função do fim prosseguido.

Com efeito, o princípio da especialidade do fim é também aplicável às cooperativas. Nas palavras de Raúl Guichard, a respeito do art. 9.º do antigo Código Cooperativo, (aprovado pela Lei n.º 51/96, de 7 de Novembro, com sucessivas alterações), que, com a mesma numeração, transitou para o Código Cooperativo vigente:

«Indiferentemente de se considerar aplicável subsidiariamente o art. 6.º do Código das Sociedades Comerciais, ex vi do art. 9.º do Código Cooperativo, ou o art. 160.º do Código Civil (logo por força do caráter subsidiário geral desse ramo de direito) – o teor do n.º 1 daquele preceito coincide em larga medida com o deste último – valerá (também) para os entes cooperativos o princípio da especialidade do fim. Consabidamente, o mesmo deve ser entendido em termos hábeis ou atenuados, como se retira logo da própria formulação da lei. Assim, a capacidade da pessoa coletiva abrange não só os atos necessários mas também os atos convenientes (úteis) à prossecução do respetivo fim mutualístico, estatutária e porventura legalmente circunscrito (...)». («Capacidade das cooperativas. Relações entre cooperativas e cooperadores», in Jurisprudência Cooperativa Comentada, coord. Deolinda Aparício Meira, INCM, Lisboa, 2012, pág. 522).

Não se trata, pois, de, como alega o A., aplicar regras de direito societário que desvirtuam o fim da entidade cooperativa, mas antes de afirmar que a capacidade desta última se delimita em função do fim próprio das cooperativas.

De acordo com o n.º 1 do art. 2.º do Código Cooperativo, as cooperativas:

«(...) visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles».

No caso concreto da R. União de Cooperativas, dispõe o art. 5. º dos respectivos estatutos:

«Para a realização dos seus fins, a União visa, através da cooperação e entreajuda das Cooperativas membros, contribuir para a satisfação, sem fins lucrativos, das necessidades habitacionais dos membros dessas Cooperativas, e ainda, o fomento dos princípios e prática do Cooperativismo».

A não prossecução de fins lucrativos tem consequências determinantes na natureza e regime das cooperativas. Ver, a este respeito, as considerações de Catarina Serra («A aplicação do artigo 980.º do Código Civil às sociedades comerciais», in Revista de Direito Comercial, Professor Pedro Pais de Vasconcelos - Liber Amicorum, 2020, págs. 521 e segs.).

Entre outros, surge o problema da compatibilidade do fim mutualista com a realização de negócios com terceiros, que tem tido uma resposta variável ao longo do tempo, como assinala a doutrina da especialidade:

«(...) o princípio da mutualidade, que subjaz à cooperativa e que a distingue dos outros tipos sociais, não implica que esta desenvolva atividade exclusivamente com os seus membros (a chamada mutualidade pura ou interna, na terminologia italiana), atuando, igualmente, com terceiros não sócios (mutualidade impura ou externa).

(...)

Neste contexto, a legislação cooperativa foi aceitando, primeiro uma mutualidade preferente, isto é, a obrigação de atuar com terceiros só seria admitida se tivesse caráter secundário relativamente à atividade desenvolvida com os cooperadores, para depois eliminar a obrigatoriedade do caráter complementar das operações com terceiros (...)» (Deolinda Aparício Meira, «As operações com terceiros no direito cooperativo português», in Jurisprudência Cooperativa Comentada, cit., págs. 416-417).

A admissibilidade da realização de operações com terceiros, encontra-se consagrada, como regra geral, no n.º 2 do art. 2.º do actual Código Cooperativo, em vigor à data da celebração do contrato-promessa dos autos (23.09.2016):

«As cooperativas, na prossecução dos seus objetivos, podem realizar operações com terceiros, sem prejuízo de eventuais limites fixados pelas leis próprias de cada ramo».

Contudo, no domínio das cooperativas de habitação, vigora ainda, de acordo com o disposto no n.º 1 do 14.º do Decreto-Lei n.º 502/99, de 19 de Novembro, a regra da mutualidade preferente:

«As operações com não cooperadores, incluídas no objecto social das cooperativas, realizadas a título complementar não podem desvirtuar o mesmo objecto nem prejudicar as posições adquiridas pelos seus cooperadores, devendo o seu montante ser escriturado em separado do realizado com os cooperadores».

Importa, assim, apreciar se a celebração com terceiro, o aqui A., do contrato dos autos respeita o enquadramento normativo em causa.

Trata-se (cfr. factos 25, 26 e 34) de um contrato-promessa de compra e venda de lotes de terreno onerados com hipotecas constituídas como garantia de empréstimo bancário, com o intuito de, mediante a alienação de tais imóveis, permitir que a R. União de Cooperativas cumprisse as suas obrigações perante o banco credor.

