Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1448/15.1T8VNG.P2.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
DECISÃO PROVISÓRIA
CASO JULGADO
DIVÓRCIO
EX-CÔNJUGES
BEM IMÓVEL
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
EFICÁCIA
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO ÀS PESSOAS E AOS BENS DOS CÔNJUGES / DIVÓRCIO E SEPARAÇÃO JUDICIAL DE PESSOAS E BENS / DIVÓRCIO / EFEITOS DO DIVÓRCIO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTÂNCIA / COMEÇO E DESENVOLVIMENTO DA INSTÂNCIA / PROCEDIMENTOS CAUTELARES – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / EXCEÇÕES / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA – PROCESSOS ESPECIAIS / DIVÓRCIO E SEPARAÇÃO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE / PROCESSOS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA / PROVIDÊNCIAS RELATIVAS AOS FILHOS E AOS CÔNJUGES.
Doutrina:
-António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, Almedina, 45 e 46;
-Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, 596;
-João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, 81 e 82;
-José António França Pitão e Gustavo França Pitão, Código de Processo Civil Anotado, Quid Juris, Tomo II, 280;
-Manuel A. Domingues Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, Coimbra Editora, 305;
-Nuno de Salter Cid, A protecção da casa de morada da família no direito português, Almedina, 318 e 322.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1688.º, 1689.º, N.º 1 E 1788.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 266.º, N.º 1, 364.º, N.º 4, ALÍNEA C), 373.º, N.ºS 1 E 3, 581.º, N.º 1, 635.º, N.º 4, 639.º, N.º 1, 672.º, N.º 3, 931.º, N.º 7, 990.º E 1407.º, N.º 7.
LEI N.º 23/2013, DE 5 DE MARÇO: - ARTIGO 79.º.
DL N.º 74/2011 DE 20 DE JUNHO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 26-04-2012, PROCESSO N.º 33/08.9TMBRG.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-01-2013, PROCESSO N.º 1006/11.0TBVRS-A.E1.S1;
- DE 15-05-2013, PROCESSO N.º 12/09.9TAVGS-A.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-01-2015, PROCESSO N.º 227/12.2TBSAT.C1.S1;
- DE 13-10-2016, PROCESSO N.º 135/12.7TBPBL-C.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio e distinto do processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família, configurando o primeiro uma antecipação dos efeitos da composição definitiva do litígio que se alcançará no último.

II - Apesar de não ser expressamente qualificado como tal, o primeiro tem vindo a ser considerado um procedimento cautelar específico do processo judicial de divórcio, encerrando, assim, as características basilares da tutela cautelar em que avulta a provisoriedade e a instrumentalidade da regulação judicialmente estabelecida.

III - Implicando o divórcio a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges (arts. 1688.º e 1788.º do CC) e inserindo-se o imóvel que constituiu a casa de morada de família no acervo patrimonial comum a partilhar, é de considerar também que a mencionada regulação é ainda instrumental relativamente aos efeitos de uma eventual adjudicação no âmbito do inventário em consequência de divórcio (art. 79.º da Lei n.º 23/2013, de 05-03).

IV - A tutela que é assegurada pela via cautelar é, em regra, inerentemente temporânea, pelo que as decisões aí proferidas não são, em geral, susceptíveis de constituir caso julgado.

V - Tal conclusão assenta na diversidade dos objectos, de trâmites e de critérios de formação da convicção e de decisão que existe entre a tutela cautelar e a tutela que é garantida por via de uma acção e, bem assim, na consideração da natureza iminentemente provisória da regulação estabelecida (que justifica, por exemplo, que a decisão possa ser modificada ou mesmo revogada na sequência da dedução da oposição (n.º 3 do art. 373.º do CPC), a qual é incompatível com a solidez e estabilidade que comumente são identificadas como traços característicos do caso julgado.

VI - A esta luz, a regulação da utilização da casa de morada de família fixada no âmbito do processo n.º 5815/07.6TBVNG-A é, atenta a índole eminentemente cautelar do procedimento especialíssimo em que foi estabelecida, insusceptível de constituir caso julgado.

