Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
878/23.0T8FAR.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
JULGAMENTO
ABERTURA DA INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 03/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :
Quando a prisão preventiva do requerente foi ordenada pelo Juiz de Instrução, o requerente foi acusado da prática de crime que admite essa medida de coação e a procedência do recurso do arguido que impugnou o despacho que lhe indeferiu o pedido de abertura de instrução ocorreu quando os correspondentes autos de processo crime já se encontravam na fase de julgamento, são os prazos de prisão preventiva previstos para tal fase processual que têm de ser, quanto a ele, considerados e que, nessa medida, ao não se mostrarem ultrapassados no caso concreto, determinam que o pedido de habeas corpus seja negado, por falta de fundamento legal.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 878/23.0T8FAR.S1


Habeas Corpus


Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça


I - PEDIDO


AA, apresentou pedido de habeas corpus com os seguintes fundamentos (transcrição total):


«1.º - O arguido foi detido no âmbito dos presentes autos, em 23 de novembro de 2021 e, após primeiro interrogatório judicial, o qual se realizou nos dias 24 e 25 de novembro de 2021, foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva.


2.º - No final do inquérito, em 19 de maio de 2022, foi deduzida acusação contra o arguido (e outros) imputando-se-lhe a prática, em coautoria material, na forma consumada de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro.


3.º - Foi depois, a 29 de maio de 2022, requerida a abertura da instrução por diversos arguidos, nomeadamente, pelo ora arguido.


4.º - Foi proferido, então, Despacho a 11/07/2022, que não admitiu o RAI apresentado pelo arguido, nem qualquer outro.


5.º - Desse despacho recorreu o ora arguido para o Tribunal da Relação de Évora.


6.º - Entretanto, foram distribuídos os autos ao Juízo Central Criminal de ..., não tendo sido realizada qualquer sessão de julgamento.


7.º - Foi proferido, então, acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora, a 22 de novembro de 2022, a revogar o despacho que não admitiu o requerimento de abertura de instrução [RAI] apresentado pelo arguido, determinando que o mesmo seja notificado para no prazo fixado para o efeito, vir juntar o original daquele RAI.


8.º - Pelo que foi decidido a separação dos processos, e o processo do ora arguido, após separação, remetido para a fase de instrução, sem que se tenha iniciado o julgamento enquanto o mesmo esteve na fase de julgamento.


9.º - O arguido remeteu o original do seu RAI.


10.º - E foi proferido, nessa sequência, despacho que declarou aberta a fase de instrução.


11.º - O processo está, neste momento, na fase da instrução, aguardando-se a realização do debate instrutório.


12.º - Desde 25 de novembro de 2021 até à presente data - 12/93/2022 - o arguido tem estado sujeito, ininterruptamente, à medida de coação de prisão preventiva.


13.º - Daí que, voltando os autos à fase de instrução, forçoso é considerar-se que, nomeadamente para efeitos de contagem de prazo máximo de duração da prisão preventiva, os autos deixaram de estar na fase processual da audiência de julgamento, tudo se passando de acordo com as regras que, a esse respeito, a lei prevê para a fase da instrução.


14.º - Assim sendo, importa agora verificar se se encontra ou não ultrapassado o prazo de duração máxima da prisão preventiva previsto na lei, tendo em conta a fase processual em que os presentes autos se encontram.


15.º - Atento o crime imputado ao arguido, forçoso é considerar que os prazos máximos da duração da prisão preventiva, no caso presente, são os previstos no n.º 2, do art.º 215.º, do CPP.


16.º - Encontrando-se os autos, indubitavelmente, na fase da instrução “a prisão preventiva extingue-se quando desde o seu início, tiverem decorrido” 10 (dez) meses “sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida a decisão instrutória” - cf. art.º 215.º, n.º 2, por referência ao n.º 1, al. b), do mesmo preceito legal, do CPP.


