Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P3638
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
DECISÃO QUE PÕE TERMO À CAUSA
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO À CAUSA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
CASO JULGADO
Nº do Documento: SJ200812100036383
Data do Acordão: 12/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Sumário :


I - Conforme entendimento já expresso por este Supremo Tribunal, decisão que põe termo à causa é aquela que tem como consequência o arquivamento ou encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito. Em última análise, trata-se da decisão que põe termo à relação jurídica processual penal, ou seja, que determina o terminus da relação entre o Estado e o cidadão imputado, configurando os precisos termos da sua situação jurídico-criminal.

II - O acórdão da Relação, na parte em que confirmou a improcedência da invocada excepção dilatória de litispendência quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Estado (recurso interlocutório), não configura manifestamente tal perfil, consubstanciando única e exclusivamente uma decisão de natureza interlocutória e não uma decisão que ponha fim à causa. Na verdade, trata-se somente de uma questão incidental cuja decisão deixou incólume a relação processual penal consubstanciada na verificação da responsabilidade criminal da arguida.

III - O recurso para o STJ dessa parte do acórdão da Relação é inadmissível, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP.

IV - O pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso da absolvição da responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil que é daquela autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgados contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo.

V - Com a consagração do princípio da adesão resolvem-se no processo penal todas as questões que envolvem o facto criminoso em qualquer uma das suas vertentes, sem necessidade de recorrer a mecanismos autónomos. Por outro lado, sublinha-se a manifesta economia de meios, uma vez que os interessados não necessitam de despender e dispersar custos quando afinal o tribunal a quem se atribuiu competência para conhecer do crime oferece as mesmas garantias quando ela é alargada ao conhecimento de uma matéria que está intimamente ligada a esse crime. Finalmente, importa salientar razões de prestígio institucional, o qual poderia ser posto em jogo se houvesse que enfrentar julgados contraditórios acerca do ilícito criminal a julgar, um no foro criminal com determinado sentido e outro no foro cível, eventualmente com expressão completamente contrária ou oposta.

VI - Como se refere em Ac. deste STJ de 10-07-2008, interdependência das acções significa que mantêm a independência nos pressupostos e nas finalidades (objecto), sendo a acção penal dependente dos pressupostos que definem um ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção penal, e a acção civil dos pressupostos próprios da responsabilidade civil; a indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil (art. 129.º do CP) nos respectivos pressupostos e só processualmente é regulada pela lei processual penal. A interdependência das acções significa, pois, independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da acção cível relativamente ao processo penal.

VII - Com o exercício da acção civil o que está em causa no processo penal é o conhecimento pelo tribunal de factos que constam da acusação e do respectivo pedido de indemnização e que, consequentemente, são coincidentes no que refere à caracterização do acto ilícito. Atributo próprio do pedido cível formulado será o conhecimento e a definição do prejuízo reparável.

VIII - O itinerário probatório é exactamente o mesmo no que toca aos factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, havendo, apenas, que acrescentar que em relação a esta há, ainda, que provar os factos que indicam o dano e o nexo causal entre o dano e o facto ilícito.

IX - A Lei 48/2007, de 29-08, introduziu um novo n.º 3 no art. 420.º do CPP, no qual – à revelia de entendimento jurisprudencial sustentado e fixado no acórdão n.º 1/2002 – se comina a possibilidade de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil, mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal.

X - Mas o recurso restrito ao pedido cível não pode, em nenhuma circunstância, ferir o caso julgado que se formou em relação à responsabilidade criminal. Consequentemente, não é admissível a impugnação que pretenda colocar em causa a matéria de facto que suporta tal responsabilização criminal.

