Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
565/1999.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
OBRAS
UTILIDADE PÚBLICA
COLISÃO DE DIREITOS
RESPONSABILIDADE CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS
Doutrina: - A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, I, 9ª ed., 925; R. ALARCÃO, “Obrigações – Lições, 1983”, 283.
- AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos ...”, 138.
- FREITAS DO AMARAL, “Direito Administrativo”, II, 1988, pg. 82.
- JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, “Constituição Portuguesa, Anotada, I, 210 e 268.
- M. TEIXEIRA DE SOUSA, “Estudos ...”, 395 e ss..
- P. DE LIMA e A. VARELA, “C. Civil, Anotado”, I, 4ª ed. 104.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 335.º, 483.º, 487.º, N.º 2, 494.º, 496.º, 563.º, 799.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 66.º, 158.º, 193.º, N.º 1 ALÍNEA A), N.º3, 660.º, N.º 2-1ª PARTE, 664.º, 668.º, N.º1 ALÍNEAS D) E E), 676.º, 715.º, 721.º, 722.º, 731.º, N.º2, 754.º, N.º2-2º SEGMENTO, 755.º, N.º1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 1.º, 8.º, 18.º, 20.º, N.º4, 22.º, 25.º, N.º1, 66.º, N.º1, 129.º, N.º6, 203.º, 205.º, N.º1, 212º, N.º 3, 266.º.
ETAF/84 [DL. N.º 129/84, DE 27/4]): - ARTIGOS 3.º, 4.º E 51.º.
LEI N. 11/87, DE 7/4 (LEI DE BASES DO AMBIENTE).
LOFTJ (LEI 3/99, DE 13/1): - ARTIGO 18.º.
Legislação Estrangeira: CEDH: - ARTIGO 6.º
DUDH: - ARTIGO 24.º
DEDH: - ARTIGO 8.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 28/4/77 (BMJ 266º-168);
- DE 10/2/005;
- DE 28/11/2002 (PROC. 03B1925);
- DE 13/9/2007 (PROC. N.º 07B2198);
- DE 02/7/2009 (PROC. N.º 09B0511);
- DE 08/4/2010 (PROC. N.º 1715/03TBEPS.G1.S1).
Sumário : I - A tutela da integridade pessoal (física e moral) está umbilicalmente ligada à consagração constitucional absoluta da dignidade da pessoa humana, especialmente revelada no art. 25º pela declaração da sua inviolabilidade, sendo o sono e o repouso essenciais à vida, não só na vertente da saúde, mas também da própria existência física.

II - Embora o direito à integridade pessoal não seja, em absoluto, um “direito imune a quaisquer limitações”, não pode, sem mais ou em abstracto, afirmar-se que os direitos ao sono e ao repouso que o integram estejam, como que por natureza, excluídos do respectivo núcleo essencial.

III - Hão-de ser a espécie e grau de ofensa, na ponderação, em concreto, do princípio da proporcionalidade, a ditar se o direito, originariamente absoluto e inviolável, pode suportar alguma limitação ou compressão em ordem à compatibilização ou harmonização, em co-exercício com outros direitos constitucionalmente reconhecidos.

IV - Tratar-se-á de averiguar se há dois direitos que se encontram em conflito ou colisão impondo uma harmonização ou concordância que, em termos práticos e em concreto conduzam a uma conciliação de exercibilidade em que saia respeitado o núcleo essencial de cada um desses direitos conflituantes.

V - Confrontando-se, de um lado, o direito ao repouso, de personalidade, absoluto, inviolável e inscrito no quadro dos direitos, liberdades e garantias, e, do outro, valores comunitários constitucionalmente protegidos (art. 266º CRP), designadamente a realização do interesse público na urgente realização de uma obra, invocado pelo Governo em despacho de Secretário de Estado, no prosseguimento do qual se violaram direitos fundamentais dos Autores, este último sai postergado pelo direito, também fundamental, que consagra a responsabilidade civil por actos violadores de direitos, liberdades e garantias levados a efeito pela Administração e seus agentes (art. 22º CRP).

VI - A Administração Pública, na prestação de serviços sociais e culturais, na satisfação de necessidades colectivas, tem necessidade de agredir a esfera jurídica dos particulares, ofendendo ou sacrificando os seus direitos e interesses, mas, no desenvolvimento dessas actividades, tem de agir com sujeição à Constituição e à lei, respeitando os direitos subjectivos e os interesses legítimos dos particulares.
VII - Os particulares não estão sujeitos ao dever de, em qualquer caso, em nome do interesse público, absorver ou suportar exclusivamente lesões dos seus direitos ou suportar sacrifícios que em nome do bem comum ou da sociedade, cabendo a esta, nos casos em que aqueles sacrifícios possam ser e tenham de ser impostos, compensá-los dos prejuízos causados - princípio da indemnização por expropriação (art. 22º-2).

VIII - O confronto e ponderação de interesses postula um dever de solidariedade, que o n.º 2 do art. 339º C. Civil revela, porventura como princípio geral, facultando a reparação dos danos por quem tirou proveito do acto ou contribuiu para o estado de necessidade, impondo que haja lugar a reparação de lesões de direitos de particulares sacrificados em consequência de conflitos de interesses se o lesado não teve intervenção como causador da situação de conflito.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG instauraram acção declarativa para efectivação de responsabilidade civil contra “Metropolitano de Lisboa, E.P.”, e “Metrexpo, Agrupamento Complementar de Empresas”, pedindo que as Rés fossem condenadas a pagar-lhes, a cada um, a quantia de 10 000 000$00.
Alegaram, em síntese, que, a partir do início de 1995, decorreram obras junto às suas residências, no âmbito do plano de expansão da rede do Metropolitano de Lisboa, realizadas pela 2.ª R., por efeito do contrato celebrado com a 1.ª R.. Tais obras realizaram-se 24 horas por dia e provocaram, designadamente, ruído que impediu a sua vida normal, privando-os do sono, descanso e tranquilidade, o que implicou um dano, que constitui as RR. na obrigação de indemnizar.

Contestou a R. “Metrexpo”, por impugnação, alegando fundamentalmente que foram tomadas medidas para a diminuição dos ruídos, devendo-se a intensidade dos trabalhos desenvolvidos desde meados de Dezembro de 1996 ao acidente/aluimento ocorrido em 11 de Dezembro de 1996, para além de que a obra era de interesse público, e concluindo pela improcedência da acção.

Contestou também a R. “Metropolitano de Lisboa”, por excepção, alegando a ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade da causa de pedir, e por impugnação, alegando a natureza de obra pública, com a necessidade de laborar continuamente, para estar pronta na abertura da “Expo 98”, sendo a sua actuação determinada pelos objectivos traçados pelo Governo e pelo interesse nacional da obra. Concluiu pela sua absolvição da instância ou, então, pela sua absolvição do pedido.

No despacho saneador julgou-se improcedente a arguição de ineptidão, decisão contra a qual reagiu a R. “Metropolitano de Lisboa”, mediante recurso de agravo.
Julgada a causa, foi proferida sentença, que condenou as Rés, solidariamente, a pagarem as quantias de: - 15.000,00€ ao A. AA; - 17.500,00€ ao A. BB; - 20.000,00€ ao A. CC; - 16.000,00€ ao A. DD; - 15.000,00€ ao A. EE; - 15.000,00€ à A. FF; e, - 20.000,00€ aos herdeiros do A. GG.

Apelaram ambas as Rés.

A Relação julgou apta a causa de pedir, negando provimento ao recurso de agravo, e improcedentes as apelações, confirmando a sentença.


Pedem agora revista as Rés.

A Recorrente “Metropolitano de Lisboa” insiste na pretensão de ser absolvida da instância, com fundamento na ineptidão da petição inicial que vem invocando. Subsidiariamente, argúi a nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia ou por falta de fundamentação, e ainda a incompetência absoluta dos Tribunais Civis para a apreciação do presente litígio. Caso assim não se entenda, defende a revogação do acórdão recorrido, proferindo-se decisão em que seja absolvida do pedido, por faltarem os pressupostos da responsabilidade que os AA. lhes imputam, ou, mais uma vez subsidiariamente, que os montantes indemnizatórios atribuídos aos AA. sejam reduzidos para um montante máximo, em caso algum superior dez mil euros, por cada A..

Para tanto, verteu nas “conclusões”, que se transcrevem:
“ 1. Questões prévias.
A. A Sentença recorrida, ao fundamentar a condenação das Rés no pagamento de uma indemnização numa hipotética responsabilidade do Estado, é nula, por excesso de pronúncia, ao abrigo do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), segunda parte, nulidade essa que desde já se deixa arguida, para todos os efeitos legais.
B.A norma decorrente do artigo 664.º do CPC, quando interpretado no sentido de permitir que o Tribunal condene um réu numa determinada acção com base na responsabilidade de uma entidade que nem sequer é parte nessa mesma acção, ainda que ressalvando a possibilidade do exercício do direito de regresso do réu sobre essa entidade, é materialmente inconstitucional, por violação do princípio do due process of law (ou princípio do processo equitativo), consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade essa que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
C. Tal norma, decorrente de tal interpretação do artigo 664.º do CPC, revela-se ainda violadora da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, também por violação do princípio do due process of law, expressamente consagrado no artigo 6.º da Convenção, gerando a inaplicabilidade do mesmo e, bem assim, uma violação de incisos com acolhimento constitucional, nomeadamente nos termos do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.
D. Tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, acompanhando a posição do Tribunal de Primeira Instância, concluído dessa forma (rectius, ser o Estado o único possível responsável pelos danos produzidos na esfera jurídica dos AA.), deveria ter absolvido as Rés do pedido. Era o máximo que o princípio iura novit curia lhe permitia fazer.
E. Caso se entenda que o Tribunal poderia (rectius, tinha poderes para) apreciar a eventual responsabilidade do Estado pelos alegados danos produzidos nas esferas jurídicas dos AA., e, com base nessa responsabilidade, condenar as Rés no pagamento de uma indemnização aos AA. – hipótese que só mesmo a cautela de patrocínio impõe que se equacione –, ainda assim, o Acórdão recorrido é nulo, já não por excesso de pronúncia, mas por falta de fundamentação, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC, nulidade essa que também desde já se argui, para todos os efeitos legais.
F. Além do mais, caso se admitisse tal hipótese, o Tribunal da Relação de Lisboa (assim como o Tribunal de Primeira Instância) sempre seria absolutamente incompetente para condenar as Rés no pagamento de uma indemnização aos AA. com fundamento no hipotético dever do Estado de indemnizar os mesmos, ao abrigo do artigo 4.º, alínea f), do ETAF, na versão vigente à data da propositura da presente acção, ou seja, a que consta do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, bem como do artigo 101.º do CPC.
G. Nos termos do artigo 102.º, n.º 1, do CPC, a excepção de incompetência absoluta é de conhecimento oficioso, pelo que deveria o Tribunal da Relação de Lisboa (assim como o Tribunal de Primeira Instância) ter-se declarado absolutamente incompetente para a apreciação do presente litígio, a partir do momento em que fundamentou a condenação das Rés no facto de o Estado dever indemnizar os AA., com base em normas de direito público.