Na medida em que, tal como as demais pessoas colectivas e singulares que actuam no comércio jurídico, se encontram as cooperativas obrigadas a cumprir as suas obrigações, entre as quais se contam as suas obrigações financeiras, não pode senão reconhecer-se a faculdade de a 1.ª R. proceder à venda, e concomitantemente, à promessa de venda, de património no intuito de alcançar tal desiderato. Não pode acolher-se uma interpretação da regra da mutualidade preferente constante do n.º 1 do 14.º do Decreto-Lei n.º 502/99 que inviabilize a possibilidade de uma cooperativa respeitar os compromissos assumidos com entidades financiadoras e, com isso, inviabilize o acesso ao crédito, e, no limite, impeça a prossecução do fim mutualista.

Deste modo, conclui-se que o contrato-promessa dos autos não desrespeita as regras que regulam a capacidade da R. União de Cooperativas, não estando assim afectado de nulidade.


9. Suscita o A. a questão do alegado desrespeito pelo princípio da proibição das decisões surpresa ao ter a Relação conhecido oficiosamente do abuso do direito do A. ao ter invocado a nulidade do contrato-promessa.

Compulsado o processado constata-se que, efectivamente, a questão do abuso do direito na arguição da nulidade do contrato-promessa dos autos não foi suscitada em sede de recurso de apelação, nem, sendo de conhecimento oficioso pelo tribunal, foram as partes previamente notificadas para sobre a mesma se pronunciarem. Contudo, tendo o acórdão recorrido negado a existência de qualquer causa de nulidade e, apenas como fundamento subsidiário, afirmado que, em qualquer caso, sempre a arguição de nulidade pelo A. constituiria um exercício abusivo do direito por venire contra factum proprium, forçoso é concluir que tal procedimento não teve influência na decisão da causa. Pelo que, nos termos do n.º 1 do art. 195.º do CPC, não se verifica a invocada nulidade processual.


10. Quanto à questão, logicamente subsequente da anterior, do invocado erro de julgamento ao ter o acórdão recorrido declarado, ainda que como fundamento subsidiário, que sempre existiria abuso de direito ao vir o A. invocar a nulidade do contrato-promessa, dado termos, também aqui, concluído pela inexistência desse vício, encontra-se tal questão prejudicada.


11. Importa apreciar em seguida a questão, suscitada no recurso da R. União de Cooperativas, do invocado erro de julgamento ao não ter o acórdão recorrido imputado ao A. a responsabilidade pelo incumprimento do contrato-promessa, o que implica apreciar se ocorreu a revogação da cláusula 2.ª do contrato e sua substituição pelo acordo descrito no facto 25, tendo sido ilidida, por confissão judicial, a presunção prevista no n.º 1 do art. 223.º do Código Civil.

O facto 25 tem o seguinte teor:

«Não obstante o teor da cláusula 2.ª do referido acordo, no sentido de que, a ré/promitente vendedora se comprometia a eliminar os ónus que incidiam sobre os referidos lotes, no prazo de 60 dias, findos os quais, caso tal não sucedesse, operava-se a resolução do acordo, com a devolução em singelo do sinal prestado, foi acordado entre o autor e a ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, que o cancelamento das hipotecas seria efetuado até ao ato da celebração da escritura notarial de compra e venda, tudo com a concordância do Montepio Geral, mediante o pagamento que o autor tinha de efetuar para liquidação do preço de compra e venda»

Consideremos os termos em que o acórdão recorrido apreciou a questão da relevância deste facto:

«1.2.  Do incumprimento do contrato e suas consequências jurídicas.

(...)

Assim, a simples situação de mora pode conduzir ao incumprimento definitivo do contrato se o credor perder o interesse que tinha na prestação ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, nos termos do n.º 1 do art.º 808.º do C. Civil.

Ora, no caso concreto, os lotes de terreno foram adquiridos pelo credor hipotecário, no âmbito de ação executiva, instaurada contra a 1.ª Ré, desde 29/6/2018, o que torna impossível a realização do contrato definitivo.

O contrato promessa foi celebrado em 23/09/2016, acordando as partes que a escritura de compra e venda seria realizada no prazo de 90 dias a partir dessa data.

E mais ficou acordado que a Ré/promitente vendedora se comprometia a “eliminar os ónus que incidiam sobre os referidos lotes, no prazo de 60 dias, findos os quais, caso tal não sucedesse, operava-se a resolução do acordo, com a devolução em singelo do sinal prestado”.

E a verdade é que a Ré, enquanto promitente vendedora, não procedeu ao cancelamento das hipotecas que incidiam sobre os citados lotes de terreno no prazo de 60 dias após a celebração do contrato, nem posteriormente.

É certo que as partes, apesar da cláusula 2.ª, acordaram que o cancelamento das hipotecas seria efetuado até ao ato da celebração da escritura notarial de compra e venda, tudo com a concordância do Montepio Geral, mediante o pagamento que o autor tinha de efetuar para liquidação do preço de compra e venda (facto n.º 25).

