Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
31/13.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
REFORMA DA CONTA DE CUSTAS
OBJETO DO RECURSO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
REFORMA DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I – Nos termos do disposto no art.º 6.º n.º7 do RegCP, o valor da acção e o respectivo custo devem ser proporcionais ao serviço prestado.

II - Ao juiz é lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de € 275 000, consoante o resultado da ponderação da situação concreta

III – Se, para lá da quantia de € 816,00 de taxa de justiça já depositada pela Ré, seria devido um valor suplementar de montante superior a 200 mil euros, e se aquilo que se encontrou em causa foi a análise concentrada de uma disposição do diploma adjectivo, sem complexificados ou diversificados problemas jurídicos de fundo a analisar, ou sem demanda de conhecimento muito especializados, justificou-se o parcial deferimento da pretensão de dispensa do pagamento de taxa de justiça, responsabilizando-se os vencidos, pelas custas finais, em apenas 10% do remanescente.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça


                  

  No recurso de revista interposto, na presente acção com processo declarativo comum, que a Autora Liminorke, SGPS, S.A., propôs contra Deloitte & Associados, SROC, S.A., foi publicado o acórdão em audiência neste Supremo Tribunal de Justiça, que, na sequência da revista interposta pela Ré, negou essa requerida revista do acórdão da Relação, incidente sobre a decisão de extinção da instância, por deserção, nos termos do art.º 277º, al. c) e 281º, ambos do Código de Processo Civil.

Tendo a Autora recorrido de apelação, o Tribunal da Relação veio a revogar a referida decisão, determinando o prosseguimento dos autos.

Inconformada com o assim decidido, a Ré Deloitte recorreu de revista, tendo o respectivo requerimento sido, em 2.ª instância, rejeitado, embora, após reclamação para este S.T.J., tenha sido admitido o recurso.

Todavia, em 10/2/2022, em Conferência e a propósito da reforma de custas, tinha a Relação entendido que “a apreciação da dispensa da taxa de justiça remanescente deve ser efetuada pelo último órgão jurisdicional que intervém, relativamente a todos os graus de jurisdição”, acrescentado que, “terminando o processo na Relação ou, depois, no Supremo, o apuramento da quantia devida a título de taxas de justiça remanescente, assim como a identificação do interessado a quem é de imputar a responsabilidade pelo seu pagamento estão condicionados pelo resultado que a final vier a ser declarado”.

Mais acrescentou que “o acórdão impugnado, que determinou o prosseguimento dos autos, não pôs termo ao processo, encontrando-se a acção na fase após os articulados e prévia à elaboração dos temas de prova e instrução;

pelos fundamentos apontados não se impõe a este Tribunal apreciar a dispensa da taxa de justiça remanescente, o que deve ser efetuado aquando da prolação da decisão final e até ao respetivo trânsito em julgado”.

O acórdão em audiência de 24/5/2021, proferido neste Supremo Tribunal de Justiça, não se pronunciou sobre o remanescente da taxa de justiça.


Suscita agora a Recorrente/Ré nulidade processual afectando a prolação do acórdão deste S.T.J., mediante a seguinte alegação, em resumo:

- tendo o Supremo Tribunal de Justiça admitido o recurso de revista, por força do n.º 3 do artigo 616.º do CPC (ex vi artigo 666.º, n.º 1, do CPC), teria de conhecer a questão relativa à reforma da decisão recorrida quanto a custas, nomeadamente quanto à dispensa do remanescente das custas suscitada em sede de reforma do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no capítulo 3. do requerimento de interposição do recurso de revista e, ainda, do capítulo 6. da alegação da motivação do recurso de revista.

- Está em causa o capítulo 3. do requerimento de interposição do recurso de revista (cfr. artigos 51. a 105.) e, ainda, o capítulo 6. da alegação da motivação do recurso de revista (cfr. artigos 293. a 347.).

- A admissão do recurso de revista – ainda que apenas com base no fundamento de ofensa do caso julgado – implica, necessariamente, que o Tribunal de recurso conheça da questão da reforma da decisão recorrida quanto a custas, quando esta tenha sido invocada, ao abrigo do n.º 3 do artigo 616.º do CPC ex vi artigo 666.º, n.º 1, do CPC.

- Portanto, salvo melhor opinião, ao não ter apreciado a questão da inaplicabilidade e dispensa do remanescente das custas, em sede de reforma, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Maio de 2022, incorreu em nulidade por omissão de pronúncia, nos termos da 1.ª parte da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC ex vi artigos 666.º e 685.º do CPC, requerendo-se que, em consequência, este Tribunal Superior conheça questão relativa à reforma da decisão recorrida quanto a custas ora referida, que consta do capítulo 3. do requerimento de interposição do recurso de revista (cfr. artigos 51. A 105.) e, ainda, do capítulo 6. da motivação do recurso de revista (cfr. artigos 293. a 347.).