2. Questões jurídicas relativas ao mérito
H. O conflito de direitos ou a colisão de direitos e valores patente nos presentes autos apresenta, de um lado, os direitos alegadamente violados dos AA. – os direitos ao descanso e ao repouso e a um ambiente de vida humano, sadio e equilibrado –, e, de outro lado, os valores da prossecução e da concretização do bem-comum ou do interesse público.
I. Contrariamente ao que procuram fazer crer os AA., e também ao que se afirma no Acórdão recorrido, a conduta da Ré não visa apenas o exercício de direitos económicos, sociais e culturais, ou um mero interesse público de segundo plano como patenteado no aresto em crise, mas sim, e sobretudo, a concretização do interesse da colectividade, na qual se inserem, naturalmente, os AA. Ubi commoda, ibi incommoda.
J. E também contrariamente ao que procuram fazer crer os AA., os direitos alegadamente violados dos AA. não se confundem, apesar de nele se integrarem, com o direito à integridade física e moral, e não merecem, por certo, o mesmo grau de protecção constitucional que é conferido a este direito.
K. Da colisão dos direitos dos AA. com os valores subjacentes à conduta das Rés resulta, através da utilização do princípio da concordância prática, consagrado no artigo 335.º do CC, a prevalência dos segundos sobre os primeiros.
L. No caso concreto, a prevalência dos direitos dos AA. ditava, pura e simplesmente, a não concretização do interesse público, ou seja, a não realização da Expo 98 – tal entendimento resulta, inequivocamente, dos factos dados por provados pelo Tribunal de Primeira Instância.
M. Tal solução implicaria, por isso, uma violação das normas de resolução do conflito de direitos.
N. Em casos de verdadeiro conflito de direitos – e não naqueles casos de conflito apenas aparente, em que a solução se encontra nos limites imanentes dos próprios direitos –, a prevalência de uns sobre os outros determina a exclusão da ilicitude que teoricamente resultaria da preterição dos direitos vencidos.
O. É precisamente isso que sucede no presente caso. Mesmo que se admita a violação dos direitos invocados pelos AA. – hipótese que se concede apenas por cautela de patrocínio –, essa violação não resulta numa ilicitude da conduta da Ré, em virtude de os direitos e valores subjacentes à sua conduta prevalecerem sobre os direitos alegadamente violados dos AA.
P. Assim, independentemente da violação ou não dos direitos invocados pelos AA., a conduta da Ré foi lícita, pelo que falha, desde logo, este pressuposto da responsabilidade delitual ou extracontratual.
Q. A ilicitude da conduta da Ré, a existir – o que não se concede –, resultaria igualmente excluída por força da aplicação da figura jurídica do conflito de deveres: a Ré agiu ao abrigo de ordens expressas do Governo, designadamente no que concerne à adopção de um regime de laboração ininterrupta, ou seja, ao facto que consubstancia a causa de pedir dos presentes autos.
R. A conduta da Ré não é passível de ser alvo de um juízo de censura – não sendo, por isso, uma conduta culposa, nem sequer negligente –, na medida em que a Ré actuou ao abrigo de uma ordem de autoridade, sob a pressão de a obra estar concluída a tempo e com objectivos de prazo bastante curtos, e, sobretudo, perante uma situação de colisão entre os direitos dos AA. e a concretização do bem-comum ou do interesse público.
S. As hipóteses eram apenas duas: ou se sacrificavam, na estrita medida em que tal terá acontecido, os tais direitos dos AA. e se realizava a Expo 98, ou aqueles direitos eram integralmente respeitados e preteria-se a realização de tal evento.
T. Ora, não se podia exigir da Ré que, à data dos factos, fosse capaz de encontrar a solução correcta para a colisão dos direitos dos AA. com a realização do interesse público – precisamente a solução que se almeja no presente processo –, pelo que não se pode atribuir um juízo de censura à sua conduta, nos termos do artigo 487.º do CC.
U. Acresce ainda que não se pode deixar de ter em conta, designadamente para efeitos da atenuação da culpa da Ré (a admitir-se a sua existência, o que apenas se concede por cautela de patrocínio), o facto de os AA. não terem reagido judicialmente ao Despacho do Governo que determinou expressamente a adopção de ritmos de laboração ininterrupta, ou seja, precisamente o facto que compõe a causa de pedir do presente litígio.
V. Por sua vez, não se verifica, no caso sub judice, a existência de um nexo de causalidade entre a conduta da ora Ré e os alegados danos sofridos pelos AA., na medida em que aquela conduta não criou nem potenciou uma situação de risco proibido, nem tão-pouco gerou, efectivamente, a produção de tais danos.
W. Os factos alegados na petição inicial e dados por provados nos presentes autos não se mostram, sequer minimamente, suficientes para concretizar a repercussão que os alegados danos produziram nas esferas jurídicas de cada Autor, o que impossibilita a fixação de uma indemnização justa e equitativa, ou seja, o que impossibilita o cumprimento da norma que resulta do disposto nos artigos 562.º, 564.º, n.º 1, e 566.º, n.º 1, do CC.
X. Sem prejuízo do que acima se expôs, à cautela e por mero dever de patrocínio, assinale-se que, atentos os padrões hodiernos de indemnização de danos não patrimoniais, é isento de dúvida que as indemnizações atribuídas aos AA. são excessivas e inusitadas, devendo, por isso, ser reduzidas para um montante máximo, em caso algum, superior a € 10.000,00 (dez mil euros), por cada A..

Do recurso interposto da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que julgou improcedente o recurso de agravo interposto pela Ré do despacho saneador.
Y. O presente recurso de agravo na 2.ª instância foi interposto ao abrigo do disposto no artigo 754.º, n.º 2, do CPC, que estabelece que deve ser admitido recurso do acórdão do Tribunal da Relação sobre decisão da Primeira Instância sempre que «o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B, jurisprudência com ele conforme».
Z. No caso em apreço, estamos em face de decisões com sentidos opostos e inconciliáveis: de um lado, o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão recorrido, que entende que «não ganha relevância, no âmbito da ininteligibilidade da causa de pedir, a falta de alguma concretização de certos factos tradutores dos efeitos da privação do sono e do repouso», e, do outro, o Supremo Tribunal de Justiça que, em aresto datado de 6 de Julho de 2004, afirmou peremptoriamente que «se a reconvinte articulou meras conclusões, utilizando mesmo conceitos jurídicos, além do mais, extremamente vagas, e das quais não emergem factos que poderiam fundamentar o pedido de indemnização que formula, o requerimento da reconvenção é inepto».
AA. Na petição inicial destes autos, faz-se referência a alegados danos diferentes sofridos por cada A ou por grupo de AA., mas estes não são identificados, sendo certo, por outro lado, que aqueles alegados danos – e, bem assim, os factos alegados como sua causa – são apresentados de modo muito genérico, em certos casos até mesmo de modo meramente conclusivo.
BB. A defesa por impugnação da Ré, ora Recorrente, mostra-se, em larga medida, comprometida pelo modo como se alega na petição inicial, sendo certo que parte dela foi apresentada a título meramente cautelar, impugnando-se o alegado pelos AA. por incompreensão.
CC. A formulação inteligível da causa de pedir impunha que os AA. dessem a conhecer, na petição inicial, os prejuízos concretos alegadamente sofridos por cada um, de modo a possibilitar às Rés, na sua defesa, a formulação das considerações que entendessem ajustadas, o que é exigido pelo próprio princípio do contraditório.
DD. Não se compreende por que é que cada um dos AA. peticiona 10.000.000$00 (dez milhões de escudos), a título de indemnização, e não peticiona mais, ou menos.
EE. Não se compreende, também, por que é que, alegando-se consequências das obras diferentes para um ou outro A. ou para grupos deles, se peticiona a mesma quantia para todos eles.
FF. Não se compreendem, enfim, os contornos, o tempo e o modo dos prejuízos alegados, nem em geral, nem para cada um dos AA., o que equivale a que sejam incompreensíveis os prejuízos alegados (para além de, amiúde, também serem incompreensíveis as suas alegadas causas).
GG. No caso dos autos, não sabemos quais os alegados danos, qual a situação que alegadamente existiria se não se tivesse verificado o alegado evento danoso, quais os alegados limites dentro dos quais a equidade deveria operar, relativamente a cada um dos sete pedidos, nem é possível formular um juízo quanto à gravidade dos alegados danos, para efeitos do artigo 496.º, n.º 1 do CC.
HH. A petição inicial é, assim, inepta, por ininteligibilidade da causa de pedir, nos termos do artigo 193.º, n.º 1 e 2, alínea a), do CPC, com a consequente absolvição das Rés da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 288.º, n.º 1, alínea e) e 494.º, alínea b), ambos do CPC.


A Recorrente “Metrexpo”, por sua vez, argúi a nulidade do Acórdão Recorrido, por excesso de pronúncia ou por falta de fundamentação, ou, no caso de assim não ser entendido, pede a sua revogação, com a absolvição da Recorrente do pedido, por faltarem os pressupostos da responsabilidade que os Recorridos lhes imputam, ou, ainda subsidiariamente, a redução dos montantes indemnizatórios para um montante nunca superior a 10,000.00 euros por Recorrido.

Para tanto, argumenta nas conclusões da alegação:
1. Salvo o devido respeito, a procedência do presente recurso é manifesta, porquanto a decisão recorrida não fez a correcta interpretação da lei aplicável ao caso sub judice.
2. O Acórdão recorrido, ao fundamentar a condenação das Recorrente no pagamento de uma indemnização numa hipotética responsabilidade do Estado, é nula, por excesso de pronúncia, ao abrigo do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), segunda parte, nulidade essa que desde já se deixa arguida, para todos os efeitos legais.
3. A norma decorrente do artigo 664.º do CPC, quando interpretado no sentido de permitir que o Tribunal condene um réu numa determinada acção com base na responsabilidade de uma entidade que nem sequer é parte nessa mesma acção, ainda que ressalvando a possibilidade do exercício do direito de regresso do réu sobre essa entidade, é materialmente inconstitucional, por violação do princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
4. Tal norma, decorrente de tal interpretação do artigo 664.º do CPC, revela-se ainda violadora da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, também por violação do princípio do due process of law, expressamente consagrado no artigo 6.º da Convenção, gerando a inaplicabilidade do mesmo e, bem assim, uma violação de incisos com acolhimento constitucional, nomeadamente nos termos do artigo 8.º da Constituição.
5. Tendo o Tribunal da Relação acompanhado a posição do Tribunal de Primeira Instância, concluído dessa forma (rectius, ser o Estado o único possível responsável pelos danos produzidos na esfera jurídica dos Recorridos), deveria ter absolvido as Recorrentes do pedido.
6. Caso se entenda, o que não se concede que o Tribunal poderia apreciar a eventual responsabilidade do Estado pelos alegados danos produzidos nas esferas jurídicas dos Recorridos, e, com base nessa responsabilidade, condenar as Recorrentes no pagamento de uma indemnização aos Recorridos ainda assim, o Acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC, nulidade essa que também desde já se argui, para todos os efeitos legais.
7. O conflito de direitos ou a colisão de direitos e valores patente nos presentes autos apresenta, de um lado, os direitos ao descanso e ao repouso e a um ambiente de vida humano, sadio e equilibrado alegadamente violados dos Recorridos, e, de outro lado, os valores da prossecução e da concretização do bem-comum ou do interesse público.
8. Contrariamente ao que procuram fazer crer os Recorridos, e também ao que se afirma no Acórdão Recorrido, a conduta da Recorrente não visa apenas o exercício de direitos económicos, sociais e culturais, mas sim, e sobretudo, a concretização do interesse da colectividade.
9. Os direitos alegadamente violados dos AA. não se confundem, apesar de nele se integrarem, com o direito à integridade física e moral, e não merecem, por certo, o mesmo grau de protecção constitucional que é conferido a este direito.
10. Da colisão dos direitos dos Recorridos com os valores subjacentes à conduta das Recorrentes resulta, através da utilização do princípio da concordância prática, consagrado no artigo 335.º do CC, a prevalência dos segundos sobre os primeiros.
11. No caso concreto, a prevalência dos direitos dos Recorridos ditava, pura e simplesmente, a não concretização do interesse público, ou seja, a não realização da Expo 98 - tal entendimento resulta, inequivocamente, dos factos dados por provados pelo Tribunal de Primeira Instância.
12. Tal solução implicaria, por isso, uma violação das normas de resolução do conflito de direitos.
13. Em casos de verdadeiro conflito de direitos - e não naqueles casos de conflito apenas aparente, em que a solução se encontra nos limites imanentes dos próprios direitos -, a prevalência de uns sobre os outros determina a exclusão da ilicitude que teoricamente resultaria da preterição dos direitos vencidos.
14. Mesmo que se admita a violação dos direitos invocados pelos Recorridos - hipótese que se concede apenas por cautela de patrocínio -, essa violação não resulta numa ilicitude da conduta da Recorrente em virtude de os direitos e valores subjacentes à sua conduta prevalecerem sobre os direitos alegadamente violados dos Recorridos.
15. Assim, independentemente da violação ou não dos direitos invocados pelos Recorridos, a conduta da Recorrente foi lícita, pelo que falha, desde logo, este pressuposto da responsabilidade delitual ou extracontratual.
16. A ilicitude da conduta da Recorrente, a existir - o que não se concede -, resultaria igualmente excluída por força da aplicação da figura jurídica do conflito de deveres: a Recorrente agiu ao abrigo de instruções do dono da obra, as quais resultaram de ordens expressas do Governo, designadamente no que concerne à adopção de um regime de laboração ininterrupta, ou seja, ao facto que consubstancia a causa de pedir dos presentes autos.
17. Os factos alegados na petição inicial e dados por provados nos presentes autos não se mostram, sequer minimamente, suficientes para concretizar a repercussão que os alegados danos produziram nas esferas jurídicas de cada Autor, o que impossibilita a fixação de uma indemnização justa e equitativa, ou seja, o que impossibilita o cumprimento da norma que resulta do disposto nos artigos 562.º, 564.º, n.º 1, e 566.º, n.º 1, do CC.
18. Sem conceder e com o devido respeito, os montantes indemnizatórios atribuídos nos presentes autos a cada um dos Recorridos é excessivo.
19. Na determinação do montante de indemnização por danos não patrimoniais deve atender-se: à sensibilidade do indemnizado; ao seu sofrimento e sua situação económica; ao grau de culpa do agente e sua situação económica e demais circunstâncias do caso.
20. Face aos factos provados e ao entendimento que vem sendo sufragado pela Jurisprudência as indemnizações são excessivas, não tendo, nem o Tribunal de Primeira Instância, nem o Tribunal da Relação de Lisboa, tido em consideração os factores atenuantes amplamente expandidos como o grau de culpabilidade do agente reduzido/nulo; o interesse público associado à obra; as ordens expressas do Governo e, consequentemente, do Recorrente Metropolitano para a já referida laboração contínua.
21. Assim, segundo um juízo de equidade, deverão tais indemnizações ser substancialmente reduzidas para um montante nunca superior a 10,000.00 euros por Recorrido.
22. Em suma, a sentença recorrida fez errada apreciação da prova devendo proceder a supra citada impugnação e violou/fez errada aplicação do direito aplicável, nomeadamente artigo 335.º do Código Civil, alínea b) e d) do n.º 1 do artigo 688º do Código de Processo Civil, 483º do Código Civil e 18º da Constituição da República Portuguesa.


