Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
448/09.5TCFUN.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: AQUISIÇÃO DE DIREITOS
TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL
REGISTO PREDIAL
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
USUCAPIÃO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA REVISTA COM REENVIO
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS - DIREITOS REAIS / POSSE / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PRINCÍPIOS GERAIS / PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS ( ATOS PROCESSUAIS ) / CITAÇÕES E NOTIFICAÇÕES / REVELIA DO RÉU / EFEITOS DA REVELIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL - ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, 2014, p. 375.
- Antunes Varela, anotação ao Acórdão do STJ, de 4 de Março de 1982, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118.º, p. 315 (cf. pp. 282-288 e 307-316). anotação ao Acórdão do STJ, de 16-06-1983, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 120.º, p. 208 e segs..
- Borges de Araújo, Prática Notarial, 2001, p. 339.
- Henrique Mesquita, anotação ao Acórdão do STJ, de 29-04-1992, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 125.º, p. 86 e segs..
- José Alberto Vieira, “Registo de usucapião titulada por escritura de justificação notarial e presunção de titularidade do direito – Anotação ao AUJ n.º 1/2008, de 04-12-2007”, Cadernos de Direito Privado, n.º 24, Outubro/Dezembro de 2008, p. 37 (pp. 21 a 42).
- Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 1997, p. 119.
- Mouteira Guerreiro, Temas de Registos e de Notariado, 2010, págs. 117/118.
- Paulo Videira Henriques, Terceiros para efeitos do artigo 5.º do Código do Registo Predial, “Boletim da Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra”, 2003, pp. 399/400.
- Santos Justo, Direitos Reais, 4.ª edição, 2012, pp. 67 e ss., 80-84.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 291.º, 343.º, N.º1, 363.º, N.º 2, 371.º, N.º 1, 372.º, N.º1, 408.º, 1251.º, 1252.º, N.ºS 1 E 2, 1257.º, N.º2, 1258.º, 1259.º, 1263.º, 1287.º, 1288.º, 1311.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 3, 10.º, N.ºS 2 E 3, AL. A), 21.º, N.º1, 225.º, N.ºS 1 E 6, 240.º, 567.º, N.º 1, E 568.º, AL. B), 665.º, N.ºS 2 E 3, 679.º.
CÓDIGO DO NOTARIADO (CN): - ARTIGOS 70.º, 71.º, 89.º, 96.º, N.º 1, 101.º.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRGP): - ARTIGOS 5.º, 7.º, 17.º, N.º2, 34.º, 43.º, N.º1, 116.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 20-20-2009, PROC. N.º 1433/07.7TBBRG.S1.
-DE 27-01-2010, PROC. N.º 2319/04.2TBGDM.P1.S1, DE 07-04-2011, PROC. N.º 569/04.0TCSNT.L1.S1, DE 13-09-2011, PROC. N.º 1027/06.4TBSTR.E1.S1, E DE 19-02-2013, PROC. N.º 367/2002.P1.S1, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 08-02-2011, PROC. N.º 2565/07.7TBMTS.P1.S1, E DE 06-10-2011, PROC. N.º 399/1999.E1.S1 (AMBOS INÉDITOS).
-DE 17-12-2014, PROC. N.º 5169/11.6TBSXL.L1.S1.

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AUJ N.º 3/2001, DE 23-01-2001, PUBLICADO NO DR I SÉRIE A, DE 09-02-2001.
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AUJ N.º 1/2008, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, 1.ª SÉRIE, N.º 63, DE 31-03-2008, PP. 1871-1879.
Sumário :
I - As acções reais não se podem fundar, por norma e exclusivamente, na invocação de um título de aquisição derivada, uma vez que as formas de aquisição derivada não geram, por si só, o direito de propriedade, sendo apenas translativas dele, operando a sua modificação subjectiva.

II - O registo predial, cujo objecto são factos jurídicos, tem por escopo principal dar a conhecer aos interessados a situação jurídica do bem, garantindo a segurança e genuinidade das relações jurídicas que sobre ele incidam, assegurando que, em regra, a pessoa que se encontra inscrita adquiriu validamente esse direito e com esse direito permanecerá para os seus futuros adquirentes.

III - A escritura de justificação notarial, documento autêntico, constitui um dos modos necessários para o estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, permitindo aos interessados titular factos jurídicos relativos a imóveis que não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de forma escrita, como a usucapião ou a acessão.

IV - Impugnada judicialmente a escritura de justificação notarial, impende sobre o justificante, na qualidade de réu, o ónus da prova da aquisição do direito de propriedade e da validade desse direito, nos termos do art. 343.º, n.º 1, do CC, sem que possa beneficiar da presunção registal emergente do art. 7.º do CRgP.

V - Em caso de invocação de aquisição por usucapião, o justificante tem de provar as características da posse imprescindíveis à verificação daquele modo de aquisição originária do direito de propriedade, devendo indicar, logo na escritura, as circunstâncias de facto que determinam o seu início e que consubstanciam e caracterizam essa posse, não sendo suficiente a mera alusão a conceitos jurídicos abstractos para atribui à posse as qualidades para usucapir.

VI - Na falta dessa prova, e mesmo que não se possa concluir pela falsidade das declarações vertidas na escritura de justificação, a acção de impugnação deverá proceder, atendendo à insuficiência probatória de factos que permitam suportar a usucapião (ou outro modo de aquisição originária), devendo, a final, ser declarada não a nulidade, mas sim a ineficácia da escritura de justificação notarial.

VII - Procedendo a revista quanto à impugnação judicial da escritura de justificação notarial e tendo sido omitida pronúncia quanto às demais questões suscitadas na apelação, deverá ser ordenada a baixa do processo ao tribunal recorrido, para exame das questões cuja análise ficara prejudicada, tal como decorre da norma do art. 679.º do NCPC (2013), assim se assegurando plenamente, aliás, o duplo grau de jurisdição.
Decisão Texto Integral:

                            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I.

AA, casada com BB, intentou contra CC e mulher, DD, EE, solteiro, FF e mulher, GG, todos identificados no processo, esta acção declarativa de condenação com processo comum, sob a forma ordinária, pedindo:

a declaração de nulidade e invalidade da escritura pública de justificação notarial, celebrada em 30-12-2008, exarada de fls. 38 a 39 v, do Livro n.° … do Cartório Notarial Privado do Dr. HH, e, consequentemente, nulo o respectivo registo predial efectuado, com o seu respectivo cancelamento;

a declaração de nulidade das compras e vendas tituladas em actos contínuos no mesmo Cartório, pelas escrituras exaradas de fls. 40 a 41 e 42 a 43 do Livro n.º ..., com todos os efeitos legais, e consequentemente nulo o respectivo registo, com o consequente cancelamento do registo predial do prédio misto, localizado ao sítio do ..., freguesia de ..., concelho do ..., com a área de 320 m2, dos quais 35 m2 são de superfície coberta, inscrito na matriz predial respectiva a parte rústica sob o artigo 7.°, da secção “AD” e a parte urbana sob o artigo 39.°, e actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º …, da freguesia de ..., e registado a favor dos réus FF e mulher GG, pela Apresentação 3329 de 10-02-2009, com todas as demais consequências legais;

a declaração de que a autora é dona e legítima possuidora do prédio misto, com a área de 320 m2, dos quais 45 m2 são de superfície coberta, localizado ao Caminho do ..., n.º … de polícia, no sítio do ..., freguesia de ..., concelho do ..., inscrito na matriz predial respectiva, a parte rústica sob o artigo 77.° da Secção “AD” e a parte urbana sob o artigo ….°, como tal não descrito na Conservatória do Registo Predial do ...;

a condenação dos réus a reconhecerem a favor da autora o direito de propriedade desta sobre o prédio acima referido, com todas as consequências legais.