Todavia, tal acordo verbal não pode ser atendido, tendo conta o que se estabeleceu na Cláusula Nona do contrato, com a seguinte redação: “O presente contrato constitui acordo celebrado entre as Partes Contratantes, só podendo ser alterado ou modificado por documento escrito e assinado por ambas as partes (nosso sublinhado).

E nos termos do art.º 223.º/1 do C. Civil, as partes podem estipular uma forma especial para a declaração, presumindo-se, neste caso, que as partes se não querem vincular senão pela forma convencionada.

Estabelece o preceito legal uma presunção iuris tantum de que estipulada a forma escrita para as cláusulas acessórias, as partes não se quiseram vincular senão por essa forma – cf. P. de Lima e A. Varela, C. C. Anotado, 1.º Vol. 4.º Edição, pág. 213.

Como sublinha Inocêncio Galvão Telles,” Manual dos Contratos em Geral”, 4.ª Edição, pág. 147, se os interessados declaram que ficaram vinculados, e só ficarão vinculados, se for usada a forma que escolheram. “Mas esta declaração de vinculação tem simples caráter presuntivo; é objeto de presunção iuris tantum, como tal ilidível, por prova em contrário (arts. 223.º, n. º 1, 2.ª parte, e 350.º, n.º 2).

No mesmo sentido se pronuncia Mota Pinto, Teoria Geral, 4.ª Edição, pág. 439, 440, afirmando que esse preceito legal se limita a estabelecer as presunções legais meramente relativas ou “tanto juris”.

E flui expressamente dessa Cláusula Nona que o contrato promessa só podia ser alterado ou modificado por documento escrito e assinado por ambas as partes, ou seja, qualquer alteação, incluindo a cláusula acessória de expurgação da hipoteca a realizar pela Ré, no prazo de 60 dias, só seria válida se fosse estabelecida por documento escrito assinado por ambas as partes, pois é manifesto que só por essa forma se quiseram vincular.

E competia á Ré ilidir essa presunção, que não fez, nos termos do art.º 350.º, n.º 2, do C. Civil.

E assim sendo, urge concluir que por força do incumprimento do acordado no n.º 2 da cláusula segunda, operou-se a resolução do contrato promessa, por acordo das partes, com a devolução em singelo do sinal prestado.

E porque o Autor formulou o seu pedido de restituição com base na resolução do contrato, tem direito a exigir da Ré esse montante.

(...)

Prejudicada fica, pois, a questão de saber se houve incumprimento definitivo do contrato promessa e a quem deve ser imputado – art.º 608.º/2 do C. P. Civil.» [negritos nossos]

Contra esta decisão, insurge-se a 1.ª R., alegando essencialmente o seguinte:

- A presunção contida no art. 223.º, n.º 1, do CC é uma presunção juris tantum, admitindo prova em contrário, nos termos do art. 350.º, n.º 2 do mesmo Código;

- Tal presunção foi ilidida pela prova do facto constante do ponto 25 da matéria de facto, resultante da confissão do A., em depoimento de parte prestado em audiência de julgamento, a requerimento dos RR.;

- De todo o modo, deve entender-se que a cláusula 2.ª do contrato-promessa não é uma verdadeira condição resolutiva, antes se integra na categoria do que a doutrina denomina como condições impróprias;

- Interpretando-se, de forma conjugada, as cláusulas 2.ª e 5.ª, em função da cláusula 7.ª do contrato-promessa, deve concluir-se que neste se prevêem duas situações distintas sujeitas a prazo: a da cláusula 2.ª (prazo de 60 dias para o cancelamento das hipotecas) e a da cláusula 5.ª, n.º 1 (prazo de 90 dias para a celebração da escritura de compra e venda), devendo entender-se que a cláusula 7.ª (fixação de prazo admonitório) se aplica a ambas as situações;

- Interpretado à luz da cláusula 7.ª, o acordo verbal a que as partes chegaram e vem provado no ponto 25 surge, não como uma estipulação acessória que contradiz a cláusula 2.ª, mas, antes como a concretização de um acordo que viabilizava uma solução para a purga da mora em que a promitente vendedora tinha incorrido;

- Em qualquer caso, o comportamento das partes posterior ao termo do prazo para cancelamento das hipotecas (nos 60 dias posteriores à assinatura do contrato-promessa), tal como vem descrito e provado nos pontos 25 a 35 da matéria de facto, é inconsistente com a resolução do contrato por efeito do incumprimento do mesmo prazo;

- Assim, o decurso de tal prazo, previsto na cláusula 2.ª do contrato-promessa, não teve como como efeito a resolução automática do contrato, antes deferiu ao credor, o aqui A., a faculdade de fixar um prazo admonitório para a realização do contrato prometido;

- Por efeito do acordo a que as partes chegaram, no sentido de que o cancelamento das hipotecas seria efectuado até ao acto da celebração da escritura notarial de compra e venda (facto 25), ficou a obrigação da 1.ª R., de obter o cancelamento das hipotecas, dependente do cumprimento pelo A. da obrigação de celebrar a escritura de compra e venda, deixando assim a mesma R. de estar em mora e passando o momento do cumprimento da sua obrigação a estar na dependência do cumprimento da obrigação do A.;

- Uma vez que o A. não compareceu na celebração da escritura publica em qualquer das sucessivas datas em que a mesma, com a sua anuência, esteve marcada, foi o mesmo A. quem ficou constituído em mora, até que, pela adjudicação, em processo executivo, dos lotes de terreno ao credor hipotecário, o cumprimento do contrato-promessa se tornou impossível.