Os Autores ofereceram resposta.

Concluíram pela rejeição de ambos os recursos quanto aos montantes indemnizatórios, por ser matéria que não foi objecto de decisão pela Relação, bem como pela rejeição do recurso da “Metropolitano de Lisboa” na parte respeitante ao agravo, por inverificação de pressupostos de admissibilidade.
No mais, pedem a improcedência das pretensões das Recorrentes.





2. - As questões propostas, aferidas e delimitadas pelas conclusões dos recursos, podem enunciar-se como tendo por objecto a apreciação dos pontos que seguem.


Quanto à Recorrente “Metropolitano de Lisboa”:

A. - Ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade da causa de pedir;

B. - Nulidade do acórdão, por excesso de pronúncia ou por falta de fundamentação;

C. - Incompetência material (absoluta) do tribunal para apreciação da causa;

D. - Inverificação dos pressupostos da responsabilidade civil e obrigação de indemnização – ilicitude, culpa e nexo de causalidade;

E. - Montantes (excessivos) indemnizatórios atribuídos.


Quanto à recorrente “Metrexpo”:

- As mesmas questões identificadas nos pontos B., D. e E., por isso, comuns a ambos os recursos.





3. – Objecto e mérito dos recursos.

3. 1. Recurso de “Metropolitano de Lisboa”.


3. 1. 1. - Questão prévia.

A Recorrente “Metropolitano de Lisboa, EP” invocou, como fundamento acessório da revista a violação da lei processual, tendo por objecto a decisão, pela Relação, em sede de agravo, da questão da arguida ineptidão da petição, que pretende ver reapreciada, agora como agravo continuado, para o que invoca o fundamento excepcional de oposição de acórdãos, previsto no n.º 2 do art. 754º CPC.

Os Recorridos suscitaram a questão da inadmissibilidade do recurso na parte respeitante à identificada matéria de agravo continuado, sustentando inexistir a invocada oposição, por não se ter decidido a mesma questão de forma oposta.

Ouvida, a Recorrente, manteve a posição e juntou cópia do aresto que convocou como acórdão fundamento.


A Recorrente funda o pressuposto de recorribilidade no acórdão do STJ, de 06/07/2004, concretamente nos seguintes segmentos que transcreve: «a causa de pedir tem de ser especificada, concretizada ou determinada, ou seja, tem de consistir em factos ou circunstâncias concretas e individualizadas»; «se a reconvinte articulou meras conclusões, utilizando mesmo conceitos jurídicos, além do mais, extremamente vagas, e das quais não emergem factos que poderiam fundamentar o pedido de indemnização que formula, o requerimento da reconvenção é inepto».
Em sentido oposto, diz, no acórdão recorrido entendeu-se que «não ganha relevância, no âmbito da ininteligibilidade da causa de pedir, a falta de alguma concretização de certos factos tradutores dos efeitos da privação do sono e do repouso».


Como dito, a decisão impugnada recai sobre decisão da 1ª Instância, como recurso de agravo continuado.

Por isso, a Recorrente fundou, como tinha necessariamente de fundar, o direito ao recurso na excepção contida no n.º 2 do art. 754º CPC, cujos pressupostos se lhe impunha e se propôs integrar através da indicação dos respectivos fundamentos – art. 687º-1 CPC.


Importa, pois, apreciar se ocorrem as contradições invocadas.

A oposição de acórdãos pressupõe que a decisão e fundamentos do acórdão recorrido se encontrem em contradição com outro ou outros relativamente às correspondentes identidades.
Como tem vindo a ser afirmado, a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.
A oposição ocorrerá, pois, quando um caso concreto (constituído por um similar núcleo factual) é decidido, com base na mesma disposição legal, num acórdão num sentido e no outro em sentido contrário.
Exigível, sempre a identidade, em ambos os casos, do núcleo central da situação de facto e das normas jurídicas interpretandas e/ou aplicandas (ac. STJ, de 10/2/005).
Assim, a questão fundamental de direito cuja identidade pode legitimar a contradição “não se define pela hipótese/estatuição, desenhada abstractamente da norma jurídica em sua maior ou menor extensão ou compreensão, a que seja possível subsumir uma pluralidade de eventos reais a regular” - pois que, se assim fosse, os casos de oposição multiplicar-se-iam de forma incontrolável -, mas pela questão “nuclear necessariamente recortada na norma pelos factos da vida que revelaram nas decisões” (ac. STJ, de 28/11/2002, Proc. 03B1925 ITIJ).


Ora, volvendo aos elementos da decisão jurisprudencial convocados pela Recorrente, enquanto possível acórdão fundamento, logo pode constatar-se que os mesmos não conflituam, em qualquer aspecto, com a decisão recorrida, ao julgar, bem ou mal – o que aqui não releva -, que, no caso, não se verificava o vício de ineptidão declarado no acórdão de 2004.


Com efeito, apreciando mais detalhadamente, apesar de as Recorrentes se terem limitado à transcrição do sumário da decisão, dir-se-á, desde logo, que no acórdão fundamento estava em causa uma questão de falta de causa de pedir, por omissão de indicação de factos concretos, tendo a parte, em vez disso, articulado “meras conclusões, utilizando mesmo conceitos jurídicos, além do mais extremamente vagas, das quais não emergem factos que poderiam fundamentar o pedido de indemnização que formula”, enquanto na decisão recorrida se apreciou a invocada ininteligibilidade da causa de pedir, no concernente aos alegados danos, cujas causas são “apresentadas de modo muito genérico”, e respectivos montantes peticionados por cada um dos AA., quantitativos que a ora Recorrente disse não compreender e, por isso, por que não era peticionado “mais, ou menos”.
Objecto de pronúncia e de decisão foi, no primeiro caso, a falta de alegação de factos materiais concretos integradores de uma causa de pedir, enquanto no segundo caso essa apreciação e pronúncia ocorreram sobre a acusação de obscuridade ou incompreensibilidade do conjunto factual que, pela sua natureza genérica, se tornava ininteligível quando reportada a cada um dos pedidos de cada um dos Autores.
Falta de causa de pedir e ininteligibilidade da mesma são vícios diferentes – além a petição padece de omissão do facto que sustenta o pedido, no último caso há obscuridade impeditiva da segura apreensão do sentido da causa de pedir -, com pressupostos factuais diferentes, embora com idênticas consequências processuais: - a ineptidão da petição e nulidade de todo o processo (art. 193º-1-a) CPC).
Por isso, a arguição do vício não releva se se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição (art. 193º-3 CPC)

Depois, é evidente a ausência de identidade entre as situações de facto em apreciação – alegação de devolução de mercadorias por deterioração, sem concretização, e alegação de prejuízos para a saúde dos vários Autores em termos comuns a todos ou com especificações não concretas.
Ora, apreciando essa base factual alegada, o acórdão recorrido, sem sequer equacionar a questão da falta de causa de pedir, não só a julgou compreensível como afirmou que «(…) atendendo aos termos do pedido formulado na acção, igual para todos os demandantes [sublinhado nosso], não ganha relevância, no âmbito da ininteligilidade da causa de pedir, a falta de concretização de certos factos tradutores dos efeitos da privação do sono e do repouso»


Tem-se, por quanto ficou exposto, por certo que em caso algum o decidido no acórdão indicado como fundamento do recurso colide com o firmado no acórdão recorrido – estejam as respectivas decisões certas ou erradas – quanto ao julgamento sobre a aptidão da petição e da revonvenção.

Consequentemente julga-se inadmissível, por inverificação dos pressupostos previstos no art. 754º-2-2º segmento (oposição de acórdãos) do CPC, o recurso interposto sobre a matéria de agravo continuado, com a consequente extinção a instância recursiva nessa parte.



3. 1. 2. - Incompetência material do tribunal comum.

A Ré “Metropolitano de Lisboa”, depois de admitir que, sendo embora uma empresa pública, actuou desprovida do seu jus imperii e foi demandada ao abrigo de normas de direito privado, razão por que entendeu serem os tribunais civis competentes para apreciar o litígio, vem alegar que o Acórdão recorrido, “ao confirmar o teor e fundamentação da Sentença proferida pela 1ª Instância, alterou, de forma inadmissível, o paradigma da presente acção, deixando a mesma de versar sobre questões de direito privado, passando a reportar-se a questões de direito público (…) ao invocar o (hipotético) dever do Estado de indemnizar os AA. mesmo no caso de os valões subjacentes à conduta da(s) Ré(s) se prenderem com a concretização do bem comum ou do interesse público”, de sorte que o Tribunal “apreciou a questão controvertida dos presentes autos à luz de normas de direito público, e já não de acordo com a forma como os AA. a configuraram, ou seja, à luz do regime da responsabilidade delitual ou extracontratual consagrado nos artigos 483º e 496º CC”.

A questão ora reposta foi igualmente colocada no recurso de apelação, ao que o acórdão recorrido respondeu que a condenação das RR. “baseou-se, em exclusivo, na responsabilidade extracontratual que directamente lhes foi imputada. A alusão à responsabilidade civil do Estado serviu apenas, como aliás se consignou na sentença, para demonstrar que o interesse público não obstava ao ressarcimento dos danos invocados na acção”.


Perante este sintético, mas claro e assertivo, tratamento dado à recorrente questão da incompetência material, não se percebe como é possível ainda afirmar-se, como afirma a Recorrente que o Tribunal resolveu a questão à luz de normas de direito público, fora dos quadros da responsabilidade civil por factos ilícitos.
A imputação feita à sentença foi completamente refutada na parte inicial do acórdão e, a partir daí, qualquer leitura dessa peça, por menos atenta que seja, permite apreender que nenhuma referência se faz, na fundamentação utilizada, a qualquer norma de direito público, a não ser, obviamente, à Constituição da Republica,

A insistência em semelhante questão, que tem que ver com a passagem da sentença em que se referiu que mesmo que se entendesse que as Rés actuaram na realização do interesse público, tal “interesse público não exime o Estado de indemnizar o particular pela lesão de direitos, liberdades e garantias”, para a seguir se escrever que “por extravasar o objecto do processo, não cabe apreciar aqui o âmbito da eventual acção de regresso das Rés para com o Estado. O que fica dito serve apenas para demonstrar que a invocada realização do interesse público não constitui fundamento da não ressarcibilidade dos danos sofridos pelos Autores”, atenta, ao menos a nosso ver, contra os mais elementares princípios de interpretação da declaração do julgador vertida nos textos da sentença e do acórdão.


Como é por demais evidente, o que está cristalinamente dito é que o interesse publico não é fundamento de exclusão da obrigação de indemnizar das Rés, nem sequer o sendo do Estado, a quem cabe realizar esse interesse ou, nas inequívocas palavras da sentença, a obrigação de o próprio Estado estar sempre obrigado a indemnizar o particular pela lesão de direitos fundamentais, que é “o que fica dito”, serve apenas (sublinhado nosso) para demonstrar que a invocada realização do interesse público não constitui fundamento de não ressarcibilidade (…)”.

