Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A784
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE DO TESTADOR
HERDEIRO APARENTE
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
TERCEIROS DE BOA FÉ
REGISTO DA AQUISIÇÃO
AQUISIÇÃO TABULAR
Nº do Documento: SJ20080422007846
Data do Acordão: 04/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I) – Na interpretação das disposições testamentárias a lei consagra um critério acentuadamente subjectivista – mitigado com elementos de cariz objectivista – “a prova complementar”, mandando atender à vontade do testador conforme o contexto do testamento.

II) – Tal prova complementar, apenas é admitida como elemento auxiliar da interpretação, desde que o resultado interpretativo alcançado tenha no testamento um mínimo de apoio, também pelo facto de se tratar de um negócio solene.

III) – O momento a que se tem que se reportar a interpretação de testamento é a data da feitura da disposição testamentária.

IV) – Se a Autora, que se constitui como associação, em data muito posterior à abertura do testamento, onde se cometia ao testamenteiro a instituição, ou pelo menos, ajudar a fundação ou criação de uma “Sopa para Pobres”, inseriu nos seus estatutos finalidade em tudo semelhante a tal disposição – não pode arrogar-se beneficiária de tal deixa testamentária, por ao tempo do testamento, nem sequer existir juridicamente.

V) – Não tendo sido registada a acção em que a Autora, além do mais, pede a anulação de vendas de imóveis da herança, entretanto feita por herdeiro aparente a terceiros compradores de boa-fé, o que assumiria relevo face ao pedido de declaração de nulidade dessas vendas, e tendo os RR. compradores registado, em 1994, as aquisições que fizeram nesse ano, tendo decorrido, entre essa data e a da propositura da acção mais que três anos – art. 291º do Código Civil – os seus direitos estão protegidos pela via tabular.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Associação Para o S….. dos P…. de S….. (Cinfães) intentou, em 10.1.2003, pelas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa, com distribuição à 1ª Vara, acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra:

AA e marido BB,

CC,

DD e mulher EE,

FF,

GG e mulher HH,

II e mulher JJ.

J.C.J., C……., Ldª,

Pedindo que:

- se declare propriedade de LL, à data da sua morte, os bens mencionados no artigo 19° da petição inicial e se declare a falecida então como sua única e exclusiva titular;

- que seja cumprida a disposição testamentária exarada no testamento deixado pela finada LL;

- que a Autora seja reconhecida como herdeira/legatária testamentária da falecida LL, sendo habilitada como tal e restituídos à herança todos os bens alienados;

- que a testamenteira CC seja obrigada a cumprir o testamento e a bem desempenhar a sua função;

- que seja declarada nula a escritura de habilitação exarada no 17° Cartório Notarial de Lisboa;

- que sejam declarados nulos os actos de disposição patrimonial efectuados pelos 1°s Réus e as consequentes aquisições.

A Autora, invocou, em resumo, ter sido contemplada no testamento de LL com uma deixa relativa a uma instituição, fundação ou criação de uma Sopa para Pobres, o que não aconteceu por não ter sido respeitada a vontade da testadora.

Esta pretensão foi contestada pelos 2°s, 3°s, 4°s, 5°s e 6°s réus, por excepção e por impugnação, tendo a Autora replicado e concluído como na petição inicial.

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Prosseguindo o processo a sua regular tramitação, veio a ser proferida sentença que:

Julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

a) - Reconhecer LL, em 11.02.1993, como a única proprietária do prédio urbano sito na Rua Machado de Castro, nº 11, Cacém de Cima, Agualva Cacém, concelho de Sintra, descrito na CRP de Agualva Cacém sob o nº 03613/151193, actualmente inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 2769º, se encontrava registada unicamente a favor da falecida LL; e

b) - Declarar nula a escritura de habilitação celebrada a 31 de Março de 1993 no 17° Cartório Notarial de Lisboa, exarada a fls. 79 a 80 do Livro de notas para escrituras diversas nº 185 C;

c) - Absolver integralmente os Réus, AA e marido BB, CC, DD e mulher EE, FF, GG e mulher HH, II e mulher JJ e J.C.J., C……., Lda, dos demais pedidos contra eles formulados pela Autora, Associação para o Sustento dos Pobres de Souselo.
***