Em sede de contra-alegações, e especificamente a respeito destas considerações da 1.ª R., o A. recorrido limitou-se a alegar que «[a] confissão em audiência não pode ter por efeito convalidar uma declaração de vontade não manifestada sob a forma exigida na vigência da promessa».

Quid iuris?

11.1. O contrato-promessa dos autos contém as seguintes cláusulas:

Cláusula segunda

(Objecto)

1. (...)

2. Sobre os lotes (...) existe ónus a favor do Montepio Geral, que a promitente se compromete a eliminar no prazo de 60 dias.

Caso tal não suceda, opera-se a resolução do presente contrato de compra e venda com a devolução em singelo do sinal prestado.

Cláusula quinta

(Escritura pública)

1. As Partes Contratantes acordam em que a escritura notarial relativa ao contrato de compra e venda ora prometido se realize até 90 dias após a assinatura do presente contrato.

2. A marcação da escritura ficará a cargo da Promitente Vendedora (...)

Cláusula sétima

Considera-se que houve incumprimento definitivo se uma vez ultrapassada a data prevista e assumida neste contrato, a parte faltosa (em mora), depois de interpelada para cumprir, deixar de o fazer no prazo que lhe vier estipulado pela parte contrária, que as partes acordam nunca ser superior a trinta dias.

Cláusula nona

(Alterações)

O presente contrato constitui o integral acordo celebrado entre as Partes Contratantes, só podendo ser alterado ou modificado por documento escrito e assinado por ambas a partes».

Entendeu a Relação que o n.º 2 da cláusula 2.ª estabelece uma condição resolutiva em sentido próprio, nos termos e para os efeitos dos arts. 270.º e segs. do Código Civil, a qual opera automaticamente, sem necessidade de declaração das partes. Consequentemente, concluiu que, não tendo havido lugar ao cancelamento das hipotecas sobre os lotes de terreno prometidos vender, se operou a resolução do contrato, com efeito retroactivo (cfr. art. 276.º do CC).

Em sentido diverso – e se bem interpretamos as respectivas alegações, que, neste ponto, não são inteiramente inequívocas – alega a 1.ª R. que a sobredita cláusula prevê antes uma condição resolutiva em sentido impróprio, a qual não opera automaticamente, apenas permitindo ao A. invocar que, não tendo a R. obtido o cancelamento das hipotecas, lhe assistia o direito a resolver o contrato após ter fixado um prazo admonitório para o efeito. Porém, com o acordo superveniente, segundo o qual tal cancelamento seria efectuado até à celebração da escritura de compra e venda (facto provado 25), a obrigação da 1.ª R. de cancelar as hipotecas ficou dependente do cumprimento da obrigação do A. de outorgar o contrato prometido. Não tendo o A. comparecido em qualquer das sucessivas datas em que, com o seu acordo, a escritura pública esteve marcada, ficou constituído em mora, sendo-lhe imputável a impossibilidade superveniente de celebração do contrato definitivo.

Vejamos.


11.2. Tal como entendeu a Relação, afigura-se que o teor do n.º 2 da cláusula 2.ª, em si mesmo considerado, e em confronto com o teor da cláusula 5.ª, configura uma condição resolutiva em sentido próprio, não lhe sendo assim aplicável o disposto na cláusula 7.ª a respeito da necessidade de fixação de prazo admonitório para a transformação da mora em incumprimento definitivo.

Isto dito, porém, importa apreciar se o contrato-promessa foi válida e eficazmente alterado, tendo a dita condição resolutiva sido substituída por acordo entre as partes segundo o qual «o cancelamento das hipotecas seria efetuado até ao ato da celebração da escritura notarial de compra e venda, tudo com a concordância do Montepio Geral, mediante o pagamento que o autor tinha de efetuar para liquidação do preço de compra e venda» (facto 25).

Questão essencial para a resolução de ambos os recursos e que, a nosso ver, implica um duplo nível de análise: (i) à luz do regime da forma convencional adoptado pelas partes; (ii) à luz do regime da forma legal respeitante ao contrato-promessa.

Entendeu o acórdão recorrido que, tendo as partes adoptado, na cláusula 9.ª, uma convenção de forma escrita, o dito acordo não será válido nem eficaz em razão da presunção de que as mesmas partes não se quiseram vincular a não ser pela forma convencionada (art. 223.º, n.º 1, segunda parte, do Código Civil).