17.º - Não tendo sido ainda proferida decisão instrutória, e encontrando-se o arguido sujeito a prisão preventiva desde o dia 25 de novembro de 2021 e estando nós hoje a 12 de março de 2023 dúvidas não restam que o prazo de 10 (dez) meses acima mencionado ocorreu a 20 de setembro de 2022.


18.º - Por esse motivo, o prazo máximo de prisão preventiva relativo ao arguido ora requerente encontra-se claramente excedido.


19.º - O arguido ora requerente deve, por esse motivo, ser restituído à liberdade de imediato.


20.º - Manter-se o arguido em prisão preventiva para além do prazo fixado no art.º 215.º, n.º 2, por referência ao seu n.º 1, al. b), do CPP, em clara violação do aí determinado, e sendo indubitável, por isso, a ilegalidade da prisão preventiva, pelo que se requer a sua libertação imediata.


Em Conclusão:


1. Em 25 de novembro de 2021 por decisão proferida em 1.º interrogatório judicial de arguido detido foi aplicada medida de coação de prisão preventiva ao Requerente por se entender verificada factualidade que fortemente indicia a prática de crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21.º da Lei de Combate à droga, crime que comporta moldura penal de máximo superior a 8 anos.


2. Na presente data, volvidos 1 ano e 6 meses desde a aplicação da medida de coação não foi proferida ainda proferida decisão instrutória, encontrando-se o processo a aguardar a realização do debate instrutório, encontrando-se assim excedido o prazo de duração máxima de prisão preventiva nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 215.º do CPP.


3. O Requerente encontra-se ilegalmente preso nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222.º n.º 2 al. c), encontrando-se violados os normativos dos artigos 27.º e 28.º n.º 4 da CRP e nos artigos 215.º n.º 1 al. a) e n.º 2 e 217.º do CPP.


4. Termos em que deverá a prisão ser declarada ilegal e ordenada a sua libertação nos termos previstos no artigo 31.º n.º 3 da CRP e dos artigos 222.º e 223.º n.º 4 al. d) do CPP.


Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá ser declarada ilegal a prisão preventiva e ordenada a libertação imediata do Requerente AA.


Assim decidindo farão V. Exas. JUSTIÇA!».


II – INFORMAÇÃO


2. Foi prestada a informação de acordo com o disposto no art.º 223.º, número 1, do Código de Processo Penal, nos seguintes termos (transcrição parcial):

«Veio o arguido AA requerer Petição de Habeas Corpus por prisão ilegal.

Nos termos do disposto no art.º 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, informa-se o Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do seguinte:

O arguido AA foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva por despacho proferido em 25/11/2021, no âmbito de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por indícios fortes da prática, como autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01 e existência de forte perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de fuga e de perturbação do inquérito – fls. 2442 a 2484.

No dia 29/12/2021 foi proferido despacho a admitir o recurso apresentado pelo arguido AA relativamente ao despacho de aplicação da medida de coação de prisão preventiva – referência n.º ...2 e fls. 2725.

No dia 05/04/2022 foi proferido Acórdão pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora a negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.

Por despacho de 22/02/2022 foi realizado o reexame trimestral da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA – referência n.º ...9 e fls. 2853.

No dia 19/05/2022 foi deduzida acusação pública pelo Ministério Público – referência n.º ...9 e fls. 3265 a 3284.

No dia 20/05/2022 foi realizado o reexame da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA em virtude da dedução da acusação – referência n.º ...2 e fls. 3303.

No dia 11/07/2022 foi proferido despacho a rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido AA e a remeter os autos à distribuição para julgamento ao Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Criminal de ... – referência n.º ...0 e fls. 3465 a 3471.

Os autos foram distribuídos ao Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Criminal de ... – J..., tendo sido proferido, no dia 15/07/2022, despacho de recebimento da acusação e foi realizado o reexame da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA – referência n.º ...0 e fls. 3472 a 3475.