Para tanto, alegou, em síntese: é proprietária do prédio identificado supra, por o ter adquirido por usucapião, após aquele lhe ter sido doado verbalmente pela anterior proprietária; os primeiros réus, faltando à verdade, outorgaram escritura de justificação notarial, onde se declararam proprietários do referido prédio; nessa mesma data, aqueles primeiros réus venderam o prédio ao réu EE, cunhado e irmão dos 1.° e 2.° réus, respectivamente; por sua vez, o réu EE vendeu o prédio ao réu FF; os réus FF e mulher conheciam os restantes réus, de quem são amigos, e sabiam que estes não eram proprietários do prédio.

Feitas as legais citações - sendo as dos réus CC e DD por éditos –, contestou apenas o réu FF, alegando que desconhecia os factos alegados pela autora quanto à sua propriedade; adquiriu o prédio com base nos documentos que lhe foram exibidos e por escritura de 23-07-2009, vendeu o prédio a II e JJ, requerendo a intervenção destes adquirentes como associados do réu.

Nessa sequência, foi requerida a intervenção processual destes últimos e a ampliação, quanto a estes, dos pedidos constantes da petição inicial, por forma a abranger a nulidade da compra e venda titulada pela referida escritura celebrada a 23-07-2009, exarada a fls. 28 a 31 do Livro …, do Cartório Notarial de KK.

Deferida essa intervenção e citados os intervenientes vieram os mesmos contestar, aduzindo, em síntese: a ineptidão da petição inicial, pelo facto de a autora não ter alegado factos referentes à partilha dos bens por morte da anterior proprietária do prédio; a nulidade da doação invocada pela autora, por ter sido feita verbalmente; o desconhecimento dos factos alegados pela autora quanto à posse do prédio; e a aquisição do prédio dos autos de boa-fé, com base na documentação que lhes foi exibida e com recurso a crédito bancário.

A autora replicou, respondendo às excepções invocadas por II e JJ, pugnando pela sua improcedência.

Após convite do tribunal, a autora requereu, ainda, a intervenção na lide do LL ..., S.A., por ser titular de hipoteca registada sobre o prédio dos autos, pedindo a ampliação quanto a este interveniente dos pedidos de nulidade de hipoteca voluntária, constituída a seu favor pela apresentação 2057, de 27-07-2009, sobre o prédio objecto da presente acção, descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.° …, da freguesia de ....

Citado, o LL, S.A. contestou alegando que desconhece os factos alegados pela autora; financiou a aquisição do prédio pelos réus II e JJ, que, para tanto, constituíram hipoteca sobre o prédio adquirido, registada a 27-07-2009 e a presente acção apenas foi registada no dia 10-05-2012, pelo que, estando de boa-fé, não lhe é oponível a eventual nulidade de contratos anteriores, nos termos do art. 291.º do Código Civil.

Efectuada audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, julgando improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial, tendo-se seleccionado a matéria de facto assente e controvertida; prosseguiu o processo para julgamento, no qual foi ampliada aquela mesma matéria de facto e no seu têrmo, após ter sido respondida a matéria de facto controvertida, seguiu-se a prolação de sentença, com a seguinte decisão:

Pelo exposto, decido julgar a acção parcialmente procedente e, em conformidade:

declaro nula e ineficaz a escritura pública de justificação notarial, celebrada a 30 de Dezembro de 2008, pelos Réus CC e mulher, DD, exarada de fls. 38 a 39 v, do Livro n.º ... do Cartório Notarial Privado do Dr. HH, referida na al. A) dos factos provados.

declaro nula a compra e venda, titulada pela escritura pública de compra e venda celebrada a 30 de Dezembro de 2008, entre os Réus CC e mulher, DD, como vendedores, e o Réu EE, como comprador, exarada de fls. 40 e 41 v, do Livro de notas n.° ... do Cartório Notarial Privado do Dr. HH, referida na al. E) dos factos provados.

declaro nula a compra e venda, titulada pela escritura pública de compra e venda celebrada a 30 de Dezembro de 2008, entre o Réu EE, como vendedor, e o Réu FF, como comprador, exarada de fls. 41 e 42, do Livro de notas n.° ... do Cartório Notarial Privado do Dr. HH, referida na al. F) dos factos provados.

ordeno o cancelamento do registo de propriedade inscrito a favor do Réu FF e mulher, GG, efectuado na Conservatória do Registo ... relativamente ao prédio aí descrito sob o n.° … da freguesia de ....

declaro nula a compra e venda e a hipoteca, tituladas pela escritura pública de compra e venda e de mútuo com hipoteca e fiança, celebrada a 23 de Julho de 2009, entre os Réus FF e mulher, GG, como vendedores, e os Réus II e JJ, como compradores, e entre estes como mutuários, e o LL, Banco LL ..., S.A. como mutuante, e MM e NN, como fiadores, exarada de fls. 28 a …, do Livro de notas para escrituras diversas n.° … do Cartório Notarial Privado da Dra. KK, referida na al. I) dos factos provados.

ordeno o cancelamento do registo de propriedade inscrito a favor dos Réus II e JJ efectuado na Conservatória do Registo ... relativamente ao prédio aí descrito sob o n.° … da freguesia de ....

ordeno o cancelamento do registo da hipoteca inscrito a favor do Réu LL, Banco LL..., S.A. efectuado na Conservatória do Registo ... relativamente ao prédio aí descrito sob o n.º … da freguesia de ....

absolvo os Réus dos demais pedidos contra si formulados pela Autora.

Custas a cargo da Autora e dos Réus, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 2/8 para a primeira e 6/8 para os segundos, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido à Autora.

Inconformados, os intervenientes II e JJ apelaram e a Relação de Lisboa, por Acórdão do pretérito dia 08-05-2014 decidiu “…julgar procedente a apelação revogando a decisão recorrida e em julgar inteiramente improcedente a acção, absolvendo os réus dos pedidos formulados.

Agora insatisfeita, a autora AA veio interpor recurso de revista daquele acórdão, para o STJ, concluindo, assim, a minuta de recurso:

“1) Os presentes autos tratam de uma ação de impugnação de escritura de justificação notarial;

2) Este tipo de ação declarativa é uma ação de simples apreciação negativa - art. 10°, n.º 2 e n.º 3, alínea a) do novo CPC (antes art. 4.°, n.º 2, alínea a) do CPC);

3) Nas ações de simples apreciação negativa, compete aos réus justificantes a prova dos factos constitutivos do direito que se arrogam – art. 343.°, n.º 1 do C.C.;

4) No caso sub judice, está em questão apenas o pedido da autora relativo à impugnação da escritura de justificação, único sobre o qual o douto Acórdão da Relação de Lisboa se pronunciou e do qual foi interposto o presente recurso, sobre o qual se deve exclusivamente atentar;

5) Os Réus CC e mulher DD, por escritura de justificação notarial celebrada a 30 de dezembro de 2008, exarada de fls. 38 a 39 v. do L. ... do Cartório Notarial Provado do Dr. HH, declararam serem os donos e legítimos possuidores do prédio misto em questão nos presentes autos, o qual veio à sua posse por compra verbal feita no ano de mil novecentos e setenta e sete, a OO e mulher PP, e a QQ;

6) Mais declararam os mesmos réus que “entraram na posse e fruição do aludido imóvel, posse que mantiveram sem interrupção até hoje, habitando a casa, usufruindo de todas as suas utilidades, cultivando e colhendo os frutos da parte rústica e suportando os respectivos impostos e encargos...”;