Contra, alega a R. Recorrente, que, ao assim decidir, se afigura não ter o tribunal a quo ponderado que a ilisão da presunção prevista nesta disposição legal foi realizada pela R., pela prova, por confissão do A., dos factos constantes do ponto 25 da matéria de facto.

Acerca da possibilidade de ilisão da presunção do art. 223.º, n.º 1, do CC, afirma-se no recente acórdão deste Supremo Tribunal de 28.01.2021 (proc. n.º 3443/18.0T8CBR.C1.S1), disponível em www.dgsi.pt[1]:

«(...) [D]iga-se, com Manuel Carneiro da Frada, que “as declarações contratuais não têm de ter um sentido único, definível para todo o sempre. Sobretudo quando elas visam criar uma disciplina para uma ligação contratual prolongada que enfrentará necessariamente várias vicissitudes, não (plenamente) antecipáveis pelos sujeitos” [18: Cfr. Manuel Carneiro da Frada, “Sobre a interpretação do contrato”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, pp. 14-15].

Reforçando o ponto / indo mais longe, António Menezes Cordeiro afirma que “os factos posteriores ao comportamento interpretando (designadamente, o modo como o negócio foi executado) relevam, por exemplo, para concluir acerca do entendimento das partes quanto ao sentido do negócio (especialmente relevante no caso dos contratos duradouros, em que é normal que, durante o período de vigência, as partes ajustem o negócio à alteração das circunstâncias envolventes)” [19: Cfr. António Menezes Cordeiro, Código Civil comentado – I – Parte Geral, Coimbra, Almedina, 2020, p. 694 (nota 8)].

É certo que, através da cláusula 11.ª, as partes convencionaram que as alterações ou os aditamentos ao contrato apenas seriam válidos se constassem de documento escrito, assinado por ambas as partes. Estipularam, assim, por esta via uma forma especial para a declaração, conforme previsto no artigo 223.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC.

Mas, como resulta do mesmo artigo 223.º, n.º 1, 2.ª parte, do CC, isto apenas permite presumir que as partes se não quiseram vincular senão pela forma convencionada. Esta presunção é meramente relativa, havendo a possibilidade de ela ser ilidida por prova em contrário (cfr. artigo 350.º, n.º 2, do CC).

Sobre a possibilidade de ilisão desta presunção existe unanimidade da doutrina.

Afirma, por exemplo, António Menezes Cordeiro: “As partes podem, de comum acordo, não observar o combinado: haverá então uma revogação (distrate) da prévia convenção de forma, desde que as circunstâncias do caso permitam mesmo concluir pela vontade de suprimir o antes acordado” [20: Cfr. António Menezes Cordeiro, Código Civil comentado – I – Parte Geral, cit., p. 647].

Afirma Manuel Pita: “O que verdadeiramente está em causa é a presunção de que as partes não se querem vincular senão por aquela forma que convencionaram; ora, se, apesar disso, as partes se comportarem como vinculadas ao negócio menos solene que realizaram, a presunção cai, situação em que se entende ter havido uma verdadeira revogação da convenção sobre a forma”[21: Cfr. Manuel Pita, in: Código Civil Anotado, volume I, Lisboa, Almedina, 2017, p. 275].

E afirma Joana Vasconcelos: “Porém, e porque esta presunção – como a que se lhe segue, no n.º 2 –, é, nos termos gerais do artigo 350.º, n.º 2, relativa (iuris tantum), pode ser elidida mediante prova em contrário. E tal prova resultará das circunstâncias do caso, sempre que estes evidenciem que as partes, cientes da prévia fixação de uma forma mais exigente para o negócio quiseram, não obstante, vincular-se sem sujeição à mesma, por tal modo revogando ou derrogando a convenção quanto à forma por si outorgada (HÖRSTER, 1992: 442; OLIVEIRA ASCENSÃO, 2003: 63)”[22: Cfr. Joana Vasconcelos, in: Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 502-503].» [negritos nossos]

No caso dos autos, a ilisão da presunção foi realizada pelos RR., pela prova, por confissão do A., dos factos constantes do ponto 25 da matéria de facto. Ou seja, o acordo verbal constante do ponto 25 dos factos provados significa que as partes manifestaram tacitamente a vontade de abandonar a forma convencionada, ficando assim ilidida a presunção estabelecida no n.º 1 do art. 223.º do Código Civil.

Tanto na decisão recorrida como nas alegações das partes, a questão do respeito pelas exigências de forma para a alteração da cláusula 2.ª do contrato-promessa vem equacionada exclusivamente no âmbito do respeito pela forma convencional. Sucede, porém, que, nos termos do n.º 2 do art. 410.º do Código Civil, o contrato-promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento autêntico ou particular, como ocorre no caso sub judice quanto ao prometido contrato de compra e venda de lotes de terreno (cfr. art. 875.º do CC), só vale se constar de documento assinado pela parte ou partes que se vinculam.

