Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
175/17.0TNLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
REJEIÇÃO DE RECURSO
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
ARBITRAGEM INTERNACIONAL
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
REVISTA EXCECIONAL
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (MARÍTIMO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A convenção de arbitragem é o acordo das partes em submeter a resolução de um ou mais litígios determinados ou determináveis a arbitragem, excluindo, desse modo, a competência dos tribunais estaduais.

II. A convenção de arbitragem transnacional não se confunde  com a competência  internacional dos tribunais portugueses, que se traduz  na  competência dos tribunais portugueses para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento português uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresentam igualmente uma conexão relevante  com a ordem jurídica portuguesa, nem com a competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses que ocorre quando a ordem jurídica portuguesa não admite a privação de competência por pacto de jurisdição nem reconhece decisões proferidas por tribunais estrangeiros que se tenham considerado competentes.

III. A preterição do tribunal arbitral por força de uma cláusula compromissória  determina a incompetência absoluta do tribunal judicial, nos termos do artigo 96º, alínea b) do Código de Processo Civil.

IV. Comparando a delimitação dos casos de incompetência absoluta  definidos na alínea a) e na alínea b) do artigo 96º, do Código de Processo Civil, impõe-se concluir que o regime especial de recorribilidade a que aludem os artigos 629, nº 2 alínea  a) e 671º, nº 3, parte inicial,  do Código de Processo Civil reporta-se única e exclusivamente ao casos de violação das regras de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia,  não sendo de aplicar quando esteja  em discussão a preterição de tribunal arbitral prevista na   alínea  b)  do citado artigo 96º.

V. Não tendo a recorrente, no requerimento de interposição de recurso, manifestado a vontade de  interpor, ainda que subsidiariamente,  recurso de revista, a título excecional, nem cumprido o ónus que, nos termos do artigo 672º, nº 1, do Código de Processo Civil, sobre ela impendia  de alegar as razões que, em seu entender, reclamariam  a admissão excecional do recurso de revista,  não há que admitir, por convolação, o recurso como sendo de revista excecional.

Decisão Texto Integral:


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL



***


I – Relatório


I. Pingo Doce Distribuição Alimentar, S.A., pessoa coletiva nº 500829993 intentou a presente ação com processo comum contra ANL Singapore, PTE, LTD, com sede em Singapura, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 144.707,70, correspondente ao montante dos prejuízos que alega ter sofrido em consequência do cumprimento defeituoso do contrato de transporte marítimo internacional das mercadorias que adquiriu no estrangeiro, decorrente do facto da ré, na qualidade de transportadora, não ter zelado pela manutenção da temperatura convencionada durante o período em que os bens deslocados lhe estiveram confiados, o que determinou a perda total dos mesmos.


2. Regularmente citada, a ré contestou, invocando a exceção de incompetência absoluta do Tribunal, por preterição do tribunal arbitral voluntário, na medida em que o contrato que substancia a demanda contém uma cláusula compromissória, aceite e não desconhecida das partes – inclusivamente da autora – que determina e impõe que todos e quaisquer litígios referentes ao conhecimento de carga e ao transporte de mercadorias devem ser referidos e decididos em arbitragem a correr em Singapura e de acordo com as Regras da Câmara de Arbitragem Marítima de Singapura.

Invocou ainda as exceções de caducidade e limitação da sua responsabilidade e defendeu-se igualmente por impugnação.

Concluiu pela procedência da referida exceção e, consequentemente, pela sua absolvição da instância ou, caso assim se não entenda, pela procedência da exceção de caducidade ou pela improcedência da ação e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.


3. Seguidamente foi proferido despacho, convidando a autora a exercer o direito ao contraditório relativamente às exceções invocadas.


4. A autora respondeu, sustentando que não celebrou qualquer contrato com a Ré nem figura no conhecimento de carga como consignatária da mercadoria.

Mais argumentou que apenas teve acesso ao documento de transporte depois da chegada da carga ao destino (aquando do seu levantamento) e, por isso, não aceitou – expressa ou tacitamente – a cláusula em apreço, a qual também não é por si conhecida em consequência do exercício da sua atividade comercial, sendo-lhe por isso inoponível.

Concluiu pela improcedência da sobredita exceção.


5. Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, que julgou procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal, por preterição de pacto de jurisdição, e consequentemente, declarou o Tribunal Marítimo de Lisboa incompetente para a presente causa, absolvendo a ré da instância.


6. Inconformada com esta decisão, dela apelou a autora para o Tribunal a Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 05.12.2020, julgou a apelação improcedente, confirmando o despacho saneador recorrido.