No dia 22/08/2022 foi proferido despacho a admitir o recurso interposto pelo arguido AA relativamente ao despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido – referência n.º ...4.

No dia 13/10/2022 foi realizado o reexame trimestral da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA – referência n.º ...0.

No dia 22/11/2022 foi proferido Acórdão pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora revogando o despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido AA, determinando a substituição por outro que fixasse um prazo para que o arguido apresentasse os originais daquele requerimento – fls. 3510 a 3521.

No dia 13/01/2023 foi realizado o reexame trimestral da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA – referência n.º ...0.

No dia 18/01/2023 foi proferido despacho a determinar a cessação de conexão com relação ao arguido AA, determinando que seja instruído processo autónomo e remetido à instrução juntamente com o arguido BB, e bem assim a apreciar o requerimento para libertação imediata apresentado pelo arguido AA, que foi indeferido, tendo por base que tendo os autos sido remetidos à distribuição para julgamento, o prazo máximo da prisão preventiva é o previsto para o caso de não existir condenação em 1.ª instância – 25/05/2023, e não o referente à fase de instrução, apesar do regresso posterior à fase de instrução – referência n.º ...3 e fls. 3522 a 3524.

No dia 27/01/2023 foi proferido despacho a indicar os documentos a instruir o processo autónomo – referência n.º ...1.

No dia 01/02/2023 o novo processo autónomo foi distribuído ao presente Juízo de Instrução Criminal – proc. n.º 390/2...

No dia 02/02/2023 foi proferido despacho a solicitar, ao processo n.º 10/2..., certidão do Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora e do despacho que determinou a separação de processos, de modo a dar cumprimento àquele – referência n.º ...0 e fls. 3505.

No dia 08/02/2023 foi proferido despacho a convidar o arguido AA a juntar os originais do requerimento de abertura de instrução – referência n.º ...1 e fls. 3525.

No dia 28/02/2023 foi proferido despacho a declarar aberta da fase de instrução e designar o dia 23/03/2023 para realização de debate instrutório – referência n.º ...1 e fls. 3543.

No dia 09/03/2023 foi proferido despacho a indeferir o adiamento do debate instrutório – referência n.º ...1 e fls. 3547.

No dia 12/03/2023 deu entrada o presente Habeas Corpus.

Encontram-se, assim, os autos a aguardar a data designada para realização de debate instrutório, encontrando-se o arguido AA sujeito à medida de coação de prisão preventiva, entendendo-se que o prazo de prisão preventiva só será atingido no dia 25/05/2023, motivo pelo qual não foi determinada a libertação do arguido.»

III - FUNDAMENTAÇÃO


3. Questão a decidir: a ilegalidade da manutenção da prisão preventiva do requerente, com fundamento na ultrapassagem do prazo máximo previsto na alínea b) do número 1 e número 2 do artigo 215.º do CPP, face à procedência do recurso que o mesmo interpôs para o Tribunal da Relação de Évora do despacho judicial que indeferiu o seu pedido de abertura de instrução e à separação do seu processo do processo principal respeitante a ele e aos demais quatro arguidos e que estava na fase de julgamento, para efeitos de abertura da pretendida instrução, que ainda estava a decorrer à data da entrada em juízo deste pedido de habeas corpus.



*




4. O circunstancialismo factual relevante para o julgamento do pedido resulta da petição de habeas corpus, da informação e da certidão que acompanha o processo e é o seguinte:


4.1. - O arguido foi detido no âmbito dos presentes autos, em 23 de novembro de 2021 e, após primeiro interrogatório judicial, o qual se realizou nos dias 24 e 25 de novembro de 2021, foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva.


4.2. - No final do inquérito, em 19 de maio de 2022, foi deduzida acusação contra o arguido (e outros) imputando-se-lhe a prática, em coautoria material, na forma consumada de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21.°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro.