O que implica que a validade da alteração ao contrato-promessa nos termos do facto provado 25 (em vez do cancelamento das hipotecas a ser feito no prazo de 60 dias após a celebração do contrato-promessa, tal cancelamento «seria efetuado até ao ato da celebração da escritura notarial de compra e venda, tudo com a concordância do Montepio Geral, mediante o pagamento que o autor tinha de efetuar para liquidação do preço de compra e venda») tem também de ser apreciada em função das exigências legais de forma.

A respeito do âmbito da forma legal, prescreve o n.º 2 do art. 221.º do CC:

«As estipulações posteriores ao documento só estão sujeitas à forma legal prescrita para a declaração se as razões da exigência especial da lei lhes forem aplicáveis»

Assim sendo, em princípio, e num plano abstracto, uma tal alteração no plano contratual estaria abrangida pelas razões pelas quais a lei exige forma escrita para a celebração do contrato. Importa, contudo, verificar se, nas circunstâncias concretas dos autos, assim será efectivamente.

Resulta da factualidade provada que:

- O contrato-promessa foi celebrado em 23 de Setembro de 2016;

- De acordo com a cláusula 2.ª, o prazo para a 1.ª R. cancelar as hipotecas que oneravam os lotes de terreno terminava a 22 de Novembro de 2016;

- E, de acordo com a cláusula 5.ª, o prazo para a celebração da escritura pública de compra e venda terminava a 22 de Dezembro de 2016, cabendo à 1.ª R. proceder à marcação da mesma;

- Em data não determinada, as partes acordaram substituir a previsão da cláusula 2.ª nos termos descritos no facto 25: o cancelamento das hipotecas teria de ser feito até à celebração da escritura mediante o pagamento pelo A. do valor devido a título de preço;

- Na sequência do que ocorreram os seguintes factos:

26. Nesse sentido [do acordo descrito no facto 25], autor e ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, tentaram, por acordo, marcar a escritura notarial de compra e venda, na qual estaria presente o Montepio Geral, a fim de se proceder ao cancelamento das hipotecas.

27. A escritura notarial de compra e venda esteve inicialmente marcada para o dia 27/12/2016, no Cartório Notarial da Dra. KK, em ….

28. O autor informou a ré Uchalgar, através do 2.º e 3.º réus de que não lhe seria possível comparecer nessa data, solicitando nova marcação.

29. Por acordo entre o autor e a ré Uchalgar, através do 2.º e 3.º réus, foi marcada escritura de compra e venda para o dia 16/1/2017, no atrás citado Cartório Notarial.

30. Mais uma vez, o autor não compareceu à escritura, na data e local acordados, invocando motivos de saúde e tratamento médico.

31. O autor e a ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, acordaram, mais uma vez, que a escritura notarial de compra e venda seria celebrada em 24/2/2017.

32. Mais uma vez o autor não compareceu para celebrar a escritura em causa.

33. O autor e a ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, acordaram, mais uma vez, que a escritura notarial de compra e venda seria celebrada em 18/4/2017.

34. Mais uma vez o autor não se disponibilizou para celebrar a escritura em causa, nessa data, tendo proposto a data de 24/4/2017, que foi aceite pela ré Uchalgar, através dos 2.º e 3.º réus, tendo para tal sido contactado o Montepio Geral.

35. Após essa data, o autor desinteressou-se do negócio.

Constata-se, assim, que, já depois de decorrido o prazo de 60 dias do n.º 2 da cláusula 2.ª, mas antes de decorrido o prazo de 90 dias da cláusula 5.ª, foi marcada, com a concordância do A., data para a realização do contrato definitivo, a que se seguiu, sucessivamente, e sempre com o acordo do A., a marcação de outras quatro datas para a outorga da escritura pública de compra e venda, na qual estaria presente o credor hipotecário, a fim de o valor do preço a entregar pelo A. servir para liquidar a dívida garantida pelas hipotecas e, consequentemente, se proceder ao cancelamento das mesmas.

A conduta das partes revela, de forma patente, que a exigência, prevista na cláusula 2.ª, de cancelamento das hipotecas no prazo de 60 dias após a celebração do contrato-promessa, não revestia, para as mesmas, carácter essencial, não devendo, assim, considerar-se abrangida pelas razões da exigência da forma legal para a celebração do contrato.

Aqui chegados, porém, importa ainda considerar se tal alteração do contrato, acordada entre as partes nos termos descritos no facto provado 25 (em vez do cancelamento das hipotecas, a ser feito no prazo de 60 dias após a celebração do contrato-promessa, o cancelamento «seria efetuado até ao ato da celebração da escritura notarial de compra e venda (...)»), produziu efeitos, i.e., se impediu efectivamente o funcionamento da condição resolutiva.