Inconformada, a Autora recorreu para a Relação de Lisboa, que, por Acórdão de 30.10.2007 – fls. 606 a 617 – julgou o recurso improcedente e confirmou a sentença apelada.
***

De novo inconformada, a Autora recorreu para este Supremo Tribunal e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. O facto de ter sido dado como provado que a autora não distribui alimentos pelos pobres nem ajuda a sustentar os mais carenciados, por ora, não quer dizer que não prossiga esses objectivos sociais, nem que os não venha a desenvolver plenamente quando provida dos meios necessários e suficientes para o fazer.
Uma via para o provimento de tais meios será a restituição à herança dos bens alienados para que pelo produto da venda dos mesmos se possa destinar à Autora os meios adequados à prossecução dos fins sociais a que se propôs e que a testadora queria ver concretizados.
A autora é uma associação surgida ex novo e que carece de meios para cumprimento dos fins — do objecto estatutário — a que se propõe, coincidentes com a vontade da testadora.
Interpretando o texto do testamento de modo a entender-se o espírito e vontade da testadora crê a Autora seria intenção daquela beneficiar a Associação para o sustento dos Pobres de Souselo se, ao tempo, dela tivesse conhecimento tal como ora existe.

2. A Autora é beneficiária do testamento deixado por LL já que foi essa também a sua vontade de instituir ou criar “uma sopa para pobres” na freguesia de Souselo, concelho de Cinfães, onde sua mãe nasceu, sendo que na interpretação da sua vontade, e com arrimo na letra do testamento, sempre se concluiria ser sua intenção beneficiar uma associação já legalmente constituída e a carecer de meios para a prossecução do seu objecto social que é o da vontade da testadora traduzida no auxílio alimentar aos pobres de Souselo com o património deixado.
Esta interpretação encontra suporte legal na norma do artigo 2187° do Código Civil e na prova complementar fornecida pelas testemunhas em audiência só reforça tal entendimento e percepção.
Ao não entender assim, violou a decisão recorrida o preceituado neste artigo.

3. Não serão pois os pobres de Souselo, todos ou cada um de per si, os que podem exigir o cumprimento do testamento, pois que a autora pugna pelo auxílio alimentar e o seu objecto social vai de encontro ao interesse dos pobres e desfavorecidos de Souselo, pelo que a autora representa, deste modo, o seu interesse, tendo esta o direito de exigir da testamenteira o cumprimento do legado.

4. A renúncia da testamenteira ocorreu posteriormente à instauração da acção, sendo a ela naquele momento a cabeça-de-casal, nos termos do artigo 2080º, nº1, b) do Código Civil, a quem incumbia o cumprimento do testamento.

5. Assiste o direito à autora de ver restituídos à herança os bens alienados, porquanto, sendo beneficiária, é herdeira, nos termos dos artigos 2075° e 2076° do Código Civil, sendo que o produto da venda não foi entregue para cumprimento da vontade da testadora.

6. Os adquirentes dos imóveis vendidos pertencentes à testadora — ora recorridos — não beneficiam da protecção do artigo 291º do Código Civil, pois que sabiam, já à data da propositura da acção do testamento e do conteúdo do mesmo.

Termos em que, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto acórdão da Relação.

Os recorridos FF e GG e mulher HH contra-alegaram, batendo-se pela confirmação do Julgado.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que as Instâncias consideraram provada a seguinte matéria de facto:

1) - A Autora é uma associação de solidariedade social que tem por objecto social o auxílio alimentar aos pobres de Souselo, a fundação ou criação de uma sopa para os pobres de Souselo, a distribuição alimentar pelos pobres de Souselo e prover ao sustento dos pobres de Souselo, nos termos que constam do doc. n°1 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido. (alínea A) dos factos assentes)

2) - A Autora constituiu-se por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Marco de Canavezes, em 5.12.2002. (alínea B) dos factos assentes)

3) - Para desenvolver os fins a que se propôs a Autora conta com a jóia e quota dos associados e quaisquer donativos ou subsídios que lhe sejam entregues. (alínea C) dos factos assentes)

4) - LL faleceu em 11 de Fevereiro de 1993, no Concelho de Lisboa, tendo outorgado o testamento cuja cópia certificada consta de fls. 11 a 16, que se dá por reproduzida. (alínea D) dos factos assentes)

5) - O teor deste testamento, único que a falecida deixou, foi conhecido em Agosto de 1994. (alínea E) dos factos assentes)

6) - No testamento refere-se a vontade da falecida em fazer instituir ou ajudar a fundação de uma obra social e de solidariedade social na freguesia de Souselo. (alínea F) dos factos assentes)

7) - No testamento LL nomeou como testamenteira a 2ª Ré e com o encargo de cumprir o legado. (alínea G) dos factos assentes)

8) - No dia 31 de Março de 1993 foi celebrada escritura de habilitação no 17° Cartório Notarial de Lisboa, onde três testemunhas declararam que LL não fez testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, não tinha descendentes, nem, já ascendentes vivos, nem irmãos, tendo-lhe sucedido, sua única sobrinha, AA, casada, sob o regime de comunhão de adquiridos, com BB, sendo a única e universal herdeira da finada LL, não existindo quaisquer outras pessoas que, segundo a lei, lhe prefiram ou, com ela, possam concorrer, na sucessão, nos termos que constam do doc. n°3 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido. (alínea H) dos factos assentes)

9) – Encontra-se registada a favor dos Réus DD e mulher EE a aquisição, por compra à 1ª Ré, da fracção autónoma correspondente ao rés-do-chão e logradouro com 130,80 m2, do prédio sito na Rua ….., n°…, r/c Dtº, Agualva Cacém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz na ficha nº…./….. A, nos termos que constam do doc. junto a fls. 81/97 que se dá por reproduzido, registo efectuado na sequência da celebração da escritura cuja cópia consta de fls. 53/56 que se dá por reproduzida (outorgada, em 19/08/1994, nas instalações do Crédito Predial Português, no Campo Pequeno, Lisboa e a cargo do 23° Cartório Notarial de Lisboa, onde declararam que o preço da compra a venda foi de 4.000 contos). (alínea I) dos factos assentes).

10) – Encontra-se registada a favor da Ré FF a aquisição, por compra à 1ª Ré, da fracção autónoma correspondente ao 1° andar direito do prédio sito na Rua …, n°…., Agualva Cacém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz na ficha n°…/… C, nos termos que constam do doc. junto a fls. 81/97 que se dá por reproduzido. (alínea J) dos factos assentes)

11- Encontra-se registada a favor dos Réus GG e mulher HH, a aquisição, por compra à 1ª Ré, da fracção autónoma correspondente ao ….° andar Dtº, do prédio sito na Rua ….., n°…, Agualva Cacém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz na ficha n°…./… E, nos termos que constam do doc. junto a fls. 81/97 que se dá por reproduzido. (alínea L) dos factos assentes)

12) – Encontra-se registada a favor dos Réus II e mulher JJ, a aquisição, por compra à 1ª Ré, da fracção autónoma correspondente ao …° andar Dtº, do prédio sito na Rua ….., n° …, Agualva, Cacém, prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz na ficha n° …../…. G, nos termos que constam do doc. junto a fls. 81/97 que se dá por reproduzido. (alínea M) dos factos assentes)

13) - Os 1°s Réus prometeram vender à Ré J.C.J, C….., Ldª e esta prometeu comprar àqueles o prédio urbano composto de casa de habitação de R/C e 1° andar, com a área de 134 m2, inscrito sob o artigo matricial n°180 da freguesia de Belas, Concelho de Sintra e descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz na ficha n°…./….. (alínea N) dos factos assentes)

14) - Os Réus DD e mulher EE constituíram um empréstimo bancário, para a compra da fracção autónoma identificada em 1) de que eram inquilinos, no Crédito Predial Português, pelo valor de 3.600.000$00, com juros remuneratórios anuais de 14,085%, constituindo, sobre a fracção autónoma, uma hipoteca em favor do Crédito Predial Português que se encontra registada a favor deste. (alínea O) dos factos assentes)