4.3. - Foi depois, a 29 de maio de 2022, requerida a abertura da instrução por diversos arguidos, nomeadamente, pelo ora arguido.


4.4. - Foi proferido, então, despacho judicial no dia 11/07/2022, que não admitiu o requerimento da abertura da instrução [RAI] apresentado pelo arguido, nem qualquer outro.


4.5. - Desse despacho recorreu o ora arguido para o Tribunal da Relação de Évora.


4.6. - Entretanto, foram distribuídos os autos ao Juízo Central Criminal de ..., não tendo sido realizada qualquer sessão de julgamento.


4.7. - Foi proferido, então, acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora, a 22 de novembro de 2022, a revogar o despacho que não admitiu o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, determinando que o mesmo seja notificado para no prazo fixado para o efeito, vir juntar o original daquele RAI.


4.8. - Pelo que foi decidida a separação dos processos, e o processo do ora arguido, após separação, remetido para a fase de instrução, sem que se tenha iniciado o julgamento enquanto o mesmo esteve na fase de julgamento.


4.9 - O arguido remeteu o original do seu RAI.


4.10. - E foi proferido, nessa sequência, despacho que declarou aberta a fase de instrução.


4.11. - O processo está, neste momento, na fase da instrução, aguardando-se a realização do debate instrutório.


4.12. - Desde 25 de novembro de 2021 até à presente data - 12/03/2022 - o arguido tem estado sujeito, ininterruptamente, à medida de coação de prisão preventiva.».



*




5. O Direito.


5.1. O pedido de habeas corpus é um meio, procedimento, de afirmação e garantia do direito à liberdade (arts. 27.º e 31.º, CRP), uma providência expedita e excecional – a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória, art.º 31.º/3, CRP – para fazer cessar privações da liberdade ilegais, isto é, não fundadas na lei, sendo a ilegalidade da prisão verificável a partir dos factos documentados no processo.


5.2. Enquanto nas palavras do legislador do Decreto-lei n.º 35 043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus é um remédio excecional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», hoje, e mais nitidamente após as alterações de 2007 ao Código de Processo Penal, com o acrescento do n.º 2 ao art.º 219.º, CPP, o instituto não deixou de ser um remédio excecional, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso.


5.3 O seguinte Aresto deste Supremo Tribunal de Justiça espelha precisamente essa coexistência [de alguma maneira excludente] entre os normais meios de reação às decisões judiciais e este instituto excecional do habeas corpus, atentos os fins distintos perseguidos por uns e outro:


- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/10/2021, Processo n.º 29/20.2PJLRS-C.S1, Relator: Eduardo Loureiro, publicado em ECLI:PT:STJ:2021:29.20.2PJLRS.C.S1.35, com o seguinte Sumário:


I. O habeas corpus, que visa reagir contra o abuso de poder por prisão ou detenção ilegal, constitui não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de ação autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação ilegal de privação de liberdade.


II. Concretizando-se o abuso de poder em prisão ilegal, há-de a ilegalidade resultar – art.º 222.º, n.º 2 do CPP – ou de a prisão ter sido efetuada por entidade incompetente – al.ª a) –, ou de ser motivada por facto por que a lei a não permite – al.ª b) – ou de se manter para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - al.ª c).


III. A ilegalidade fundante da providência haverá de ser evidente, um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais ou à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo.


IV. O habeas corpus não é o meio próprio para impugnar as decisões processuais ou de arguir nulidades e irregularidades eventualmente cometidas no processo, decisões essas cujo meio adequado de impugnação é o recurso ordinário.


5.4. Quanto ao pedido de habeas corpus por prisão ilegal, dispõe o art.º 222.º CPP:


«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.


2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:


a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;


b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou


c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».


Constata-se, desde logo e em primeiro lugar, que o requerente se encontra numa situação de prisão preventiva desde o dia 25 de novembro de 2021 por força de despacho judicial proferido no final do primeiro interrogatório de arguido detido que foi realizado pela autoridade judiciária legalmente competente para o efeito.