Não tendo sido apurado em que momento teve lugar o acordo modificativo do contrato, configuram-se duas hipóteses.

Se o acordo teve lugar antes de decorrido o prazo de 60 dias previsto na cláusula 2.ª do contrato, dúvidas não subsistem que o contrato foi válida e eficazmente alterado, com a revogação da condição resolutiva.

Se o acordo modificativo teve lugar depois de decorrido o prazo de 60 dias, entende-se que a conduta das partes revela, de forma evidente, que, não obstante o decurso desse prazo, ambas quiseram manter-se vinculadas à celebração do contrato prometido, marcando, por acordo, sucessivas datas para a outorga da correspondente escritura pública. Ora, estando em causa interesses disponíveis, tal configura afinal uma renúncia tácita à invocação da condição resolutiva prevista na cláusula 2.ª do contrato e a sua concomitante substituição pelo acordo segundo o qual o cancelamento das hipotecas seria efectuado até à celebração da escritura pública de compra e venda, destinando-se o valor do preço devido pelo A. a satisfazer a dívida garantida pelas hipotecas.

Na verdade, a conduta do A., ao acordar com a 1.ª R. a marcação de sucessivas datas para a celebração do contrato prometido, a que o mesmo A. não compareceu, apresentando diversas justificações circunstanciais, mas sem nunca invocar a falta de cancelamento das hipotecas, ou sequer aludir ao funcionamento da condição resolutiva originariamente prevista na cláusula 2.ª, contradiz frontalmente – com desrespeito pelo princípio da boa fé que preside tanto ao cumprimento dos contratos como ao exercício dos direitos (cfr. arts. 762.º e 334.º do CC) – a pretensão de, na presente acção, fazer valer a sobredita cláusula contratual.

Assim, perante o teor do acordo modificativo – válido e eficaz – descrito no facto 25, provado por confissão do A., forçoso é concluir que as sucessivas não comparências ao acto de celebração do contrato prometido (e subsequente desinteresse, não juridicamente justificado, em tal celebração), configuram uma situação de mora no cumprimento do contrato-promessa, imputável ao A., a qual, em virtude da adjudicação dos lotes de terreno ao credor hipotecário, em processo executivo, redundou numa situação de impossibilidade de celebração do contrato definitivo, imputável ao mesmo A..

Deste modo, nos termos do n.º 2 do art. 442.º do CC, considera-se que a promitente-vendedora, a aqui 1.ª R. União de Cooperativas, tem direito a reter para si as quantias entregues pelo A. a título de sinal e de reforço de sinal.


12. Apreciemos, por fim, a questão, suscitada no recurso do A., da alegada responsabilidade pessoal dos 2.º e 3.º RR. pela devolução do sinal entregue pelo A...

Como foi esclarecido supra, ponto 7 do presente acórdão, os 2.º e 3.º RR. não são parte no contrato-promessa dos autos, não se encontrando, por isso, contratualmente vinculados, nem podendo ser pessoalmente responsabilizados pelo incumprimento do contrato.

Quanto ao mais, tenha-se presente o que dispõe o art. 74.º do Código Cooperativo:

«Os administradores respondem nos termos gerais para com os cooperadores e terceiros pelos danos que diretamente lhes causarem no exercício das suas funções.»

Quer isto dizer que o 2.º e o 3.º RR. apenas poderiam ser pessoalmente responsabilizados, em sede de responsabilidade extracontratual, se se verificassem os respectivos pressupostos e se o A. tivesse peticionado indemnização com tal fundamento, o que não sucedeu.

Deste modo, se os factos 19 e 21 (“Os 2º e 3º réus sabiam que a 1ª ré não tinha qualquer possibilidade de fazer cancelar as hipotecas que incidiam sobre os lotes, por falta de liquidez”; “Os 2.º e 3.º réus sabiam que não podiam vender os prédios que prometeram vender e não informaram a cooperativa e os órgãos competentes da mesma para aprovar tal negócio, tal como jamais reuniram a documentação necessária à celebração do negócio ou sequer conducente à autorização para a venda a terceiro de prédios destinados a fins cooperativos”) poderiam indiciar uma «violação dolosa dos limites impostos pelos bons costumes e, simultaneamente, (...) uma grave afectação do mínimo ético-jurídico exigível na convivência social» por parte dos 2.º e 3.º RR. com eventual relevância no domínio da responsabilidade civil aquiliana (como se reconheceu, a respeito de uma outra situação fáctica, no acórdão deste Supremo Tribunal de 08.09.2016[2], proc. n.º 1952/13.6TBPVZ.P1.S1, in www.dgsi.pt), certo é que, não tendo sido formulado pedido indemnizatório com esse fundamento, não cabe pronunciarmo-nos sobre tal hipótese.

Esclareça-se ainda que a pretensão do A. de que se atribua relevância ao facto de ter sido provado que os cheques entregues aos 2.º e 3.º RR., a título de pagamento do sinal e de reforço de sinal, foram depositados na conta da Cooperativa Nova Terra, uma das cooperativas que integram a R. União de Cooperativas (facto 14), carece de viabilidade, apenas podendo importar no plano das relações internas entre as cooperativas envolvidas.