7) Cabia aos Réus CC e DD, e só a estes, virem aos autos provarem aquelas suas declarações, nos termos do imposto pelo artigo 343.°, n.° 1 do C.C., onde está claramente estabelecida a inversão do ónus da prova;

8) Os Réus justificantes CC e DD foram citados;

9) Os Réus justificantes CC e DD, não apresentaram qualquer tipo de Contestação nos presentes autos;

10) Só aos Réus justificantes, no caso concreto, os RR. CC e DD, competia fazer prova daquelas suas declarações proferidas na escritura pública de justificação notarial;

11) Simplesmente pelo facto dos RR. justificantes CC e DD não terem apresentado Contestação importa, automaticamente, a procedência do pedido de impugnação da escritura de justificação notarial, declarando-se impugnado o facto justificativo e ineficaz tal escritura, declarando-se que não produz quaisquer efeitos, com todas as demais consequências legais;

12) Sem prejuízo do acima alegado e sem prescindir, também os outros réus não conseguiram fazer qualquer prova sobre a veracidade das declarações dos RR. CC e DD proferidas na escritura de justificação notarial;

13) Antes pelo contrário. Resulta dos autos prova suficiente da falsidade daquelas declarações.

Vejamos: Da alínea P) dos factos provados, consta que sobre a parte rústica do prédio justificado existe um prédio urbano inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ….°, com a composição aí descrita, que é totalmente diverso do declarado na escritura de justificação que é um outro inscrito sob o artigo 39.° e com uma composição diversa;

Da alínea Q) dos factos assentes resulta que a autora, antes e depois da morte da RR, ocorrida em 23-04-1992, cultivou parte do prédio justificado pelos RR. CC e DD, recolhendo os seus frutos à frente e com conhecimento de toda a gente.

Aditada oficiosamente as declarações dos RR. CC e DD à Base Instrutória, foram julgadas não provadas.

Resulta ainda do documento autêntico junto à p.i. sob o n.º 12 que a casa era habitada pela RR à data da sua morte em 23 de abril de 1992;

14) Os factos constantes do número anterior estão em perfeita e completa contradição com as declarações dos RR. CC e DD proferidas na escritura de justificação notarial;

15) Andou mal o Acórdão recorrido ao dizer “… não se vê que tenha sido julgada provada a falsidade dos fundamentos da justificação notarial.”:

16) Conforme já acima alegado, não era à autora que competia provar a falsidade das declarações ou fundamentos da justificação notarial;

17) É precisamente o contrário. Era aos RR. CC e DD, os justificantes, e a estes e só a estes, que competia fazer a prova nos presentes autos da veracidade das suas declarações proferidas na escritura de justificação notarial;

18) É absoluta a falta de prova nos presentes autos dos RR. CC e DD sobre a veracidade das suas declarações na escritura de justificação, pelo que não podem adquirir por usucapião;

19) Está assente na nossa jurisprudência judicial, que os réus não podem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.° do CRP – por todos o Ac. de Uniformização de Jurisprudência do STJ de 04-12-2007, Proc. 07A2464, in www.dgsi.pt – pois o registo que usufruíam a seu favor foi com base na escritura de justificação ora impugnada;

20) Claramente andou mal o Acórdão ora recorrido ao julgar que “.... segundo se julga, não ficou provado qualquer facto incompatível com qualquer dos fundamentos alegados na escritura de justificação e que, por isso, permitisse afirmar essa falsidade.”;

21) Apesar de desnecessário para a procedência da impugnação, os factos acima alegados no ponto 13 e provados nos presentes autos, estão em clara contradição com as declarações dos RR. CC e DD na escritura de justificação;

22) O Acórdão recorrido foge para a razão da A. quando afirma que “Parecendo ... que a posse do prédio tinha sido transmitida, no ano de 1977 ou antes, para a referida RR ... “, pois foi isso que a A. alegou e que está em clara contradição ou é incompatível com as declarações dos RR. CC e DD na escritura de justificação, em que declararam que tinham comprado verbalmente o imóvel no ano de 1977 a OO e mulher PP, e a QQ;

23) O Acórdão recorrido continua no mesmo erro ou equívoco ao julgar que ”.... julga-se que a matéria de facto assente não permite conduzir que as declarações que integram a escritura de justificação sejam falsas, não estando, assim verificado o fundamento pelo qual foi declarada a nulidade dessa justificação .... a decisão está limitada pela matéria de facto fixada, e esta não permite afirmar que a justificação notarial assentou em declarações falsas.”, acabando por julgar com estes fundamentos errados a apelação procedente, revogando a decisão da 1ª Instância e julgando inteiramente improcedente a ação, absolvendo os réus dos pedidos formulados;

24) Toda a fundamentação do Acórdão ora recorrido encontra-se invertida, errada, partindo do princípio errado de que era à Autora que competia fazer a prova da falsidade das declarações dos réus CC e DD proferidas na escritura de justificação, constitutiva do direito destes;

25) Esta interpretação está errada e viola o estabelecido nos artigos 10.°, n.º 2 e n.º 3, alínea a) do CPC (antes art. 4.°, n.º 2, alínea a)), 343.°, n.º 1 do Código Cível e o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ de 04-12-2007, Proc. 07A2464, in www.dgsi.pt. que estabelece o seguinte:

“ - Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116.º, n.° 1 do Código do Registo Predial e 89.° e 101.° do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.”;

26) O Acórdão ora recorrido, por falência absoluta de prova quanto aos corpus da posse e ao animus dos réus CC e DD sobre o imóvel justificado - competia a estes réus o ónus da prova de todos os caracteres da posse, designadamente se foi de boa ou má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, titulada ou não e invocação e prova do respectivo prazo prescritivo - violou, nomeadamente, o artigo 10.°, n.º 2 e n.º 3, alínea a) do CPC (antes art. 4°, n.º 2, alínea a)) e artigos 343.°, n.º 1, 1258.°, 1259.°, 1260.°, 1261.°, 1262.°, 1287.° e 1296.° do C.C., não podendo aqueles réus terem adquirido, por usucapião, o imóvel em apreço, identificado na escritura de justificação;

27) Tudo bastante e mais que suficiente para conduzir à procedência do pedido da A. ora em questão, constante da alínea a) da sua p.i., devendo ser declarada a escritura de justificação ineficaz, não produzindo quaisquer efeitos, por os RR. CC e DD não terem adquirido o imóvel por usucapião;

28) Em face do exposto e mais dos autos, deve ser concedida a revista e revogar-se o Acórdão recorrido, mantendo-se a sentença da primeira instância”.

Foram apresentadas contra-alegações pelos intervenientes II e JJ, e pelo LL, S.A., pugnando pela improcedência da revista.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II.

A. Das Instâncias vem considerada provada a seguinte matéria de facto:

1. Por escritura de justificação notarial celebrada em 30-12-2008, exarada de fls. 38 a 39 v. do livro ... do Cartório Notarial Privado do Dr. HH, os réus CC e mulher DD, na qualidade de justificantes, declararam que “são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, de um prédio misto (rústico, terreno agrícola e urbano habitacional), com a área global de trezentos e vinte metros quadrados, tendo a parte urbana trinta e cinco metros quadrados de superfície coberta, sito ao Caminho Novo do ..., 33, ..., freguesia de ..., concelho do ..., inscrito na matriz predial, em nome do justificante, a parte rústica sob o artigo cadastral 77.º da Secção “AD” (antes, artigo 361), com o valor patrimonial e atribuído de oito euros e sessenta cêntimos (€ 8,60) e a parte urbana sob o artigo 39, com o valor patrimonial e atribuído de quatrocentos e dois euros e cinquenta e dois cêntimos (€ 402,52), não descrito na Conservatória do Registo Predial do ... – al. A) dos factos assentes.

2. Mais declararam os réus justificantes que “nos termos do n.º 4 do artigo 112.º do Código do Registo Predial, que não obstante o prédio identificado e objecto desta escritura, oferecer semelhanças com o descrito naquela mesma Conservatória, sob o número cento e vinte e nove, a folhas duzentos e sessenta e um verso do Livro B Primeiro da Extinta Conservatória do Concelho do ..., não existe qualquer relação entre os mesmos” – al. B) dos factos assentes.

3. Declararam ainda os mesmos réus “que o identificado prédio, veio à posse dos justificantes, no estado de casados, por compra verbal feita no ano de mil novecentos e sessenta e sete, a OO e mulher PP, residentes que foram ao sítio dos ..., ..., ..., e a QQ, viúva, residente que foi à Rua ..., ..., ..., todos já falecidos.

Assim, naquele ano, os justificantes entraram na posse e fruição do aludido imóvel, posse que mantiveram sem interrupção até hoje, habitando a casa, usufruindo de todas as suas utilidades, cultivando e colhendo os frutos da parte rústica e suportando os respectivos impostos e encargos, tendo adquirido e mantido a sua posse sem oposição de quem quer que fosse e com conhecimento de toda a gente, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua e de boa-fé, que dura há mais de vinte anos, pelo que o adquiriram por usucapião, não tendo, dado o modo de aquisição, documento que titule o seu direito de propriedade” – al. C) dos factos assentes.

4. Com origem na identificada escritura de justificação, abriu-se uma nova descrição na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º … da freguesia de ... – al. D) dos factos assentes.

5. Ainda, no mesmo dia, no mesmo Cartório Notarial e em acto contínuo, por escritura pública exarada de fls. 40 a 41 do mesmo Livro ..., os justificantes CC e mulher DD, venderam a seu cunhado e irmão, o réu EE, o prédio justificado – al. E) dos factos assentes.

6. Ainda, em outro acto contínuo, no mesmo dia e no mesmo Cartório Notarial, por escritura pública exarada de fls. 42 a 43 do mesmo Livro ..., o identificado réu EE vendeu ao réu FF, o prédio em apreço – al. F) dos factos assentes.

7. A aquisição da propriedade do prédio referido em A) a favor dos réus FF e mulher foi registada a 10-02-2009 – cf. certidão do registo predial a fls. 473 a 477 dos autos.

8. A RR faleceu no dia 23-04-1992 – cf. certidão de óbito a fls. 51 dos autos – al. G) dos factos assentes.

9. Por escritura pública de compra e venda, outorgada no dia 23-07-2009, no Cartório Notarial da Dra. A. KK, exarada a fls. 28 a fls. 31 do livro de notas para escrituras diversas, número …, os réus II e JJ adquiriram a FF e mulher GG, o prédio misto, sito ao Caminho do ... n.º …, inscrito a parte rústica na matriz cadastral sob o art. 77 da secção AD e a parte urbana sob o art. 39 e descrito na conservatória do Registo Predial do ... sob o nº … – al. H) dos factos assentes.

10. Para poderem adquirir o supra aludido imóvel, os réus II e JJ contraíram um empréstimo bancário junto da instituição bancária LL, Banco LL ..., S.A., no montante de € 75 000 (setenta e cinco mil euros), valor que foi utilizado para proceder ao pagamento acordado pela compra e venda – al. I) dos factos assentes.

11. Para garantia do empréstimo, foram seus fiadores MM e NN – al. J) dos factos assentes.

12. A aquisição da propriedade do prédio referido em A) a favor dos réus II e JJ foi registada a 27-07-2009 – cf. certidão do registo predial a fls. 473 a 477 dos autos.

13. A hipoteca para garantia do empréstimo referido em I) foi registada a 27-07-2009 – cf. certidão do registo predial a fls. 473 a 477 dos autos.

14. Após a realização da escritura de compra e venda, os intervenientes procederam ao registo da sua aquisição – al. L) dos factos assentes.

15. Sobre a referida parcela de terreno rústica do prédio referido em A) existe um prédio urbano, coberto parte por telha e parte por folhas plásticas, de um só pavimento, composto por 4 divisões, 2 casas de banho, hall e 1 arrecadação, com a superfície coberta de 45 m2 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ….º – resposta ao artigo 1.º da base instrutória.

16. A autora, antes e depois da morte da RR, cultivou parte do referido prédio, recolhendo os seus frutos à frente e com conhecimento de toda a gente – resposta aos artigos 7.º a 9.º da base instrutória.

17. A SS foi procuradora dos réus CC e DD na compra e venda referida em E) – resposta ao artigo 10.º da base instrutória.

18. Em 2009, II e JJ decidiram adquirir um imóvel – resposta ao artigo 15.º da base instrutória.

19. Para tanto, deslocaram-se a várias agências imobiliárias e, sondaram no “terreno” alguns imóveis que estivessem para venda – resposta ao artigo 16.º da base instrutória.

20. Já depois de terem visto vários imóveis e em meados de 2009, o réu II estava num café no ... e, em conversa com algumas pessoas naquele café, foi-lhe dito que o imóvel sito ao do ..., n.º 33 estava à venda e que o proprietário era o Sr. FF – resposta ao artigo 17.º da base instrutória.

21. Uma das pessoas que estava no café conhecia pessoalmente o Sr. FF e forneceu o seu contacto ao II – resposta ao artigo 18.º da base instrutória.

22. Na posse do contacto do Sr. FF, o II contactou-o com o intuito de adquirir o imóvel – resposta ao artigo 19.º da base instrutória.

23. Os réus II e JJ deslocaram-se ao imóvel com o Sr. FF, negociaram o preço e decidiram adquirir o imóvel – resposta ao artigo 20.º da base instrutória.

24. Os réus II e JJ adquiriram o supra aludido imóvel com o intuito de ali construírem a sua casa de morada de família – resposta ao artigo 21.º da base instrutória.

25. Aquisição essa que foi feita já com um projecto aprovado na Câmara Municipal do ... para a sua reconstrução – resposta ao artigo 22.º da base instrutória.

26. Após adquirirem o imóvel, os réus II e JJ alteraram o titular do projecto de licenciamento junto do Município do ... e pediram uma prorrogação de prazo, para a conclusão das obras – resposta ao artigo 23.º da base instrutória.

27. Os réus II e JJ adquiriram o imóvel em ruínas e sem estar cultivado – resposta ao artigo 24.º da base instrutória.

28. O imóvel adquirido não possuía qualquer ligação de água potável – resposta ao artigo 25.º da base instrutória.

29. Nem tinha fornecimento de electricidade – resposta ao artigo 26.º da base instrutória.

30. Os réus II e JJ nunca suspeitaram que existisse algum problema com o registo da casa, ou até mesmo que existisse outro proprietário, tanto que antes de adquirirem o imóvel deslocaram-se várias vezes ao imóvel e quem tinha a chave que permitia aceder ao local era o Sr. FF – resposta ao artigo 27.º da base instrutória.

31. Já depois de adquirirem o imóvel, os réus II e JJ realizaram algumas obras no local e nunca foram importunados por ninguém a assumir-se como proprietário daquele imóvel – resposta ao artigo 28.º da base instrutória.

