Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2592/05.9TMSNT.L2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
PRESSUPOSTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/01/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO
Área Temática:
DIREITO ADMINISTRATIVO – EXPROPRIAÇÃO LITIGIOSA / TRAMITAÇÃO DO PROCESSO / ARGUIÇÃO DE IRREGULARIDADES / RECURSO DE ARBITRAGEM.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DECISÕES QUE ADMITEM RECURSO.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª Edição, Almedina, p. 58 e 59;
-Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª Edição, p. 116;
-Ana Fernanda Neves, Âmbito de Jurisdição e Outras Alterações ao ETAF, E-pública revista electrónica de Direito Público, n.º 2, Junho 2014, in http://e-publica.pt/ambitodejurisdicao.html;
-Fernanda Paula Oliveira, Loteamentos Urbanos e Dinâmica das Normas de Planeamento, Almedina, 2009, p. 144 e 145;
-Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes, Fernanda Maçãs, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, 3.ª Edição, Almedina, 2011, p. 287;
-José Carlos Vieira de Andrade, Justiça Administrativa (Lições), 2016, 15.ª Edição, p. 100 e 103 a 113;
-José Eduardo Figueiredo Dias, Fernanda Paula Oliveira, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 2.ª Edição, Almedina, p. 184;
-José Lebre de Freitas, A. Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil, Anotado, 2.ª Edição, Tomo I, Volume 3.º, p. 17;
-Luís Correia de Mendonça, Henrique Antunes, Dos Recursos, 2009, p. 315;
-Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 90 e 91;
-Mariana França Monteiro, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, p. 507 e 508;
-Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2017, 3.ª Edição, p. 43, 161 a 181;
-Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, Edições Lex, 1999, p. 30 a 32.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES (CEXP), APROVADO PELA LEI N.º 168/99, DE 18 DE SETEMBRO: - ARTIGOS 51.º, 54.º E 66.º, N.º 5.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 629.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 26-06-1997, PROCESSO N.º 085676;
- DE 22-10-2009, PROCESSO N.º 900/05.1TBLSD.S1;
- DE 12-01-2010, PROCESSO N.º 1337/07.3TBABT.E1.S1;
- DE 13-07-2010, PROCESSO N.º 4210/06.9TBGMR.S1;
- DE 18-04-2012, PROCESSO N.º 3962/08.6TJCBR.C1-A.S1;
- DE 27-09-2012, PROCESSO N.º 10641/07.0TBMAI.P1.S1;
- DE 18-09-2014, PROCESSO N. 1100/11.7TBCHV-B.P1.S1;
- DE 20-11-2014, PROCESSO N.º 7382/07.1TBVNG.P1.S1;
- DE 20-11-2014, PROCESSO N.º 7382/07.1TBVNG.P1.S1;
- DE 26-03-2015;
- DE 20-05-2015, PROCESSO N.º 321/12.0YHLSB.L1.S1;
- DE 10-12-2015, PROCESSO N.º 83/14.6TVLSB.L1.S1;
- DE 13-09-2016, PROCESSO N.º 671/12.5TBBCL.G1.S1;
- DE 13-10-2016, PROCESSO N.º 30249/14.2YIPRT.G1.S1;
- DE 29-11-2016, PROCESSO N.º 135/14.2T8MDL.G1.S1;
- DE 06-12-2016, PROCESSO N.º 886/15.4T8SXL.L1.S1;
- DE 15-02-2017, PROCESSO N.º 56/13.6TBTMC.G1.S1;
- DE 22-02-2017, PROCESSO N.º 535/09.0TMSNT.L1.S1;
- DE 02-03-2017, PROCESSO N. 1920/13.8TBAMT-A1.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:


- ACÓRDÃO N.º 372/94, IN DR DE 07-09-94;
- ACÓRDÃO N.º 508/94, IN DR DE 13-12-94;
- ACÓRDÃO N.º 347/97, IN DR DE 25-07-97.


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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:


- DE 03-10-1996, PROCESSO N.º 41.403;
- DE 26-02-1997, PROCESSO N.º 41 487;
- DE 02-02-1998, PROCESSO N.º 40247;
- DE 27-02-2003, PROCESSO N.º 285/03;
- DE 05-04-2005, PROCESSO N.º 0100/04;
- DE 25-01-2006, PROCESSO N.º 1127/05;
- DE 12-03-2008, PROCESSO N.º 0620/07,TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 09-02-2010, PROCESSO N.º 2593/05.7TMSNT.L1;
- DE 09-02-2010, PROCESSO N.º 2593/05.7TMSNT.L1;
- DE 12-05-2011, PROCESSO N.º 4860/06.3TMSNT.L1-8.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:


- DE 10-10-2013, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - No processo especial de expropriação por utilidade pública está consagrada a regra da irrecorribilidade do aresto da Relação que “tenha por objecto decisão sobre a fixação da indemnização” (art.º 66º, n.º 5, do Código de 1999, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro.

II - Essa regra de irrecorribilidade é, contudo, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no artigo 629º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.

III - Não se questionando o acto expropriativo, mas tão só o valor da indemnização devida por esse acto, a competência radica nos tribunais judiciais (artigos 51º, 54º e 66º, n.º 5, do Código das Expropriações).

IV - A contradição de julgados equacionada e que releva como conditio da admissibilidade do recurso de revista pressupõe, além de mais, pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito.

V - A questão de direito fundamental só é a mesma, para este efeito, quando a subsunção do mesmo núcleo factual seja idêntica (ou coincidente), mas tenha, em termos de interpretação e aplicação dos preceitos sido feita de modo diverso.