O aqui requerente acha-se, por outro lado, acusado da prática de um crime, em coautoria material, na forma consumada, de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21.°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro numa pena de prisão de 4 a 12 anos de prisão, o que, face ao estatuído no art.º 202.º, número 1, alínea a) e ao preenchimento dos requisitos previstos no número 1 do artigo 204.º, ambos do Código de Processo Penal, legitima a medida de coação privativa de liberdade que foi aplicada ao arguido dos autos.


Interessa chamar finalmente à colação o disposto art.º 215.º do mesmo diploma legal, quando determina os prazos máximos de prisão preventiva, em função das fases do processo, do tipo de crimes imputados e da complexidade dos autos e tudo sem prejuízo das causas de suspensão dos mesmos, sendo que para um cenário substantivo e adjetivo como o apresentado nos autos, tais prazos máximos de prisão preventiva são os seguintes [números 1 e 2 do citado dispositivo legal]:


- 6 meses sem que tenha sido deduzida acusação;


- 10 meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;


- 1 ano e 6 meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;


- 2 anos sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.


5.5. Chegados aqui e sendo o excesso do prazo de prisão preventiva que constitui o fundamento deste habeas corpus, haverá que recordar, muito sumariamente, o que de particular ocorreu nos autos principais de processo crime, onde foram cinco arguidos acusados do referido crime de tráfico de estupefacientes.


Verifica-se que, tendo quatro desses arguidos requerido a abertura da instrução, viram os correspondentes pedidos ser indeferidos, vindo um deles a conformar-se com tal despacho e outros três a recorrer do mesmo, tendo um sido julgado improcedente e os outros dois considerados procedentes [designadamente, o do aqui requerente] por acórdãos do Tribunal da Relação de Évora.


A referida ação criminal face a tal indeferimento dos quatro pedidos instrutórios e ao efeito meramente devolutivo dos recursos interpostos [cf. artigos 310.º e 408.º do CPP] passou, de imediato, para a fase de julgamento, com a proferição do despacho previsto nos artigos 311.º e 312.º do CPP e desenvolvimento das demais diligências, ainda que sem se ter iniciado a Audiência de Discussão e Julgamento.


É durante o decorrer de tal fase de julgamento que o Tribunal da Relação de Évora [embora com um Voto de Vencido] acolhe a argumentação desenvolvida pelo aqui requerente AA no recurso por si interposto e, nessa medida, permite a abertura da instrução por parte deste arguido, assim como impõe ao tribunal da 1.ª instância a inerente separação de processos, para tal efeito.


O requerente sustenta que, devido a tal «retrocesso» adjetivo da fase de julgamento para a fase de instrução, que ocorreu nos seus autos, com a correspondente modificação do seu estatuto processual, terá de ser o prazo máximo de 10 meses o aplicável à prisão preventiva que lhe foi decretada e que, nessa medida, se mostra largamente ultrapassado, até porque não houve ainda lugar à prolação de qualquer decisão instrutória.


Será, de facto, assim?


6. Entendemos que não, pois os autos em que o aqui requerente, conjuntamente com os demais 4 arguidos, foram acusados, encontravam-se já em fase de julgamento - e não em fase de instrução, que por força do indeferimento dos quatro pedidos entretanto formulados, nunca chegou a existir processualmente -, quando da procedência do mencionado recurso interposto pelo primeiro, tendo, nessa medida, que se considerar que não é o prazo máximo de prisão preventiva previsto para a fase de instrução mas sim para a subsequente fase de julgamento que tem de ser aqui ponderado, o que significa que será o prazo de 1 ano e 6 meses, previsto nos números 1, alínea c) e 2 do artigo 215.º do CPP, que terá de ser aplicado à situação do requerente, o que implica que, tendo o arguido sido preso preventivamente no dia 25 de novembro de 2021, o aludido prazo de 1 ano e 6 meses terminará apenas no dia 25 de maio de 2023.