VII - Essa regulação assumiu, por natureza, um alcance temporalmente delimitado (a pendência do processo de divórcio) e, encontrando-se as partes já definitivamente divorciadas, a regulação provisória perdeu a sua eficácia, tanto mais que não foi entretanto instaurado processo de jurisdição voluntária de atribuição de casa de morada de família, previsto no art. 990.º do CPC, para decidir, em sede própria, a questão em termos definitivos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – AA instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, alegando, em síntese, que:

A. e R. foram casados, tendo adquirido habitação, que era casa morada de família, da qual a A. saiu a 15.06.2007, aí deixando o respectivo recheio constituído por bens comuns.

Em incidente de atribuição da casa morada de família, a mesma foi atribuída ao R., com obrigação de compensação à A. a fixar desde 01.11.2013 até partilhas – decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto.

O R. usa em exclusivo a habitação desde o dia 15.06.2007 e, desde Julho de 2014, usa também em exclusivo uma viatura automóvel pertença de ambos.

Com tais fundamentos, formulou os seguintes pedidos:

“I - Condenar-se o Réu a compensar a Autora pelo uso exclusivo que faz do imóvel comum, descrito na 2.ª Conservatória de Registo Predial sob n.º 3…7, da freguesia de ..., inscrito na respectiva matriz sob art.º 6…1, desde 15/06/2007 até 01/11/2013 (data a partir da qual o Réu já se encontra condenado a pagar tal compensação).

II – Fixar-se essa compensação em valor correspondente a metade do valor locativo daquele imóvel (na ordem dos €4.000,00/mês nos anos de 2007 e 2008 e na ordem dos €3.500,00/mês nos anos de 2009 a 01 de Novembro de 2013), e que se cifra em €138.500,00 (cento e trinta e oito mil e quinhentos euros), correspondendo a (18,5 meses x €2.000) + (58 meses x €1.750,00);

III – Determinar-se que a compensação referida em II não pode ser, porém, inferior às despesas que o imóvel acarreta (na ordem dos €3.500,00/mês), acrescidas de despesas de manutenção e reparação do imóvel, estas a liquidar em execução de sentença, na sequência do que se apurar em acção de prestação de contas, sob pena de injusto locupletamento do Réu;

IV – Condenar-se o Réu a compensar a Autora pelo uso exclusivo que fez, desde 15/06/2007 até 04/08/2008 de todos os bens móveis, comuns do casal, que constituíam o recheio daquela casa, e desde esta data (04/08/2008) até à partilha dos bens do casal, de bens móveis, comuns do casal, de valor superior aos bens móveis que passaram a ser fruídos pela Autora, em quantia não inferior a €5.000,00 (cinco mil euros).

V - Condenar-se o Réu a compensar a Autora pelo uso exclusivo do veículo de matrícula ...-...-ZA, comum do casal, desde Julho de 2014, data a partir da qual a Autora deixou de poder utilizar em seu benefício o outro veículo comum do casal, à razão mensal de €500,00 (quinhentos euros), até partilha dos bens comuns do casal, e que neste momento se cifra em €3.500,00.

VI - Tudo, com juros desde a citação até efectivo pagamento”.

O Réu contestou, arguindo a excepção de caso julgado no que concerne aos pedidos aludidos em I), II), III) e parte do IV), com base na decisão proferida no incidente de atribuição provisório de casa de morada da família, e a excepção de litispendência relativamente aos pedidos IV) e V), por estar já pendente inventário para partilha do património comum.

Findos os articulados, foi proferido saneador em que, na procedência das arguidas excepções de caso julgado e litispendência, foi o R. absolvido da instância.