VI - A falta dos fundamentos invocados em ordem a permitir a revista «atípica» deita esta por terra e arrasta, na queda, todas as restantes questões que a recorrente lhe acoplou, de que não há também que conhecer (acessorium sequitur principale).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Relatório

I – A pedido de Cacémpolis, Sociedade Para o Desenvolvimento do Programa Pólis no Cacém, S. A., foi declarada, por despacho do Senhor Secretário de Estado do Ordenamento do Território de 14.07.2003, publicado em DR, II Série, número 191, de 20.08.2003, a utilidade pública da expropriação urgente, entre outras, da parcela de terreno de 676,80 m2 correspondente ao prédio sito na freguesia de Agualva-Cacém, concelho de Sintra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém sob o nº 05…5/20…10 da freguesia de Agualva-Cacém, e inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo nº 1…3 F da mesma freguesia, pertencente a AA e mulher, BB, parcela essa necessária à execução do Plano de Pormenor da Área Central do Cacém, nomeadamente para a construção de infra-estruturas, equipamentos, espaços públicos e edifícios para realojamento.

Efectuada a vistoria “ad perpetuam rei memoriam”, procedeu-se à arbitragem, que atribuiu aos expropriados a indemnização de €515.006,25, correspondente ao valor da parcela, à data da declaração de utilidade pública.

Discordando do laudo arbitral, os expropriados e a expropriante apresentaram recursos, a pugnar pela fixação da indemnização respectivamente em €1.990.670,70 e não mais que €55.775,09.

Foi autorizado o levantamento do montante €55.775,09, correspondente ao valor da indemnização em que existia acordo, e atribuído aos expropriados o montante relativamente ao qual aquele se não verifica - €459.2312,16 – mediante a prévia prestação de garantia bancária de igual valor, que veio a ser efetivada.

Ultimada a avaliação, foram juntas as respostas e relatório respectivos, sendo, num caso, subscritas por dois peritos do tribunal e pelo perito da expropriante, e, no outro, subscritas apenas por um dos peritos do tribunal, separadamente, seguidas de sucessivas reclamações da expropriante e dos expropriados, na sequência do que foi proferido o despacho de folhas 410 a determinar a repetição da avaliação, por não conterem os relatórios apresentados a intervenção do Sr. Perito indicado pelos expropriados.

Inconformada com tal despacho, agravou a expropriante, tendo o recurso sido admitido, com subida diferida e no efeito meramente devolutivo.

Entretanto, foi junto o relatório da nova avaliação, com conclusão subscrita pelo perito indicado pelo expropriado e outra subscrita pelos restantes peritos, “face” a três “cenários”, e correspondentes respostas aos apresentados quesitos, conforme folhas 522-583.

Prestados os esclarecimentos pretendidos e apresentadas as alegações, foi proferida sentença, a folhas 613-628, com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelos expropriados e improcedente o recurso interposto pela entidade expropriante, em consequência do que:

a) Não se aplica a norma do nº 4 do art. 23° do Cód. Expropriações de 1999 com fundamento na sua inconstitucionalidade, designadamente por violação do disposto nos arts. 13° n° 1 e 62° n° 2 da Constituição da República Portuguesa.

b) Fixa-se a indemnização global a atribuir aos expropriados em €630.439,20 (seiscentos e trinta mil quatrocentos e trinta e nove euros e vinte cêntimos);

c) Ao montante indemnizatório fixado em b) acresce a quantia correspondente à respectiva actualização, de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística, desde a data da declaração de utilidade pública da parcela expropriada até à data desta decisão”.

Inconformados, apelaram os expropriados, com tal recurso subindo o agravo retido, tendo a Relação de …, por acórdão de 08-11-2012, decidido negar provimento ao recurso de agravo e anular a sentença recorrida, determinando que os peritos complementassem o relatório pericial por forma a fundamentarem os valores indicados como «valor do mercado», «custo de construção» de «área bruta» e de «área útil» e a justificarem, os peritos maioritários, a utilização do valor de 750 €/m2 no cálculo da indemnização.

Prestados os esclarecimentos e apresentadas as alegações da expropriante, agora o Município de Sintra, e dos expropriados, foi proferida nova sentença que, na parcial procedência do recurso dos expropriados e total improcedência do interposto pela expropriante, fixou a indemnização a atribuir aos expropriados, em €1.260.878,40 (um milhão e duzentos e sessenta mil oitocentos e setenta e oito euros e quarenta cêntimos), sendo o valor actualizado desde a data da publicação da Declaração de Utilidade Pública, até à data da notificação do despacho de atribuição aos expropriados do montante depositado, incidindo daí por diante a actualização sobre a diferença entre o valor fixado na decisão final e o valor cujo levantamento foi autorizado, actualização essa de acordo com o índice de preços do consumidor, com exclusão da habitação, até ao trânsito em julgado da presente decisão.”.

Inconformadas com tal decisão, apelaram ambas as partes e a Relação de … decidiu, na total procedência da apelação dos expropriados e total improcedência da apelação da expropriante, fixar a indemnização devida aos expropriados em €1.990,857,00, confirmando, no mais, o sentenciado em 1ª instância.