A repetida posição da Recorrente, para além de manifestamente infundada, roça agora a má fé.


Apesar disso, sempre se dirá que, como é sabido, a competência em razão da matéria tem de aferir-se pelos termos em que o autor propõe ao tribunal que decida a questão, configurada pela qualidade ou natureza das partes, pelo pedido e pela causa de pedir.


Segundo os art. 18º da LOFTJ (Lei 3/99, de 13/1) e 66.º CPC, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais.
Assim, a atribuição de competência a tribunal de jurisdição especial depende da verificação de um duplo pressuposto: - o objecto da acção e a existência de uma norma específica atributiva de competência à jurisdição especial.


Ora, o Tribunal moveu-se rigorosamente dentro dos contornos e limites fixados pela causa de pedir e pelo pedido relativamente às Partes, seja em matéria de acção seja de excepção.

A eventual chamada de normas de direito público a intervir na fundamentação, na medida em que exista (como sucedeu com a invocação, na sentença, da Lei de Bases do Ambiente), não contém virtualidade de alterar a competência material, sempre determinada por aqueles elementos, desde que a acção não se funde em relações jurídicas administrativas ou, ao tempo, não estivessem em apreciação actos de gestão pública de, pelo menos, uma das partes (cfr. arts. 212º-3 CRP e 3º, 4º e 51º do ETAF/84 [DL. n.º 129/84, de 27/4]).

E assim será, como no caso, quando, na apreciação do requisito “ilicitude” a que alude o art. 483º C. Civil, ou nas causas da sua exclusão, se torna necessário identificar as normas jurídicas ou os interesses juridicamente protegidos (em regra ínsitos em normas de direito público) violados (pense-se no que acontece, por exemplo, com o Código da Estrada e diplomas conexos na apreciação da responsabilidade civil por acidentes de viação).


Improcede, pois, a arguida excepção de incompetência material dos tribunais comuns.




3. 2. – Recurso de ambas as Rés. Questões comuns.


3. 2. 1. - Nulidade do acórdão.

3. 2. 1. 1. - As Recorrentes argúem a nulidade do acórdão, ora por excesso de pronúncia, ora por falta de fundamentação.

Para tanto, alegam, por um lado, que o acórdão, “ao fundamentar a condenação das Rés no pagamento de uma indemnização numa hipotética responsabilidade do Estado, é nulo, por excesso de pronúncia, ao abrigo do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), segunda parte”, e, por outro lado, que “caso se entenda que o Tribunal poderia apreciar a eventual responsabilidade do Estado pelos alegados danos produzidos nas esferas jurídicas dos AA., e, com base nessa responsabilidade, condenar as Rés no pagamento de uma indemnização aos AA., ainda assim o Acórdão recorrido é nulo, já não por excesso de pronúncia, mas por falta de fundamentação, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC”.

Mais alegam as Recorrentes, nesta sede, que “a norma decorrente do artigo 664.º do CPC, quando interpretado no sentido de permitir que o Tribunal condene um réu numa determinada acção com base na responsabilidade de uma entidade que nem sequer é parte nessa mesma acção, ainda que ressalvando a possibilidade do exercício do direito de regresso do réu sobre essa entidade, é materialmente inconstitucional, por violação do princípio do due process of law (ou princípio do processo equitativo), consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade essa que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
Tal norma, decorrente de tal interpretação do artigo 664.º do CPC, revela-se ainda violadora da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, também por violação do princípio do due process of law, expressamente consagrado no artigo 6.º da Convenção, gerando a inaplicabilidade do mesmo e, bem assim, uma violação de incisos com acolhimento constitucional, nomeadamente nos termos do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.
Tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, acompanhando a posição do Tribunal de Primeira Instância, concluído dessa forma (rectius, ser o Estado o único possível responsável pelos danos produzidos na esfera jurídica dos AA.), deveria ter absolvido as Rés do pedido. Era o máximo que o princípio iura novit curia lhe permitia fazer”.


Como se extrai das alegações e conclusões das Recorrentes, sustentam as mesmas as suas pretensões, de inconstitucionalidade e nulidade, no pressuposto, por elas afirmado, de que o Tribunal procedeu à condenação das Rés com base na responsabilidade do Estado, que não é parte na acção, tendo a Relação, ao acompanhar a decisão da 1ª Instância, concluído dessa forma (ser o estado o único responsável pelos danos produzidos aos AA.).



3. 2. 1. 2. - Adiante-se já que arguição das nulidades do acórdão, nos termos em que se encontra deduzida, carece de razão de ser.

As questões correspondem, uma vez mais, à reposição dos termos em que foram suscitadas perante a Relação, então reportadas à sentença, como evidenciado nas conclusões das Recorrentes (a), b) e c) da “Metropolitano” e c), d) e e) da “Metrexpo”.

Confrontada com as ora repetidas imputações à sentença recorrida, a Relação, apreciando-as, argumentou e decidiu expressamente que a sentença se cingiu ao conhecimento das questões colocadas pelas partes, nos termos do n.º 2 do art. 660º do CPC, pois que a condenação dos Apelantes se “baseou-se em exclusivo na responsabilidade civil extracontratual que, directamente, lhes foi imputada, uma como dona da obra, outra como empreiteira”, pelo que não foram ultrapassados os limites do poder de cognição do Tribunal, ou seja, não houve excesso de pronúncia.
Mais referiu o acórdão, interpretando o teor da sentença em sede de fundamentação e, obviamente, optando pela determinação e fixando o sentido com que deveria valer a esse trecho da fundamentação da sentença também no acórdão, que “a alusão à responsabilidade do Estado serviu apenas, como aliás se consignou na sentença, para demonstrar que o interesse público não obstava ao ressarcimento dos danos invocados na acção”.
Na mesma linha de raciocínio e de pronúncia concluiu o acórdão não proceder a arguida omissão de fundamentação, pois que “a sentença não apreciou, em concreto, a responsabilidade civil do estado, não podendo nunca a condenação dos Apelantes como tendo por base aquela responsabilidade”.

É, portanto, absolutamente claro, que o acórdão, decidindo sobre a inverificação das nulidades imputadas à sentença, deixou também decidido que a mesma nada apreciou, em concreto, nem decidiu sobre a responsabilidade do Estado com consequências nos motivos da condenação das Rés, como, ao tomar essa posição, o próprio acórdão se auto-vinculou ao não acolhimento da posição a que foram atribuídos os vícios, que rejeitou.
Coerentemente, o acórdão passou a apreciar o mérito da causa, designadamente quanto à ilicitude do comportamento das Rés e da sua culpa, exclusivamente à luz das regras da responsabilidade civil extracontratual.

Neste contexto, causa, no mínimo, perplexidade, ler-se nas alegações da Recorrente “Metropolitano de Lisboa” afoitamente afirmado que não corresponde à verdade o «facto» expresso no acórdão segundo o qual “a alusão à responsabilidade do Estado serviu, apenas, como aliás se consigna na sentença, para demonstrar que o interesse público não obstava ao ressarcimento dos danos invocados na acção.
A afirmação só é compreensível, repete-se, ante uma ausência de leitura ou de uma leitura muito deficiente da sentença.


Como começou por dizer-se, o acórdão desatendeu a arguição das nulidades da sentença e fê-lo fundamentadamente, nos termos vindos de analisar.

Pois bem.
A sentença (aqui acórdão) é nula quando se pronuncie sobre questões que não devesse apreciar ou não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão – art. 668º-1-d) e e) CPC.
O preceito estabelece, como é sabido, a sanção para a violação da norma do art. 660º-2-1ª parte, que impõe ao julgador o conhecimento de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, do mesmo passo que lhe veda ocupar-se de questões não suscitadas pelas partes.
O vício verifica-se quando o juiz viole o dever de solucionar o conflito proposto dentro dos limites peticionados pelas partes, tendo em conta a causa de pedir e o pedido que identificam esse conflito ou questão.

A nulidade por falta de fundamentação, por sua vez, decorre da omissão da legitimação da decisão judicial assente na persuasão das partes e da comunidade em geral, bem como da sua função de garantia do direito ao recurso (arts. 205º-1 CRP e 158º CPC).

As agora (re)arguidas nulidades têm de ser apreciadas com incidência sobre as questões que a Relação tinha efectivamente de apreciar, nos termos e com os contornos que se deixaram definidos e balizados.

Ora, a decisão impugnada é agora o acórdão da Relação e não a sentença da 1ª Instância à qual se imputa a comissão das nulidades.
Ao acórdão recorrido, que é o que ora se encontra sob censura e é a única decisão em apreciação, não vem realmente atribuída qualquer nulidade relativa à matéria em causa.
Os vícios formais da sentença, justamente porque de forma, só relevam na peça viciada.
Não geram nulidades sequenciais.
A terem ocorrido vícios formais da sentença sempre estariam cobertos pela decisão que foi chamada a sobre ela exercer censura, encontrando-se necessariamente sanados, desde logo por via da regra da substituição que o art. 715º CPC contempla.
Reflectindo-o, o acórdão impugnado julgou fundamentadamente que a sentença recorrida não enferma das nulidades.

Quer isto dizer que, como é lógico e óbvio, se vícios formais há, da previsão do art. 668º, passíveis de serem arguidos perante o STJ – seja ao abrigo do art. 722º-1, seja do art. 755º-1 – só poderão ser os do acórdão da Relação.
No caso, concretiza-se exemplificando, haveria de se arguir de nulo o acórdão por, ele mesmo, por exemplo, ter incorrido em excesso de pronúncia ou omissão de fundamentação, tendo em consideração os termos da decisão recorrida e o pedido formulado no recurso, no caso ter deixado de julgar ou não procedente a arguição e, na primeira hipótese, proceder ao competente suprimento.
Porém, no acórdão, não só se decidiu não ocorrer a nulidade invocada, como se explanaram as razões pelas quais a mesma não fora cometida.
Depois, ainda se emitiu pronúncia sobre a questão de fundo subjacente.

O que poderia ocorrer, isso sim, seria erro de julgamento, questão cuja apreciação não cabe no objecto deste recurso – limitado, insiste-se, à verificação de existência de vício formal do acórdão -, sendo que, se comissão de nulidade houvesse ou se como tal fosse de qualificar a situação convocada pelos Recorrentes, também não caberia a este Tribunal saná-la, como pretendem (art. 731º-2 CPC).

Improcede, pois, a arguição das nulidades que, manifestamente, não se verificam.



3. 2. 1. 3. - Relativamente à questão da inconstitucionalidade da interpretação do art. 664º encontra-se totalmente prejudicada em razão de, como dito e repetido, se ter por certo não ter assentado nem assentar a condenação das Rés na responsabilidade de qualquer entidade, nomeadamente do Estado, mas apenas na verificação dos pressupostos legais da sua própria e exclusiva responsabilidade.

Não se vislumbra, assim, desde logo por ausência do invocado pressuposto de facto, a alegada violação dos princípios contidos nas normas dos arts. 8º e 20º-4 da Constituição da República e 6º da CEDH.

O art. 664º acolhe o princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão (art. 203º da Lei Fundamental), concedendo aos tribunais liberdade no tocante à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (ius novit curia), desde que, para tanto, se mova dentro dos limites estabelecidos pelos factos alegados pelas partes.

O acórdão impugnado revela à saciedade que o direito dos Autores foi declarado e as Rés foram condenadas mediante estrita utilização dos factos alegados como integradoras da complexa causa de pedir, no âmbito dos pedidos formulados contra elas e logicamente decorrentes daqueles fundamentos, do ponto de vista do silogismo judiciário.
A alusão à responsabilidade do Estado, por factos ilícitos e lícitos, prendeu-se, e prende-se, com a questão do interesse público e decisão Governamental de prosseguimento das obras, invocada pelas Rés como fundamento de exclusão da responsabilidade, vale dizer, como matéria de excepção sobre a qual se impunha ao tribunal pronúncia, em obediência ao comando do art. 660º-2 CPC.

Com efeito, insiste-se, o Tribunal não apreciou a responsabilidade do Estado para, com base nela condenar as Rés.
Disse, isso sim, mas apenas isso, que o interesse público alegado pelas Rés para dar cobertura à sua desresponsabilização, também as não eximiria da obrigação de indemnizar.

Infundada e prejudicada, assim, a arguida violação de princípios constitucionalmente tutelados.