Inconformada, apelou a A., sem êxito, tendo a Relação do …, confirmado, por unanimidade, a decisão da 1ª instância e, persistindo irresignada, interpôs recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

1. É admissível recurso de revista, ao abrigo do art. 629-2-a CPC, do acórdão da Relação que absolva o réu da instância com fundamento em caso julgado, e não só do acórdão proferido contra caso julgado: em ambos os casos o recurso tem, por objeto verificar se a exceção de caso julgado se verifica (ou se joga a autoridade do caso julgado) e o princípio da igualdade das partes impõe a interpretação, feita ao abrigo dos arts. 13 e 20 da Constituição da República, segundo a qual ambas têm direito ao recurso, independentemente do sentido da decisão recorrida.

2. Aliás, o interesse processual da parte no afastamento do caso julgado através de recurso ordinário é maior do que o da parte que pretende a verificação, em recurso, da ocorrência do caso julgado: do regime do art. 625 CPC, ressalta que a existência do caso julgado pode ainda ser feito valer na execução da segunda sentença (art. 729-f); mas, proferida uma decisão de absolvição da instância por ocorrência de caso julgado, à parte não resta senão a via do recurso ordinário.

3. Tem particular relevância jurídica e social, tido nomeadamente em conta o tempo de possível demora processual até à prolação da decisão de atribuição provisória da casa de morada de família, a questão de saber se deve ser atribuída uma compensação pela sua utilização de facto exclusiva até esse momento, pelo que, se o recurso não fosse admissível por via do art. 629-2-a CPC, deveria sê-lo como revista excecional, ao abrigo das alíneas a) e b) do art. 672 CPC.

4. A decisão que, no incidente de atribuição da utilização da casa de morada de família, fixa a compensação a prestar, após esta atribuição, pelo cônjuge a quem é atribuído o seu uso não constitui caso julgado invocável em ação em que o outro cônjuge peça a este uma compensação relativamente ao período, anterior, de utilização exclusiva da casa, durante a separação de facto de ambos, dado serem diversos o pedido e a causa de pedir.

5. Não houve uma decisão de mérito sobre a (não) atribuição de compensação relativa aos 6 anos durante os quais, sem qualquer atribuição jurisdicional desse direito, o cônjuge marido ocupou com exclusividade a casa do casal.

6. Acresce que as providências com eficácia provisória não afetam as decisões definitivas (como se vê no art. 364-4 CPC em sede cautelar).

7. Até ao momento da atribuição provisória do uso da casa de morada de família, ambos os cônjuges têm, nos termos do art. 1406-1 CC, direito a dela se servirem e se apenas um cônjuge continuar a habitá-la após a separação de facto, o outro tem direito a auferir também, embora de modo indireto, as suas utilidades, mediante uma compensação a prestar por quem a habita, maxime se continuar a participar nos encargos respeitantes à sua aquisição, manutenção ou reparação.

8. As compensações a efetuar no momento da partilha terão inevitavelmente que passar pelos meios comuns (cf. art. 16-1 RJPI), de que a presente ação é mera antecipação, uma vez que, como alegado na PI, já se encontra pendente o inventário.

9. O acórdão recorrido violou, pois, entre outras, as normas dos arts. 364-4, 580 e 990 do CPC e dos arts. 1406-1 e 1709 do Código Civil.

10. Admitido o recurso, deve, pois, ser revogado o acórdão recorrido, e ordenado o prosseguimento dos autos para definição do direito reclamado pela autora; ou, subsidiariamente, ser o recorrido, após revogação do acórdão recorrido, condenado a pagar à recorrente a quantia, a fixar, que compense o seu uso exclusivo da casa de ambos até ao momento da partilha.

O R. ofereceu contra-alegação a pugnar pela inadmissibilidade do recurso e pelo seu inêxito, no caso de ser admitido.

Inicialmente distribuído como revista excepcional, a formação prevista no art.º 672º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, determinou, por respeito à hierarquia do pretendido pela Recorrente, a sua distribuição como revista normal e, sendo esta inadmissível, o retorno do processo àquela formação, para apreciação da sua admissibilidade como revista excepcional (cfr. fls. 868).