15) - Na freguesia de Souselo (Concelho de Cinfães) foi fundada, em 1991, uma instituição, denominada “Associação de S….. S….. de Souselo” que tem por objecto social a protecção à infância, juventude, terceira idade e deficientes”, nos termos que constam do doc. junto a fls. 76/80, que se dá por reproduzido. (alínea P) dos factos assentes)

16) - Em 4 de Fevereiro de 1965, data em que o testamento referido em D) foi lavrado, o prédio sito na Rua ……., n°….., Agualva Cacém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz na ficha n°…../…., não era propriedade de LL que o adquiriu apenas em 02 de Agosto de 1972, nos termos que constam do doc. junto a fls. 81/97 que se dá por reproduzido. (alínea Q) dos factos assentes)

17) - O Réu GG adquiriu a fracção identificada em L) com recurso a empréstimo bancário, pelo preço de 3.500.000$00, por escritura de compra a venda datada de 01/09/1994, sendo o registo provisório, depois convertido em definitivo, de 27/04/94, com hipoteca a favor da instituição de crédito, nos termos que constam da escritura de compra e venda cuja cópia foi junta a fls. 99/102 a se dá por reproduzida. (alínea R) dos factos assentes)

18) - A Ré FF adquiriu a fracção identificada em J) com recurso a empréstimo bancário, pelo preço de 3.500.000$00, por escritura de compra e venda datada de 08/08/1994, sendo o registo provisório, depois convertido em definitivo, de 27/04/94, com hipoteca a favor da instituição de crédito, nos termos que constam da escritura de compra e venda, cuja cópia foi junta a fls. 103/108 e se dá por reproduzida. (alínea S) dos factos assentes)

19) - LL, ao fazer o testamento cuja cópia consta de fls. 11 a 16, pretendia contemplar a instituição ou, pelo menos, a fundação ou criação de uma “Sopa para Pobres”, na freguesia de Souselo, Concelho de Cinfães, onde sua mãe nasceu. (ponto 1º da base instrutória)

20) - Até ao momento da instauração da presente acção, a Ré CC não desempenhou a tarefa de testamenteira em que foi instituída no testamento de LL. (ponto 2º da base instrutória)

21) - A Autora propõe-se instituir uma sopa para os pobres de Souselo, tal como era vontade de LL. (ponto 3º da base instrutória)

22) - O produto da venda dos imóveis aludidos em I) a N), não foi entregue à Autora, nem foi utilizado para instituir ou ajudar a fundar ou criar uma sopa para os pobres na freguesia de Souselo, concelho de Cinfães. (ponto 4º da base instrutória)

23) - Os primeiros Réus apropriaram-se do produto de tais vendas, contra a propósito a vontade da falecida LL. (ponto 5º da base instrutória)

24) - LL nasceu, viveu e faleceu em Lisboa. (ponto 8º da base instrutória)

25) -O único laço afectivo que tinha com Souselo, era o facto de sua mãe aí ter nascido. (ponto 9º da base instrutória)

26) - LL, no testamento referido em D), pretendia o que ali declarou. (ponto 10º da base instrutória)

27) - MM encontra-se viva. (ponto 11º da base instrutória)

28) - Os Réus II e JJ convenceram-se, mediante o teor do registo predial a dos demais documentos apresentados, entre os quais escritura de habilitação de herdeiros, que a Ré AA era proprietária da fracção referida em M). (ponto 13º da base instrutória)

29) - Os Réus DD e mulher EE tiveram conhecimento dos factos alegados pela Autora relativamente ao prédio e ao testamento e às pretensões da Associação de S….. S….. de Souselo em data não concretamente apurada, mas depois de terem celebrado a escritura cuja cópia consta de fls. 223/227. (ponto 14º da base instrutória)

30) - Os Réus ignoravam a existência de qualquer testamento deixado pela falecida LL, o seu teor e a quem beneficiava. (ponto 15º da base instrutória)

31) - A Ré AA, através de seu marido BB, perante os Réus DD e mulher EE intitulou-se dona a proprietária do prédio sito na Rua ….., n° …, Agualva, Cacém e conduziu as negociações da compra a venda dos andares. (ponto 16º da base instrutória)

32) - O marido da Ré AA apareceu sempre, desde o início das negociações para a aquisição dos andares de que os Réus eram inquilinos, como representante da sua mulher, que se dizia única herdeira da falecida LL. (ponto 17º da base instrutória)

33) - Os Réus DD a mulher EE e o Crédito Predial Português actuaram convencidos que a Ré AA e seu marido BB podiam alienar a fracção referida em 1) registada em seu nome. (ponto 18º da base instrutória)

34) - A Autora não distribui alimentos pelos pobres de Souselo, nem ajuda a sustentar os mais carenciados dessa freguesia. (ponto 19º da base instrutória)

35) - Os sócios fundadores da instituição referida em P) NN, OO a PP foram também sócios fundadores da Autora. (ponto 21º da base instrutória)

36) - LL, no testamento referido em D), pretendia o que ali declarou. (pontos 22º, 24º e 25º da base instrutória)

37) -Tanto nos preliminares como na conclusão dos negócios com os Réus FF, GG e mulher HH, na altura arrendatários das fracções identificadas em J) a L) (por contratos datados de 1969), sempre os Réus AA a BB se apresentaram como donos e possuidores das fracções. (ponto 26º da base instrutória)

38) -Tendo exibido e apresentado escritura da habilitação de herdeiros, certidão da Conservatória do Registo Predial de Sintra, escritura de constituição do prédio em propriedade horizontal e demais documentação. (ponto 27º da base instrutória)

39) - Os Réus FF, GG e HH, desconheciam o testamento deixado por LL. (ponto 28º da base instrutória)

40) - A Ré CC renunciou ao cargo de testamenteira em que foi instituída no testamento aludido em D) nos termos que constam do documento junto a fls. 381, [de 30.9.2005] que se dá por reproduzido. (ponto 29º da base instrutória)

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se, em face do testamento invocado nos autos, a Autora é sua beneficiária, e se os adquirentes dos imóveis pertencentes à herança da testadora, estão obrigados a abrir mão deles em favor da recorrente.

Tratando-se, como se trata, de saber se a Relação ao interpretar o testamento fez correcta aplicação do critério legal interpretativo de tal declaração de vontade, estamos perante questão de direito da competência deste Tribunal – art. 721º, nº2, do Código de Processo Civil.

Como se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de 6.6.2000, in BMJ 498, 241:

“Constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, determinar a intenção do testador. Porém, já envolve questão de direito, de conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça, quando se indaga se o sentido da vontade do testador tem um mínimo de correspondência no contexto do testamento, ou quando a fixação dessa vontade foi feita apenas com base nos termos do testamento, sem recurso a meios complementares de prova”.

A Autora sustenta que o testamento de LL a beneficiou.

No testamento, datado de 4.2.1965, refere-se a vontade da falecida em fazer instituir ou ajudar a fundação de uma obra social e de solidariedade social na freguesia de Souselo, ao destinar a parte da sua herança que sobrasse do cumprimento de todas as demais disposições de vontade ali consignadas à instituição ou, pelo menos, à ajuda da fundação ou criação de uma “Sopa para Pobres”, na freguesia de Souselo, Concelho de Cinfães, onde sua mãe nasceu.

A Autora, que é uma associação sem fins lucrativos, constituída, em 5.12.2002, tendo em conta que o testamento foi conhecido em Agosto de 1994 (a testadora faleceu em 11.2.1993) sustenta que, quando nesse testamento se refere – depois da disposição de bens concretos a favor de várias pessoas – que “Todos os seus restantes bens serão vendidos, após a morte da usufrutuária, por CC, a quem nomeia como sua testamenteira”.
“E o restante será destinado a instituir, ou pelo menos, ajudar a fundação ou a criação de uma “Sopa para Pobres”, na freguesia de Soutelo, concelho de Cinfães, onde sua mãe nasceu” (fls. 15 dos autos), sustenta, dizíamos, que esta disposição a beneficia pois, como consta da escritura pública pela qual se constituiu, é seu escopo o auxílio alimentar aos pobres de Souselo, a fundação ou criação de uma sopa para os pobres de Souselo, a distribuição alimentar pelos pobres de Souselo e prover ao sustento dos pobres de Souselo.