3. 3. Mérito da causa.

3. 3. 1. - Factualidade assente.

Vêm definitivamente provados os seguintes factos:

1. Os Autores são ou foram moradores dos Lotes ..., ... e ... da Avenida C...de L..., nos O....
2. No início de 1995, foram confrontados com a vedação do terreno contíguo às suas residências e o início da realização de obras no mesmo.
3. Tais obras inseriram-se no plano de expansão da rede do Metropolitano de Lisboa e foram realizadas pela 2.ª Ré, por contrato celebrado com a 1.ª Ré, dona da obra.
4. Para além do abate das árvores e da destruição do espaço relvado que os AA. podiam usufruir, foi instalado, no topo da Avenida C... de L..., pela R. Metrexpo o estaleiro das obras, iniciando-se trabalhos de escavação e de construção civil de grande vulto.
5. Foram no local construídas instalações para o pessoal, nomeadamente instalações sanitárias e oficinas e montado um ascensor para permitir aos operários subirem e descerem para os trabalhos subterrâneos.
6. Consistiram as obras, depois da abertura de um enorme “buraco” a céu aberto e na realização de profundas e intensas escavações e consequente remoção de terras por camiões, bem como a montagem e colocação de estruturas em ferro e sua conversão em betão armado para sustentação das terras no percurso do metropolitano e na nova estação dos Olivais em construção no âmbito do alargamento “Expo 98” da rede do metropolitano.
7. Tais obras implicaram, ainda, a alteração do trânsito com a criação de um desvio no topo da Avenida C... de L... .
8. As obras inserem-se no segundo plano de expansão da rede do Metropolitano, em Lisboa.
9. Na parte da rede que viria a ser chamada “linha Oriente”, assegurando a ligação à “Expo 98”, partindo da Estação da Alameda (D. Afonso Henriques).
10. Foi confiada ao R. Metropolitano, pelo Governo, a tarefa de expandir a referida rede, assegurando, além do mais, a ligação da sua rede à “Expo 98”.
11. Para a realização do projecto e da construção da “linha do Oriente”, entre a Alameda (Afonso Henriques) e a “Expo”, no troço compreendido entre o km 2+180 e o km 5+095, troço no qual se inserem as referidas obras invocadas, a R. Metropolitano celebrou com a R. Metrexpo o contrato n.º ---/94-ML.
12. As obras e trabalhos (referidos em 4) implicaram a intervenção e constante movimentação de um grande conjunto de máquinas potentes e pesadas, tais como gruas, retroescavadoras, betoneiras e camiões.
13. Bem como a realização de trabalhos de soldadura, para além da constante movimentação de pessoal, com a utilização de um ascensor e de um martelar episódico, mas de grande violência sendo que, permanentemente, funcionaram os ventiladores de ar do túnel provocando um barulho constante e perturbador.
14. Todas estas actividades produziram ruídos de elevados níveis sonoros que se ouviam com intensidade nas casas dos Autores.
15. Tais trabalhos, a partir de Fevereiro de 1996, passaram a realizar-se, permanentemente, 24 horas, todos os dias da semana, incluindo domingos e maioria dos feriados.
16. Foi anunciado pelas Rés que o desvio mencionado em 7 acabaria em Outubro de 1996.
17. Os ruídos causados pelos trabalhos, a partir da altura referida em 15, foram permanentes e extremamente incómodos para os Autores.
18. Os Autores foram privados, diariamente, de horas de sono durante a noite, tendo dificuldade em dormir dado que as obras se realizaram 24 horas por dia com três turnos diários de trabalho, sem prejuízo do provado sob 15 e 46.
19. O ruído era provocado pela movimentação das máquinas, nomeadamente betoneiras, gruas e camiões, destacando-se uma grua com cuba que recolhia a terra escavada e a despejava nos camiões com grande barulho, bem como uma retroescavadora.
20. Parte do barulho, que perturbava o descanso dos Autores, era gerado no interior das escavações, bem como provocado pelo funcionamento do ascensor dos operários, que funcionava dia e noite, emitindo um silvo prolongado.
21. As obras causaram elevado número de poeiras.
22. O martelar de ferro, embora não permanente, acontecia a qualquer hora do dia ou da noite, muitas vezes, às quatro ou cinco horas da madrugada, provocando sobressaltos e privando os Autores de sono e descanso, sem prejuízo do provado sob 15 e 46.
23. Em consequência das obras, os Autores viram-se privados, diariamente, de horas de sono, sendo que o A. GG tomava comprimidos para dormir e o A. DD viu-se obrigado a mudar de residência, por lhe ser absolutamente intolerável a permanência na sua habitação.
24. O A. BB passou a ter mais dores nas costas, em decorrência da privação de horas de sono.
25. O A. CC permaneceu na sua residência, por não ter qualquer possibilidade de mudar da mesma, dado até a sua responsabilidade profissional.
26. A falta de descanso causou aos Autores muito menor rendimento no trabalho, com dificuldades de concentração.
27. A nível da própria dinâmica familiar, houve alteração nas relações, dado o clima de irritabilidade que afectou cada uma das pessoas.
28. Os AA. GG, CC e BB tiveram alterações no seu relacionamento social, o que foi sublinhado por familiares e amigos.
29. A permanência dos trabalhos, dia e noite, obrigava o A. CC a falar alto em casa para poder ser ouvido pelos outros membros do agregado familiar, sem prejuízo do referido em 27.
30. Os AA. CC e GG chegaram a pernoitar nos corredores interiores das casas e no escritório.
31. Os Autores, face a esta situação e a partir de Fevereiro de 1996, realizaram diversas diligências, no sentido de pôr cobro extrajudicialmente a esta situação, mas sem êxito.
32. Os Autores, bem como outros moradores dos Lotes ... e ... da Avenida C... de L..., começaram por contactar o Provedor Arbitral do Metro e o conselho de gerência da R. Metropolitano de Lisboa.
33. O referido Provedor Arbitral limitou-se a manifestar a sua impotência para resolver a situação vivida pelos Autores.
34. Contactaram ainda, ao longo de meses, os mais diversos organismos e entidades, desde a Câmara Municipal de Lisboa (Presidente e Provedor do Ambiente) até ao Governo Civil, passando pelo Provedor de Justiça, Direcção-Geral dos Transportes e Ministério do Ambiente, com o intuito de procurarem assegurar o seu direito ao descanso e à saúde postos em causa com as actividades das Rés.
35. Os Autores e outros moradores dos prédios mais afectados com as obras dirigiram, em Maio de 1996, uma exposição colectiva ao Provedor de Justiça, solicitando a sua intervenção para pôr termo à situação que viviam há cerca de três meses, nomeadamente pretendendo a suspensão das obras entre as 00:00 e as 8:00 horas da manhã.
36. Os Autores, bem como outros moradores, dirigiram ainda uma “reclamação/exposição” à Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais do Vale do Tejo, que foi “considerada legalmente procedente”, por se estar na presença de “infracção à legislação em vigor (Regulamento Geral sobre o Ruído)”.
37. A avaliação do grau de incomodidade sonora é feita com base na diferença entre o nível sonoro contínuo equivalente do ruído perturbador (Leq) e o nível sonoro do ruído de fundo excedido em 95% tempo de referência (L95), sendo que tal diferença foi medida como sendo de 11,5 db (A) em 17 e 19 de Julho de 1996.
38. No critério de apreciação da reacção humana ao ruído NP-1730, a diferença verificada pode originar, por parte da colectividade, uma reacção que é classificada como de grau forte, sendo mesmo de esperar uma reacção de ameaça colectiva.
39. Os Autores AA, CC, DD e EE são Juízes Conselheiros.
40. As medições de ruído efectuadas foram-no com as janelas fechadas.
41. Os Autores dirigiram-se, em 22 de Novembro de 1996, por escrito, através do seu mandatário, à Dra. HH, Directora Regional do Ambiente e Recursos Naturais de Lisboa e Vale do Tejo.
42. Essa carta mereceu a resposta de fls. 63 a 65 do procedimento cautelar.
43. No contexto do procedimento cautelar, em Junho 1997, procedeu-se a novo exame, por ordem do Mmo. Juiz, realizado pela Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais de Lisboa e Vale do Tejo, cujos resultados dizem: não podendo, de acordo com a lei, ser superior a 10 dB(A) a diferença entre o valor do nível sonoro contínuo equivalente do ruído proveniente da(s) actividade(s) em causa e o valor do nível sonoro do ruído do fundo com a possibilidade de ser excedida, para os ensaios agora realizados resultou o valor de 15 dB(A), valor corrigido a final para 17.9 dB(A).
44. Exames que se realizaram em dias absolutamente “normais”.
45. As situações descritas em 17, 18, 22, 23, 26, 27, 28, 30 perduraram até ao Verão de 1998, sem prejuízo do provado em 46.
46. Após o referido em 103, a 2.ª Ré retirou a oficina de serralharia e apenas suspendeu os trabalhos entre as 00:00 e as 8:00 horas durante alguns dias em número concretamente não apurado mas que não excedeu os quinze (resposta ao quesito 43.º).
47. Continuando nos demais dias a prolongar os trabalhos durante toda a noite com os efeitos referidos em 18 e 22.
48. O que obrigou à chamada das autoridades policiais, por várias vezes.
49. A Estação de Olivais Sul só abriu em Dezembro de 1998.
50. A realização da Exposição Internacional de Lisboa, em 1998, foi encarada, quer pelas autoridades, quer pela população em geral, e desde o momento em que tal realização foi cometida a Portugal pelo Bureau Internacional des Expositions (BIE), como um acontecimento de primordial importância para o país.
51. Cabia mobilizar todos os meios e todos os esforços para a realização de tal Exposição, assegurando o seu êxito, em todas as suas vertentes.
52. Uma dessas vertentes era a dos meios de transporte que serviriam a “Expo 98”.
53. Especialmente levando em conta que esta se situaria numa zona da cidade até então degradada e desprovida de acessos e rede de transportes públicos adequados ao evento em causa.
54. Em virtude do referido em 50 a 53, gizou-se e realizou-se, no âmbito do aludido plano de expansão do metropolitano, a ligação da sua rede à “Expo 98”.
55. A R. Metropolitano é uma empresa pública a quem foi cometido o objecto de explorar e desenvolver o serviço público de transportes colectivos através do aproveitamento do subsolo de Lisboa.
56. As obras em causa inseriram-se no plano de expansão da rede do Metropolitano de Lisboa, aprovado por despacho de 21 de Dezembro de 1993, do Ministério das Obras Públicas e Transportes, que expressamente se refere ao interesse público do “desenvolvimento da cidade, nomeadamente da realização da Exposição Internacional de Lisboa de 98”.
57. Cabia à Ré Metrexpo a realização daqueles projectos e construção referidos em 11, sendo a mesma quem, por si ou por intermédio de terceiros, realizou os trabalhos e obras necessários ao projecto e construção do troço mencionado.
58. No que se incluem também os trabalhos e obras levados a cabo junto às residências dos Autores.
59. Trabalhos e obras esses da responsabilidade da Ré Metrexpo, incluindo a construção, a organização e o funcionamento do estaleiro.
60. E a obra de expansão da rede do metropolitano é de vulto, caracterizando-se pela sua extensão e pela sua complexidade técnica, ditada, além do mais, pelas características dos solos e da ocupação urbana das zonas envolvidas.
61. Era necessário trabalhar de modo a que a “Linha Oriente” estivesse pronta a funcionar quando do início da “Expo 98”, em Maio de 1998.
62. Em 11 e 12 de Dezembro de 1996, ocorreu um acidente estrutural na construção daquela que viria a ser a Estação dos Olivais, da rede de Metropolitano, na “Linha Oriente”.
63. Acidente esse que consistiu em aluimentos e abatimentos de terras e estrutura.
64. O abatimento chegou à superfície, destruindo uma parte importante da estrada.
65. Este aluimento de terras e a consequente alteração dos solos de todas as zonas contíguas obrigaram a trabalhos de construção e recuperação, com carácter urgentíssimo.
66. Houve a necessidade de escoramento de várias zonas dos pisos superiores e inferiores da estação, da betonagem provisória de várias paredes e taludes e da posterior retirada da terra envolvida no acidente.
67. Aquela estação situa-se a uma profundidade de cerca de 35 metros.
68. Sendo de execução complexa.
69. Esse acidente atrasou a execução da obra.
70. Foi por isso que, no local, próximo das residências dos Autores, se tornou ainda mais imperioso trabalhar continuamente durante 24 horas.
71. Depois de feitos os primeiros trabalhos de reparação das consequências do aludido acidente.
72. Se, desde o início das obras, o tempo disponível até ao início previsto da “Expo 98” não permitia atrasos nas mesmas, com o descrito acidente e com as suas consequências, tornou-se imperioso trabalhar ainda mais intensamente.
73. De modo a que a rede de Metropolitano, quando da abertura da “Expo 98”, estivesse apta a servi-la.
74. Estava em causa o próprio funcionamento da “Expo 98”.
75. Não podia ter sido de outro modo, designadamente no que diz respeito ao trabalho permanente, continuamente.
76. Ainda antes do aludido acidente, já se verificara a necessidade de passar a laborar em regime permanente, continuamente, em várias partes da linha (incluindo estações) para ter a “Linha Oriente” pronta quando do início da “Expo”.
77. Pelo despacho n.º 87/96, datado de 27 de Novembro de 1996, o Secretário de Estado dos Transportes determinou à Ré que determinasse “aos empreiteiros contratados a adopção de ritmos de laboração ininterrupta, em condições de garantir a concretização segura das soluções técnicas adoptadas e o cumprimento dos objectivos de prazo fixados”.
78. E nesse despacho consigna-se que “ a conclusão dos trabalhos e o início da exploração da linha do metropolitano entre Alameda e Oriente, até à data da abertura da Exposição Internacional de Lisboa de 1998, constituiu um imperativo de interesse público relevante, de grau seguramente não inferior ao do próprio evento da Exposição”.
79. O Governo não só autorizava, mas também exigia à Ré que as obras decorressem em regime de laboração permanente, pelos motivos ali expostos.
80. A actuação da 1.ª Ré foi sempre determinada pelos objectivos traçados pelo Governo, sem prejuízo do provado em 50.
81. Conseguiu-se que a rede de metropolitano servisse a “Expo”, logo quando da abertura, em Maio de 1998.
82. Nessa mesma data, não fora ainda possível inaugurar todas as estações da “Linha Oriente”, designadamente as de Cabo Ruivo e Olivais (esta inaugurada apenas em Dezembro de 1998).
83. O túnel ficou aberto em Dezembro de 1997, faltando ainda realizar todos os trabalhos adicionais.
84. Continuando a impor-se a laboração permanente.
85. Uma vez iniciada a laboração permanente, continuamente, nos termos e data expostos, a sua interrupção, mormente na zona da estação dos Olivais, poderia conduzir (para além do incumprimento dos prazos, nos termos expostos) a problemas técnicos e de segurança.
86. Quer ao nível dos processos construtivos, quer ao nível da tuneladora que escavava o túnel, e atendendo nomeadamente às características dos solos, às condições da ocupação urbana e às características da obra.
87. Inclusive com possíveis danos para as edificações ali existentes.
88. Uma paragem no equipamento da tuneladora aumentaria significativamente os riscos de queda de pressão na frente de escavação e poderia implicar a descompressão do terreno, com consequente aumento de assentamentos à superfície e potenciais danos nas edificações existentes.
89. O que implicava que não fosse interrompida a laboração permanente, em contínuo.
90. A Ré Metropolitano exortou a Ré Metrexpo, por mais do que uma vez, no sentido de esta levar a cabo os trabalhos, incluindo a organização e o funcionamento do estaleiro, de modo a provocar à população os menores incómodos possíveis e de acordo com as regras e exigências aplicáveis.
91. O abate de árvores e destruição do espaço relvado são consequências inevitáveis da realização de obras do tipo e do vulto das aqui em causa.
92. O referido em 5 e 6 constitui consequência inevitável da realização de obras do tipo e do vulto das aqui em causa.
93. Todas as obras, mormente as do tipo e do vulto das aqui em causa, produzem não só ruídos mas também poeiras e outras incomodidades para a população que é afectada por elas.
94. A 2.ª Ré procurou minimizar o efeito do pó, procedendo à limpeza dos arruamentos, com o auxílio de uma máquina projectando água.
95. Os desvios de trânsito foram absolutamente necessários para a realização dos trabalhos sem paralisar totalmente a circulação no local.
96. Os ventiladores de ar do túnel são indispensáveis à renovação do ar dentro do túnel, onde se encontravam dezenas de trabalhadores.
97. A tuneladora é um equipamento de grande porte que foi utilizado na escavação do túnel principal do metropolitano, de quase dez metros de diâmetro.
98. Esta máquina, além de perfurar o terreno, coloca ainda as peças de betão armado (aduelas), que sustentam o túnel, logo que esteja aberto.
99. Não é, por isso, possível desligar temporalmente estas duas operações.
100. Os níveis de ruído produzidos estão dentro dos limites impostos pelo dono da obra.
101. Os escritórios principais da Ré Metrexpo e da própria fiscalização da obra encontravam-se situados dentro do próprio estaleiro dos Olivais e nunca o pessoal ali em serviço foi impedido de trabalhar pelos níveis de ruído.
102. A pedido da 2.ª Ré, a II- A... – Engenharia Acústica, Vibrações e Ambientes, Lda. efectuou, em 2 de Julho de 1997 e 3 de Julho de 1997, medição de emissões de ruído da obra da estação de Olivais-Sul.
103. Em Julho de 1997 e no âmbito do procedimento cautelar, que correu termos no 5.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, chegou-se a um acordo homologado pelo Mo. Juiz que revestiu a seguinte forma: 1. As Requeridas Metro e Metrexpo acordam em suspender diariamente os trabalhos à superfície na Estação dos Olivais, entre as 00.00 horas e as 8.00 horas; 2. A Requerida Metrexpo obriga-se, de imediato, a retirar a oficina de serralharia existente entre os Lotes 480 e 484; 3. As Requeridas Metro e Metrexpo obrigam-se a colocar vidros duplos eficientes e com uma caixilharia semelhante às já existentes, nas janelas das fachadas viradas à obra dos lotes onde os Requerentes habitam, independentemente de serem requerentes ou não na presente providência; 4. A referida colocação deve ser efectuada no prazo de 15 dias, após solicitação pelo Requerente, Dr. GG, com indicação expressa das fracções a beneficiar; 5. A Requerida Metro obriga-se no caso de acidente ou emergência, que implique o prolongamento dos trabalhos por mais de 24 horas, a realojar os moradores dos lotes dos Requerentes, que o solicitarem expressamente em estabelecimento hoteleiro condigno e nunca inferior à categoria de três estrelas; 6. Custas a cargo dos requeridos.
104. Nenhum dos Autores, alguma vez, perante a Ré Metropolitano, fez uso do disposto na cláusula 5.ª desse acordo.
105. Os Autores viram as suas fracções melhoradas com a colocação de vidro duplo a partir de data concretamente não apurada.