6.1. Importará ouvir, acerca desta problemática, o que nos dizem o seguintes três Arestos do Supremo Tribunal de Justiça [sublinhados a negrito da nossa responsabilidade]:


- Acórdão de 11/07/2019, Processo n.º 20/16.3GGVNG-I.S1, Relator: Lopes da Mota, publicado em ECLI:PT:STJ:2019:20.16.3GGVNG.I.S1.F2, com o seguinte Sumário:


I. O habeas corpus, constitucionalmente consagrado como direito fundamental contra o abuso de poder, traduz-se processualmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegais, independente do direito ao recurso enquanto garantia do direito de defesa em processo penal (artigos 31.º e 32.º, n.º 1, da Constituição), sendo uma garantia privilegiada do direito à liberdade garantido nos artigos 27.º e 28.º da lei fundamental.


II. No âmbito da providência de habeas corpus, o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode e deve verificar se a prisão resultou de uma decisão judicial, se a privação da liberdade foi motivada pela prática de um facto que a admite e se foram respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (artigo 222.º, n.º 2, do CPP).


III. As decisões relativas à aplicação e reexame da prisão preventiva podem ser impugnadas por via de recurso, nos termos gerais (artigos 219.º e 399.º e segs. do CPP), sem prejuízo de recurso à providência de habeas corpus por virtude de prisão ilegal, com os fundamentos enumerados no n.º 2 do artigo 222.º do CPP, nomeadamente por a prisão se manter para além dos prazos previstos na lei (artigo 215.º do CPP), findos os quais se extingue.


IV. Estando o arguido acusado da prática de crimes de tráfico de estupefacientes agravado e de branqueamento, que constituem formas de «criminalidade altamente organizada», na definição do artigo 1.º, al. m), do CPP, e tendo o processo sido declarado de especial complexidade, os prazos máximos de prisão preventiva são de 1 ano sem que tenha sido deduzida acusação, 1 ano e 4 meses até que seja proferida decisão instrutória e de 2 anos e 6 meses até que seja proferida decisão de condenação em 1.ª instância [artigo 215.º, n.º 1, al. a), b) e c), n.º 2 e n.º 3, do CPP.].


V. Interposto recurso de despacho que não admitiu o requerimento de abertura de instrução, por extemporâneo, de um dos coarguidos e proferido acórdão pelo tribunal da Relação que mandou apreciar tal requerimento já depois de designado dia para julgamento de todos os arguidos, este acórdão não retirou validade e eficácia ao despacho de pronúncia dos coarguidos não recorrentes no que diz respeito à determinação do prazo de duração máxima da prisão preventiva decorrente da decisão instrutória em processo de especial complexidade judicialmente declarada.


VI. As questões relativas ao dever de o juiz de instrução retirar da instrução requerida por um arguido as consequências legalmente impostas a todos os arguidos (artigo 307.º, n.º 4, do CPP) e ao facto de o recurso interposto por um dos arguidos aproveitar aos restantes, em caso de comparticipação [artigo 402.º, n.º 2, al. a), do CPP], bem como à decisão de separação de processos para cumprimento do acórdão da Relação, não podem ser discutidas no âmbito da providência de habeas corpus.


VII. Não tendo havido declaração de qualquer nulidade, nem se verificando a existência de qualquer ato processual de que decorra tal efeito ope legis, suscetíveis de interferir no prazo de duração da prisão preventiva legalmente fixado em função da acusação e da decisão instrutória, impõe-se concluir que, para efeitos da alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, a prisão preventiva do arguido não recorrente se mantém atualmente dentro do prazo legalmente previsto, não se verificando, por conseguinte, a situação a que este preceito se refere.


- Acórdão de 16/12/2021, Processo n.º 4/21.0PLLRS-D, Relatora: M. CARMO SILVA DIAS, publicado em ECLI:PT:STJ:2021:4.21.0PLLRS.D.EF, com o seguinte Sumário


I - Tendo sido deduzida acusação pública contra o arguido, entre outros, por crime de violência doméstica (que integra a “criminalidade violenta” prevista no art.º 1.º, al. j) do CPP) e tendo sido rejeitado o RAI, ao Sr. JI apenas lhe restava enviar os autos para a fase de julgamento, tanto mais que, o recurso que viesse a ser interposto, apesar de subir imediatamente e em separado, teria efeito devolutivo (art.º 406, n.º 2, 407, n.º 2, al. h) e 408 a contrario, todos do CPP)


II - A competência para tramitar o recurso interposto do despacho que rejeitou o RAI, não interfere com a remessa imediata pelo JI (após rejeitar o RAI) do inquérito para julgamento em caso como o destes autos, em que havia um arguido preso preventivo e se tratava de processo de natureza urgente e, mesmo que depois, o Juiz do Julgamento viesse a declarar-se incompetente para se pronunciar sobre a admissão desse recurso (por entender que tal incumbiria ao JI), o que teria de fazer era remeter as pertinentes peças para o JI poder ter os elementos necessários para proferir o seu despacho em separado e passar a tramitar o mesmo (não poderia devolver o inquérito que tinha sido bem remetido para julgamento).


III - Sendo rejeitado o RAI, os autos não chegaram a ser autuados como de instrução e, assim, passaram da fase do inquérito para a fase do julgamento, ainda que esteja pendente recurso daquele despacho (não se pode “ficcionar”, como pretende o arguido/peticionante, que os autos estão na fase de instrução ou em fase anterior à da do julgamento, em fase de inquérito).


IV - Se o peticionante deste habeas corpus pretendia discutir qual era o Magistrado competente para admitir o recurso e para o tramitar deveria ter colocado tais questões na 1.ª instância e usar dos meios próprios para o efeito, que não este habeas corpus. De resto, o habeas corpus não serve, nem pode ser utilizado (como bem assinala Maia Costa, “Habeas corpus: passado, presente, futuro”, Julgar, 29, p.243) “como meio para acelerar a tramitação dos recursos penais”.


V - É jurisprudência pacífica deste STJ que o habeas corpus não serve para apreciar irregularidades processuais (designadamente, quando não é observado o prazo de 3 meses aludido no art.º 213.º, n.º 1, al. a), do CPP) ou para questionar o procedimento da 1.ª instância quando reaprecia os pressupostos da prisão preventiva e decide não ouvir o arguido, nem o MP, baseando-se para o efeito no disposto no art.º 213.º, n.º 3, do CPP.


VI - Pelo que se vê do desenrolar do processo, não houve (como alega o peticionante) qualquer abuso de poder dos Magistrados, nem tão pouco, “abuso do poder da função jurisdicional” e, inclusivamente, no despacho em que o juiz do julgamento admitiu o recurso, determinou a subida dos autos de recurso ao TRL, quando estivessem em condições para esse efeito. Não houve, assim, como alegado, retenção intencional do recurso interposto do despacho que indeferiu o RAI, de modo a evitar ou a confirmação da rejeição ou a determinação da abertura da instrução e consequente decisão instrutória.


VII - Encontrando-se o processo formal e materialmente na fase de julgamento, o prazo de duração máxima de prisão preventiva aplicável é de um ano e seis meses, nos termos do art.º 215.º, n.º 1, al. c) e n.º 2, articulado com o art.º 1.º, al. j), ambos do CPP, tendo em atenção os crimes imputados na acusação ao arguido/peticionante deste habeas corpus, o qual foi detido em 25.01.2021, pelo que não se mostra excedido, não se verificando qualquer fundamento para o deferimento deste pedido de habeas corpus.