Distribuído o processo, o relator proferiu o despacho de fls. 875 a 882 em que decidiu não haver lugar à revista normal e ordenou a remessa à referida formação que, através do acórdão de fls. 888 a 894, admitiu o recurso de revista excepcional.

Foram colhidos os vistos, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1. Por requerimento datado de 07.11.2008 veio o aqui R. pedir, ao abrigo do disposto no artigo 1407.º, n.º 7, do Código de Processo Civil a fixação de um regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família.

2. Em tal demanda, ao que interessa, alegou o aqui R. o seguinte: “após a separação do casal o único residente da casa de morada de família é o ora autor uma vez que a ré foi para casa da sua progenitora levando consigo os filhos do casal. O autor mantém o centro da sua vida nessa residência e onde decorrem os períodos de convívio com os filhos. A casa situa-se perto dos avós paternos destes últimos os quais lhe prestam apoio, principalmente quando os netos estão presentes. Alega ainda que é o único a suportar todas as despesas relacionadas com a casa pelo que pretende lhe seja atribuído o direito de utilização exclusiva da casa de morada de família na pendência do processo de divórcio uma vez que não possui outra residência para habitar e não tem possibilidades económicas para ir arrendar outro imóvel com condições para receber os filhos. Invoca ainda a circunstância que no âmbito do processo de regulação do exercício do poder paternal a ré prescindiu do uso da casa de morada de família o qual lhe havia sido atribuído a título de pensão de alimentos devida aos menores”.

3. Por sua vez a aqui A. sustentou: “que entendeu por bem desistir do uso da casa de morada de família que lhe havia sido conferido em conferência de progenitores datada de 10.07.2007 para salvaguardar a estabilidade emocional e psicológica dos menores dada a reacção do autor a tal decisão judicial, da qual aliás interpôs recurso com efeito suspensivo. Conclui declarando que nada tem a opor a que o autor se mantenha na casa de morada de família desde que a requerida fique isenta de qualquer direito de compensação ou de regresso em relação às prestações bancárias que venham a ser pagas pelo autor para liquidação do empréstimo contraído para aquisição da mesma bem como das respectivas despesas de manutenção/conservação. Assim não se entendendo requer que a casa de morada de família lhe seja atribuída uma vez que necessita de se autonomizar face à sua progenitora indo residir com as crianças para casa própria sendo certo que a casa de morada de família tem todas as condições para acolher os filhos. Posteriormente veio a ré (ora A.) alegar que foi condenada a pagar ao autor o valor mensal de 1.000,00 euros correspondente a cerca de 50% das despesas referentes às amortizações mensais dos empréstimos bancários contraídos para aquisição de casa de morada de família, seguros de vida acoplados a tais empréstimos e IMI, pelo que não tem actualmente condições para manter o arrendamento da casa onde reside com os menores e sita em ... onde trabalha. Prevê que no Movimento de Magistrados Judiciais que se espera ocorrer em Outubro/Novembro deste ano face à implementação de novo mapa judiciário a vigorar a partir de 01.12.2011 (DL n.º 74/2011 de 20.06) possa ser colocada no distrito do Porto, sendo certo que não tem condições económicas para arrendar casa em ….

4. Aí foi considerado provado que:

- Os dois menores filhos do casal (nascidos respectivamente em 02.05.2003 e 15.04.2005) estão à guarda da mãe com quem residem;

- A progenitora é … exercendo funções no Tribunal de … onde foi colocada no Juízo de Grande Instância Cível pelo movimento judicial ordinário de Julho de 2010 auferindo cerca de €3.723,00;

- A progenitora e os menores residem em … em casa arrendada pela quantia mensal de €550,00;

- Os menores frequentam a escola no distrito de …;

- A progenitora foi condenada por decisão transitada em julgado a contribuir para as despesas domésticas com o valor mensal de 1.000,00 euros correspondente a cerca de metade das despesas referentes às amortizações mensais dos empréstimos bancários contraídos para aquisição de casa de morada de família, seguros de vida acoplados a tais empréstimos e IMI;