3. 3. 2. – Responsabilidade das Recorrentes.

3. 3. 2. 1. – Pressupostos da responsabilidade civil; Ilicitude, culpa e nexo de causalidade.


3. 3. 2. 2. – Obrigação de indemnizar.

Como se deixou assinalado, as Recorrentes colocam, em termos comuns, apresentando mesmo as conclusões das respectivas alegações conteúdo idêntico, a questão da inexistência da obrigação de indemnizar, por inverificação dos pressupostos da responsabilidade civil e obrigação de indemnização – ilicitude, culpa e nexo de causalidade -, invocando ainda, subsidiariamente, a da excessividade das quantias indemnizatórias que vêm atribuídas pelas Instâncias.

Apreciar-se-á cada uma delas.

As Recorrentes põem em causa o concurso dos requisitos da responsabilidade relativamente ao direito ao sono, repouso, tranquilidade e sossego dos Autores, invocando, no essencial, a exclusão da ilicitude fundada na figura do conflito de direitos e valores ou de deveres, a que acrescerão a ausência de culpa e de nexo causal entre a conduta das Recorrentes e os danos sofridos pelos Recorridos.


Pressuposto essencial da colocação de qualquer questão de responsabilidade civil e obrigação de indemnização é a existência de um dano.
Sem ele, isto é, sem que ocorra um prejuízo resultante da lesão de um bem, direito ou interesse juridicamente protegido, não tem cabimento falar-se de responsabilidade, qualquer que tenha sido a natureza e efeitos da conduta do agente.


No caso, emerge a lesão de bens imateriais, com protecção jurídica a nível da Lei Fundamental e com tutela na lei ordinária.
Ali, em conformidade com os princípios consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, consagram-se o princípio do respeito da dignidade da pessoa humana, acolhe-se, como direito fundamental, a inviolabilidade moral e física das pessoas e reconhece-se a todos os cidadãos o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, bem como o dever de o defender – arts. 24º da DUDH, 8º da DEDH e 1º, 25º-1 e 66º-1 da CRP.
Além disso, o Código Civil estabelece que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à personalidade física ou moral, prevendo a responsabilidade civil dos autores das ofensas, sendo que, como é entendimento comum, o preceito abrange direitos como o direito à vida, à integridade física, à hora e bom nome, “à saúde e ao repouso essencial à existência física” – art. 70º-1 (cfr. P. DE LIMA e A. VARELA, “C. Civil, Anotado”, I, 4ª ed. 104).

Já em 1977, chamado a pronunciar-se sobre um caso em que o «Metropolitano de Lisboa» construiu um túnel por forma a que os ruídos e vibrações provenientes da circulação dos comboios vieram a provocar à demandante agravamento de uma discopatia e diminuição da capacidade de trabalho, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça encontrar-se “perante uma reconhecida ofensa ilícita ao direito à saúde e ao repouso, essencial a uma equilibrada existência física da autora, ínsitos na sua personalidade, para os efeitos do art. 70º C. Civil”, acrescentando-se que a própria Constituição Política “garante que «todos têm direito à protecção da saúde» (art. 64º) e «a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado», cuja lesão dá direito a indemnização (art. 66º)” – ac. de 28/4/77 (BMJ 266º-168).

Posteriormente, vários têm sido os arestos em que este mesmo Tribunal tem sucessivamente reafirmado integrarem o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade requisitos inerentes à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente dos direitos à integridade física e moral e a um ambiente de vida sadio, constitucionalmente tutelados como Direitos Fundamentais no campo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, sempre para concluir que a ilicitude de uma acção ruidosa que prejudique o repouso, a tranquilidade e o sono de terceiros está no facto de, injustificadamente, e para além dos limites do socialmente tolerável, lesar aqueles baluartes da integridade pessoal, sendo o dano real lesão desse direito em qualquer das suas componentes (vd., entre os mais recentes, os acs. de 13/9/2007 (proc. n.º 07B2198), de 02/7/2009 (proc. n.º 09B0511) e de 08/4/2010 (proc. n.º 1715/03TBEPS.G1.S1).


Inquestionado, e inquestionável, pois, que os Autores sofreram danos, provocados pela actividade ruidosa levada a cabo pelas Rés, consubstanciados e decorrentes da privação do sono, perturbação do descanso e do trabalho, tudo nos termos em que os factos 19 a 30, além de outros, dão conta.

Concorrente, também, ante a violação dos direitos pessoais dos Autores, o carácter ilícito da actuação das Recorrentes.



3. 3. 2. 3. – Ilicitude. Exclusão.

Contrapõem as Recorrentes que, independentemente da mencionada violação, a ilicitude deve ter-se por excluída em razão da natureza pública da obra e dos valores da prossecução e da concretização do bem-comum ou do interesse público, valores estes que devem prevalecer sobre os direitos ao repouso e a um ambiente de vida humano, sadio e equilibrado, tudo por via do princípio da concordância prática consagrado no art. 335º do C. Civil.
A ilicitude resultaria igualmente excluída pela figura do conflito de deveres, pois que agiram ao abrigo de ordens expressas do Governo, no que concerne à adopção de um regime de laboração ininterrupta.


No invocado art. 335º-1 do C. Civil prevê-se, efectivamente, que “havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes”, acrescentando o n.º 2 do preceito que “se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”.

Acolhe-se na transcrita norma do n.º 1 o denominado princípio de compatibilidade prática cuja aplicação as Recorrentes reclamam para, em nome do interesse público da obra, verem afastada a ilicitude da actuação que lhes vem imputada.


Antes de mais, deve deixar-se referido que não se acompanham os Recorrentes quando insinuam que os direitos ao repouso, sono e sossego, por não pertencerem ao núcleo essencial ao direito fundamental à integridade física e moral, não merecem, por isso, o mesmo grau de protecção, o que resultará dos seus próprios limites imanentes ou intrínsecos, com a inerente consequência de se revelar lícita a conduta das Rés de agressão física e moral dos AA., para levarem a cabo o interesse público, não havendo, assim, sequer, uma situação de conflito.