De novo inconformada, a expropriante interpôs recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

a) A decisão proferida pelo Tribunal "a quo" viola as regras de competência em razão da matéria e está em oposição com outro Acórdão proferido pelo mesmo Tribunal o que justifica, nos termos do art.° 629° n.° 2 alíneas a), c) e d) e n.° 1 e 3 do art.° 671° todos do CPC conjugados com o art.° 68° n.° 5 do Código das Expropriações, a admissão deste recurso de revista;

b) O objeto do recurso e o poder de cognição do Tribunal são delimitados pelas alegações e conclusões do recurso interposto nos termos dos artigos 608° n.° 2 e 635°n.°4 do CPC;

c) Os Recorridos delimitam o seu recurso ao Tribunal "a quo" dizendo que "pelo que na fixação da justa indemnização devida in casu não pode deixar de ser considerado o projeto aprovado e licenciado para o local e a área de construção fixada no alvará n°. 408/95, de 1995.04.21".

d) O recurso dos Recorridos para o Tribunal "a quo" não teve por objetivo discutir a justa indemnização decorrente do ato de expropriação nos termos do art.° 23° n.° 1 e art.° 26º n.° 1 do Código das Expropriações e artigos 62° n.° 2 e 13º da CRP, mas a indemnização decorrente dos direitos adquiridos com a aprovação do Alvará de Licença de Obras Particulares n.° 408/95, de 1995.04.21;

e) Os Recorridos reconhecem expressamente que é o PDM de Sintra, enquanto instrumento de gestão territorial, quem limita índice de construção no prédio expropriado, reduzindo área de construção para efeitos de apuramento da indemnização a pagar;

f) Os Recorridos ao invocarem os direitos adquiridos com Alvará de Licença de Obras Particulares n.° 4…/95, de 1995.04.21 estão objetivamente a requerer ao Tribunal "a quo" que reconheça o direito a uma indemnização por violação do "princípio da confiança" e a pedir que a integre no valor da indemnização decorrente do ato de expropriação;

g) Os direitos adquiridos pelos Recorridos, tutelados pelo "princípio da confiança", são passíveis de indemnização, não através dos Tribunais Comuns mas através dos Tribunais Administrativos nos termos do artigo 4° alínea g) do ETAF;

h) O Tribunal "a quo", com base nas alegações e conclusões dos recorridos, deveria indeferir liminarmente o recurso dos Recorridos porque o mesmo consubstancia o conhecimento de matéria que extravasa a indemnização pelo ato expropriativo, art.° 23° n.° 1 e 2 do Código da Expropriação e art.° 62°, n.° 2 da CRP e;

i) O Tribunal "a quo" é materialmente incompetente porque os prejuízos decorrentes dos instrumentos de regulamentação do território, nomeadamente das restrições decorrentes da aprovação do PDM de Sintra, só são passíveis de indemnização em ação autónoma, a intentar nos Tribunais Administrativos nos termos do artigo 4° alínea g) do ETAF;

j) Não obstante entender-se que o Acórdão recorrido pode enfermar de erro grave de julgamento a verdade é que objetivamente conhece de matéria que não podia conhecer porque o Tribunal "a quo" é materialmente incompetente;

k) Violando a decisão recorrida as regras em razão da competência material deverá o Acórdão recorrido ser anulado remetendo-se o processo ao Tribunal "a quo" para apuramento do valor da indemnização sem incorporação da indemnização decorrente da violação dos direitos adquiridos e/ou do "princípio da confiança" e no estrito respeito pelo "principio da justa indemnização" consagrado no art.° 62° n.° 2 da CRP e n.° 1 do art.° 23° do Código das Expropriações;

l) Se assim não se entender deverá este Tribunal anular a decisão recorrida e substitui-la por outra que expurgue a indemnização decorrente da violação dos direitos adquiridos e/ou do "principio da confiança" e respeite o "principio da justa indemnização" consagrado no art.° 62° n.° 2 da CRP e n.° 1 do art.° 23° do Código das Expropriações;

m) No caso em apreço, tratando-se da violação das regras da competência material, o presente recurso de revista é sempre admissível nos termos e para os efeitos do art.° 629° n.° 2 alínea a) do CPC e art.° 66°, n.° 5 do Código das Expropriações;

n) O acórdão proferido pelo Tribunal "a quo" está em oposição com o Acórdão do Tribunal da Relação de …, proferido a 12-05-2011, no processo n.° 4860/06.3TMSNT.L1-8;

o) O acórdão proferido pelo Tribunal "a quo" está em oposição com o Acórdão do Tribunal da Relação de …, proferido a 9/2/2010, no processo n.° 2593/05.7TMSNT.L1-7;

p) A contradição entre o Acórdão recorrido e os Acórdãos fundamento, para efeitos da fixação da referida justa indemnização prevista no número 1 do art.° 23° por referência aos critérios fixados no n.° 1 do art.° 26º do Código da Expropriação, decorre de no primeiro se entender que o que deve prevalecer na fixação das áreas de construção da parcela expropriada são os direitos adquiridos pelos Recorridos através do Alvará de Construção anterior a entrada em vigor do PDM e nos segundos entender-se que as restrições do PDM prevalecem para efeitos da fixação da referida área de construção ou edificativa;

q) Sobre a referida questão contraditória não foi proferido qualquer Acórdão de uniformização de jurisprudência;

r) As condicionantes e restrições decorrentes do PDM prevalecem no apuramento das áreas de construção da parcela expropriada sobre eventuais direitos adquiridos em momento anterior à sua entrada em vigor porque essa imposição decorre do art.° 26° n.° 1 do Código da Expropriação;

s) Na fixação da área de construção para efeitos de apuramento da justa indemnização nos termos do art.° 23 n.° 1 com as condicionantes do n.° 1 do art° 26º do Código prevalece o PDM sobre eventuais direitos adquiridos com a aprovação do projeto de construção ou emissão de Alvará para construção em concordância com os Acórdãos fundamento;

t) A prevalência do PDM sobre direitos adquiridos pelos expropriados em momento anterior decorre de imposição legal, do n.° 1 do art.° 26º do Código das Expropriações e dos "princípios da justa indemnização" e do "princípio da igualdade" consagrados, respetivamente, nos artigos 62° n.° 2 e 13° da CRP;