- A progenitora tem despesas com empregada doméstica, supermercado e renda de casa, seguros e contribuições para a segurança social na ordem dos €1.450,00 tendo em conta os valores indicados na decisão proferida pelo Tribunal da Relação do … no apenso F (contribuição para despesas domésticas);

- O imóvel que constitui a casa de morada de família acarreta uma despesa mensal total de cerca de €2740,00;

- O requerido paga o valor de €700,00 euros mensais a título de prestação de alimentos devidos aos menores;

- O remanescente apurado das despesas referentes às amortizações mensais dos empréstimos bancários contraídos para aquisição de casa de morada de família, seguros de vida acoplados a tais empréstimos e IMI é liquidado pelo autor;

- O progenitor aufere cerca de €3052,96 euros tendo despesas superiores ao valor da sua remuneração mensal;

- O progenitor exerce funções como ... no distrito e comarca do Porto;

- Quer a avoenga paterna quer a materna dos filhos do casal apresentam condições habitacionais adequadas e suficientes para receber o filho ou a filha e netos.

5. A final, em 1.ª instância foi decidido «atribuir provisoriamente ao cônjuge marido a utilização da casa de morada de família».

6. Interposto recurso de tal decisão para o Tribunal da Relação do …, sendo que, em sede de conclusões da alegação de recurso, a aqui A. afirma que a compensação a atribuir deve ser fixada desde a data em que o cônjuge marido está no uso exclusivo daquela (15.06.2007) até à partilha, a liquidar em execução de sentença.

7. A final foi proferida decisão pela qual se ordenou que o aqui R. deveria pagar à aqui A. uma compensação, a fixar oportunamente na 1.ª instância, pela atribuição provisória da casa de morada de família, até à partilha dos bens comuns do casal, sendo que tal data foi fixada a partir de 01.11.2013, data a partir da qual é devida pelo aqui R. à aqui A. a compensação.

8. Correu seus termos demanda interposta pelo aqui R. contra a A., sendo, a final, decidido que a aqui A. deveria pagar ao aqui R. a quantia de 1.000,00 € mensais a título de contribuição para as despesas domésticas.

9. Corre termos processo de inventário com a finalidade de partilhar os bens na sequência de divórcio, tendo sido já apresentada a relação de bens, no qual entre o mais, foram relacionadas viaturas automóveis, pagamentos que o aqui R. fez para pagamento de crédito hipotecário, seguros, manutenção da casa, etc.

A título complementar, há ainda a considerar o seguinte:

10. A Autora reclamou do acórdão mencionado em 7. para a conferência, visando que o Tribunal da Relação fixasse o momento a partir do qual a compensação seria devida, considerando que esse momento temporal, pelo menos, devia coincidir com a data em que o incidente foi requerido, embora tenha colocado à consideração do Tribunal que o cônjuge marido usava exclusivamente a casa desde 15/07/2007 (cfr. certidão judicial de fls. 398 e 399).

11. No acórdão subsequentemente proferido, o Tribunal da Relação do Porto tomou expressamente em consideração a possibilidade de a data a fixar poder ser uma de entre as quatro seguintes: a data a partir da qual o recorrido passou a usar, em exclusividade, o imóvel do casal (15.06.2007); a data em que o mesmo recorrido deduziu o incidente de atribuição provisória da casa e morada de família (07.11.2008); a data em que a recorrente (a aqui Autora) se opôs a esse incidente (05.12.2008); e a data em que a 1ª instância decidiu o incidente a favor do recorrido (01.11.2013) (cópia do aresto em causa, constante de fls. 73 e 74).

III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso de revista excepcional, delimitado pelas conclusões da alegação da Recorrente (art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), resumem-se, como já foi definido pelo relator e pela formação prevista no art.º 672º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, à análise e dilucidação da única questão jurídica por ela colocada a este tribunal e que consiste em determinar se a decisão proferida no incidente de atribuição provisória da casa de morada de família obsta, por via da excepção dilatória do caso julgado, ao conhecimento do mérito da causa, que se reduz, agora, às pretensões aludidas em I, II, III e IV do petitório inicial.