32. A presente acção foi registada a 10-05-2012 – cf. certidão do registo predial a fls. 473 a 477 dos autos.

B. As conclusões da recorrente, delimitando o objecto do recurso – cf. art. 635.º, n.º 4, do Novo Código de Processo Civil, suscitam o exame e decisão das seguintes questões:
i. Análise da escritura de justificação notarial, sua impugnação judicial e respectivo ónus da prova.
ii. Erro de julgamento do Acórdão recorrido e suas consequências.

B1. Em traços muito largos, revela-se nos autos a seguinte situação: uma escritura de justificação notarial sobre determinado bem imóvel, outorgada num cartório privado no ..., Madeira, no dia 30-12-2008, a que se sucederam, nesse mesmo dia, duas alienações consecutivas e onerosas do imóvel justificado, a favor de pessoas diversas; os últimos adquirentes, por seu turno, procederam à sua venda a terceiros, no dia 27-07-2009 que o hipotecaram à instituição bancária mutuante; a presente acção deu entrada em juízo em 23-09-2009 e foi registada em 10-05-2012.

A acção move-se, ostensivamente, no campo dos direitos reais, tendo a autora gizado o pleito sob duas perspectivas: pretende, em primeiro lugar, impugnar a escritura de justificação notarial, e, por arrasto, as sucessivas alienações efectuadas, incluindo a hipoteca; em segundo lugar, procura ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o imóvel objecto do litígio, com a respectiva condenação dos réus a acatarem esse direito.

As acções reais, por norma, não se poderão fundar, exclusivamente, na invocação de um título de aquisição derivada que só por si não gera o direito de propriedade, sendo apenas translativo dele, operando simplesmente a sua modificação subjectiva.[1]

In casu, mais do que obter a mera declaração da inexistência do direito justificado, a autora visa obter o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio identificado, não assumindo o pedido de declaração de nulidade da escritura de justificação relevo autónomo, antes integrando a causa de pedir complexa em que se integra o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio a seu favor, e a condenação dos réus a reconhecerem aquele direito, com todas as legais consequências.

Não é ousado afirmar, nesta óptica, que estão reunidos – a par dos pressupostos da acção de impugnação judicial de escritura notarial – os requisitos da acção de reivindicação do art. 1311.º do CC, enquanto manifestação típica do direito de sequela,  em que se pretende firmar o direito de propriedade do autor e pôr fim à situação ou actos que o violem, tendo como primeiro desiderato a declaração de existência do direito e, como escopo ulterior, a sua realização, nela concorrendo dois pedidos: o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objecto desse direito.

As instâncias, como se narrou anteriormente, decidiram em sentidos diametralmente opostos, tendo a 1.ª instância enveredado pela solução de declaração de nulidade das várias escrituras outorgadas, sem contudo dar guarida ao pedido da autora, ao passo que a Relação acabou por julgar improcedente a acção.

A situação bule, manifestamente, com as regras civilísticas, em matéria de direitos reais, tal como com as normas registais previstas no Código do Registo Predial, sendo de recordar que nem sempre as estatuições do registo predial estão em sintonia directa com as do Código Civil, devendo proceder-se à sua concatenação, atenta a necessidade de procurar a unidade do sistema jurídico.[2]

Na verdade, enquanto que do art. 408.º do CC deflui que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito de contrato”, com ressalva das “excepções previstas na lei”, o art. 5.º do CRP dispõe que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo”.

Acresce que, ao passo que a lei civil substantiva considera que os direitos adquiridos por terceiro, a título oneroso e de boa-fé, não são prejudicados pela declaração de nulidade e anulação registada depois do registo da aquisição – por esse terceiro –, embora não reconheça esses direitos enquanto não transcorrerem 3 anos sobre a conclusão do negócio viciado – cf. art. 291.º do CC –, já o CRP dispensa aquele prazo na declaração de nulidade registal, em relação aos direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa-fé, bastando que o registo da aquisição seja anterior ao registo da acção de nulidade – cf. art. 17.º, n.º 2.

Na inter-relação dos arts. 408.º do CC e 5.º do CRP, pode dizer-se que o regime consagrado no CRP se enquadra na área das excepções previstas no art. 408.º: ou seja, “a constituição ou transferência do direito real opera-se por mero efeito de contrato, salvo quando se trate de coisas imóveis ou de móveis sujeitos a registo”, porquanto, nessa eventualidade, essa “constituição ou transferência dá-se por mero efeito de contrato entre as partes ou seus herdeiros”, mas “em face de terceiros, apenas se verifica a partir da data do registo”.[3]

Já quanto à questão do encadeamento dos regimes plasmados nos arts. 291.º do CC e 17.º, n.º 2, do CRP, maiores têm sido as dúvidas doutrinais, importando salientar – acompanhando Santos Justo – que: “1) a lei civil considera o registo uma excepção ao regime geral da invalidade e, por isso, não se pode afastar a sua aplicação do âmbito que especificamente contempla; 2) a lei registal prevê situações de nulidade do registo”.[4]

Isto dito, enfatiza-se que o principal escopo do registo predial é dar a conhecer a terceiros – eventuais adquirentes – a situação do bem, garantindo a segurança e a genuinidade das relações jurídicas que sobre ele incidam – o registo assegura, em princípio, que a pessoa que se encontra inscrita adquiriu validamente esse direito e com esse direito permanecerá para os seus futuros adquirentes (enquanto constar do registo que o direito ainda não foi alienado ou sujeito a alguma oneração).

Um dos princípios primordiais do registo predial, que sobreleva no caso em apreço, é o do trato sucessivo, contemplado no respectivo art. 34.º do CRP.

Como observa Borges de Araújo “na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o princípio do trato sucessivo./ Partindo da ideia de que, respeitando este princípio se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excepcional, para apoiar e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer./ O novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis”.[5]

A escritura de justificação notarial, enquanto um dos modos necessários para o estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, está prevista no art. 116.º, n.º 1, do CRP, bem como nos arts. 89.º, 96.º, n.º 1, e 101.º do Código do Notariado (CN).

Ao aludir-se ao registo predial tem-se em vista, primacialmente, o acto de inscrição predial que tem por objecto factos jurídicos e não situações jurídicas: os factos são inscritos no registo predial a fim de dar a conhecer aos interessados a situação jurídica dos bens.

Porque a prova da aquisição originária, mormente a da usucapião, é muitas vezes extremamente difícil de conseguir - prova diabólica -, a lei estabelece presunções legais do direito de propriedade, como resulta, designadamente, do art. 7.º do CRP: “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

O registo predial está, deste modo, indelevelmente ligado à fé pública registal que se implementa com a atribuição de valor presuntivo à respectiva inscrição: ou seja, quem beneficia da inscrição registal de um facto aquisitivo presume-se titular do respectivo direito. Dito de outro modo, quem tem a seu favor a presunção registal escusa de provar o facto respectivo, de harmonia com a regra do efeito presuntivo do registo predial – que promana do citado art. 7.º do CRP –, sendo o valor de tal presunção iuris tantum, ou seja elidível mediante prova em contrário.