u) O Acórdão recorrido ao entender que os direitos adquiridos pelos expropriados pelo Alvará de Construção prevalecem sobre o PDM viola o preceituado no art.° 26º n.° 1 do Código das Expropriações que impõe que o valor do solo apto para a construção calcula-se por referência à construção que nele seria possível efetuar de acordo com as leis e os regulamentos em vigor;

v) A decisão recorrida viola também o "princípio da justa indemnização" prevista no art.° 23° n.° 1 do Código das Expropriações porque ao não aplicar o PDM e respetivas restrições ao apuramento da área de construção fixa uma indemnização acima da devida, com consequente enriquecimento ilícito dos Recorridos;

w) Ao fixar uma indemnização superior a devida a decisão recorrida viola o "principio da igualdade", na vertente interna e externa, constante do art.° 13° da CRP;

x) É, pois, óbvio que a decisão recorrida enferma assim de erro de julgamento, fazendo uma aplicação e interpretação incorretas do "principio da justa indemnização" consagrado no n.° 1 do art.° 23° do Código das Expropriações e art.° 62° n.° 2 da CRP;

y) Uma correta aplicação da lei e pelos princípios da igualdade e da justa indemnização impunham ao Tribunal "a quo" o respeito pelas limitações do PDM de Sintra e que considerasse para efeitos de indemnização a área de construção de 4.060,80 metros quadrados;

z) Não colhe também a argumentação do Tribunal "a quo" quando fundamenta a sua decisão no n.° 2 alínea d) do art.° 25° do Código da Expropriação porque o referido preceito aplica-se unicamente a qualificação do solo não interferindo com a fixação da capacidade edificativa do mesmo;

aa) O erro de julgamento do Tribunal "a quo" prejudica o Recorrente, o erário público, em mais de € 589.881,00 violando o "principio da justa indemnização" consagrado no art.° 62° n.°2 da CRP;

bb) A contradição de Acórdãos dos Tribunais da Relação, como é o caso, admite sempre a interposição de recurso de revista conforme art.° 629° n.° 2 alínea d) e art.° 671° n.° 3 do CPC, conjugados com o art.° 66° n.° 5 do Código das Expropriações;

cc) Deverá assim dar-se provimento ao presente Recurso determinando-se que o PDM de Sintra prevalece sobre o Alvará de Construção obtido pelos Recorridos antes da sua entrada em vigor e a anulação do acórdão recorrido;

dd) Remetendo-se os autos para o Tribunal "a quo" para que profira novo Acórdão com respeito a decisão deste venerando Tribunal ou substituindo-a por outra que reconhecendo a prevalência do PDM sobre os eventuais direitos adquiridos dos Recorridos reduza a área de construção do prédio expropriado e altere os valores da indemnização a pagar pela ora Recorrente.

ee) Caso se entenda uniformizar jurisprudência, propõe-se a uniformização nos seguintes termos: "Nos termos do n.° 1 do art.° 26º do Código das Expropriações as proibições e restrições ao «jus edificandi» de leis e regulamentos em vigor prevalecem perante direitos adquiridos pelos expropriados".

Os expropriados ofereceram contra-alegação a pugnar pela inadmissibilidade da revista e subsidiariamente pelo seu insucesso.

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1. Por despacho do Sr. Secretário de Estado do Ordenamento do Território de 14.07.2003, publicado em DR, II Série, número 191, de 20.08.2003, foi declarada a utilidade pública dos bens imóveis constantes da planta anexa, necessários à execução do Plano de Pormenor da Área Central do Cacém, nomeadamente para a construção de infra-estruturas, de espaços públicos, de edifícios para realojamento e de equipamentos a favor da Cacémpolis, abrangendo uma parcela de 676,80 m2 correspondente ao prédio sito na freguesia de Agualva-Cacém, Concelho de Sintra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém sob o nº 05…5/20…10 da freguesia de Agualva-Cacém, e inscrito na matriz predial rústica sob parte do artigo nº 173 F da mesma freguesia.

2. Os expropriados são os titulares inscritos na matriz e no registo predial.

3. Em 02 de Fevereiro de 2004 a entidade expropriante tomou posse administrativa do prédio expropriado.

4. Em 28 de Fevereiro de 2005 foi proferida decisão de adjudicação do prédio expropriado à entidade expropriante.

5. O prédio expropriado é um terreno com uma forma trapezoidal, plano, inculto e coberto apenas de vegetação espontânea e algumas espécies florestais.

6. O terreno resulta da divisão de um antigo terreno rústico.

7. Situa-se entre edifícios de habitação multifamiliar e terreno com idênticas características confinante com a Ribeira das Jardas.

8. Na envolvente da parcela expropriada existem edifícios de quatro e mais pisos.

9. Existe um choupo de grande porte na parcela expropriada.

10. A parcela confina com a Praceta Projectada à Rua Sr. Alfredo José Marques, dispondo aí de acesso rodoviário com pavimento betuminoso;

11. Passeios em toda a extensão do arruamento do lado da parcela;

12. Rede de abastecimento domiciliário de água, com serviço junto da parcela;

13. Rede de saneamento básico com colector junto da parcela;

14. Drenagem de águas pluviais com ligação a estação de tratamento;

15. Rede de distribuição de energia em baixa tensão;

16. Rede de telefone.

17. A área da parcela está abrangida pela zona inundável da Ribeira de Barcarena (Ribeira das Jardas).

18. Sobre parte do prédio expropriado foi emitido o alvará de licença de obras particulares n.º 4…8/95 em 21 de Abril de 1995 que permitia a construção de um edifício para habitação com nove pisos acima da cota de soleira e um abaixo, com 5.770,60 m2 de área construída e volumetria de 6.211,41 m3 distribuído por um fogo T0, oito T1 e trinta e dois T2.