Tampouco assume relevância autónoma o facto provado 37 (“O 2º réu confirmou diversas vezes que procederia à devolução do dinheiro do sinal pago pelo autor pela entrega e cobrança dos cheques em causa”), uma vez que as declarações do 2.º R. não são aptas, por si só, a vincular 1.ª R., nem, no que concerne à responsabilidade pessoal do mesmo 2.º R., preenchem os requisitos da promessa de cumprimento ou do reconhecimento de dívida previstos no art. 458.º do Código Civil.

Confirma-se assim não serem os 2.º e 3.º RR. pessoalmente responsáveis pelo pedido de restituição do sinal e do reforço do sinal formulado pelo A..


13. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso do autor e procedente o recurso da ré UCHALGAR – Promoção de Habitação Cooperativa, U.C.R.L., decidindo-se absolver esta ré do pedido e manter a decisão de absolvição dos réus BB e CC.


Custas de ambos os recursos pelo autor.


Lisboa, 17 de Junho de 2021


Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exma. Senhora Conselheira Maria Rosa Tching, tendo a Exma. Conselheira e Catarina Serra apresentado a declaração de voto que se segue.

Maria da Graça Trigo (relatora)


***


Declaração de voto de vencida

Votei vencida na medida em que, com o devido respeito, não subscrevo a decisão do presente Acórdão de reconhecer à ré UCHALGAR o direito a reter para si as quantias entregues pelo autor a título de sinal e de reforço de sinal.

Entendo que, a partir do momento em que a cláusula 2.ª do contrato é qualificada – como julgo dever ser qualificada – como cláusula resolutiva em sentido próprio e a condição resolutiva se verifica, não há como não dar o contrato-promessa como sem efeito.

Não havendo como não dar o contrato-promessa como sem efeito, nada do que as partes tenham feito tem o poder de “revivificar” o contrato e, por isso, não pode reconhecer-se valor às eventuais manifestação de vontade das partes em cumprir ou deixar de cumprir o contrato, alterar o contrato ou renunciar, tácita ou expressamente, a alguma das suas cláusulas.

É verdade que se apurou que, não obstante o teor da cláusula 2.ª, as partes acordaram que o cancelamento das hipotecas seria efectuado até à celebração da escritura pública de compra e venda (cfr. facto provado 25). Mas tudo indica que esse acordo ocorreu já após a extinção do contrato nos termos acima referidos. Veja-se, em particular, que o 2.º réu confirmou diversas vezes que procederia à devolução do dinheiro do sinal pago pelo autor pela entrega e cobrança dos cheques em causa (cfr. facto provado 37), o que indicia que ambas as partes davam já o contrato como sem efeito e se concentravam, como é típico nestes casos, em reconstituir a situação que existiria se o contrato não tivesse sido celebrado.

Divirjo, em síntese, sempre com o devido respeito, do presente Acórdão quando nele se conclui, conforme sumariado, que “a conduta das partes revela, de forma evidente, que ambas quiseram manter-se vinculadas à celebração do contrato prometido, marcando, também por acordo, sucessivas datas para a outorga da correspondente escritura pública; pelo que, estando em causa interesses disponíveis, tal configura uma renúncia tácita à invocação da condição resolutiva prevista no contrato e a sua concomitante substituição pelo acordo modificativo” e que “as sucessivas não comparências ao acto de celebração do contrato prometido (e subsequente desinteresse, não juridicamente justificado, em tal celebração), configuram uma situação de mora no cumprimento do contrato-promessa, imputável ao autor, a qual veio a redundar numa situação de impossibilidade de celebração do contrato definitivo, imputável ao mesmo”.

A solução por mim propugnada parece-me ainda aquela que é a mais coerente sob o ponto de vista das consequências que acarreta para cada uma das partes. De acordo com a decisão sobre a matéria de facto, a conduta das partes é equivalente para o efeito da imputabilidade do incumprimento / impossibilidade de cumprimento do contrato-promessa bem como no plano da censurabilidade. Se se atende, por um lado, aos factos 26 a 34 (o autor faltou em todas as ocasiões acordadas para a celebração do contrato prometido), não pode deixar de se atender, por outro lado, ao facto provado 19 (os 2.º e 3.º réus sabiam que a 1.ª ré UCHALGAR não tinha qualquer possibilidade de fazer cancelar as hipotecas que incidiam sobre os lotes, por falta de liquidez). Assim, se outras razões não houvesse, sempre faltaria justificação para distinguir positivamente a ré reconhecendo-lhe o direito de reter as quantias entregues pelo autor.

Catarina Serra

_________

[1] Relatado pela aqui segunda Adjunta e votado na presente 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.
[2] Relatado pela relatora do presente acórdão.