As presunções derivadas do referido art. 7.º do CRP são, assim, de dupla ordem: 1.ª presunção – o direito pertence a quem está inscrito como seu titular; 2.ª presunção – o direito existe tal como o registo o revela.[6]

Tal como salienta Paulo Videira Henriques: “Por um lado, presume-se que o direito pertence a quem está inscrito como seu titular; este sujeito não precisa de se preocupar com a prova dos factos demonstrativos da existência, validade e eficácia do seu direito sobre o imóvel. Por outro lado, presume-se que o direito existe tal como o registo o revela; o beneficiário da presunção não carece de provar os factos pertinentes à qualificação, existência e amplitude do direito registado. Trata-se de presunções iuris tantum com um grande alcance prático: quem quiser demonstrar o contrário é que tem o ónus da prova; o que, ressalvado o caso de haver posse mais antiga, será difícil visto estas presunções estarem associadas a documentos autênticos”.[7]

Centremo-nos, especificamente, na problemática da escritura de justificação notarial. Acompanhado, pari passu, José Alberto Vieira, em anotação ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 1/2008, de 04-12-2007, “quando o interessado pretende promover o registo de qualquer um destes factos [v.g., usucapião] está obrigado a providenciar um título escrito para ele (art. 43.º, n.º 1, do CRgP). Ora, dentro dos meios dispostos pela ordem jurídica portuguesa para este efeito, das três uma: - Recorre a juízo para obter a declaração judicial do facto a registar; - Promove a celebração de uma escritura pública de justificação notarial; - Instaura processo de justificação registal, nos termos do Código do Registo Predial (arts. 116.º e segs.)”.[8]

Concretamente, a escritura de justificação notarial “tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que ou não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão”.[9]

A justificação notarial associa-se, pois, à dinâmica do registo predial – art. 116.º, n.º 1, do CRP –, mormente à prova documental do facto jurídico a registar, imprescindível para o registo – cf. art. 43.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Em rigor, a justificação é uma solução pensada para resolver problemas de falta de título, por extravio ou destruição do mesmo ou para permitir a inscrição com base numa aquisição originária da propriedade, por usucapião ou acessão – cf. Acórdão do STJ, de 17-12-2014, Proc. n.º 5169/11.6TBSXL.L1.S1.[10] Reduzida a escritura pública, constitui, por conseguinte, um documento autêntico que faz prova plena do facto jurídico que titula – cf. arts. 363.º, n.º 2, e 371.º, n.º 1, ambos do CC.

Evidentemente, como qualquer outro acto jurídico, também a escritura de justificação notarial é passível de ser impugnada judicialmente, por parte de quem tenha legitimidade, tendo-se discutido na jurisprudência, nessa eventualidade, se os justificantes, cuja aquisição é contestada, beneficiariam da presunção de titularidade do direito de propriedade prevista no art. 7.º do CRP.

 Nessa sequência, o STJ uniformizou jurisprudência, no AUJ n.º 1/2008, no sentido que: “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116.º, n.º 1, do CRP e 89.º e 101.º do CNot, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do art. 7.º do CRP”.[11]

Ou seja, em face da jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, o titular inscrito com base em facto aquisitivo – v.g., situação de usucapião – titulado por escritura de justificação notarial tem o encargo probatório de demonstrar a aquisição e validade do seu direito, não beneficiando da presunção de titularidade registal emergente do art. 7.º do CRP.

Com efeito, consubstanciando a impugnação da escritura de justificação uma acção de simples apreciação negativa – cf. art. 10.º, n.ºs 2 e 3, al. a), do NCPC (2013) –, deve salientar-se a regra probatória civilística, vertida no n.º 1 do art. 343.º do CC, segundo a qual: “Nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga”.

Indo ao caso em litígio, era sobre os réus CC e DD que impendia o ónus de revelarem probatoriamente os factos necessários à demonstração do seu direito.

Diga-se que são desfasadas as conclusões da recorrente que pretendiam retirar do silêncio daqueles réus um resultado processual em termos de efeito cominatório/confessório; na realidade, pelo facto dos réus CC e DD estarem ausentes em parte incerta e ter sido desencadeada a sua citação edital – cf. fls. 127 e segs. –, permanecendo os mesmos em revelia absoluta, tal revelia revela-se totalmente inoperante ex vi da al. b) do art. 485.º do CPC (vigente aquando da propositura da acção), e actualmente do art. 568.º, al. b), do NCPC (2013), assim precludindo o efeito cominatório semipleno da revelia.

Rigorosamente, a revelia é inoperante porque tendo havido citação edital – cf. art. 233.º, n.º 1, do CPC revogado (art. 225.º, n.º 1, do NCPC (2013)) –, os réus ausentes não constituíram mandatário judicial no prazo de contestação e permaneceram na situação de revelia absoluta – cf. arts. 484.º, n.º 1, e 485.º, al. b), 2.ª parte, do CPC revogado (arts. 567.º, n.º 1, e 568.º, al. b), 2.ª parte, do NCPC) –, e porque, por outro lado, tendo a citação edital ocorrido em virtude da ausência dos citandos em parte incerta – cf. arts. 233.º, n.º 6, e 248.º, ambos do CPC revogado (arts. 225.º, n.º 6, e 240.º do NCPC) –, o Ministério Público, chamado a deduzir oposição, nos termos do art. 15.º, n.º 1, do CPC revogado (actual art. 21.º, n.º 1, do NCPC) não contestou a acção.

Por esse motivo, foi absolutamente correcta a opção do tribunal em levar à base instrutória os factos necessários à demonstração do direito substantivo que suportariam a alegação vertida na escritura de justificação notarial, isto é, os factos vertidos nos arts. 29.º a 32.º, que foram aditados à base instrutória no decurso da audiência final – cf. fls. 453.

Deveriam, pois, os réus provar as características da posse imprescindíveis à verificação da usucapião, sendo certo que a lei intima o(s) justificante(s) a, logo na respectiva escritura, indicar(em) “as circunstâncias de facto que determinam o início da posse”, bem como as que “consubstanciam e caracterizam a posse” – art. 89.º, n.º 2, do CN –, não sendo suficiente a menção de conceitos jurídicos abstractos para atribuir à posse as qualidades para usucapir, devendo aludir-se às circunstâncias e aos actos materiais caracterizadores daquela posse e aos factos concretos que permitam ilustrar as características da mesma.[12]

Como é sabido, a usucapião é, por excelência, o modo de aquisição de direitos reais e tem efeitos retroactivos à data do início da posse – art. 1288.º do CC –, consistindo a posse no poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, tanto podendo ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem. Em caso de dúvida presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do art. 1257.º do CC – cf. arts. 1251.º e 1252.º, n.ºs 1 e 2, do CC.

Esta pode ser titulada, de boa ou de má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta – art. 1258.º do CC. Diz-se titulada, a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico; o título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca – cf. art. 1259.º do CC.

Adquire-se a posse pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor, por constituto possessório, por inversão do título de posse – cf. art. 1263.º do CC. Mantida a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, por certo lapso de tempo, é facultada ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação. Trata-se da usucapião – art. 1287.º do C.C.

Para conduzir à usucapião, a posse tem de revestir sempre duas características: ser pública e pacífica – a boa ou má-fé e a existência ou não de título influem apenas no prazo para a aquisição do direito de propriedade.

Aqui chegados, constata-se que os primeiros réus, CC e DD, que outorgaram a escritura de justificação notarial – através da procuradora SS – no dia 30-12-2008, não lograram provar nenhum dos factos relevantes cujo ónus da prova lhes competia: com efeito, quedou por ficar demonstrado que aqueles réus compraram verbalmente, no ano de 1977, o imóvel em litígio; que desde essa data os ditos réus tenham habitado a casa existente naquele prédio, usufruindo de todas as suas utilidades; que tenham cultivado e colhido os frutos da parte rústica e suportado os respectivos custos e impostos; e que esses factos tenham sido praticados sem a oposição de quem quer que seja, com conhecimento de toda a gente e na convicção de exercerem sobre o aludido prédio o respectivo direito de propriedade.

Salienta-se, todavia, que esta falta de prova, não permitindo concluir pela falsidade das declarações proferidas naquele documento autêntico – conforme se exarou (correctamente, aliás) no acórdão recorrido –, não permite, porém, compreender e acompanhar o raciocínio aí vertido seguidamente.