7. Inconformada com este acórdão, dele interpôs a autora recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do disposto nos arts. 629º, nº 2, al. a), 671º, nº 2, al. a) e nº 3, parte inicial, ambos do CPC, por, segundo ela, a decisão que julgou procedente a exceção de preterição do tribunal arbitral, consubstancia violação das regras de competência  internacional e material consagradas no artigo 7º nº 1 da Lei nº 35/86, de 4 de Setembro, no âmbito da discussão sobre a arbitrabilidade do presente litígio, por não existir “dupla conforme” e, por, quanto às condições de validade formal da cláusula compromissória e respetiva vinculação, estarmos perante questão em que se discute a delimitação ou confronto de jurisdição entre os tribunais arbitrais e os tribunais judiciais (portanto, de competência material em sentido amplo) ( cfr. pontos I e II das conclusões das alegações de recurso).

 

8. Em 04.06.2021, pela  relatora foi proferido despacho que, tendo em conta que  o  regime especial de recorribilidade a que aludem os referidos artigos 629, nº 2 al. a) e  671º nº 2, alínea a), e nº 3, parte inicial reporta-se única e exclusivamente aos casos de violação das regras de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional,  não sendo de aplicar quando esteja  em discussão a preterição de tribunal arbitral  a que alude a al. b)  do citado art. 96º  e  com vista a assegurar o princípio do contraditório  estabelecido no art. 3º, nº 3 do CPC, determinou a notificação da  recorrente para, querendo, pronunciar-se sobre esta questão no prazo de 10 dias.  


9. Exercendo o contraditório, veio a  autora sustentar inexistir dupla conforme, uma vez que  o Tribunal da Relação pronunciou-se sobre a questão da nulidade da convenção arbitral  por violação da competência exclusiva dos tribunais portugueses e o Tribunal Marítimo de Lisboa  não chegou a abordar esta questão, persistindo na defesa de que, por estar em causa a violação das regras de competência internacional e material consagradas no art. 7º, nº 1, da Lei nº 35/86, de 4 de setembro, será sempre admissível recurso  nos termos  do disposto no art. 629º, nº 2, al. a) e no art. 671º, nº 3, parte inicial, ambos do CPC .

Mais argumenta que, mesmo que assim não se entenda, sempre seria de admitir, por convolação, o recurso como sendo de revista, a título excecional, nos termos do art. 672º, nº 1, als. a) e b), do CPC, por estarmos perante questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, se mostra necessária para uma melhor aplicação do direito e em que estão em causa interesses de particular relevância social.     


10. A ré/recorrida respondeu, pugnando pela inadmissibilidade do recurso de revista interposto pela autora, argumentando, no essencial, que tendo a autora optado  pela interposição de recurso de revista nos termos gerais,  sem ter interposto, ainda que subsidiariamente, recurso de revista, a título excecional, e sem ter indicado e concretizado, nas respetivas alegações, alguma  das razões que, nos termos  do nº 2 do art. 672º, se revelam imprescindíveis  para admissibilidade da revista excecional, impossível se torna  a convolação do recurso de revista “normal” para revista “excecional”.        


11. Em 25.06.2021, foi proferido, pela ora relatora, o despacho de não admissão do recurso de revista, que aqui se transcreve:

« (…)

II. Conforme já se deixou dito, a presente revista vem interposta do Acórdão da Relação de Lisboa que, julgou improcedente a apelação interposta pela autora e confirmou a decisão da 1ª instância que julgou procedente a invocada exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal  por preterição  de tribunal arbitral e, consequentemente, declarou o Tribunal Marítimo de Lisboa incompetente para julgar a presente causa, absolvendo a ré da instância.

Do confronto entre a fundamentação fáctico-jurídica do julgado em 1ª Instância e a assumida no acórdão recorrido resulta claramente que ambas são essencialmente idênticas, na medida em que tiveram em conta o mesmo quadro factual e julgaram procedente a invocada exceção de preterição do tribunal arbitral com base nas mesmas normas jurídicas.

Estamos, assim, perante uma situação de dupla conformidade que, nos termos do disposto n.º 3 do artigo 671.º do CPC, obsta à interposição do recurso de revista.

Invoca, porém, a recorrente como fundamento do recurso de revista o disposto no artigo 629º, nº 2, al. a) e no artigo 671º nº 2, alínea a), e nº 3, parte inicial, ambos do Código de Processo Civil, por, no seu entender, a decisão que julgou  procedente a exceção de preterição do tribunal arbitral, consubstancia violação das regras de competência absoluta do tribunal, integrando, por isso, um dos casos em que é sempre admissível recurso.