19. A construção foi prevista construir num lote com 1.960 m2.

20. O polígono da implantação do imóvel não coincide integralmente com a configuração da parcela objecto dos presentes autos.

21. A construção autorizada construir estava condicionada pela cedência de terreno e imóveis à Câmara.

22. A emissão de tal alvará foi contestada pela população local.

23. Após o início das obras estas foram embargadas por auto datado de 26 de Setembro de 1995 em virtude de o imóvel estar a ser construído em parte no domínio público.

24. Este embargo veio a ser confirmado por decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de …, datada de 19.12.2001, proferida no processo n.º 645/98 que aí correu termos.

25. Com a entrada em vigor do PDM de Sintra o imóvel a erigir no local nunca poderia apresentar nove pisos, sendo seis no máximo.

III – Fundamentação de direito

A apreciação do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente (artigos 635º, n.º 4 , e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), passa, em primeiro lugar, por decidir da admissibilidade do recurso interposto tendo por objecto a impugnação do acórdão da Relação que fixou a indemnização devida aos expropriados.

Como se sabe, o princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais sofre limitações, mormente no acesso ao topo da hierarquia dos tribunais judiciais (STJ), entre elas figurando, por disposição legal, os acórdãos do Tribunal da Relação que fixam o valor da indemnização devida pela expropriação por utilidade pública (artigo 66º, n.º 5, do Código das Expropriações). Era, assim, já no Código das Expropriações de 1991 (art.º 64º do Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro), tal como julgou o acórdão do Pleno das Secções Cíveis de 26 de Junho de 1997 – 085676, acessível através de www.dgsi.pt, e essa irrecorribilidade está também consagrada no art.º 66º, n.º 5, do Código de 1999, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, diploma legal em vigor[1], na data em que foi publicada a declaração de utilidade pública da parcela expropriada[2], acto consabidamente reconhecido como constitutivo da relação jurídica expropriativa.

O acórdão da Relação que se pretende impugnar teve por objecto a fixação do valor da indemnização a pagar aos expropriados, para o qual, como atrás já se disse, o artigo 66º, n.º 5, do Código das Expropriações, estabelece como tecto recursório o Tribunal da Relação. Essa regra de irrecorribilidade é, no entanto, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no artigo 629º, n.º 2, alíneas a), b), c) e d), do Cód. Proc. Civil, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.

Não se verificando qualquer uma destas situações especiais permissivas da revista «atípica», cujo objectivo é garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução pelo mais Alto Tribunal os conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações, em matérias que, de acordo com a regra geral, nunca poderiam vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça[3], não será de admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça tendo por objecto o acórdão da Relação que fixou o valor da indemnização devida pela expropriação por utilidade pública[4].

A presente revista tem por fundamento precisamente a incompetência do tribunal em razão da matéria e a contradição de julgados, impondo-se, por isso, verificar se ocorre alguma dessas condições de admissibilidade do recurso[5].

No tocante à fixação do tribunal competente, em razão da matéria, para fixar o valor da indemnização devida pela expropriação por utilidade pública interessa sublinhar que, como é doutrina e jurisprudência pacíficas, a competência em razão da matéria (ou jurisdição) afere-se em função da relação material controvertida configurada pelo autor[6]. É, portanto, a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado na petição que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é o tribunal (ou a jurisdição) competente para a apreciação do mesmo, tendo presente que o sistema judicial não é unitário, mas constituído por várias categorias de tribunais, separados entre si, com estrutura e regime próprios[7].

A tal propósito, dispõe o art.º 211°, n.° 1, da CRP que "os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais", competência residual confirmada pelos art.ºs 40º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário) e 64º do Cód. Proc. Civil, estatuindo, por seu turno, o art.º 212°, n° 3, da CRP, que "compete aos tribunais administrativos o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas".

Decorre dos citados preceitos constitucionais e dos art.ºs 1º e 4º do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2004 (cfr. art.º 9.° da Lei n04-A/2003, de 19 de Fevereiro) que os tribunais administrativos viram a sua competência alargada e são hoje considerados os tribunais comuns em matéria administrativa, isto é, apresentam-se com uma área própria, uma reserva de jurisdição, que espelha o seu núcleo essencial, ainda que algumas matérias possam ser pontualmente atribuídas, por lei especial, a outra jurisdição.

Tal doutrina encontra-se espelhada nos ensinamentos de Mário Aroso de Almeida, in Manual de Processo Administrativo, 2017, 3ª edição, págs. 161 a 181, e José Carlos Vieira de Andrade, in Justiça Administrativa (Lições), 2016, 15ª edição, págs. 100 e 103 a 113, e Ana Fernanda Neves, Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF, in E-pública revista electrónica de Direito Público, n.° 2, Junho 2014, disponível em http://e-publica.pt/ambitodejurisdicao.html.) e está, aliás, plasmada em dezenas de acórdãos quer do Supremo Tribunal Administrativo, quer do Tribunal Constitucional ­ - cfr. acórdãos do STA de 03.10.96 (Pleno), rec. 41.403, de 26.02.97 (Pleno), rec. 41 487, de 2.02.98 (Pleno), rec. 40247, e de 27.02.2003, rec. 285/03, e acórdãos do TC, proc. 372/94, DR 07.09.94, proc. 347/97, DR 25.07.97, e proc. 508/94, DR 13.12.94.