Escreveu-se, a este propósito, no aresto sob recurso: “(…) percorrida a matéria de facto fixada, não se vê que tenha sido julgada provada a falsidade dos fundamentos da justificação notarial. Dessa matéria apenas resulta que tais fundamentos, aditados à base instrutória no decurso da audiência de julgamento, foram julgados não provados, não decorrendo daí a sua falsidade. Que também não resulta demonstrada por qualquer outro meio, designadamente, de qualquer outro facto julgado provado./Pois que, segundo se julga, não ficou provado qualquer facto incompatível com qualquer dos fundamentos alegados na escritura de justificação e que, por isso, permitisse afirmar essa falsidade. Os factos que poderiam relevar nesse sentido eram os alegados pela autora para fundar a aquisição, em seu favor, do direito de propriedade sobre o prédio, por usucapião. Mas, dessa factualidade apenas foi julgado provado, em resposta ao art. 7.º da BI, que a autora, antes e depois do óbito de RR, ocorrido a 23 de Abril de 1992, cultivou parte do prédio dos autos, recolhendo os seus frutos, à frente e com o conhecimento de toda a gente. O que, segundo se julga, não é incompatível com os fundamentos da justificação./ Parecendo, resultar mesmo da discussão da prova produzida que a posse do prédio tinha sido transmitida, no ano de 1977, ou antes, para a referida RR, de quem os justificantes eram sucessores, que, assim, podiam juntar à sua posse a posse da antecessora./ Como quer que seja, julga-se que a matéria de facto assente não permite concluir que as declarações que integram a escritura de justificação sejam falsas, não estando, assim, verificado o fundamento pelo qual foi declarada a nulidade dessa justificação. Até pode ter resultado outra coisa da discussão da causa, mas a decisão está limitada pela matéria de facto fixada, e esta não permite afirmar que a justificação notarial assentou em declarações falsas” (sic).

O trecho acima reproduzido parece inculcar a ideia de que para os Senhores Juízes Desembargadores, subscritores do acórdão recorrido, a impugnação da justificação notarial só procederia se os factos ali vertidos fossem falsos, o que não resulta, minimamente, da lei.

Trata-se de uma afirmação sem suporte legal, incompreensível e que não pode ser acompanhada.

Com efeito, recorda-se, a justificação notarial para estabelecimento de trato sucessivo – art. 116.º, n.º 1, do CRP – consiste numa declaração, feita pelo interessado, em que este se afirma, com exclusão de outem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e aludindo aos motivos que o impossibilitam de comprovar aquele direito pelos meios normais e, quando for alegada a usucapião, devem ser mencionados expressamente os factos que determinaram o início da posse, bem como os que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.[13]

Ora, fazendo a escritura de justificação notarial prova plena da declaração efectuada perante o oficial público, não a faz, porém, da verdade dessa declaração – arts. 371.º, n.º 1, e 372.º, n.º 1, do CC.

Por isso, enfatiza-se, perante a impugnação judicial do teor das declarações escrituradas, competia aos réus provarem o conteúdo substantivo dos factos ali vertidos, agora em sede de julgamento, tal como se detalhou supra – cf. art. 343.º, n.º 1, do CC.

Em todo o caso, decorrendo da procedência da impugnação judicial da justificação notarial a conclusão da desconformidade das declarações formalizadas na escritura pública à luz da realidade constatável, forçoso é concluir que aquela escritura, não podendo ser apodada de falsa no seu conteúdo declaratório, é, tão só, probatoriamente insuficiente para a demonstração dos eventos que ali se afirmaram e que suportavam a usucapião.

Harmonicamente, acolhendo por inteiro a jurisprudência vertida no AUJ n.º 1/2008, não tendo os réus CC e DD observado o encargo probatório de demonstrar os requisitos da usucapião, tem de se considerar procedente a impugnação daquela escritura, sem que contudo esteja apontada uma qualquer situação de falsidade, o que, todavia, não inquina a procedência do pedido impugnatório.

Daqui decorre, por fim, que tendo a autora pedido que se declarasse nula a escritura de justificação notarial, outorgada em 30-12-2008, com fundamento em falsidade das afirmações justificatórias constantes da mesma, mas não figurando a falsidade entre as causas típicas de nulidade dos actos notariais, previstas nos arts. 70.º e 71.º do CN, se está em face dum caso de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido.

E, por conseguinte, é permitido ao tribunal corrigir oficiosamente esse erro e declarar a ineficácia da escritura de justificação notarial, conforme resulta do art. 664.º do CPC revogado, e actualmente do art. 5.º, n.º 3, do NCPC – cf. AUJ n.º 3/2001, de 23-01-2001, publicado no DR I Série A, de 09-02-2001.

Aliás, neste preciso sentido e acolhendo a mesmíssima solução – a propósito de situações de impugnação judicial de escrituras de justificação notarial –, vide os Acórdãos do STJ, de 08-02-2011, Proc. n.º 2565/07.7TBMTS.P1.S1, e de 06-10-2011, Proc. n.º 399/1999.E1.S1 (ambos inéditos).

Conclui-se, assim, ao contrário do que sentenciou o acórdão recorrido, pela ineficácia da sobredita escritura de justificação notarial, o que impõe a revogação do acórdão recorrido, procedendo, nesta parte, a revista, com as consequências que se passam a analisar no ponto subsequente.

B2. Do acima exposto, torna-se claro que a Relação não andou bem ao considerar improcedente o pedido de declaração de nulidade da escritura de justificação notarial, daí concluindo pela prejudicialidade de análise das demais questões que foram suscitadas na apelação, designadamente, aquelas que constam do relatório do aresto recorrido, a fls. 575, a saber:

“- Provada a boa fé dos réus apelantes, que adquiriram com base no registo, não podem os mesmos ser prejudicados pela declaração de nulidade do registo da aquisição do prédio a favor do demais réus, por força do regime estabelecido no n.º 2 do artigo 17.º do Código do Registo Predial.

- Mesmo aplicando no caso o regime estabelecido no art. 291.º do C. Civil, a presente acção foi registada mais de três anos depois do registo da aquisição em favor do réu FF, pelo que, estando este adquirente de boa fé, não lhe era oponível a declaração de nulidade da escritura de justificação”.

Ou seja, alterado em sede de revista o entendimento do acórdão recorrido quanto à primeira questão, atinente à nulidade, rectius, ineficácia da escritura de justificação notarial, o que implica a revogação da decisão recorrida, impõe-se, necessariamente, a avaliação, interpretação e qualificação das demais questões suscitadas na apelação, para, a final, poder decidir-se se procedem ou não os demais pedidos formulados.

Não se tendo a Relação pronunciado sobre as questões antes enunciadas, surge, assim, o problema de saber se deve este Supremo Tribunal substituir-se à Relação no conhecimento das ditas questões, nos termos do disposto no art. 665.º, n.ºs 2 e 3, do NCPC (2013) – equivalente, ao revogado art. 715.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24-08.

A problemática jurídica equacionada, que se afigurava duvidosa à luz do CPC revogado, tal como dá conta, por exemplo, o Acórdão do STJ, de 20-20-2009, Proc. n.º 1433/07.7TBBRG.S1, está hoje clarificada na lei.

Contrariamente ao art. 726.º do CPC revogado, que ao ressalvar apenas o n.º 1 do art. 715.º, parecia inculcar a ideia de que o STJ, se dispusesse de todos os elementos, devia substituir-se à Relação e proferir decisão sobre o mérito do recurso, conhecendo das questões que esta não apreciou por as julgar prejudicadas pela solução dada ao litígio, o actual art. 679.º do NCPC afasta da aplicação à revista a totalidade do art. 665.º (correspondente ao revogado art. 675.º).