O acórdão recorrido entendeu, em convergência com a 1ª instância, que a decisão proferida no processo n.º 5815/07.6TBVNG-A se impunha com a força do caso julgado, à Recorrente, determinando, por isso, a impossibilidade de conhecer do mérito daquelas pretensões.

Sucede que, como se colhe do ponto n.º 1 do elenco factual provado, regulou-se, nesse processo, a utilização da casa de morada da família que pertence a ambas as partes, perpassando do normativo legal invocado pelo Recorrido na petição inicial que deu início a esse processo (art.º 1407.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, na versão anterior à Lei n.º 41/2013, de 26/6, e que corresponde ao actual art.º 931º, n.º 7) e, bem assim, da decisão tomada (cfr. pontos n.ºs 5 e 7 do mesmo elenco) que ali se decidiu uma regulação provisória e, nessa medida, com alcance meramente temporário, reportando-se tal provisoriedade à pendência do processo de divórcio[1].

Com efeito, como reiteradamente o Supremo Tribunal de Justiça tem sublinhado e decidido[2], a fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio, distinto do processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família, configurando o primeiro uma antecipação dos efeitos da composição definitiva do litígio que se alcançará no último. Além disso, apesar de não ser expressamente qualificado como tal, o primeiro tem vindo a ser considerado um procedimento cautelar específico do processo judicial de divórcio[3], encerrando, assim, as características basilares da tutela cautelar em que avulta a provisoriedade e a instrumentalidade da regulação judicialmente estabelecida. 

Por outro lado, implicando o divórcio a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges (art.ºs 1688.º e 1788.º do Cód. Civil) e, no caso, inserindo-se o imóvel que constituiu a casa de morada de família no acervo patrimonial comum a partilhar (cfr. ponto 9. do elenco factual provado e n.º 1 do art.º 1689.º do Cód. Civil) é de considerar também que a mencionada regulação é ainda instrumental relativamente aos efeitos de uma eventual adjudicação no âmbito do inventário em consequência de divórcio (art.º 79.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março).

Ora, como se sabe, a tutela que é assegurada pela via cautelar é, em regra[4], inerentemente temporânea, pelo que as decisões aí proferidas não são, em geral, susceptíveis de constituir caso julgado[5]. Tal conclusão assenta na diversidade dos objectos, de trâmites e de critérios de formação da convicção e de decisão que existe entre a tutela cautelar e a tutela que é garantida por via de uma acção e, bem assim, na consideração da natureza iminentemente provisória da regulação estabelecida (que justifica, por exemplo, que a decisão possa ser modificada ou mesmo revogada na sequência da dedução da oposição (n.º 3 do art.º 373.º do Cód. Proc. Civil), a qual é incompatível com a solidez e estabilidade que comumente são identificadas como traços característicos do caso julgado.

Aliás, o disposto no n.º 4 do art.º 364.º e na alínea c) do n.º 1 do art.º 373.º, ambos do Cód. Proc. Civil, evidenciam também essa conclusão, sendo que a inadmissibilidade da repetição de providências (n.º 4 do art.º 362.º do mesmo diploma) se justifica pela desnecessidade da sua adopção e não pelo instituto do caso julgado.

A esta luz, somos levados a concluir que, ao contrário do que decidiram as instâncias, a regulação da utilização da casa de morada de família fixada no âmbito do processo n.º 5815/07.6TBVNG-A é, atenta a índole eminentemente cautelar do procedimento especialíssimo em que foi estabelecida, insusceptível de constituir caso julgado. Além disso, há ainda a ter em conta que, como já se disse, essa regulação assume, por natureza, um alcance temporalmente delimitado, qual seja a pendência do processo de divórcio. E, atentando no elenco factual provado (cfr. ponto n.º 9), constata-se que as partes já se encontram definitivamente divorciadas, pelo que essa regulação provisória perdeu a sua eficácia, tanto mais que não há, por outro lado, notícia de que o Recorrido tenha lançado mão do processo de jurisdição voluntária de atribuição de casa de morada de família, previsto no art.º 990º do Cód. Proc. Civil, para decidir, em sede própria, a questão em termos definitivos.