Na verdade, insiste-se, a tutela da integridade pessoal está umbilicalmente ligada à consagração constitucional absoluta da dignidade da pessoa humana, especialmente revelada no art. 25º pela declaração da sua inviolabilidade, «na inexistência de autorização expressa de leis restritivas e na proibição de afectação do direito à integridade pessoal nas situações de suspensão de direitos fundamentais em estado de sítio ou de emergência (art. 129º-6 da Constituição)» (JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, “Constituição Portuguesa, Anotada, I, 268), sendo certo que, como é reconhecido, o sono e o repouso são essenciais à vida, não só na vertente da saúde, mas também da própria existência física.
Assim, embora o direito à integridade pessoal não seja, em absoluto, um “direito imune a quaisquer limitações” - designadamente de autolimitações ou de intervenções de autoridades públicas dentro de estritos limites legalmente regulados e justificados à luz da própria Constituição e da proporcionalidade aferida pelo grau (mínimo) de ofensa corporal (testes de alcoolemia ou recolha de material biológico para exames laboratoriais, por exemplo) -, entende-se que não pode, sem mais ou em abstracto, afirmar-se que os direitos ao sono e ao repouso que o integram estejam, como que por natureza, excluídos do respectivo núcleo essencial.
Bem diferentemente, crê-se que hão-de ser a espécie e grau de ofensa, na ponderação, em concreto, do princípio da proporcionalidade, a ditar se o direito, originariamente absoluto e inviolável, pode suportar alguma limitação ou compressão em ordem à compatibilização ou harmonização, em co-exercício com outros direitos constitucionalmente reconhecidos.
Por isso, conclui-se, a licitude das ofensas imputáveis às Rés não encontra arrimo na pretensa não pertença dos direitos ofendidos ao núcleo essencial do direito à integridade física e moral, com reconhecimento de inviolabilidade consagrado no art. 25º-1 da Constituição.


Tratar-se-á, então, de averiguar se há dois direitos que se encontram em conflito ou colisão impondo uma harmonização ou concordância que, em termos práticos e em concreto conduzam a uma conciliação de exercibilidade em que saia respeitado o núcleo essencial de cada um desses direitos conflituantes.

De um lado está, já se disse, o direito ao repouso, de personalidade, absoluto, inviolável e inscrito no quadro dos direitos, liberdades e garantias, que são directamente aplicáveis e cujas restrições estão sempre sujeitas a reserva de lei, nos casos previstos na Constituição, devendo limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (proporcionalidade) – art. 18º CRP.

Do outro lado perfilam-se, aceitando a posição e qualificação das Recorrentes, valores comunitários constitucionalmente protegidos, designadamente a realização do interesse público, com assento no art. 266º da Lei Fundamental.
Aqui se proclama que “a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos pelos cidadãos” (n.º 1), estabelecendo o n.º 2 do mesmo preceito que os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei.



De notar, antes de prosseguir, que não se põe, directamente, aqui e agora, qualquer problema de harmonização entre direitos ou entre direitos e valores em conflito.
Essa perspectiva da questão encontra-se totalmente ultrapassada ou resolvida, tendo as Recorrentes praticado livremente e nos termos em que se propuseram levá-la a cabo toda a actividade de que resultaram os danos, ressalvado o lapso temporal em que deram execução ao contrato de transacção que outorgaram com os Autores. Neste sim, procurou-se e encontrou-se a harmonização ou concordância prática então possíveis e reciprocamente aceites pelas Partes entre as posições conflituantes.
Assim, o que ainda poderá discutir-se é se essa actividade poderia considerar-se justificada ou legitimada para efeitos de exclusão da sua natureza objectivamente ilícita, e, em consequência, paralisar o direito à indemnização.


As Recorrentes esgrimem com a natureza e interesse público da obra, convocando o despacho do Secretário de Estado dos Transportes, de 27/11/96 que, invocando como “imperativo de interesse público relevante … a conclusão dos trabalhos e o início da exploração da linha do metropolitano entre Alameda e Oriente, até à data da abertura da Exposição internacional de Lisboa de 1998”, concluiu: “Assim: 1. Deverá o Metropolitano de Lisboa determinar aos empreiteiros contratados a adopção de ritmos de laboração ininterrupta, em condições de garantir a concretização segura das soluções técnicas adoptadas e o cumprimento dos objectivos e prazos fixados. 2. (…)”.

Escudam, assim, as Recorrentes a sua actuação lesiva no cumprimento e satisfação dos valores e interesse público invocados pelo Governo para o dever de adopção de laboração ininterrupta.
Vale isso por dizer que as Rés pretendem ver a sua actuação, ao menos enquanto adoptaram os ritmos de laboração contínua no exercício da função administrativa, o que de resto já resultava da protecção constitucional reclamada com apoio directo no art. 266º CRP.

Mas, perante tal posicionamento, isto é, de as Rés se colocarem como agentes da Administração, substituindo-se-lhes ou não, então não pode olvidar-se que, para além de o citado art. 266º impor sempre, recorde-se o respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, o art. 22º da mesma Constituição declara ainda o Estado e demais entidades públicas civilmente responsáveis, em forma solidária com os seus órgãos ou agentes, “por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções ou por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.
Está-se perante uma norma consensualmente considerada como princípio geral em matéria de direitos fundamentais, em cujo âmbito sistemático se inclui – e não na parte III, do título IX, respeitante à Administração Pública, a deixar bem evidente a sua superioridade -, relativa à responsabilidade civil resultante de actuações administrativas, directamente aplicável (cfr. ob. cit., 210).

Resulta, deste modo, incontornável que o direito económico, social e cultural em cuja prossecução se consubstanciou o interesse público da realização da obra de acesso à Expo 98, no prosseguimento do qual se violaram direitos fundamentais dos Autores, na sua vertente de fonte da obrigação de indemnizar, sai postergado pelo direito, também fundamental, que consagra a responsabilidade civil por actos violadores de direitos, liberdades e garantias levados a efeito pela Administração e seus agentes, o dito art. 22º.

Por isso, como bem se concluiu na sentença da 1ª Instância, “mesmo que se entenda que as Rés actuaram na realização do interesse público (factos 77 a 80), a realização do interesse público não exime o Estado (Administração) de indemnizar o particular pela lesão de direitos, liberdades e garantias”.

Será de convocar, neste ponto, um outro preceito Constitucional, ainda em sede de direitos fundamentais, mas, agora sim, já fora do campo dos direitos, liberdades e garantias.
Referimo-nos ao art. 66º que a todos reconhece o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, mais estabelecendo, sublinha-se, dever de o defender, o que como prevê o n.º 2 do preceito é incumbência do Estado, por meio dos organismos próprios, isto é, da Administração, e por apelo e apoio a iniciativas particulares.
O preceito Constitucional encontra densificação e desenvolvimento na lei ordinária – Lei n. 11/87, de 7/4 (Lei de Bases do Ambiente) – que prevê o direito à cessação das causas de violação (nomeadamente o ruído) e indemnização dos cidadãos lesados e prevê mesmo a responsabilidade independentemente de culpa no caso de «danos significativos, em virtude de uma acção especialmente perigosa».

Ora, se assim é, não se vê como e porque admitir que, em nome dos valores e do interesse público referidos, o Governo/Administração imponha a lesão de um direito fundamental que não só esbarra com o dever de respeito pelos limites previstos no art. 266º - princípios da prossecução do interesse público e da legalidade - como afronta directamente o direito proclamado no art. 66º-1 e o dever de o defender, por acção agressiva.

É sabido que a Administração Pública, na prestação de serviços sociais e culturais, na satisfação de necessidades colectivas, tem necessidade de agredir a esfera jurídica dos particulares, ofendendo ou sacrificando os seus direitos e interesses.
Porém, no desenvolvimento dessas actividades, tem de agir com sujeição à Constituição e à lei, respeitando os direitos subjectivos e os interesses legítimos dos particulares, “o que se caracteriza pela necessidade permanente de conciliar as exigências do interesse público com as garantias dos particulares” (FREITAS DO AMARAL, “Direito Administrativo”, II, 1988, pg. 82).


Numa palavra, os particulares não estão sujeitos ao dever de, em qualquer caso, em nome do interesse público, absorver ou suportar exclusivamente lesões dos seus direitos ou suportar sacrifícios que em nome do bem comum ou da sociedade, cabendo a esta, nos casos em que aqueles sacrifícios possam ser e tenham de ser impostos, compensá-los dos prejuízos causados.
Em tal consiste, desde logo, o princípio da indemnização por expropriação (art. 22º-2), bem podendo dizer-se que a posição defendida pelas Recorrentes representa a expropriação do direito dos AA. a serem compensados pelos prejuízos que sofreram em benefício da sociedade.

Com efeito, neste ponto há, de algum modo, remissão para a figura do estado de necessidade – art. 339º C. Civil – em que assenta a responsabilidade do Estado por actos lícitos.
O confronto e ponderação de interesses postula um dever de solidariedade, que o n.º 2 do art. 339º revela, porventura como princípio geral, facultando a reparação dos danos por quem tirou proveito do acto ou contribuiu para o estado de necessidade.
Deverá, pois, ter lugar a reparação de lesões de direitos de particulares sacrificados em consequência de conflitos de interesses se o lesado não teve intervenção como causador da situação de conflito.


Relativamente ao alegado conflito de deveres decorrente dos de respeitar os direitos de personalidade dos Recorridos, por um lado, e as “ordens governamentais que determinaram a laboração ininterrupta, por outro, para além do que já se deixou referido, designadamente em alusão à colisão de interesses e ao regime e efeitos do estado de necessidade, em apreciação dos mesmos pressupostos de facto, dir-se-á, agora com o acórdão recorrido, que não está demonstrado que o cumprimento dos dois deveres fosse incompatível ou, pelo menos, absolutamente incompatível, sendo certo que as Recorridas, no procedimento cautelar, chegaram a acordar a suspensão dos trabalhos à superfície, entre a meia noite e as oito horas, mas o cumprimento do acordado não se prolongou sequer por mais de quinze dias.
Quer dizer, acrescentamos nós, está demonstrado que o interesse público determinou a decisão de actividade ininterrupta, ao menos após a prolação do Despacho Governamental, mas não que dessa continuidade dos trabalhos fosse indissociável, como consequência directa e necessária, o nível de ruído produzido e de poeiras libertadas nos termos em que os mesmos efectivamente se produziram, tudo de forma a que a prossecução tivesse lugar com ofensa de direitos.


Pode aceitar-se que não havia alternativa para a ininterruptibilidade dos trabalhos, em razão do tempo disponível para a sua execução, que a laboração contínua se justificava e era exigida, mas não se oferece justificação para a produção das ofensas durante o período normalmente utilizado para repouso, designadamente o de oito horas que fora acordado na transacção, nem para a eventual possibilidade de utilização de máquinas ou ferramentas menos poluidoras ou de, mediante adequados meios de protecção, mitigar ou conter os ruídos e a libertação das poeiras.

Assim, indemonstrada a vinculação das Recorrentes, uma como dona da obra e a outra como empreiteira, à adopção da conduta necessariamente produtora das concretas lesões que acabou por produzir, não sai legitimada a invocação da situação conflituante.


Presente, pois, por não excluída a ilicitude na actuação das Rés.




3. 3. 2. 3. – Culpa. Exclusão.

A Recorrente “Metropolitano de Lisboa” alega que a sua conduta não é passível de ser alvo de um juízo de censura, por ter agido ao abrigo de uma ordem da autoridade, sob pressão de a obra estar concluída a tempo, perante uma colisão de direitos e a concretização do interesse público.
Não é, por tudo isso, culposa.

A culpa consiste na censurabilidade ou reprovabilidade de um comportamento ilícito do agente, de sorte que se deve dizer que age com culpa quem adopta uma conduta que deveria ter evitado.
Acolhendo a nossa lei um critério de apreciação da culpa em abstracto – art. 487º-2 C. Civil -, o juízo de culpabilidade faz apelo à comparação da conduta do autor do acto ilícito com o comportamento que, nas circunstâncias concretas do caso, teria adoptado um sujeito normalmente prudente e diligente, dotado de inteligência e conhecimento normais, designadamente se este indivíduo teria podido prever ou evitar o evento causador do dano.