Se se atentar na redacção que consta da referida deixa testamentária e o objecto social da associação Autora são quase ipsis verbis coincidentes.

Como antes dissemos, o testamento escrito em 1965, só foi conhecido em Agosto de 1994, e a Autora nasceu juridicamente em 5.12.2002, pelo que a coincidência da finalidade associativa com o teor da deixa testamentária não será mera coincidência.

Vejamos a interpretação do testamento e o critério legal interpretativo da declaração de vontade do testador.

O art. 2179°, nº1, do Código Civil define testamento como O acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles”.

Por ser um acto unilateral, pessoal, e não um negócio jurídico, relevante para interpretação da vontade do testador é a consideração da sua intenção, em ordem a saber se a sua vontade prevalece sobre a interpretação de terceiros, sobretudo, os que se arroguem direitos emergentes da vontade do testador, expressa solenemente no testamento, como acto de vontade.

Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil” – 3ª edição – pág. 396 – ensina:

“O testamento é um negócio de cariz muito peculiar. Ao contrário dos negócios entre vivos, não tem por função vincular o seu autor, mas antes dispor sobre o destino do seu espólio para depois da sua morte. O respeito pela última vontade das pessoas é uma exigência de Direito Natural que implica, na interpretação do testamento, o respeito escrupuloso pela vontade real do testador em tudo aquilo que não seja contrário à Lei imperativa e à Moral ou não seja impossível. Nesta perspectiva, a interpretação dos testamentos deve ser subjectiva”.

Na interpretação das disposições testamentárias a lei consagra um critério acentuadamente subjectivista – mitigado com elementos de cariz objectivista – “a prova complementar” que só, excepcionalmente, pode ser utilizada como critério interpretativo.

Dispõe o art. 2187º do Código Civil:

1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.
2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.

A lei consagra, repetimos, um critério subjectivista, mandando atender à vontade do testador conforme o contexto do testamento, sendo admitida prova complementar, apenas como elemento auxiliar da interpretação, desde que o resultado interpretativo assim alcançado tenha no documento um mínimo de apoio, ou seja, também pelo facto de se tratar de um negócio solene ou formal, a interpretação da declaração de vontade do testador, ainda que com excepcional recurso à prova complementar, não pode deixar de respeitar a sua vontade, impondo a lei que a declaração de vontade do “de cujus”, assim interpretada, tenha no testamento um mínimo de correspondência.

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, IV Volume, em nota ao artigo citado, escrevem:

Em primeiro lugar, o intérprete deve procurar o sentido mais ajustado à vontade do testador.
Enquanto, nos negócios entre vivos, quer bilaterais, quer unilaterais receptícios, a interpretação se deve nortear pelo sentido mais acessível ao declaratário, até porque ambos os contraentes são, em princípio, co-autores do texto contratual, nos negócios mortis causa há que procurar, não o sentido mais conforme à expectativa de cada chamado, mas a mais próxima da vontade aparente do de cujus…”

Nos negócios jurídicos protege-se a interpretação do declaratário real, desde que não conheça a vontade do declarante, acolhendo a lei, no art. 236º, nº1, do Código Civil, a teoria da impressão do destinatário, na sua formulação objectivista.

Na interpretação da vontade do testador adopta-se um critério subjectivista.

O momento a que se tem que se reportar a interpretação de testamento é a data da feitura da disposição testamentária.

Assim, desde logo, importa considerar que, não existindo ao tempo do testamento a associação Autora, como claramente resulta dos factos e se colhe da declaração testamentária, o objectivo da testadora era instituir ou ajudar a fundação de um sopa dos pobres de Souselo, em homenagem a sua mãe ali nascida.

Nos estatutos da Autora, no art. 2º afirma-se:

“A associação tem por objecto o auxílio alimentar aos pobres de Souselo; fundação ou criação de uma sopa para pobres de Souselo; distribuição alimentar pelos pobres de Souselo; prover ao sustento aos pobres de Souselo-Cinfães”.

No testamento contém-se - “…E o restante será destinado a instituir, ou pelo menos, ajudar a fundação ou criação de uma “Sopa para Pobres”, na freguesia de Soutelo, concelho de Cinfães onde sua mãe nasceu.”