- Acórdão de 06/07/2022, Processo n.º 707/19.9PBFAR-G.S1, Relator: Ernesto Vaz Pereira, publicado em ECLI:PT:STJ:2022:707.19.9PBFAR.G.S1.A8, com o seguinte Sumário:


I - O prazo de prisão preventiva, embora referenciável a várias fases processuais, é uno.


II - Se o processo já tiver atingido a fase de julgamento, apesar de, entretanto, por via de anterior recurso com efeito devolutivo, ter sido revertido o indeferimento do requerimento de abertura da instrução [para efeito de contagem do prazo máximo de prisão preventiva tem-se em conta a atual fase de julgamento]. [1]


7. Não sofre contestação que em consequência da aplicação da medida de coação de prisão preventiva, alguns direitos fundamentais do requerente foram restringidos. A circunstância de a medida de coação prisão preventiva limitar direitos fundamentais do arguido e poder produzir efeitos que se repercutem na vida de terceiros, não torna, contudo e só por si, a prisão preventiva ilegal. A prisão preventiva é ilegal, para efeitos do deferimento do procedimento de habeas corpus quando é (1) ordenada por entidade incompetente, (2) motivada por facto pelo qual a lei a não permite ou se (3) mantém para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.


Não é o caso dos presentes autos.


8. Em conclusão, ordenada a prisão preventiva pelo Juiz de Instrução e estando o requerente acusado pela prática de crime que admite essa medida de coação, sem que se mostrem ultrapassados os prazos fixados pela lei, improcede necessariamente o pedido de habeas corpus.


IV - DECISÃO


Improcede a providência de habeas corpus apresentada pelo arguido AA, por falta de fundamento legal.


Custas pelo requerente, com taxa de justiça que se fixa em 2 UC – n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa.


Supremo Tribunal de Justiça, 16.03.2023

José Eduardo Sapateiro (Relator)

Helena Moniz

António Gama

Eduardo Loureiro (Presidente)


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1. Cf. também com interesse, este outro Aresto deste mesmo Supremo Tribunal de Justiça, que embora decidindo uma situação distinta da que se nos é apresentada nestes autos de Habeas Corpus, nos aponta, de alguma forma, na mesma direção do que deixámos sustentado na fundamentação deste Acórdão:

2. - Acórdão de 13/02/2014, Processo n.º 319/11.5JDLSB-D.S, relatora: Isabel Pais Martins, votado por unanimidade [“Com declaração de voto” no seguinte sentido: “Concordo com a decisão, mas não subscrevo o entendimento de que a pena relevante para o efeito previsto no n.º 6 do art.º 215.º do CPP é a pena única (…)” – Juiz Conselheiro Manuel Braz], publicado em ECLI:PT:STJ:2014:319.11.5JDLSB.D.S.06, com o seguinte Sumário:

3. I - O art.º 31.º, n.º 1, da CRP, consagra, com carácter de direito fundamental, a providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

4. II - A providência de habeas corpus está reservada aos casos de ilegalidade grosseira porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como são os casos de prisão ordenada por entidade competente, mantida para além dos prazos fixados na lei ou por decisão judicial e como o tem de ser o facto pelo qual a lei a não permite.

5. III - Ela visa reagir, de modo imediato e urgente, contra uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação direta, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação.

6. IV - Em situações de comparticipação criminosa, havendo recurso de algum ou de alguns dos arguidos da decisão condenatória, mas não recurso de outro ou de outros arguidos, o STJ tem entendido que a decisão transita em julgado em relação aos não recorrentes, embora esse caso julgado esteja sujeito a uma condição resolutiva, que se traduz em estender aos não recorrentes a reforma in mellior do decidido.

7. V - Dai que se encontre em cumprimento de pena o condenado que não interpôs recurso da decisão condenatória, tendo-o, no entanto, interposto algum ou todos os restantes coarguidos, em crime em que houve comparticipação de todos eles.

8. VI - Deste modo, como o requerente se encontra em cumprimento de pena, indefere-se a petição de habeas corpus por ele apresentada.↩︎