Debruçando-nos sobre a situação em apreço verifica-se que no presente processo não se questiona o acto expropriativo, mas tão só o valor da indemnização devida por esse acto. Ainda que conexas, essas duas questões estão, desde há muito, atribuídas a diferentes jurisdições[8]: a impugnação do acto expropriativo à jurisdição administrativa e a fixação da indemnização aos tribunais judiciais (artigos 51º, 54º e 66º, n.º 5, do Código das Expropriações).

A atribuição desta competência aos tribunais judiciais é controversa e no recente projeto de revisão do Código das Expropriações tentou-se, sem êxito, transferi-la para a jurisdição administrativa. Frustrada, por ora, essa tentativa e mantendo-se em vigor o Código de Expropriações aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, é óbvio que a competência para fixar o valor da indemnização a pagar pela expropriação por utilidade pública continua a radicar no tribunal judicial (artigos 51º, 54º e 66º, n.º 5, do Código das Expropriações). E essa competência não é afectada, ao invés do que sustenta a recorrente, pela circunstância de na fixação da indemnização ter sido levado em consideração a restrição construtiva decorrente do PDM no confronto com o alvará de licença de obras particulares n.º 4…8/95, de 19.04.1995, na medida em que a dilucidação dessa temática se centra ainda no iter conducente à determinação da componente indemnizatória, no fundo, a questão central e que releva em sede de atribuição de competência.

Em boa verdade, o que a recorrente pretende questionar não é a competência do tribunal em razão da matéria, mas sim que o tribunal não tome em conta nem atribua relevância à referida restrição construtiva e, desse modo, obter a redução da indemnização que terá de pagar.

Ora, se a fixação do valor desta não pode ser sindicada pelo Supremo Tribunal de Justiça não é razoável aceitar que a via recursória se mantém para além da Relação relativamente a outras questões de índole lateral, como é a apontada temática da restrição construtiva, se, no que concerne ao ponto fulcral e verdadeiro âmago do processo de expropriação, a fixação da justa indemnização, a porta de acesso ao Mais Alto Tribunal se encontra já fechada.

Aliás, esta orientação surge perfilhada também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Outubro de 2009 – 900/05.1TBLSD.S1, igualmente acessível, através de www.dgsi.pt, que considerou que todas as questões situadas “a caminho da fixação do quantum indemnizatório cujo julgamento se fica pela Relação” (…) “são passos de um caminho a caminho da decisão final” (…) e “se a grande decisão, a grande e substantiva decisão final, se fica pela Relação, não abrindo caminho recursivo para além dela, muito menos o devem abrir decisões processuais, ou mesmo substantivas, a caminho da grande decisão.” É que, o que nuclearmente se discute nos processos de expropriação é a fixação da justa indemnização e quando se convocam outras questões de trânsito, o recorrente pretende é ver a sua decisão reflectida no “quantum” final.

Vale isto por dizer que a diferente roupagem com que a recorrente ensaiou discutir a indemnização (restrição construtiva e violação do principio da confiança), ainda que a pretexto de se tratar de uma questão de competência material do tribunal, não pode ser acolhida, o que implica a conclusão de que não se verifica o primeiro dos invocados fundamentos para a admissibilidade do recurso de revista que interpôs.

Além desse fundamento, a recorrente alicerçou também a recorribilidade do acórdão da Relação na contradição de julgados. É sabido que a contradição aqui equacionada e que releva como conditio da admissibilidade do recurso de revista, ao abrigo da alínea d) do n.º 1 do artigo 629.º do Cód. Proc. Civil, pressupõe a pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito, sendo que a questão de direito fundamental só é a mesma quando, por um lado, incida sobre idêntico (ou, em larga medida, coincidente) núcleo factual e, por outro, a sua subsunção, em termos de interpretação e aplicação dos mesmos preceitos haja sido efectuada de modo oposto ou, pelo menos, diverso[9]. Além disso, a oposição terá de ser frontal e incidir sobre decisões expressas relativamente a concreta questão, não abrangendo os argumentos ou fundamentos utilizados, nem sendo suficiente a oposição meramente tácita ou sequer uma diversidade implícita ou pressuposta[10].

Posto isto, cotejemos, o acórdão recorrido e o acórdão fundamento (o proferido pela Relação de Lisboa, em 09.02.2010, no processo n.º 2593/05.7TMSNT.L1, cuja certidão constitui fls. 1068 a 1109)[11], a fim de neles descortinar razões de identidade que, a ser aplicável o citado preceito adjectivo, conduzirão à admissão do recurso.

A recorrente descortina contradição entre os dois arestos por, em suma, na determinação da indemnização devida pela expropriação, o primeiro (o acórdão que pretende pôr em crise) ter considerado relevante a capacidade edificativa resultante da licença de construção em detrimento da restrição imposta por PDM posterior e, ao invés, o segundo (o acórdão fundamento), ter considerado relevante a capacidade edificativa resultante da restrição imposta por PDM posterior em detrimento do projecto de arquitectura aprovado anteriormente.

Cabe adiantar, desde já, que a alegada contradição não existe, porquanto, tendo-se assumido em ambos os acórdãos a data da declaração de utilidade pública da expropriação (DUP) como fulcral no cálculo da indemnização por ela devida, constata-se, no confronto dos dois arestos que, no acórdão recorrido a aprovação do PDM foi posterior, e no acórdão fundamento foi anterior, à DUP. Dito de outro modo: assumindo-se como determinante, no cálculo da indemnização, a data da DUP, verifica-se que a essa data, no acórdão recorrido, vigorava a licença de construção, e, no acórdão fundamento, vigorava já o PDM, dando-se prevalência, respectivamente, ao instrumento vigente àquela data.