Sabe-se que a excepção do caso julgado tem por escopo a segurança jurídica da comunidade e o prestígio das decisões judiciais, o que é essencial para garantir a paz jurídica e social e assegurar o respeito dos cidadãos pelos tribunais[6]. Se assim é, seria pouco curial que se pudesse invocar uma decisão judicial cuja eficácia já expirou para, com base na invocação do caso julgado, obstar ao conhecimento do mérito da causa nos presentes autos, tanto mais que o lapso temporal a equacionar é distinto.

Adicionalmente, sublinhe-se ainda que não se vislumbra que a Recorrente tenha formulado qualquer pedido ou invocado qualquer causa de pedir no âmbito do processo n.º 5815/07.6TBVNG-A, pois foi demandada nesse incidente e não deduziu reconvenção[7], que é, no que toca ao réu, o único meio que lhe permite solicitar ao tribunal uma tutela jurisdicional substantiva (cfr. art.º 266.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), sendo, por isso, inviável considerar que existe a necessária identidade de causas de pedir e de pedidos que, cumulativamente com a identidade de partes (essa sim, é indubitável), justificaria o acolhimento da excepção de caso julgado que assenta, como se sabe, na tríplice identidade a que se refere o n.º 1 do art.º 581.º do Cód. Proc. Civil.

Nesta conformidade, procedem as conclusões da Recorrente, a quem assiste razão em insurgir-se contra o decidido pelas instâncias que, sem quebra do devido respeito, não equacionaram devidamente a situação em apreço e não fizeram correcta leitura, interpretação e aplicação das citadas disposições legais, não podendo, por isso, subsistir.

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se conceder a revista e revogar o acórdão da Relação bem como a decisão da 1ª instância, julgando-se improcedente a invocada excepção de caso julgado e determinando-se o prosseguimento do processo.

Custas pelo Recorrido.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 23 de Novembro de 2017


António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1]Cfr, neste sentido, Nuno de Salter Cid, in A protecção da casa de morada da família no direito português, Almedina, págs. 318 e 322, José António França Pitão e Gustavo França Pitão, in Código de Processo Civil Anotado, Quid Juris, tomo II, pág. 280, e António Santos Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, Almedina, págs. 45 e 46.
[2]Cfr., entre outros, os acórdãos de 26/04/2012 (proc. n.º 33/08.9TMBRG.G1.S1), e de 13/10/2016 (proc. n.º 135/12.7TBPBL-C.C1.S1),  ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[3] Ainda no sentido de existir uma semelhança entre o procedimento a que se refere o n.º 7 do art.º 931.º do Cód. Proc. Civil e os procedimentos cautelares, pode-se concitar o parecer junto aos autos (cfr. fls. 851).
[4] A excepção serão os casos em que funcionar o mecanismo de inversão do contencioso (cfr. art.º 369.º do Cód. Proc. Civil), o que não sucedeu no caso.
[5] Cfr, neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 15/01/2013 (proc. n.º 1006/11.0TBVRS-A.E1.S1), de de 13/01/2015 (proc. n.º 227/12.2TBSAT.C1.S1), e de 15/05/2013 (proc. n.º 12/09.9TAVGS-A.C1.S1),  o último acessível em www.dgsi.pt.
[6] Cfr, neste sentido, Manuel A. Domingues Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1976, Coimbra Editora, pág. 305, João de Castro Mendes, in Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, págs. 81 e 82, e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, pág. 596.
[7] Sendo, aliás, duvidosa a admissibilidade desta no contexto particular desse procedimento especialíssimo, atentas as regras que o disciplinam.