XI - O recurso relativo à matéria cível apenas pode abarcar a impugnação da decisão proferida no que toca ao conhecimento e decisão próprios e específicos do pedido cível, ou seja, ao prejuízo reparável.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, veio interpor recurso da decisão do tribunal da Relação de Coimbra que julgou improcedentes os recursos por si interpostos da decisão final e da decisão interlocutória.
Na mesma decisão final a arguida e recorrente foi condenada, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 105º 1, 2, 4 e 7 e 6º 1 da Lei 15/2001 de 5 de Junho, na pena de 190 (cento e noventa) dias de multa à taxa diária de €6 (seis euros) num total de €1140 (mil cento e quarenta euros) a que correspondem, subsidiariamente, 126 (cento e vinte seis) dias de prisão nos termos do disposto no art. 49º do Código Penal;
Mais foi condenada a pagar solidariamente ao Estado Português a quantia de €90.707,10 (noventa mil setecentos e sete Euros e dez Cêntimos), acrescidos de juros legais desde a data do incumprimento, até integral pagamento, de acordo com o artigo 44.º nº 1 da Lei Geral Tributária (Decreto-Lei n.° 398/98, de 17 de Dezembro) e o Decreto-Lei n.° 73/99 de 16 de Março,
São as seguintes as razões de discordância constantes das conclusões da respectiva motivação de recurso:
1) Tendo a Fazenda Nacional reclamado créditos referentes a IRS e IVA desde os anos de 2003 a Janeiro de 2006, no âmbito da insolvência da arguida H...,
2) créditos estes que se encontram definitivamente reconhecidos,
3) não pode o mesmo Estado vir nos presentes autos deduzir o mesmo pedido (indemnização cível), mesmo que parcialmente, relativamente a arguida H... e à sua sócio-gerente AA,
4) por tal circunstância configurar uma excepção dilatória de litispendência.
5) Na verdade, os factos que suportam a causa de pedir quer na reclamação de créditos da insolvência, quer no pedido de indemnização cível, (IRS e IVA, relativos aos anos de 2003 a 2005) são os mesmos, fundando-se todos no não pagamento dos impostos referidos. Aliás, o Estado, no pedido de indemnização civil, não formula qualquer outro pedido que não seja o pagamento dos impostos retidos e não entregues atempadamente.
6) Importa deixar claro que ficou provado que os impostos retidos não foram objecto de apropriação pela arguida AA, em termos pessoais, tendo sido incorporados no património da sociedade arguida.
7) Por outro lado a aceitar-se o constante do douto acórdão recorrido, isto é, que "com a dedução do pedido de indemnização civil não se pretende que as arguidas sejam condenadas a pagar os impostos devidos pela sociedade, mas antes pelo facto de ilicitamente se terem apropriado das retenções efectuadas "
8) então teria de provar-se que o prejuízo patrimonial do demandante Estado decorre de coisa diversa do que a falta de pagamento dos impostos que lhe eram devidos o que, na verdade, não logrou provar-se.
9º) Aliás, parece até haver contradição na fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação, já que da decisão também consta que "a arguida agiu em representação da arguida sociedade, não entregou nos cofres do estado as retenções efectuadas na fonte e apropriou-se das mesmas, incorporando-as no património da sociedade arguida, sendo que tal apropriação viola o preceituado na lei penal e lesa o património do Estado. ( ... ) O dano (prejuízo patrimonial causado ao estado) e o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano (a apropriação das retenções efectuadas pelas arguidas, para além de, em concreto, terem dado causa ao prejuízo patrimonial, é, em abstracto, causa adequada de tal dano patrimonial, não sendo indiferente para a produção do resultado)"pelo que não pode deixar de se considerar que, a haver prejuízo, este decorre exclusivamente da omissão da entrega dos impostos em dívida ao Estado.
10) A aceitar-se o fundamento constante do acórdão recorrido, referido em 6º) das presentes conclusões, tal circunstância possibilitaria que a Fazenda Nacional recebesse por duas vezes a mesma quantia, já que, por um lado, estariam em divida os impostos retidos e não pagos ao Estado e, por outro, indemnização por prejuízos sofridos "com a apropriação ilícita das retenções".
11) Por todo o exposto, invocando-se a excepção atrás indicada, deverá ordenar-se a extinção da instância civil, tudo nos termos do artº 493º, nº 2 e artº 494º, alínea i), todos do Cod. Proc. Civil, tendo o douto acórdão recorrido violado as disposições referidas, ao não aplicar as mesmas
Se assim não se entender, concluir-se-á ainda da seguinte forma:
12) Tendo a Fazenda Nacional reclamado o pagamento de créditos, provenientes de IVA e IRS retido e não pago pela arguida "H... - Gestão Turística, Lda.", no âmbito da insolvência desta
13) e tendo tais créditos sido definitivamente admitidos para serem pagos,
14) está vedada a possibilidade ao Estado de vir formular pedido de indemnização cível contra as arguidas "H..." e sua representante legal, já que tal pedido é exactamente o mesmo que fundamenta a referida reclamação de créditos,
15) não havendo assim prejuízo patrimonial para o Estado, que possa ser reclamado no âmbito do processo crime.
16) Na verdade, não pode a Fazenda Nacional ver os seus créditos reclamados, aceites e pagos no âmbito da insolvência da devedora principal e, simultaneamente vir exigir a mesma quantia agora no âmbito de um pedido de indemnização civil formulado em processo criminal,
17) já que ambos os pedidos são idênticos e se alicerçam nos mesmos fundamentos.
18) De outro modo a factualidade descrita conduziria a que o Estado pudesse ser pago em duplicado.
19) Violou assim o douto acórdão recorrido o disposto no art. 483º e 562 e sgs. todos do Código Civil, por erro de aplicação, na parte que condenou a arguida AA no pedido de indemnização cível, devendo ser revogado e substituído por outro que a absolva.
Termos em que se requer a revogação da douto acórdão recorrido, sendo este substituído por outro que determine ou a extinção da instância civil ou a absolvição da arguida AA quanto ao pedido civil.
Foi produzida resposta, e emitido proficiente Parecer, no sentido da improcedência do recurso.
Os autos tiveram os vistos legais.
*
Cumpre decidir.
Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:
-A arguida "H... -- Gestão Turística Lda." é uma sociedade comercial por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Alcobaça com o nº 1743/19910725 e dedica-se ao “exercício da indústria hoteleira e similares, animação cultural, desportiva, promoção e gestão turística, à administração de bens e promoção de investimentos".
A essa actividade corresponde o C.A.E. 055121 -- Actividade de Hotéis sem Restaurante --, encontrando-se enquadrada em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.) no regime normal de periodicidade mensal desde 1 de Janeiro de 1999 e, para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (I.R.C.), encontra-se enquadrada no regime simplificado, no regime compreendido entre 1 de Janeiro de 2004 a 31 de Dezembro de 2006.
Sendo igualmente sujeito de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (I.R.S.), em virtude de ter aos seus serviços trabalhadores dependentes.
Na data dos factos a seguir descritos, para levar a cabo actividade descrita em 1º, a arguida "H... -- Gestão Turística Lda." detinha e explorava os estabelecimentos hoteleiros denominados "O Caldas Internacional Hotel", sito em Caldas da Rainha, a "Residencial Concha" e a "Albergaria São Pedro", estes dois sitos em S. Martinho do Porto, área deste Concelho e Comarca de Alcobaça.
A arguida AA na data da prática dos factos a seguir descritos, era sócia-gerente, em actividade, da arguida sociedade, agindo em seu nome e no seu interesse.
Relativamente às operações realizadas no âmbito da descrita actividade social, as arguidas “H... -- Gestão Turística, Lda." e a arguida AA não fizeram a entrega das declarações periódicas Modelo 22 relativas ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (I.R.C.) relativas aos exercícios 2003 a 2005, apesar de saberem que o deviam ter feito até ao décimo dia do segundo mês seguinte a que dizem respeito as respectivas operações tributárias.
Relativamente às operações realizadas no âmbito da descrita actividade social, as arguidas “H... -- Gestão Turística, Lda." e a arguida AA entregaram apenas a última declaração de I.V.A. no mês de Agosto de 2003, sendo que o último anexo A da declaração anual entregue reporta-se ao exercício de 1999.
Nem efectuaram a contabilidade relativa aos exercícios de 2003 a 2005, apesar de saberem que podiam e deveriam tê-la feito; não regularizaram a contabilidade apesar de ter a sociedade sido para tanto notificada em 9/5/2006.
Relativamente às operações realizadas no âmbito da descrita actividade social, nos períodos temporais descritos em 6º e 8º, as arguidas “H... -- Gestão Turística, Lda." e AA liquidaram, guardaram e não entregaram ao Estado Português – Fazenda Nacional, facto de que eram capazes, mas que optaram por não fazer, as quantias a seguir discriminadas, a título de Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.):

EXERCÍCIO de 2003:
PeríodoImposto em falta
Setembro3.557,35 €
Outubro2.145,55 €
Novembro1.668,04 €
Dezembro932,90 €
TOTAL8.303,84 €

EXERCÍCIO de 2004:
PeríodoImposto em falta
Janeiro1.497,78 €
Fevereiro1.477,36 €
Março1.302,44 €
Abril2.140,43 €
Maio2.610,15 €
Junho2.584,24 €
Julho2.792,04 €
Agosto5.410,96 €
Setembro2.075,65 €
Outubro1.253,53 €
Novembro1.318,74 €
Dezembro606,46 €
TOTAL25.999,78 €

EXERCÍCIO de 2005:
PeríodoImposto em falta
Janeiro1.051,61 €
Fevereiro681;42 €
Março804,58 €
Abril1.638,53 €
Maio2.283,79 €
Junho2.352,38 €
Julho2.007,71 €
Agosto4.117,54 €
Setembro1.679,67 €
Outubro1.153,20 €
Novembro1.030,30 €
Dezembro511.75 €
TOTAL19.212,48 €


Sendo que as quantias liquidadas, guardadas e não entregues ao Estado Português – Fazenda Nacional, a título de Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.), ascendem a €53.516,10.
Sendo que, em virtude dos factos descritos em 1º, 6º e 8º, as arguidas “H... -- Gestão Turística, Lda." e AA pagaram aos seus Trabalhadores Dependentes (Categoria A) os seus salários e deles efectuaram as respectivas retenções na fonte nos montantes a seguir descriminados, os quais guardaram e não entregaram ao Estado Português – Fazenda Nacional, facto de que eram capazes, mas que optaram por não fazer:

EXERCÍCIO de 2003:
PeríodoCategoria A
Janeiro1.021,00 €
Fevereiro1.017,00 €
Março1.061,00 €
Abril1.005,00 €
Maio978,00 €
Junho974,00 €
Julho979,00 €
Agosto1.982,00 €
Setembro984,00 €
Outubro1.090,00 €
Novembro1.049,00 €
Dezembro253,00 €
TOTAL12.339,00 €


EXERCÍCIO de 2004:
PeríodoCategoria A
Janeiro1.050,00 €
Fevereiro1.020,00 €
Março975,00 €
Junho928,00 €
Julho1.036,00 €
Agosto2.057,00 €
Setembro1.046,00 €
Outubro1.049,00 €
Novembro1.056,00 €
Dezembro20.015,00 €
TOTAL12.092,00 €


EXERCÍCIO de 2005:
PeríodoCategoria A
Janeiro1.233,00 €
Fevereiro1.305,00 €
Março1.190,00 €
Abril859,00 €
Maio900,00 €
Junho859,00 €
Julho979,00 €
Agosto1.716,00 €
Setembro859,00 €
Outubro692,00 €
Novembro632,00 €
Dezembro1.776,00 €
TOTAL12.706,00 €


Sendo que o montante global das deduzidas, retidas e não entregues, respectivamente, ao Estado Português – Fazenda Nacional, a título de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, ascende a 37.191,00 €.
As arguidas apresentaram em 15/12/2005, as guias de retenção na fonte do IRS referido no ponto 11. relativas aos meses de Janeiro a Junho de 2003; em 13/12/2005, as guias relativas aos meses de Julho de 2003 a Agosto de 2004; no mês subsequente à retenção, nos demais meses desde Setembro de 2004 a Dezembro de 2005.
Em vez de entregarem aquelas quantias ao Estado Português - Fazenda Nacional, as arguidas “H... -- Gestão Turística, Lda." e AA, fizeram-nas em parte suas, e noutra parte com elas optaram por usá-las no pagamento dos salários dos seus trabalhadores, na aquisição de matérias primas, no pagamento aos fornecedores e de serviços a ela prestados.
As arguidas “H... -- Gestão Turística, Lda." e AA sabiam que as referidas quantias pecuniárias haviam sido por si liquidadas e retidas, respectivamente, para que as guardassem e viessem a entregar ao Estado Português – Fazenda Nacional e, no entanto, ao não fazê-lo e gastando-as em proveito próprio, agiram com o propósito de actuar como se fossem donas das mesmas, dispondo delas como se fossem suas, bem sabendo que as mesmas lhes não pertenciam e que agiam contra a vontade e sem autorização do Estado Português – Fazenda Nacional, legítimo proprietário das mesmas.
As arguidas “H... -- Gestão Turística, Lda." e AA actuaram aproveitando a oportunidade favorável à prática dos ilícitos descritos, dado que após a prática dos primeiros factos, não foram alvo de qualquer fiscalização ou penalização e terem verificado persistirem as possibilidades de repetirem as sua condutas.
A arguida AA actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, agindo em nome e no interesse da arguida “H... -- Gestão Turística, Lda.", bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei.
Nos anos de 2003 e seguintes, a sociedade teve ao seu serviço um técnico oficial de contas e enfrentou dificuldades financeiras, com dificuldade de cobranças de créditos e pressão dos credores para obterem os pagamentos devidos;
A arguida AA vive na estalagem que gere, embora com dificuldades financeiras;
Não tem antecedentes criminais.
Até à data não foram pagos ao Estado quaisquer das supra mencionadas quantias em dívida.
A arguida H...-Gestão Turística, Lda., foi declarada insolvente em 18/03/2006 pelo 2° juízo do Tribunal Judicial de Caldas da Rainha, no âmbito do processo 294/06.8TBCLD.
Factos não provados
As arguidas efectuaram as respectivas retenções na fonte nos montantes a seguir descriminados, os quais guardaram e não entregaram ao Estado Português – Fazenda Nacional, facto de que eram capazes, mas que optaram por não fazer, relativas aos meses de Fevereiro/03, Junho, Setembro e Dezembro/04, Março, Maio e Julho/05, nos montantes, respectivamente, de €1071, €908, €1036, €20.155, €1175, €916 e €979.
*
I
Aponta a recorrente que o presente recurso visa sindicar a decisão recorrida unicamente no que diz respeito ás seguintes decisões relativas ao pedido de indemnização:
a)Na parte em que confirmou improcedente a invocada excepção dilatória de litispendência quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Estado (recurso interlocutório)
b) Na parte em que declarou improcedente a alegação de recurso de que não resultou para o Estado qualquer prejuízo patrimonial.

Relativamente ao primeiro recurso referido, que incidiu sobre a existência, ou não, de uma excepção dilatória de litispendência quanto ao pedido de indemnização formulado pelo Estado importa considerar que dispõe o artigo 432 b) do Código de Processo Penal que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400 do mesmo diploma.
Por seu turno refere o artigo 400 nº1 alínea c) do mesmo Código que não é admissível recurso dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo.
A questão a decidir refere-se assim á competência deste Supremo Tribunal para conhecer do recurso interposto, ou seja definir se a decisão recorrida constitui, ou não, um “terminus” processual relevante nos termos dos artigos citados.
Estamos em crer que a questão em apreço se prende com a própria estrutura e princípios do direito processual penal. Na verdade, na perspectiva jurídica assumida pela lei adjectiva aquele ramo do direito surge como uma regulamentação disciplinadora de investigação e esclarecimento de um crime concreto, que permite a aplicação de um consequência jurídica a quem, com a sua conduta, tenha realizado um tipo de crime. Nesta medida ele constitui, de um ponto de vista formal, um «procedimento» público que se desenrola desde a primeira actuação oficial tendente àquela investigação e esclarecimento até à obtenção de uma sentença com força de caso julgado ou até que se execute a reacção criminal a que o arguido foi condenado. Procedimento este que põe em causa não apenas o arguido, na sua relação com o detentor do poder punitivo representado pelos órgãos que no processo intervêm, mas uma série de «terceiros» -as testemunhas, os declarantes, os peritos, os intérpretes que estabelecem entre si e com os sujeitos processuais as relações jurídicas mais diversas e assumem no processo diferentes posições jurídicas.
Foi justamente para se abranger juridicamente toda esta diversidade, apreendendo o processo como um unitário, que se procurou caracterizá-lo como relação jurídica processual. Tal relação, com bem aponta o Professor Figueiredo Dias, deverá ter subjacente uma compreensão como relação da vida social controlada pelo direito.
O conceito de relação jurídica processual penal terá então, ao menos, o efeito útil de dar a entender, com nitidez, que, com o inicio do processo penal, se estabelecem necessariamente relações jurídicas entre o Estado e todos os diversos sujeitos processuais -se bem que a posição jurídica destes seja a mais diversa e diferenciada e que dali nascem para estes direitos e deveres processuais.
Nessa perspectiva nos parece de assumir o entendimento já expresso por este Supremo Tribunal no sentido de que a decisão que põe termo á causa é aquela que tem como consequência o arquivamento, ou encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito. Em última análise trata-se da decisão que põe termo áquela relação jurídica processual penal, ou seja, que determina o “terminus” da relação entre o Estado e o Cidadão imputado, configurando os precisos termos da sua situação jurídico-criminal.
A decisão recorrida manifestamente que não configura tal perfil consubstanciando única e exclusivamente uma decisão de natureza interlocutória e não uma decisão que ponha fim á causa. Na verdade, e como bem aponta a recorrente, está em causa somente uma questão incidental cuja decisão deixou incólume a relação processual penal consubstanciada na verificação da responsabilidade criminal da arguida
É manifesta a inadmissibilidade do recurso nos termos referidos.

II
Paralelamente, a recorrente interpõe recurso da decisão final proferida no que concerne á parte cível porquanto entende que não existiu prejuízo patrimonial para o Estado.
Tal afirmação fundamenta-se na circunstância de, tal como alega, não poder a Fazenda Nacional ver os seus créditos reclamados, aceites e pagos no âmbito da insolvência da devedora principal e, simultaneamente vir exigir a mesma quantia agora no âmbito de um pedido de indemnização civil formulado em processo criminal.
A argumentação deduzida pela recorrente deve ser clarificada:-Na verdade afirma-se na decisão recorrida em sede de fundamentação que s desde Setembro de 2004 a Dezembro de 2005.
Em vez de entregarem aquelas quantias ao Estado Português - Fazenda Nacional, as arguidas “H... -- Gestão Turística, Lda." e AA, fizeram-nas em parte suas, e noutra parte com elas optaram por usá-las no pagamento dos salários dos seus trabalhadores, na aquisição de matérias primas, no pagamento aos fornecedores e de serviços a ela prestados.
As arguidas “H... -- Gestão Turística, Lda." e AA sabiam que as referidas quantias pecuniárias haviam sido por si liquidadas e retidas, respectivamente, para que as guardassem e viessem a entregar ao Estado Português – Fazenda Nacional e, no entanto, ao não fazê-lo e gastando-as em proveito próprio, agiram com o propósito de actuar como se fossem donas das mesmas, dispondo delas como se fossem suas, bem sabendo que as mesmas lhes não pertenciam e que agiam contra a vontade e sem autorização do Estado Português – Fazenda Nacional, legítimo proprietário das mesmas.

Significa o exposto que a negação da existência de um dano indemnizável por parte da recorrente enfrenta, á partida, o óbice de estar em plena contradição com os factos provados.
Na verdade, como já referimos em decisão emitida no processo 3182/08, nos termos do artigo 71 do Código de Processo Penal o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado perante o tribunal civil nos casos previstos na leia. Na teleologia do mesmo normativo o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime, ou seja, tem de ter na sua base uma conduta criminosa que determina o funcionamento do princípio da adesão.
Como refere Germano Marques da Silva, «Sucede é que o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso da absolvição da responsabilidade criminal, o tribunal conheça da responsabilidade civil que é daquela autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgados contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo».
Com a consagração do princípio da adesão resolvem-se no processo penal todas as questões que envolvem o facto criminoso em qualquer uma das suas vertentes sem necessidade de recorrer a mecanismos autónomos. Por outro lado, salienta-se a manifesta economia de meios uma vez que os interessados não necessitam de despender e dispersar custos quando afinal o tribunal a quem se atribuiu competência para conhecer do crime oferece as mesmas garantias quando ela é alargada ao conhecimento de uma matéria que está intimamente ligada a esse crime. Finalmente importa salientar razões de prestígio institucional, o qual poderia ser posto em jogo se houvesse que enfrentar julgados contraditórios acerca do ilícito criminal a julgar, um no foro criminal com determinado sentido e outro no foro cível, eventualmente com expressão completamente contrária ou oposta.
Como se refere em acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Julho de 2008 interdependência das acções significa que mantêm a independência nos pressupostos e nas finalidades (objecto), sendo a acção penal dependente dos pressupostos que definem um ilícito criminal e que permitem a aplicação de uma sanção penal, e a acção civil dos pressupostos próprios da responsabilidade civil; a indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil (artigo 129º do Código Penal) nos respectivos pressupostos e só processualmente é regulada pela lei processual penal. A interdependência das acções significa, pois, independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da acção cível ao processo penal.
Com o exercício da acção civil o que está em causa no processo penal é o conhecimento pelo tribunal de factos que constam da acusação e do respectivo pedido de indemnização e que, consequentemente, são coincidentes no que refere á caracterização do acto ilícito. Atributo próprio do pedido cível formulado será o conhecimento e a definição do prejuízo reparável.
O itinerário probatório é exactamente o mesmo no que toca aos factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, havendo, apenas, que acrescentar que em relação a esta há, ainda, que provar os factos que indicam o dano e o nexo causal entre o dano e o facto ilícito.

O presente excurso não reveste uma natureza meramente discursiva, e ausente de preocupações práticas, mas assume uma especial relevância numa vertente do presente recurso que conflui com os seus limites e objecto.
Na verdade a Lei 48/2007 introduziu um novo nº3 no artigo 420 do Código de Processo Penal no qual, á revelia de entendimento jurisprudencial sustentado e fixado no acórdão 1/2002, se comina a possibilidade de recurso da parte da sentença relativa á indemnização civil, mesmo que não seja admissível recurso quanto á matéria penal.
Mas, perguntamo-nos até que ponto se pode estender o conhecimento do tribunal de recurso, a pedido do recorrente do segmento cível, quando transitou em julgado a parte penal que julgou definitivamente a responsabilidade criminal?
-Entendemos que o recurso restrito ao pedido cível não pode, em nenhuma circunstância, ferir o caso julgado que se formou em relação á responsabilidade criminal. Consequentemente, não é admissível a impugnação que pretenda colocar em causa a matéria de facto que suporta tal responsabilização criminal.
O recurso relativo á matéria cível apenas pode abarcar a impugnação da decisão proferida no que toca especificamente ao conhecimento e decisão próprios e específicos do pedido cível, ou seja, ao prejuízo reparável.

Assumido o exposto como pressuposto lógico e incontornável da questão do fundo do presente recurso depara-se com a evidente aporia de se fundamentar numa visão dos factos diversa da que sustentou a sua responsabilização criminal o que não é admissível nos termos expostos.

A recorrente alude, ainda, a uma dimensão diversa da questão da existência de prejuízo ao afirmar que “a verdade, não pode a Fazenda Nacional ver os seus créditos reclamados, aceites e pagos no âmbito da insolvência da devedora principal e, simultaneamente vir exigir a mesma quantia agora no âmbito de um pedido de indemnização civil formulado em processo criminal”
Tal afirmação não tem coerência lógica pois que uma coisa é a reclamação do crédito e outra é este crédito ser reconhecido e pago, ou seja, e não é pelo faço de o mesmo crédito ter sido reclamado que o mesmo deixa de ser um crédito a satisfazer Assim tudo se reconduz a saber se existe, ou não, uma relação de litispendência o que já mereceu a referência supra sobre a inadmissibilidade do recurso no respeitante.

Termos em que decidem os Juízes Conselheiros que integram a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente os recursos interpostos confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente com a taxa de justiça de 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Dezembro de 2008

Santos Cabral (Relator)
Oliveira Mendes