Ora, a este respeito, cumpre referir que, se é certo que, desde o advento do Código de Processo Civil de 2013, a preterição do tribunal arbitral por força de cláusula compromissória convencionada, é determinante  da incompetência absoluta do tribunal judicial, nos termos  do disposto no art. 96º, al. b) do CPC, a verdade é que,  tendo em conta a delimitação dos casos de incompetência absoluta  definidos na alínea a) do citado art. 96º, facilmente se conclui que o regime especial de recorribilidade a que aludem os referidos artigos 629, nº 2 al. a) e 671, nº 2, al. a) reporta-se única e exclusivamente aos casos de violação das regras de competência  em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia e das de competência internacional,  não sendo de aplicar quando esteja  em discussão a preterição de tribunal arbitral  a que alude a al. b)  do citado art. 96º [1].

Isto porque, tal como escreve Abrantes Geraldes[2],  com a ressalva feita no  art. 629º, nº 2 al. a), do CPC, « o legislador pretendeu acautelar a observância das regras de competência absoluta inerente à nacionalidade, matéria e hierarquia (art. 96º, al. a) ), relevando o interesse público inerente ao facto de o Estado Português poder exercer a jurisdição, de o litígio se inscrever na ordem jurisdicional dos tribunais judiciais e de, dentro destes, ser respeitada a competência em razão da hierarquia e da matéria», razões que, como é bom de ver, não se colocam relativamente aos tribunal arbitrais, que encontram fundamento no princípio da autonomia privada e da liberdade contratual.

Daí que nesta linha de entendimento, por nós já seguida nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.11.2018 (processo nº 22574/16.4T8LSB.L1.S1) e de 23.04.2020 (processo nº 1556/187T8PVZ.P1.S1)[3], seja também de concluir  pela inadmissibilidade do recurso de revista com base neste fundamento,  que, por isso,  se rejeita,  ao abrigo do disposto no   art. 641º, nº 2, al. a), do CPC.  


***


III. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, não se admite o recurso de revista interposto.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.».

12. Vem, agora, a recorrente, reclamar deste despacho para a conferência, ao abrigo do disposto no art. 652º, nº 3 do CPC, pugnando pela admissibilidade do recurso de revista interposto e remetendo para a argumentação por ela tecida e supra descrita nos pontos 7 e 9.


13. A recorrida respondeu, pugnando pela manutenção do despacho reclamado.


14. Cumpre, pois, apreciar e decidir.



***



II - Do mérito da reclamação

Persiste a reclamante na defesa da tese de que inexiste dupla conforme porquanto o Tribunal da Relação pronunciou-se sobre a questão da nulidade da convenção arbitral por violação da competência exclusiva dos tribunais portugueses e o Tribunal Marítimo de Lisboa não chegou a abordar esta questão.

Conforme o disposto no nº 3 do art. 671º, do CPC, a admissibilidade do recurso de revista, no caso do acórdão da Relação ter confirmado, por unanimidade, a decisão da 1ª instância, está dependente do facto de ser empregue “fundamentação substancialmente diferente”.

Explicitando o sentido e alcance da expressão “fundamentação essencialmente diferente”, esclarece Abrantes Geraldes[4] que «a aferição de tal requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, verificando se existe ou não uma real diversidade nos aspectos essenciais».

No mesmo sentido, refere o Acórdão do STJ, de 16.06.2016 ( revista nº 551/13.7TVPRT.P1.S1) [5] que, para afastar o obstáculo da dupla conforme, impeditivo do recurso de revista, nos termos do nº 3 do art. 671º do CPC, não basta que a sentença e o acórdão da Relação,  que a  confirme por unanimidade apresentem fundamentação diferente, exigindo-se que tal diferença  se mostre essencial,  não se verificando este obstáculo se o efeito do caso julgado material formado  for relevantemente diverso.

No dizer do Acórdãos do STJ, de 19.02.2015 (revista 302913/11.6YPRT.E1.S1) e de 28.05.2015 ( revista 1340/08.6TBFIG.C1.S1)[6], « só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância – não preenchendo esse conceito normativo o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada».