Resulta do testamento que foi intenção da testadora criar ex novo (instituindo) [devendo para tanto assim proceder a testamenteira designada], ou ajudando a fundação ou criação de uma sopa para pobres, não resultando do texto que a testadora visasse financiar entidade que provesse àquela meritória e altruísta finalidade, entidade que nem sequer existia e que só se constituiu após ser público o teor do testamento, acolhendo nos seus estatutos uma cláusula que “recepciona” a vontade da testadora.

Tal incumbência foi cometida à testamenteira como ressalta do testamento.

Não tem qualquer apoio na letra do testamento, nem na vontade da testadora, como se depreende da interpretação da Autora, que a testamenteira estivesse obrigada a vender os imóveis (o “restante” a que alude o testamento são os imóveis referidos nos autos e que pertenciam à herança) e doar/financiar com o preço das vendas a Autora.

Como se ponderou na decisão da 1ª Instância - “Verdadeiros beneficiários do testamento de LL, nesta parte, serão os pobres de Souselo que carecem de auxílio alimentar e não se apurou que a Autora tenha relativamente aos mesmos quaisquer poderes de representação”.

Concluímos, assim, que do testamento não resulta, de harmonia com a vontade da testadora, qualquer intenção de contemplar a Autora, que não tem direito a exigir o que quer que seja do testamenteiro, e após a sua renúncia do cabeça-de-casal, a quem incumbe a administração da herança e o cumprimento dos legados.

Assim sendo, e porque a Autora não tem direito a reclamar a entrega de bens da herança da testadora, prejudicado fica por evidente falta de legitimidade substantiva poder, também, pedir a anulação das vendas dos imóveis que pertenciam à herança, não lhe assistindo o direito de petição de herança – art. 2075º do Código Civil – nem o de reivindicar qualquer legado – art. 2279º do Código Civil.

A Autora só poderia fazê-lo se, tendo sido contemplada como herdeira ou legatária no testamento, este não tivesse sido cumprido quanto a si enquanto beneficiária.

Todavia, sempre se dirá que, não tendo sido registada a acção – o que assumiria relevo face ao pedido de declaração de nulidade da venda dos bens imóveis – e tendo os compradores registado a aquisição desse bens, adquiridos a herdeiro aparente – art. 2076º Estatui o citado normativo –“1. Se o possuidor de bens da herança tiver disposto deles, no todo ou em parte, a favor de terceiro, a acção de petição pode ser também proposta contra o adquirente, sem prejuízo da responsabilidade do disponente pelo valor dos bens alienados. 2. A acção não procede, porém, contra terceiro que haja adquirido do herdeiro aparente, por título oneroso e de boa fé, bens determinados ou quaisquer direitos sobre eles; neste caso, estando também de boa fé, o alienante é apenas responsável segundo as regras do enriquecimento sem causa. 3. Diz-se herdeiro aparente aquele que é reputado herdeiro por força de erro comum ou geral.”. do Código Civil – a co-ré QQ – cfr. itens 28), 29) e 31) – porque actuaram de boa-fé estariam a salvo da pretensão da Autora, mesmo que ela fosse admissível.

Comentando este normativo, Pires de Lima e Antunes Varela, na obra citada, págs. 132/133, anotam:

“…A regra, nesse caso, é que a petitio hereditatis pode ser instaurada, seja contra o terceiro adquirente (não se esqueça, aliás, de que, já nos termos do artigo anterior — artigo 2075º — a petição de herança pode ser intentada contra o possuidor dos bens hereditários, seja qual for o título a que possua), seja contra o disponente, pelo valor dos bens alienados (supondo, assim, que o disponente, transmitindo bens que lhe não pertenciam, agiu mal, ilicitamente).

Se, porém, quem alienou os bens for herdeiro aparente (sobre a noção legal de herdeiro aparente, veja-se o disposto no nº3) e o terceiro houver adquirido dele a título oneroso e de boa fé, a acção excepcionalmente não procederá contra o adquirente (que, pagando o que adquiriu, na compreensível convicção de que a coisa ou o direito pertencia ao alienante, fica numa situação intocável perante a lei). Por seu turno, o alienante (herdeiro aparente) apenas responderá segundo as regras do enriquecimento sem causa (arts. 473° e 479°)” (sublinhámos).