- Independentemente da procedência ou improcedência da nulidade acima invocada, cumpre aqui também requerer a dispensa do remanescente das custas processuais quanto ao recurso de revista apreciado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Maio de 2022, ao abrigo do artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, bem como do recurso de apelação.

- Com efeito, o presente processo tem o valor de € 54.378.430,30 e, como tal, também o presente recurso tem o mesmo valor, ainda que diga respeito a uma mera questão processual interlocutória muito específica e de âmbito restrito.

- Nos termos do n.º 7 do artigo 6.º do RCP, “Nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

- Atento o objecto muito restrito do presente recurso de revista, quer o valor de EUR 662.490,00, quer o valor de EUR 331.245,00, são, manifestamente, desproporcionais e excessivos, devendo, por isso, ser determinada a dispensa integral do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo da 2.ª parte do n.º 7 do artigo 6.º do RCP.

- Em primeiro lugar, o objecto do recurso de revista dos presentes autos não incidiu sobre qualquer questão de mérito da presente acção, mas apenas sobre uma questão processual muito específica relativa à questão da ofensa ao caso julgado por referência a despachos meramente processuais e muito simples proferidos pela 1.ª Instância.

- Em segundo lugar, o Acórdão do STJ, de 24 de Maio de 2022, não colocou termo ao processo. (…)

- Na verdade, o n.º 7 do artigo 6.º do RCP, interpretado no sentido de que o recurso exclusivamente sobre questão de natureza processual de direito (e não sobre o mérito da causa), cuja decisão determina o prosseguimento do processo, pode ser tributado com custas superiores a EUR 20.000, viola os artigos 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da CRP, que consagram, respectivamente, os princípios da proporcionalidade e acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.

- Mais: o n.º 7 do artigo 6.º do RCP, interpretado no sentido de que o recurso exclusivamente sobre questão de natureza processual de direito (e não sobre o mérito da causa), cuja decisão determina o prosseguimento do processo, pode ser tributado com custas superiores a EUR 40.000, viola os artigos 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da CRP, que consagram, respectivamente, os princípios da proporcionalidade e acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.

- De resto, o n.º 7 do artigo 6.º do RCP, interpretado no sentido de que o recurso exclusivamente sobre questão de natureza processual de direito (e não sobre o mérito da causa), cuja decisão determina o prosseguimento do processo, pode ser tributado com remanescente da taxa de justiça de dezenas de milhares de euros, viola os artigos 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da CRP, que consagram, respectivamente, os princípios da proporcionalidade e acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.

- Nos termos e para os efeitos do artigo 6.º, n.º 7 (2.ª parte), do Regulamento das Custas Processuais, requer-se que seja dispensado, integralmente, o remanescente da taxa de justiça relativo ao recurso de revista, no qual foi proferido o Acórdão do STJ, de 24 de Maio de 2022, com a sua consequente reforma quanto a custas neste sentido, e ainda a dispensa do remanescente da taxa de justiça do recurso de apelação destes autos (por referência aos artigos 51. a 105. e 293. a 347. do recurso de revista).

- Caso assim se não entenda, por cautela de patrocínio, requer-se que o Tribunal confirme, expressamente, que a questão da dispensa do remanescente das custas deve ser conhecida apenas na decisão final do processo.


Conhecendo:                        


I


O objecto do presente requerimento prende-se com dois aspectos da decisão proferida em audiência:

- saber se a mesma decisão incorreu em omissão de pronúncia (1.ª parte da al.d) do n.º1 do art.º 615.º CPCiv ex vi art.ºs 666.º e 685.º CPCiv), ao não ter conhecido da requerida dispensa do remanescente das custas relativas ao recurso de apelação;

- saber se a mesma dispensa do remanescente se justifica quanto ao recurso de revista.



II


Em primeiro lugar, cumpre assinalar o bem fundado do invocado iter processual e do invocado teor das decisões proferidas, na Relação e neste Supremo, tal como referido e em parte transcrito na alegação da presente reclamação para a Conferência, como supra exposto no relatório.

E assim, lê-se no disposto no art.º 6.º n.º7 do RegCP que, “nas causas de valor superior a € 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz, de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

O aditamento da norma em causa, aditamento ao disposto no art.º 6.º do RegCP, prendeu-se com a potencial violação do princípio da proporcionalidade e do direito de acesso aos tribunais, consoante art.ºs 2.º, 18.º n.º2 e 20.º da CRP, para a qual havia alertado o Tribunal Constitucional em diversas ocasiões, no caso de não se permitir ao tribunal que reduzisse o montante da taxa de justiça devida, atendendo ao caso concreto.

A referência à complexidade da causa e à conduta processual das partes significa, em concreto, a sua menor complexidade ou maior simplicidade e uma positiva atitude de cooperação das partes entre si e com o tribunal, no delineamento do objecto do processo – assim, Salvador da Costa, RCP Anotado, 5.ª ed., pg. 201.

O valor da acção e o respectivo custo devem ser proporcionais ao serviço prestado, como se salientou no Ac.S.T.J. 22/11/2016 Col.III/110 (rel. Alexandre Reis).

O mesmo Autor, no local citado, salienta que, na falta de decisão do juiz, se as partes entenderem que se mostram verificados os referidos pressupostos da dispensa de pagamento, podem elas requerer a reforma da decisão quanto a custas ou, se couber recurso da decisão que condene em custas, incluir tal matéria na alegação do recurso – e veja-se o disposto no art.º 616.º n.ºs 1 e 3 do CPCiv.

Foi, aliás, o que tinha acontecido no caso dos autos, em que a Recorrente tinha requerido, na própria alegação do recurso de revista, a dispensa de pagamento do remanescente do devido pela apelação.



III


Portanto, não há dúvida de que o acórdão antes proferido neste S.T.J., não se tendo pronunciado acerca da matéria suscitada do remanescente das custas da apelação, padeceu de omissão de pronúncia na matéria aludida – art.º 615.º n.º1 al.d) 1.ª parte do CPCiv.

No caso dos autos, a acção tem o valor fixado de € 54 378 430,30, pelo que, para lá da quantia de € 816,00 já depositada pela Ré, seria devido um valor suplementar ascendendo a um montante superior a 200 mil euros, posto que, ao valor da taxa de justiça acresceria, a final, mais 1,5 UC`s por cada € 25 000, nos termos da tabela nºI-B, anexa ao Regulamento.

No caso dos autos, a análise, quer na instância recorrida, quer neste S.T.J., prendeu-se em exclusivo com as consequências práticas do disposto na norma do art.º 281.º do CPCiv.

É certo que demandou tal análise extensa fundamentação, sobretudo na decisão da apelação, mas tal justificou-se em perfeita consonância com a extensão das alegações (da Ré e da sua associada Generali) e das contra-alegações, merecendo tal extensão uma resposta pontual e esclarecedora.

É certo também que a Ré e a Interveniente decaíram na respectiva pretensão de declaração de nulidades e de reforma do acórdão proferido em decisão da apelação.

Todavia, tais constatações não devem desconsiderar que aquilo que se encontrou substancialmente em causa foi a análise concentrada de uma disposição do diploma adjectivo, portanto, sem complexificados ou diversificados problemas jurídicos de fundo a analisar, designadamente sem demanda de conhecimento muito especificados ou especializados.

Por outro lado, o comportamento das partes foi o normal, decorreu sem abuso ou utilização inútil de expedientes processuais.

A cautela de patrocínio justificará, no caso das partes, com o devido respeito, a prolixidade da alegação ou da fundamentação, de resto usual na nossa cultura jurídica.

O custo da acção deve ser proporcional ao serviço prestado.

Em consonância com o teor do que vem reclamado pela Ré, ao juiz é lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de € 275 000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade – veja-se o Ac.S.T.J. 12/12/2013, p.º n.º 1319/12.3TVLSB-B.L1 (rel. Lopes do Rego), Col.III/169, em exegese do disposto no n.º7 do art.º 6.º do RegCP.

Neste sentido, em suprimento da nulidade da decisão e em parcial deferimento da pretensão de dispensa do pagamento de taxa de justiça nos recursos de apelação e de revista, considera-se adequado e proporcional responsabilizar os vencidos, pelas custas finais, em apenas 10% do remanescente, dispensando-os pois do pagamento de 90% desse remanescente.


Em resumo:

I – Nos termos do disposto no art.º 6.º n.º7 do RegCP, o valor da acção e o respectivo custo devem ser proporcionais ao serviço prestado.

II - Ao juiz é lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de € 275 000, consoante o resultado da ponderação da situação concreta

III – Se, para lá da quantia de € 816,00 de taxa de justiça já depositada pela Ré, seria devido um valor suplementar de montante superior a 200 mil euros, e se aquilo que se encontrou em causa foi a análise concentrada de uma disposição do diploma adjectivo, sem complexificados ou diversificados problemas jurídicos de fundo a analisar, ou sem demanda de conhecimento muito especializados, justificou-se o parcial deferimento da pretensão de dispensa do pagamento de taxa de justiça, responsabilizando-se os vencidos, pelas custas finais, em apenas 10% do remanescente.


Termos em que, no suprimento da nulidade do acórdão proferido e em deferimento da pretensão suscitada, se defere em parte o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos recursos de apelação e de revista, de modo a que, na conta a final, o mesmo se considere apenas na proporção de 10%.

Custas do incidente de dispensa do remanescente na revista a cargo da Ré/Reclamante, com a taxa de justiça fixada no mínimo legal.


STJ, 13/7/2022


Vieira e Cunha (relator)

Ana Paula Lobo

Manual Tomé Soares Gomes