Dito de outro modo e na  expressão do Acórdão do STJ, de 15.04.2015  (revista nº 849/09.9TJVNF.P1.S1), «a fundamentação do acórdão da Relação, apesar de nele se concluir pela confirmação da decisão da 1ª instância, terá de estribar-se num enquadramento fáctico-jurídico ou até meramente jurídico substancialmente diverso do adotado na sentença recorrida, em termos de se equiparar a uma solução de primeira linha que justifique a sua reapreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, de forma a que fique garantido o duplo grau de jurisdição».

Equivale tudo isto por dizer, conforme, aliás, tem sido entendimento constante  do STJ,  que o legislador de 2013 elegeu, como óbice à verificação da dupla conforme, a existência de uma situação em que o núcleo essencial da  fundamentação jurídica é diverso e que, para esse efeito, irreleva, tal como sublinha Abrantes Geraldes[7], o mero «aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que  não tenha sido admitido, ou  [n]o reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem por em causa a fundamentação usada  pelo tribunal de 1ª Instância» . 

Ora, no caso dos autos, basta  atentar no ponto 3.2.3 ( fls. 16 a 22) do acórdão recorrido para facilmente se constatar que a fundamentação fáctico-jurídica  do julgado em 1ª Instância  e a assumida neste acórdão são essencialmente idênticas, na medida em que tiveram em conta o  mesmo quadro factual e julgaram procedente a invocada exceção de preterição do tribunal arbitral com base nas mesmas normas e  fundamentação jurídica, tendo, inclusivamente,  o Tribunal da Relação afirmado expressamente, quanto a esta matéria,  subscrever inteiramente o entendimento seguido pelo Tribunal de 1ª Instância  e  que, « considerando a forma aprofundada  como o Tribunal a quo analisou a situação  dos presentes autos, fazendo-a na sequência de uma exaustiva exposição sobre o regime aplicável à arbitragem internacional no contexto do transporte internacional de mercadorias, cremos que nada mais haverá a dizer em abono do decidido», limitava-se apenas a tecer « algumas notas complementares».       

E se é certo ter o Tribunal da Relação apreciado, no ponto 3.2.2 ( fls. 14 a 16) do acórdão recorrido apreciado, ex novo, a questão da nulidade da convenção arbitral  por violação do disposto no art. 7º, nº 1 da Lei  nº 35/86 ( Tribunais marítimos) e, consequentemente, da competência internacional dos Tribunais portugueses, prevista no art. 62º  do CPC, tendo concluído não se verificar, no caso dos autos, o alegado vício, a verdade é que, tal como já se deixou dito, a consideração deste novo fundamento jurídico não tem, no caso dos autos, qualquer autonomia nem torna essencialmente diferente a fundamentação.

Daí nenhum obstáculo existir à verificação de uma situação de dupla conformidade, nos termos e para os efeitos do disposto n.º 3 do artigo 671.º do CPC.

Assente este ponto, vejamos, então, se, tal como alega a reclamante, a decisão que julgou  procedente a exceção de preterição do tribunal arbitral, consubstancia violação da regra de competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses, consagrada no artigo 7º nº 1 da Lei nº 35/86, de 4 de Setembro, integrando, por isso, um dos casos em que é sempre admissível recurso.

Sobre a epígrafe “Competência internacional”, dispõe o citado art. 7º, no seu nº1, que « Não é válido, em questões de direito marítimo internacional, o pacto destinado a privar de jurisdição os tribunais portugueses, quando a estes for de atribuir tal jurisdição por força do disposto no artigo 65.º [8] do Código de Processo Civil ».

Ora, a este respeito, importa, desde logo, referir que não se pode confundir “pactos de jurisdição” com “pactos de arbitragem”, pois são realidades bem diversas.

O pacto de jurisdição é o acordo das partes sobre a jurisdição nacional competente.

«Tem um efeito atributivo, quando fundamenta a competência dos tribunais de um Estado que não seriam competentes   por aplicação dos critérios de competência legal. Tem um efeito privativo de competência, quando suprime a competência dos tribunais de um Estado que seriam competentes por aplicação dos critérios de competência legal».

Diferentemente, «a convenção de arbitragem é o acordo das partes em submeter a resolução de um ou mais litígios determinados ou determináveis a arbitragem».«Tem um efeito positivo – fundamentar a  competência do tribunal arbitral – e um efeito negativo – excluir a competência dos tribunais estaduais »[9].

De sublinhar que, contrariamente ao sustentado pela recorrente, o artigo 1º, nº1 da  Lei  nº 63/2011, de 14.12 (LAV)  apenas  exclui do objeto da arbitragem  os litígios submetidos, exclusivamente, por lei especial a tribunal judicial[10] , o que não acontece no caso dos autos.