Em bom rigor, uma vez que a alienação dos imóveis foi feita em violação do testamento – a testadora impôs que só seriam vendidos após a morte da usufrutuária o que não se mostra provado à data da propositura da acção – estaríamos perante venda de bens alheios – art.892º do Código Civil (logo nula), mas, porque feita por herdeiro aparente, a título oneroso, sendo compradores terceiros de boa-fé – cfr. factos provados itens 28) a 31), 37) e 39) demonstrativos dessa boa-fé – estes estão protegidos, não procedendo quanto a eles a acção de petição da herança.

Por outro lado, mesmo que assim não fosse, não tendo a Autora registado a acção, e tendo os RR. registado, em 1994, as aquisições que fizeram nesse ano – factos provados 8) a 12) – tendo decorrido, entre essa data e a da propositura da acção mais que três anos – art. 291º do Código Civil – os seus direitos estão protegidos pela via tabular.

Oliveira Ascensão, in “Teoria Geral do Registo” – vol. III – 1992, págs. 470 a 474, “Inoponibilidade resultante do registo por parte de terceiros” ensina:

“O art. 291º regula uma situação importante, que é a do terceiro subadquirente do bem proveniente do acto inválido estar protegido por um registo público. O art. 291º permite que a aquisição de imóveis, ou de móveis sujeitos a registo, fique consolidada, desde que se verifique uma lista densa de requisitos.
É necessário que tenha havido uma aquisição: a título oneroso, de boa-fé, registada antes de o ser a acção de nulidade ou de anulação, ou o registo de acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio, já tenham decorrido três anos após a conclusão do negócio. […]
Qual o fundamento desta aquisição de direitos por parte de quem era apenas titular aparente?
Não é a boa fé, pois como vimos esta não é fundamento autónomo de protecção de terceiros contra a juridicidade substantiva.
Surge apenas como elemento complementar, tal como a onerosidade do negócio,
Não é o facto de se ter registado, pois o registo não tem em geral efeitos atributivos entre nós.
O registo que for contrário à legalidade substantiva pode ser destruído. Só pode ser a circunstância de o adquirente beneficiar da fé pública de um registo preexistente e ter feito essa a sua aquisição confiando nesse registo. Ao registo está ligada a fé pública, a garantia da verdade das situações publicitadas. A aquisição que se fizer conformemente aos registos existentes mesmo que estes sejam incorrectos, está amparada pela aparência resultante do registo.
Isto nos leva a concluir que no art. 291º está implícito ainda outro pressuposto, pois só ele explica esta actuação anómala: é necessário que o negócio inválido conste do registo.
Se o terceiro adquire na pendência desse registo e regista por sua vez, o registo tem efeito atributivo – ele torna-se o titular verdadeiro, substituindo quem o era até então.
Mas mesmo assim, só se concorrerem todos os outros requisitos indicados por lei.
Apenas acrescentaremos que a referência à confiança no registo é abstracta e não concreta. Funciona como justificação da lei, mas não se exige em concreto a prova de uma situação subjectiva de confiança. Portanto, o fundamento está verdadeiramente na aparência registral ou, mais simplesmente, na fé pública do registo.
A lei fala descoloridamente na “inoponibilidade” da nulidade e da anulação. Mas não há mera inoponibilidade: há um verdadeiro efeito atributivo do registo.
Quem era titular aparente passa a ser titular verdadeiro, resolvendo-se direito do verdadeiro titular”. (destaque nosso)

Sufragando tal entendimento, temos de concluir que, mesmo que à Autora assistisse legitimidade substantiva, que não assiste, por não ser beneficiária do testamento, não poderia, com êxito, obter a declaração de nulidade dos contratos de compra e venda dos imóveis em questão.

Pelo exposto o recurso soçobra.

Decisão:

Nestes termos nega-se a revista.

Sem custas por delas se encontrar isenta a Autora – art. 2°, nº2, h) do CCJ, na redacção anterior à entrada em vigor do DL n°324/2003, de 27.12.


Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Abril de 2008

Fonseca Ramos (Relator)
Cardoso Albuquerque
Azevedo Ramos