A diversidade deste facto elementar – o início da vigência do PDM em face da data da DUP – determinou, pelo menos de forma expressa no acórdão recorrido, a desconsideração do PDM posterior à DUP, não se sabendo se outra teria sido a solução no caso contrário, o único com identidade com o do acórdão fundamento, comprometendo-se desta forma a putativa contradição.

As apontadas asserções resultam das seguintes passagens do acórdão recorrido:

“(…) Quanto ao “embargo” e à entrada em vigor do PDM …em 1999 “que inviabilizaram o projeto de arquitetura”, trata-se de circunstâncias não existentes à data da DUP e, como tal, inconsideráveis na avaliação da parcela expropriada, como decorre de quanto se vem de expender, designadamente tendo em atenção o disposto no já citado artigo 23º, n.º 1, do C.E.

Assim se tendo julgado, em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-03-2015, que “Constitui princípio geral do direito que rege a indemnização na expropriação por utilidade pública que esta seja calculada à luz das circunstâncias e condições de facto existentes à data da declaração de utilidade pública (art. 23., n.º 1, do CExp 1999)”.

(…) Sobrelevando pois no tocante à capacidade edificativa da parcela expropriada o emitido alvará de licença de obras particulares, vigente à data da DUP, cfr. também o disposto no artigo 25º, n.º 2, alínea d), do C.E. de 1999”.

Enquanto que no acórdão fundamento se discorreu:

Além disso, salvo melhor opinião, também não será de aplicar o n.º 12 do citado normativo, visto que, à data da DUP, a parcela era considerada como espaço urbano pelo PDM….

Ora a destinação posterior que serviu de motivação à declaração de utilidade publica, não pode servir de critério para reduzir o valor da parcela, caso em que o direito do particular receber uma justa indemnização ficaria seriamente prejudicado, mercê da forte restrição ao seu direito de propriedade.

Na verdade, não há nos autos qualquer elemento indiciário de que, à data da DUP a parcela se localizava em área crítica de recuperação e reconversão urbanística.

(…)

A título prévio, dir-se-á que os expropriados convocam um projecto de arquitectura aprovado pela Câmara Municipal.

Porém, este projecto não pode ser tido em conta nesta sede, em virtude de o PDM posterior (erigido à categoria de regulamento, atendendo à aprovação em CM), ter vindo restringir as possibilidades edificativas no terreno de que a parcela foi destacada. E o PDM tem plena aplicação mesmo nestes casos, dado o interesse público no ordenamento territorial”.

Para além dessa diferença fundamental, importa salientar ainda que no acórdão recorrido fora já emitido o alvará de licença de obras particulares n.º 408/95 em 21 de Abril de 1995, enquanto no acórdão fundamento existia apenas a aprovação do projecto de arquitectura, situações que correspondem a fases distintas dos processos de licenciamento. No último, ainda se estava na fase inicial do licenciamento e, no primeiro, já na fase final e com decisão de atribuição do alvará de licença de construção.

Na verdade, a primeira fase do licenciamento é precisamente a entrega do projecto de arquitectura, cuja aprovação constitui um acto administrativo prévio (Vorbesscheid, na designação alemã)[12] meramente instrumental e pré-ordenado à decisão final[13] a que se seguem, em regra (artigo 20º RJUE), os projectos de especialidades (estabilidade, escavação e contenções periféricas, alimentação e distribuição de energia eléctrica, instalação de gás, redes prediais de águas e esgotos, arranjos exteriores, instalações telefónicas e telecomunicações (ITED), estudo de comportamento térmico e declaração de conformidade regulamentar (DCR), etc.) que poderão culminar depois pela concessão do alvará de licença de construção.

Aliás, do acto de aprovação do projecto de arquitectura apenas decorre, para o requerente do licenciamento, que essa aprovação não poderá já ser posta em causa à luz dos instrumentos de planeamento em vigor, mas não lhe confere o direito adquirido de construir, pois que esse direito só emerge do acto final de licenciamento[14].

Neste contexto, face aos factos provados elencados no acórdão recorrido e no acórdão fundamento (que, como se disse, constituem os mais salientes pontos de contacto entre os casos decididos numa e noutra decisão) e atentando nas particularidades acima focadas, pode dizer-se que a razão de ser para as discrepantes soluções a que chegaram os acórdãos em tela (o recorrido e o fundamento) radica no respectivo substrato fáctico que não é sequer idêntico. 

Deste modo, apesar de se ter como certo que, em ambos os arestos, se interpretaram as mesmas normas jurídicas – essencialmente, as referentes ao cálculo das indemnizações por expropriação –, não se pode deixar de reconhecer que existem diferenças não menosprezáveis entre a factualidade considerada num e noutro acórdão. E, sendo assaz díspares os factos em causa, mormente no que toca à anterioridade do PDM e às diferentes fases do respectivo procedimento de licenciamento, jamais se poderia considerar que as referidas normas foram interpretadas e/ou aplicadas em sentidos opostos ou sequer diversos naquelas decisões.

Tudo isto para dizer, em suma, que inexiste também o invocado fundamento (contradição de julgados) em ordem a abrir a porta recursória de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, através da via especial, caindo, assim, por terra a interposta revista, por inadmissível, arrastando na queda todas as restantes questões que a recorrente lhe acoplou.


*


Pode, assim, concluir-se, em síntese, que:

1 - No processo especial de expropriação por utilidade pública está consagrada a regra da irrecorribilidade do aresto da Relação que “tenha por objecto decisão sobre a fixação da indemnização” (art.º 66º, n.º 5, do Código de 1999, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro.

2 - Essa regra de irrecorribilidade é, contudo, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no artigo 629º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.