Daí ser de concluir que a convenção de arbitragem transnacional nada tem a ver com a competência  internacional dos tribunais portugueses, que, como é consabido, traduz-se « na  competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento português uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresentam igualmente uma conexão relevante  com a (…) portuguesa»[11] e que pode ser afastada por um pacto de jurisdição e não obsta ao reconhecimento de decisões proferidas por tribunais estrangeiros.

E muito menos se confunde com a competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses que, no dizer de Luís de Lima Pinheiro, ocorre «quando a ordem jurídica portuguesa não admite a privação de competência por pacto de jurisdição nem reconhece decisões proferidas por tribunais estrangeiros que se tenham considerado competentes»[12].

Mas sendo assim, como é de facto, evidente se torna,  tal como se afirmou no despacho reclamado, que, não obstante a preterição do tribunal arbitral por força de cláusula compromissória convencionada, ser determinante  da incompetência absoluta do tribunal judicial, nos termos  do disposto no art. 96º, al. b) do CPC, a verdade é que ela não se inclui nos casos de incompetência absoluta  definidos na alínea a) do citado art. 96º, ou seja, nos casos de violação das regras de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia,  não estando, por isso, abrangida pelo  regime especial de recorribilidade a que aludem os referidos artigos 629, nº 2 al. a) e 671º, nº 3, parte inicial.

De resto, é neste sentido que se vem afirmando a mais recente jurisprudência deste Supremo Tribunal[13] .

Daí que, seguindo esta linha de entendimento e corroborando toda a fundamentação do despacho reclamado, seja de concluir pela inadmissibilidade do recurso de revista interposto.

E nem se diga, como defende agora a reclamante, que sempre seria de admitir, por convolação, o recurso como sendo de revista, a título excecional, nos termos do art. 672º, nº 1, als. a) e b), do CPC.

É que tal convolação não era possível posto que a recorrente, no requerimento de interposição de recurso, não manifestou a vontade de interpor, ainda que subsidiariamente,  recurso de revista, a título excecional, nem cumpriu o ónus que, nos termos do art. 672º, nº 1 do CPC, sobre ela impendia  de alegar as razões que, em seu entender, reclamariam  a admissão excecional do recurso de revista,  de nada lhe valendo vir, em sede de reclamação para a conferência, indicar essas razões.

Termos em que, por todo o exposto, se decide manter o despacho reclamado.


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III - Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a presente reclamação, confirmando-se a decisão da relatora de não admissão do recurso de revista interposto.

As custas da reclamação ficam a cargo da reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3UC.


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Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira que compõem este coletivo.

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Supremo Tribunal de Justiça, 23 de setembro de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] Neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág.47 e Paulo Pimenta, in, “Processo Civil Declarativo, 2ª ed. pág. 138, nota 302.
[2] In, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág.47.
[3] Acessíveis in wwwdgsi.pt/stj.
[4] In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág. 365.
[5] Publicado in http://www.dgsi.pt/stj.
[6] Publicados in http://www.dgsi.pt/stj.
[7] In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág. 364 e acórdãos aí citados e in “ Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. I , pág.808.
[8] Correspondente ao atual artigo 62º, do CPC.
[9] Cfr. Luís de Lima Pinheiro, in “Temas de Direito Marítimo – III. Pactos de Jurisdição e Convenções de Arbitragem em matéria de Transporte Marítimo de Mercadorias”, https://portal.oa.pt/upl/{67540703-e86b-4bd8-8e74-81c02f60f0f6}.  
[10]  Cfr. Luís Lima Pinheiro, in “Arbitragem transnacional – A determinação do estatuto da arbitragem”, Almedina, 2005, págs. 111 e 112; Mariana França Gouveia, in “Curso de resolução alternativa de litígios”, Almedina, 2020, reimpressão, pág. 117 e Manuel Pereira Barrocas, in “Lei da arbitragem, comentada”, 2 ed., Almedina, 2018.  
[11] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, Lx, 1997, 2ª ed., págs. 108 e 109.
[12] In “A competência internacional exclusiva dos Tribunais portugueses”, publicado na internet
[13] Cfr. Acórdãos do STJ, de 08.11.2018 (processo nº 22574/16.4T8LSB.L1.S1), de 30.04.2020 ( processo nº 7459/16.2T8LSBA.L1.S1) e de 22.04.2021 (processo nº 2654/19.5T8LSB.L1.S1), todos acessíveis in www.dgsi/stj.pt.