Parafraseando Abrantes Geraldes: “No NCPC, o art. 679.º exclui a aplicação remissiva de todo o preceituado no art. 665.º, incluindo o n.º 2 que trata das aludidas situações que no CPC anterior constavam do n.º 2 do art. 715.º./Tal significa que foi retirada a possibilidade do Supremo Tribunal de Justiça se substituir de imediato à Relação, devendo agir do seguinte modo: a) Detectada alguma nulidade decisória que afecte o acórdão recorrido, o STJ, de acordo com o prescrito pelo art. 684.º, nuns casos (als. c) e e) e 2.ª parte da al. d), do art. 615.º), decidirá em regime de substituição, noutros casos, maxime quando a nulidade corresponder a omissão de pronúncia, limitar-se-á a cassar a decisão, remetendo os autos para a Relação; b) Quando o acórdão da Relação não estiver afectado por uma nulidade, mas dele emergir que não apreciou determinada questão, por considerá-la prejudicada pela solução então encontrada, se tal acórdão for revogado, impõe-se a remessa dos autos à Relação, para que nesta sejam apreciadas em primeira mão as questões omitidas”.[14]

Aliás, só desta forma se assegurará, substancialmente, o duplo grau de jurisdição.

Deve, assim, a Relação, em concreto e de forma detalhada, debruçar-se sobre as várias e sucessivas transmissões do bem imóvel que foram realizadas, em favor dos demais réus e intervenientes, na sequência da primeira inscrição registal, bem como sobre a validade da oneração daquele imóvel a favor da entidade bancária, tendo em atenção as pertinentes normas civilísticas e do registo predial, designadamente os já mencionados arts. 5.º e 17.º, n.º 2, do CRgP e 408.º e 291.º do CC, sem prejuízo de outros normativos que se revelem pertinentes na ponderação e subsunção jurídico-factual do litígio.

Tudo visto, e sem mais tergiversações, devem, por isso, os autos baixar à Relação para aí serem conhecidas das demais questões omitidas, partindo da decisão aqui fixada, em sede de revista, de que a escritura pública de justificação notarial é ineficaz.

C - Compilam-se, assim, as seguintes conclusões:

- As acções reais não se podem fundar, por norma e exclusivamente, na invocação de um título de aquisição derivada, uma vez que as formas de aquisição derivada não geram, por si só, o direito de propriedade, sendo apenas translativas dele, operando a sua modificação subjectiva.

- O registo predial, cujo objecto são factos jurídicos, tem por escopo principal dar a conhecer aos interessados a situação jurídica do bem, garantindo a segurança e genuinidade das relações jurídicas que sobre ele incidam, assegurando que, em regra, a pessoa que se encontra inscrita adquiriu validamente esse direito e com esse direito permanecerá para os seus futuros adquirentes.

- A escritura de justificação notarial, documento autêntico, constitui um dos modos necessários para o estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, permitindo aos interessados titular factos jurídicos relativos a imóveis que não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de forma escrita, como a usucapião ou a acessão.

- Impugnada judicialmente a escritura de justificação notarial, impende sobre o justificante, na qualidade de réu, o ónus da prova da aquisição do direito de propriedade e da validade desse direito, nos termos do art. 343.º, n.º 1, do CC, sem que possa beneficiar da presunção registal emergente do art. 7.º do CRgP.

- Em caso de invocação de aquisição por usucapião, o justificante tem de provar as características da posse imprescindíveis à verificação daquele modo de aquisição originária do direito de propriedade, devendo indicar, logo na escritura, as circunstâncias de facto que determinam o seu início e que consubstanciam e caracterizam essa posse, não sendo suficiente a mera alusão a conceitos jurídicos abstractos para atribui à posse as qualidades para usucapir.

- Na falta dessa prova, e mesmo que não se possa concluir pela falsidade das declarações vertidas na escritura de justificação, a acção de impugnação deverá proceder, atendendo à insuficiência probatória de factos que permitam suportar a usucapião (ou outro modo de aquisição originária), devendo, a final, ser declarada não a nulidade, mas sim a ineficácia da escritura de justificação notarial.

- Procedendo a revista quanto à impugnação judicial da escritura de justificação notarial e tendo sido omitida pronúncia quanto às demais questões suscitadas na apelação, deverá ser ordenada a baixa do processo ao tribunal recorrido, para exame das questões cuja análise ficara prejudicada, tal como decorre da norma do art. 679.º do NCPC (2013), assim se assegurando plenamente, aliás, o duplo grau de jurisdição.

III.

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em:

Julgar procedente a revista, declarando a ineficácia da escritura de justificação notarial outorgada em 30-12-2008, assim revogando o acórdão recorrido;

Ordenar a baixa do processo ao tribunal recorrido para que aí, pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores, sejam apreciadas as demais questões cuja solução foi omitida naquele acórdão, por então terem sido consideradas prejudicadas, tudo nos moldes acima assinalados.

Custas a fixar a final de acordo com o vencimento ou decaimento.

                         Lisboa, 9 de Julho de 2015

Martins de Sousa (Relator)



Gabriel Catarino

                         

Maria Clara Sottomayor

________________________

[1] Vejam-se, por ex., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-06-1983, anotado por Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 120.º, pág. 208 e segs.; e de 29-04-1992, anotado por Henrique Mesquita, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 125.º, pág. 86 e segs..
[2] A este respeito, cf. Santos Justo, Direitos Reais, 4.ª edição, 2012, pág. 67 e segs..
[3] Antunes Varela, anotação ao Acórdão do STJ, de 4 de Março de 1982, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118.º, pág. 315 (cf. págs. 282-288 e 307-316).
[4] Op. cit. pág. 83. Este autor expõe nesta sua obra, nas págs. 80 a 84 as várias posições que têm existido a respeito do cotejo dos preceitos legais contidos nos mencionados arts. 291.º do CC e 17.º, n.º 2, do CRgP.
[5] Prática Notarial, 2001, pág. 339.
[6] Neste sentido, cf. Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 1997, pág. 119.
[7] Terceiros para efeitos do artigo 5.º do Código do Registo Predial, “Boletim da Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra”, 2003, págs. 399/400.
[8] José Alberto Vieira, Registo de usucapião titulada por escritura de justificação notarial e presunção de titularidade do direito – Anotação ao AUJ n.º 1/2008, de 04-12-2007, Cadernos de Direito Privado, n.º 24, Outubro/Dezembro de 2008, pág. 37 (págs. 21 a 42).
[9] De novo, José Alberto Vieira, op. cit., pág. 37.
[10] Acórdão relatado pela aqui 2.ª adjunta e inédito.
[11] Diário da República, 1.ª série, n.º 63, de 31-03-2008, págs. 1871-1879. Esta jurisprudência permanece actual e tem sido acompanhada nos arestos mais recentes do STJ, designadamente nos seguintes Acórdãos – todos publicados nas bases de dados do IGFEJ: de 27-01-2010, Proc. n.º 2319/04.2TBGDM.P1.S1, de 07-04-2011, Proc. n.º 569/04.0TCSNT.L1.S1, de 13-09-2011, Proc. n.º 1027/06.4TBSTR.E1.S1, e de 19-02-2013, Proc. n.º 367/2002.P1.S1, entre muitos outros.
[12] Neste sentido, Mouteira Guerreiro, Temas de Registos e de Notariado, 2010, págs. 117/118.
[13] Cf. art. 89.º, n.ºs 1 e 2, do CN.
[14] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, 2014, pág. 375.