3 - Não se questionando o acto expropriativo, mas tão só o valor da indemnização devida por esse acto, a competência radica nos tribunais judiciais (artigos 51º, 54º e 66º, n.º 5, do Código das Expropriações).

4 - A contradição de julgados equacionada e que releva como conditio da admissibilidade do recurso de revista pressupõe, além de mais, pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito.

5 - A questão de direito fundamental só é a mesma, para este efeito, quando a subsunção do mesmo núcleo factual seja idêntica (ou coincidente), mas tenha, em termos de interpretação e aplicação dos preceitos sido feita de modo diverso.

6 - A falta dos fundamentos invocados em ordem a permitir a revista «atípica» deita esta por terra e arrasta, na queda, todas as restantes questões que a recorrente lhe acoplou, de que não há também que conhecer (acessorium sequitur principale).


IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se que é inadmissível o recurso de revista interposto e consequentemente dele não se toma conhecimento.

Custas pela recorrente.


*


Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 01 de Março de 2018


António Joaquim Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

________


[1] Encontra-se em vigor desde Novembro do mesmo ano (art.º 4º da Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro).
[2] A declaração de utilidade pública foi publicada no DR de 20/08/2003.
[3] Cfr, neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 18.09.2014 (processo 1852/12.7TBLLE-C.E1.S1), de 02.06.2015 (processo 149/14.2YHLSB.L1.S1) e de 24.11.2016 (processo 1655/13.1TJPRT.P1.S1), acessíveis através de www.dgsi.pt, e António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, págs. 58 e 59.
[4]Cfr, entre outros, os acórdãos do STJ de 27.09.2012 (proc. n.º 10641/07.0TBMAI.P1.S1), de 18.09.2014 (proc. nº 1100/11.7TBCHV-B.P1.S1), de 20.11.2014 (proc. nº 7382/07.1TBVNG.P1.S1), de 15.02.2017 (proc. nº 56/13.6TBTMC.G1.S1), e de 22.02.2017 (proc. nº 535/09.0TMSNT.L1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] A recorrente alude ainda à alínea c) do n.º 2 do artigo 629º do CPC, mas não identifica sequer a jurisprudência uniformizada que terá sido violada.
[6] Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 90 e 91, Miguel Teixeira de Sousa, in “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, Edições Lex, 1999, págs. 30 a 32, Mariana França Monteiro, in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa”, págs., 507 e 508, e, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12/01/2010 (proc. 1337/07.3TBABT.E1.S1), de 10/12/2015 (proc. 83/14.6TVLSB.L1.S1), de 13/10/2016 (proc. 30249/14.2YIPRT.G1.S1) de 29/11/2016 (proc. n.º 135/14.2T8MDL.G1.S1), de 06/12/2016 (proc. 886/15.4T8SXL.L1.S1), e de 02/03/2017 (proc. 1920/13.8TBAMT-A1.P1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[7] Cfr., neste sentido, Mário Aroso de Almeida, in Manual de Processo Administrativo, 2017, 3ª edição, pág. 43.
[8] O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 317/95, refere que “essa decisão legislativa … goza entre nós de uma longa tradição jurídica, além de que, atenta a diferente organização judiciária dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos (aqueles muito mais próximos das populações), ela se apresenta como mais adequada a assegurar uma mais fácil defesa dos direitos dos expropriados, ao menos quando se trata da fixação do valor global da indemnização”.
[9] Cfr, neste sentido, Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª edição, pág. 116, José Lebre de Freitas/A. Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição., Tomo I, Volume 3.º, pág. 17 (por referência a anterior versão do CPC, mas ainda actualizadas), e António Santos Abrantes Geraldes, obra citada, págs. 58 e 59
[10] Cfr, neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, obra citada, págs. 58 e 59, Luís Correia de Mendonça/Henrique Antunes, Dos Recursos, 2009, pág. 315, e, entre outros, os acórdãos do STJ de 13.07.2010 (processo 4210/06.9TBGMR.S1), de 18.04.2012 (processo 3962/08.6TJCBR.C1-A.S1), de 20.11.2014 (processo 7382/07.1TBVNG.P1.S1), de 20.05.2015 (processo 321/12.0YHLSB.L1.S1) e de 13.09.2016 (processo 671/12.5TBBCL.G1.S1), acessíveis através de www.dgsi.pt.

[11] Inicialmente a recorrente indicou também o acórdão da Relação de Lisboa, proferido a 12-05-2011, no processo n.° 4860/06.3TMSNT.L1-8, mas posteriormente restringiu a invocação indicando apenas o proferido em 09.02.2010.
[12] Cfr, neste sentido, José Eduardo Figueiredo Dias/Fernanda Paula Oliveira, in Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 2ª edição, Almedina, pág. 184, Fernanda Paula Oliveira, in Loteamentos urbanos e dinâmica das normas de planeamento, Almedina/2009, págs. 144/145, e Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes, Fernanda Maçãs, in Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, 3ª edição, Almedina/2011, pág. 287.
[13] Cfr, neste sentido, entre outros, os acórdãos do STA de 05.04.2005 (proc. n.º 0100/04), e de 25.01.2006 (proc. n.º 1127/05), acessíveis respectivamente através de http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/abde1235bb3064ac80256fe40036883e?OpenDocument, e
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/50c98a955c69e6fb8025710d004f417e?OpenDocument.
[14]Cfr, neste sentido o acórdão do STA de 12.03.2008 (proc. n.º 0620/07), acessível através de ttp://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d487e5729d19eef680257418004d24e0?OpenDocument. e o acórdão de 10.10.2013 do TCA Sul, acessível através de
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/700fc07ff9bf238c80257c0500542235?OpenDocument.