Ora, perante as considerações que se foram deixando a propósito da questão da exclusão da ilicitude, mormente no tocante à sub-questão do conflito de deveres, para as quais se remete, não pode deixar de concluir-se senão pela censurabilidade do comportamento da Recorrente.

A Ré podia e deveria ter agido de forma diferente, desde logo em cumprimento do contrato que outorgou com os Autores em Julho de 1997, no âmbito da providência cautelar, acordo que foi desrespeitado logo 15 dias depois, prolongando-se o incumprimento por mais cerca de um ano.
Relativamente a este período de tempo, a actuação culposa, para além de mais grave, nem sequer necessitaria de ser demonstrada, pois que, entroncado em ilícito de natureza obrigacional, cai no campo da presunção, não ilidida, do art. 799º-1 C Civil.

Mais uma nota, tão só para dizer que não se percebe a invocação da não impugnação pelos AA. do despacho do Senhor Secretário de Estado, com data de Novembro de 1996, e de cujo conteúdo, conhecido ou não dos AA., não se mostra que fosse dedutível a ofensa dos seus direitos. De resto, a demonstrar a inocuidade estará, uma vez mais, o conteúdo do acordo que veio a ter lugar em Julho de 1997, a que acresce a circunstância de, desde Fevereiro de 1996 (e não apenas após o Despacho) as obras terem passado a realizar-se 24 horas por dia (facto 15).

Presente, pois, o requisito culpa.



3. 3. 2. 4. – Nexo de causalidade.

A mesma Ré “Metropolitano” defende ainda não se verificar a existência de um nexo de causalidade entre a conduta da Ré e os alegados danos sofridos pelos Autores, na medida em que a sua conduta não criou uma situação de risco proibido, nem gerou, efectivamente, a produção dos danos.

Quanto a este ponto confessa-se a dificuldade em perceber a posição sustentada pela Ré.

Na verdade, a Ré era a dona da obra, certamente saberia quando deveria estar concluída, e, também se sabe, foi quem, no seguimento ou não do Despacho Governamental, deu as ordens ou instruções à empreiteira de cuja execução ou cumprimento, como vem provado, resultaram os danos.
Isto vem definitivamente assente das Instâncias, traduzido no conteúdo dos factos 3º, 9º, 55º, 57º, 80º e 90º.
Não foi, tão só, a autora material dos factos que geraram as ofensas, ponto que não tem que ver com o específico requisito da causalidade, mas com a eventual imputação dos factos.


A Ré parece pôr em causa a causalidade na sua vertente material ou naturalística que vem adquirida das Instâncias.
Nessa medida, a questão encerra pura matéria de facto, donde que a sua apreciação esteja subtraída à apreciação deste Tribunal que, em regra, apenas conhece de matéria de direito (arts. 721º e 722º CPC).

Colocada, porém, para além da sua vertente material ou naturalística, isto é, na perspectiva da valoração normativa da adequação entre a causa e o dano, a questão suscitada é, como é jurisprudência constante, cognoscível pelo STJ.
O objecto do recurso, apesar de se apresentar com contornos pouco definidos, reporta-se, pelo menos em parte, a esta segunda vertente e, nessa medida, será também objecto de apreciação.


A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que provavelmente não teriam ocorrido se não fosse a lesão – art. 563º C. Civ..
É pacífico que o nosso sistema jurídico acolheu a doutrina da causalidade adequada, a qual não pressupõe a exclusividade de uma causa ou condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano.
Por outro lado, o nexo de causalidade que se exige apresenta-se, a um tempo, como pressuposto da responsabilidade e como medida da obrigação de indemnizar.
O referido conceito legal comporta qualquer das formulações da dita teoria – formulação positiva ou negativa -, sendo que, provindo a lesão de facto ilícito (contratual ou extracontratual), se vem entendendo por acolhida a sua formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum se mostra indiferente para a verificação do dano, não modificando o “círculo de riscos” da sua verificação, tudo sem perder de vista que a causalidade adequada “não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano” no âmbito da aptidão geral ou abstracta desse facto para produzir o dano (vd. A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, I, 9ª ed., 925; R. ALARCÃO, “Obrigações – Lições, 1983”, 283).

Hão-de ser, deste modo, as circunstâncias a definir a adequação da causa, mas sem perder de vista que para a produção do dano pode ter havido a colaboração de outros factos, contemporâneos ou não, e que a causalidade não tem de ser necessariamente directa e imediata, bastando que a acção condicionante desencadeie outra condição que, directamente, suscite o dano – causalidade indirecta.

Assim entendido o nexo de causalidade, resta, por referência ao referido juízo de "prognose posterior objectivo" formulado a partir das enunciadas circunstâncias efectivamente conhecidas e cognoscíveis de um observador experimentado, retirar a pertinente conclusão.

E esta só pode ser no sentido da sua verificação tendo presente a actuação da Recorrente, como dona da obra e autora das ordens e instruções dadas à sua co-Ré em cujo âmbito de execução se produziram as ofensas geradoras dos danos, os quais, por sua vez, são resultado previsível, normal e típico dos comportamentos adoptados.




3. 3. 2. 5. – Os danos e os montantes indemnizatórios.

Finalmente, as Rés insurgem-se contra a verificação dos danos e contra os montantes indemnizatórios arbitrados a cada um dos Autores, por insuficiência de factos concretizadores da respectiva repercussão na esfera jurídica de cada um, que também consideram exorbitantes e “inusitados” (R. Metropolitano), invocando menor ponderação de elementos como a sensibilidade, sofrimento e situação económica dos lesados, grau de culpa do agente, interesse público da obra e vantagens dela retirada pelos lesados.
Propõe, que cada uma das indemnizações seja fixada em montante nunca superior a 10.000,00€.


Os Recorridos suscitaram a questão da impossibilidade de conhecimento da questão dos montantes indemnizatórios, por não colocada perante a Relação, defende a razoabilidade do decidido na 1ª Instância.



3. 3. 2. 5. 1. – Conhecimento da matéria relativa ao “quantum indemnizatório”.

Sobre a questão prévia cabe dizer que, como bem referem os Recorridos, sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados no tribunal recorrido), ou seja, visando os recursos apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido (confirmando-as, revogando-as ou anulando-as) e não criar decisões sobre matéria nova, salvo em sede de matéria indisponível, a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo Tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo Tribunal ad quem (art. 676º CPC; cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, “Estudos ...”, 395 e ss.; AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos ...”, 138).

A decisão recorrida é, agora, o acórdão da Relação.

Por isso, só as questões suscitadas perante a 2ª Instância podem agora ser objecto de (re)apreciação.

Nas conclusões do recurso de apelação, as Recorrentes impugnaram a condenação sobre as indemnizações nos seguintes termos; “Os factos alegados e dados como provados não se mostram suficientes para concretizar a repercussão que os mesmos produziram na esfera jurídica de cada A., o que impossibilita a fixação de uma indemnização justa e equitativa”.

A nosso ver está-se perante uma situação de limite em que ressalta a invocação da impossibilidade de atribuir uma qualquer compensação, qualquer que seja a quantidade, por os factos provados não permitirem a respectiva concretização e invidualização, mas que também permitiria a interpretação segundo a qual, perante o entendimento de os factos serem suficientes para a atribuição das indemnizações, como – tendo em conta o seu grau mais ou menos «genérico» ou mais ou menos «específico» - sucedeu, serem, apesar disso, considerados insuficientes para fundar os quanta encontrados e, consequentemente, determinantes da respectiva em conformidade com a “suficiência” factual.
As questões estariam, ainda que tacitamente, numa relação de subsidiariedade.

Entende-se, assim, nesta interpretação mais favorável, princípio a seguir em matéria de recursos, não estar vedada a apreciação da questão dos montantes indemnizatórios, na medida em que não é líquido estar a impor-se a Tribunal de revista proferir uma decisão sobre matéria nova, o que, isso sim, o regime jurídico de recursos não permite.



3. 3. 2. 5. 2. - Os montantes compensatórios. Excesso.

A indemnização por danos não patrimoniais destina-se a, na medida do possível, proporcionar ao lesado uma compensação que lhe permita satisfazer necessidades consumistas que constituam um lenitivo para o mal sofrido.
Deverá, ela, abranger as consequências passadas e futuras resultantes das lesões emergentes do evento danoso –art. 496º-1 C. Civ..
Trata-se, num e noutro caso de prejuízos de natureza infungível, em que, por isso, não é possível uma reintegração por equivalente.

Na Jurisprudência, como vem salientado, vem sendo acentuada a ideia de que tais compensações devem ter um alcance significativo, e não meramente simbólico.

O critério legal de fixação é o recurso à equidade (arts. 496º e 494º do referido diploma).

A lei não define nem enuncia os elementos a atender, pois que se queda por um conceito, também ele aberto ou indeterminado de “gravidade merecedora da tutela do direito”, a ser, a um tempo, medida da ressarcibilidade do dano e do respectivo quantum.
Hão-de sempre ponderar-se a gravidade do dano, a culpabilidade do lesante, a situação económica do lesado e do responsável, e, em geral, as regras de prudência e bom senso, sem desprezar a prática jurisprudencial perante situações idênticas ou análogas.

Ora, todos esses elementos foram devidamente convocados e ponderados na bem elaborada sentença em vista da fixação das quantias compensatórias que o acórdão impugnado manteve, no seu necessário confronto com a factualidade provada que especificamente convoca e põe em relevo (fls. 595 e 596).


Essa factualidade, assentando num tronco comum a todos os AA. revela ainda alguns danos sofridos apenas por alguns dos deles, a justificar, como seria expectável, as diferenças dos montantes compensatórios.
Está-se, mesmo se considerado apenas o referido núcleo comum dos danos – a perturbação do sono e repouso durante a noite, por mais de dois anos -, perante sofrimentos provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, cuja gravidade tem de aferir-se segundo um padrão objectivo, e não á luz de factores subjectivos.
Como vem sendo entendido, dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excepcional”, mas também aquele que “sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação”.

Crê-se, à luz deste critério, resultar indubitável que a factualidade provada dá suficiente suporte à existência dos danos e ao necessário juízo de gravidade para fins compensatórios.


De notar, quanto ao quantum, que o intenso ruído nocturno se prolongou por oitocentos dias com os reflexos no trabalho, estado psíquico e saúde dos Autores que os factos 14 a 22, 26, 27, 31 e 45 a 47 reflectem.
Além dessas consequências de natureza comum a todos os AA., suportou especificamente cada um deles as sequelas de que dão conta os factos 23 a 30).

O grau de culpa das Rés, tendo presentes as vicissitudes do seu comportamento revelador de absoluta indiferença e de desrespeito pelos compromissos assumidos, mormente após a decisão que pôs termo à acção cautelar, não é de molde a mitigar a sua responsabilidade, com consequências na redução das compensações que vêm arbitradas. Igualmente o não são o interesse público da obra ou as alegadas ordens expressas do Governo, tudo porque, como atrás dito, ou não justifica a actuação verificada ou a privação da indemnização pelos danos sofridos ou não está demonstrado.
Resta referir que, contrariamente ao alegado, na fixação das indemnizações foi ponderada a vantagem patrimonial decorrente da colocação de vidros duplos nas fracções dos Autores (cfr. fls. 596, in fine). De qualquer modo desconhece-se o valor do melhoramento, elemento necessário à consideração da sua eventual repercussão nas indemnizações.

Quanto à prática jurisprudencial reportada a esta espécie de danos remete-se, por exemplo, para o decidido nos recentes acórdãos de 02/7/2009 (oito mil euros por perturbação do sono e repouso durante menos de seis meses), de 13/9/2007 (dez mil euros por factos semelhantes aos destes autos durante seis meses), o que, proporcionalmente ao tempo de permanência do dano em causa neste processo representa compensações bem mais elevadas.


Respeitado como se mostra, pelas Instâncias, o critério legal, densificado pelos enunciados elementos pertinentes, no cotejo com as concretas circunstâncias do caso, não se encontra fundamento relevante para alterar os montantes da compensação encontrados, que não se apresentam como excessivos.

São, consequentemente, de manter as quantias que vêm fixadas.





4. Decisão.

Em conformidade com o exposto, acorda-se em:

- Julgar improcedentes ambas as revistas.

- Manter o decidido no acórdão impugnado; e,

- Condenar as Recorrentes nas custas devidas pelos respectivos recursos.



Supremo Tribunal de Justiça,

Lisboa, 19 Outubro 2010.

Alves Velho (Relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias