Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1518/14.3T8STS.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
COMUNICAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 10/03/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - LIQUIDAÇÃO DA MASSA INSOLVENTE / PREFERENTES.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / DIREITO DE PREFERÊNCIA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EXECUTIVO / VENDA JUDICIAL / VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé No Direito Civil, 1997, 742/750.
- Henrique Mesquita, Obrigações Reais E Ónus Reais, 210/211.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 414.º, 416.º, 1091.º, N.º1, ALÍNEA A).
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 165.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 811.º, N.º1, 819.º, 823.º, 824.º, 825.º E 831.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 25 DE MAIO DE 2004 E DE 19 DE MARÇO DE 2009, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 12 DE NOVEMBRO DE 2013, 24 DE FEVEREIRO DE 2015 E DE 14 DE FEVEREIRO DE 2017, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. Decorre do normativo inserto no artigo 165.º do C.I.R.E. que «Aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável ao exercício dos respectivos direitos na venda em processo executivo.», e acrescenta o  artigo  416.º, n.º1 do C.Civil «Querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.», acrescentando o seu n.º2 que «Recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo.».

II. Tendo a venda do imóvel sido ensaiada judicialmente, porque iniciada em sede de processo de insolvência pelo AI, através de propostas em carta fechada, as notificações efectuadas nos termos do artigo 819.º do C.P.Civil e  o Autor notificado das vendas marcadas, teve o mesmo, nessa altura, perfeito conhecimento do seu objecto, ou seja, o local por si arrendado.

III. Ficando as vendas desertas, encetando-se a venda por negociação particular, notificado o Autor através de carta registada com aviso de recepção, datada de 30 de Outubro de 2014, recepcionada em 6 de Novembro de 2014, nos termos e para os efeitos do artigo 165.º do C.I.R.E., da venda do imóvel apreendido, respectivo preço e identidade dão interessado em adjudicar o mesmo, à qual o Autor, através do seu Mandatário, em 24 de Novembro de 2014  respondeu com um o e-mail, onde manifesta a intenção de exercer o seu exercer o direito de preferência na compra do imóvel, do qual é arrendatário, pedido a informação dos elementos de identificação da proponente a quem foi adjudicado o imóvel em questão, e/ou, à ordem de quem entendia deve ser efectuado o depósito do preço, resulta desta resposta um perfeito entendimento da intenção de venda, tendo-se o Autor predisposto, com os elementos que lhe foram enviados, a exercer o seu direito de preferência nos termos do artigo 165.º do C.I.R.E., embora tardiamente.

IV.  Enquadra uma situação de abuso de direito susceptível de integrar a modalidade do venire contra factum próprio, a manifestação de exercer o direito de preferência e, subsequentemente, vir-se dizer que a comunicação para a preferência não foi feita no estrito cumprimento do preceituado no artigo 416.º do C.Civil.

(APB)

Decisão Texto Integral:

PROC 1518/14.3T8STS.P1.S1

6ª SECÇÃO

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I A, intentou  acão declarativa com  processo comum contra MASSA INSOLVENTE DE D e M, representada pelo Administrador de Insolvência, e C, pedindo que seja reconhecido o direito de preferência do  sobre o prédio urbano destinado a habitação, sito no lugar de X, descrito na Conservatória do Registo Predial de Y e por via dele, o direito de haver para si o referido prédio, substituindo-se à adjudicatária C.

Alegou ser arrendatário do prédio vendido e não lhe ter sido devidamente comunicada pelo Administrador de Insolvência o projecto de venda do prédio arrendado que foi realizada à segunda Ré.

Contestou a Ré Massa insolvente, arguindo a excepção de caducidade do exercício do direito de preferência e impugnou parte dos factos alegados pelo Autor.

Igualmente contestou a Ré C, arguindo também a excepção de caducidade, impugnando parte do alegado pelo Autor e deduziu reconvenção, pedindo que, no caso de procedência da ação, seja o Autor condenado a pagar à Reconvinte todas as despesas por esta realizadas com a aquisição do prédio, no valor global de € 4.568,00 e ainda a sua condenação como litigante de má-fé, em multa e indemnização nunca inferior a € 1.500,00.

Replicou o Autor, pugnando pela improcedência da exceção, bem como do pedido reconvencional.

Foi proferida sentença que julgou procedente a exceção da caducidade e absolveu os Réus do pedido, tendo-se julgado prejudicado o conhecimento da reconvenção.

Inconformado, apelou o Autor, tendo o recurso sido julgado procedente, com a improcedência da excepção da caducidade e reconhecido o direito de preferência do Autor sobre o prédio urbano prédio urbano destinado a habitação, sito no lugar de X, descrito na Conservatória do Registo Predial de Y e por via dele, o direito de haver para si o referido prédio, substituindo-se à adquirente C, à qual foi atribuída a importância de € 3 000,00 (três mil euros) depositada a fls. 33 dos autos e julgou-se a reconvenção parcialmente procedente, com a condenação do Autor a pagar à Ré C a quantia de € 554 (quinhentos e cinquenta e quatro euros) e a sua absolvição quanto ao pagamento da quantia de € 1074,00.

Inconformada com tal desfecho, recorre agora de Revista a Ré Cidália Vilas Boas, apresentando as seguintes conclusões:

- A Recorrente, salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, discorda do Acórdão ora recorrido, que declarou totalmente improcedente a exceção de caducidade do direito de preferir dos Autores;

- Tendo-se dado como Não Provado que: "Por comunicação efectuada em 11.11.2014 pelo Mandatário do autor, foi solicitado ao Administrador de Insolvência, que indicasse os elementos de identificação da adjudicatária e à ordem de quem deveria ser efectuado o depósito do preço, uma vez que o autor pretendia exercer o direito de preferência".

- 0 acórdão proferido pelo Tribunal da Relação entende que a comunicação para preferir efectuada pelo Sr. Administrador de insolvência não observa as exigências do n.º1 do artigo 416º do C. C, sendo por isso ineficaz e fazendo improceder a excepção de caducidade, no entanto, salvo melhor e mais douto entendimento.

- Não pode a Recorrente concordar com tal decisão proferida.

- Não podia o Acórdão do tribunal da Relação ter considerado com base no artigo 416.º, nº1 e 2 do C. C. que as comunicações para preferência foram ineficazes, tal como sabiamente defendida na douta declaração de Voto, porquanto estamos perante um prazo peremptório, cujo decurso do prazo implica a caducidade do direito de preferir.

- A notificação do Sr. Administrador chegou ao destinatário de forma adequada, e em condições de poder ser entendida e conhecida, como efectivamente o foi, pelo que existe uma errada apreciação dos factos e aplicação do direito pelo acórdão recorrido.

- Aqui o douto acórdão do tribunal a quo, incorre em erro, ao basear toda a sua fundamentação no n.º1 do art. 416º do CC, esquecendo o que estipula o seu n.º2 in fine, pelo que, não poderia o Tribunal da Relação alterar a decisão nesta parte com base no estipulado no artigo 416º n.º 2 do CC.

- E mesmo que assim não se entenda, foi cumprido pelo Sr. Administrador os requisitos para a notificação ao abrigo do disposto nos artigos 165º do CIRE, pois notificou os AA. para exercer o seu direito de preferência.

- Tendo-lhe anteriormente sido comunicado os termos do negócio, preço e demais condições, dando cumprimento ao disposto no art. 416, n.º1 do Código Civil porquanto se tratava de uma venda por negociação particular em virtude das inúmeras frustrações de venda em proposta por carta fechada.

- E perante a comunicação de que aqui se trata, cabia aos AA., exercer o seu direito de preferência dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, conforme determina o nº 2 do artigo 416º do CC o que não faz dentro do prazo devido.

- Vindo depois, ardilosamente, em 24/11/2014, com um email supostamente datado de 11/11/2014, "tentar" preferir.

- Pelo que, o direito do A., extinguiu-se por caducidade, exceção perentória que importa a absolvição dos Réus no pedido, nos termos do artigo 576º, n.º3 do C.P.C., pelo que bem andou o tribunal de 1ª instância ao julgar procedente a invocada excepção de Caducidade, tal como a bem fundamentada declaração de Voto, a quo, não merece qualquer reparo.

- Estatui o artigo 874º do CC, o contrato de compra e venda é um negócio jurídico bilateral, sinalagmático, oneroso, real e típico e se, por mera hipótese académica, que aqui não se concebe, a pretensão do A., no que respeita à temporaneidade do exercício do seu direito de preferência, vingar, a Ré sempre beneficiará da proteção conferida pelo artigo 289º do CC.

- A recorrente adquiriu o prédio com a convicção de que o mesmo se encontrava livre de quaisquer ónus e encargos e ainda respeitou quer o direito de remição do filho dos insolventes, quer o direito de preferência dos AA;

- 0 artigo 1410º, n.º1 do Código Civil, aplicável por força do 1091º, n.º 4 do C.C., visa conciliar a protecção dos interesses do titular do direito, assegurando-lhe um prazo adequado para decidir se quer ou não exercer o seu direito e a exigência de uma rápida clarificação da situação jurídica do bem sujeito à prelação, esta imposta pela necessidade de proteger a segurança do tráfico jurídico.

- É esta a diferença de formulação (e de alcance) do artigo 416º, n.º 1, no que se refere ao conteúdo da comunicação e a locução usada pelo legislador no artigo 1410º, n.º 1, ambos do Código Civil, quando alude aos factos que, uma vez conhecidos pelo preferente, tornam certo o prazo para o exercício coercivo do direito de preferir.

- O projecto de venda e cláusulas do respectivo contrato não são a mesma coisa que elementos essenciais da alienação e presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, a conclusão a retirar não pode ser outra senão a de que com estas diferentes formulações o legislador pretende designar diferentes realidades.

- De facto, se a lei atendesse aos elementos essenciais para aquele preferente concreto, ou mandasse contar o prazo para exercício do direito a partir do momento em que o preferente tivesse conhecimento de todas as cláusulas do contrato celebrado, permitir-lhe-ia manipular o prazo de caducidade prolongando-o quase indefinidamente, pois seria permitido ao preferente continuar a alegar o desconhecimento de elementos que ele reputaria essenciais ou esperar o tempo que lhe conviesse para conhecer as demais cláusulas do contrato, assim prolongando a situação de incerteza com evidentes prejuízos para a segurança do tráfico jurídico.

- Ao contar o prazo de caducidade a partir do momento em que o preferente toma conhecimento dos elementos essenciais da alienação, atrás indicados, a lei impõe ao preferente um dever de diligência para se informar das demais condições convencionadas no contrato se ele entender que tal é importante para a sua decisão.

- Assim, ficara amplamente provado que a intenção do preferente foi exercida depois de decorrido o prazo de oito dias que a lei lhe impunha para o efeito;

- A decisão recorrida violou o disposto, entre outros, nos artigos: 165º do CIRE; 576º do CPC; 416º n.º 2, 1410º, n.º1, 1091º, n.º4, 874º e 289º, do CC.

Não foram apresentadas contra-alegações.

 

II A única questão que se coloca em sede de recurso é a de saber se operou, ou não, a excepção de caducidade do exercício do direito de preferência na compra e venda do imóvel arrendado ao Autor.

As instâncias declaram como assentes os seguintes factos:

Factos assentes por acordo:

a). O prédio urbano destinado a habitação, sito no lugar de X, descrito na Conservatória do Registo Predial de Y foi propriedade de D e M.

b). Por sentença proferida em 02/12/2011, nos autos do processo nº 4539/11.4TBSTS, do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de …, foram declarados insolventes D e M, tendo sido nomeado Administrador de Insolvência, o Sr. Dr. F.

c). Por carta data de 30 de Outubro de 2014, o Administrador da insolvência comunicou ao autor que o prédio urbano identificado em 1, havia sido adjudicado a C, pelo valor de 3.000,00€.

d). Mostra-se registada a favor da ré Cidália, a aquisição do prédio identificado em 1, através da apresentação nº 823, de 31/12/2014.

Dos factos que resultaram do julgamento:

1. O autor é, há mais de vinte anos e ininterruptamente, arrendatário do prédio urbano destinado a habitação, sito no lugar de X, descrito na Conservatória do Registo Predial d e Y.

2. Entre o autor e o D e M foi celebrado, há mais de vinte anos, verbalmente, um contrato de arrendamento, mediante o qual, o autor tomou de arrendamento o prédio urbano identificado em 1., mediante o pagamento da renda mensal de 45,00 € (quarenta e cinco euros).

3. Por carta datada de 2 de Abril de 2012, o Administrador de Insolvência, comunicou ao autor que D e M foram declarados insolventes, por sentença proferida em 02/12/2011, e solicitou que o pagamento das rendas fosse depositado na conta bancária da massa insolvente com o NIB …, domiciliada no Banif, agência de ….

4. A partir de Abril de 2012, o autor passou a proceder ao depósito das rendas no prazo legal, na conta bancária da massa insolvente, indicada pelo Administrador de Insolvência, domiciliada no Banif.

5. Na sequência da sentença de insolvência, foram apreendidos, em 11 de Janeiro de 2012, os bens imóveis pertencentes a D e M, inclusive o imóvel identificado em 1.

6. Por carta datada de 21 de Novembro de 2012, o Administrador de Insolvência comunicou ao autor, que o prédio urbano do qual é arrendatário iria ser vendido por negociação particular, mediante a apresentação de propostas em sobrescrito fechado, pelo valor base de 49.000 euros, sendo o valor mínimo de venda de 34.300 Euros, correspondente a 70 % do valor base do imóvel.

7. Em 9 de Novembro de 2013, o Administrador de Insolvência voltou a comunicar ao autor que o prédio urbano iria ser vendido por negociação particular, mediante a apresentação de propostas em sobrescrito fechado, pelo valor base de 49.000 euros, sendo o valor mínimo de venda de 24.500 euros, correspondente a 50% do valor base do imóvel.

8. Por comunicação efectuada em 24.11.2014 pelo Mandatário do autor, foi solicitado ao Administrador de Insolvência, que indicasse os elementos de identificação da adjudicatária e à ordem de quem deveria ser efectuado o depósito do preço, uma vez que o autor pretendia exercer o direito de preferência.

9. No âmbito das diligências de liquidação do activo do processo de insolvência de D e M foi vendido o imóvel identificado em 1., que correspondia à verba n.º 4 do auto de apreensão de bens.

10. A venda foi por duas vezes anunciada, em Novembro de 2012 e Novembro de 2013, tendo o autor sido devidamente notificado para efeitos do exercício do seu direito de preferência.

11. Acontece que ambas as tentativas de venda ficaram desertas, por inexistência de propostas de compra.

12. Em 21 de Janeiro de 2014, a ré C, na pessoa da sua mandatária e via e-mail, apresentou ao Sr. Administrador da Insolvência proposta espontânea para aquisição dos prédios que compunham as verbas n.º 3 e 4 do auto de apreensão, sendo a verba n.º 4 aqui em apreço pelo valor de € 3.000,00.

13. Consequentemente, o Sr. Administrador da Insolvência nesse mesmo dia 21 de Janeiro de 2014 notificou todos os credores da proposta apresentada, solicitando a respectiva

tomada de posição até 31 de Janeiro de 2014.

14. Como não tivesse havido qualquer oposição, em 5 de Fevereiro de 2014 o Sr. Administrador da Insolvência comunicou aos credores a aceitação da proposta e a respectiva adjudicação.

15. Acontece que, tendo tomado conhecimento da aceitação da proposta da ré C, o filho dos insolventes, B, logo em 6 de Fevereiro de 2014 enviou comunicação ao Sr. Administrador da Insolvência no sentido de exercer o seu direito de remição, juntando desde logo cheques visados no valor de 5% de cada um dos prédios.

16. Facto de que, mais uma vez e no mesmo dia 6 de Fevereiro, o Sr. Administrador da Insolvência deu imediato conhecimento aos credores, mais informando ficar, desse modo, sem efeito a adjudicação do imóvel à ré C.

17. Uma vez que nos termos do disposto no artigo 844º do CPC o direito de remição prevalece sobre o direito de preferência, o Sr. Administrador da Insolvência, em face da posição assumida pelo filho dos insolventes, não notificou o autor, já que nenhum efeito essa comunicação iria ter.

18. Porém, contra aquilo que era a expectativa do Sr. Administrador da Insolvência, a verdade é que o filho dos insolventes acabou por nunca depositar o preço devido pela remição que se propôs exercer.

19. Por essa razão, o Sr. Administrador da Insolvência interpelou-o em 16 de Julho de 2014, via carta registada com AR, pelo mesmo recebida em 18 de Julho de 2014, no sentido de depositar o preço em falta, sob pena de ser dada sem efeito a remição.

20. Uma vez que o Sr. B continuou sem nada pagar, o Sr. Administrador da Insolvência deu em definitivo a remição sem efeito em 3 de Setembro de 2014.

21. E em 17 de Outubro de 2014 notificou a ré C – através da sua mandatária, no sentido desta informar se mantinha interesse na aquisição dos imóveis.

22. No mesmo dia 17 de Outubro de 2014 a mandatária da ré C remeteu ao Sr. Administrador da Insolvência, via e-mail, o comprovativo do depósito do preço devido pelos imóveis, mais requerendo o agendamento da escritura de compra e venda dos mesmos.

23. Em face da confirmação da manutenção do interesse de compra do imóvel arrendado ao autor por parte da ré C, com o pagamento do respectivo preço, tratou então o Sr. Administrador da Insolvência de notificar o autor para efeitos de exercício do seu direito legal de preferência.

24. O que fez através da carta registada com aviso de recepção datada de 30 de Outubro de 2014 e recebida pelo autor em 6 de Novembro de 2014.

25. Notificado para preferir em 6 de Novembro de 2014, data da recepção da notificação enviada pelo Sr. Administrador da Insolvência, o autor nada disse até ao dia 24 de Novembro de 2014, data em que, via email, o seu mandatário manifestou o interesse do mesmo no exercício do direito de remição.

26. Em 1 de Dezembro de 2014, o Sr. Administrador da Insolvência informou o mandatário do autor que o exercício do direito de preferência era intempestivo, pelo que não seria aceite.

27. Tendo recebido esta resposta, o mandatário do autor contactou telefonicamente o escritório do Sr. Administrador da Insolvência e, tendo-lhe sido reiterado o indeferimento do direito de preferência, nesse mesmo dia 1 de Dezembro de 2014, pelas 22:18, é remetido ao Sr. Administrador da Insolvência um e-mail supostamente datado de 11 de Novembro de 2014 com a intenção de preferir do autor.

28. O que é certo é que, apesar de aparecer datado de 11 de Novembro de 2014, esse email foi enviado apenas em 1 de Dezembro de 2014.

29. Nunca foi recebido pelo Sr. Administrador da Insolvência, ou por qualquer dos seus colaboradores, o e-mail junto como doc.7 da com a petição inicial, senão em 1 de Dezembro de 2014.

30. Por essa razão, logo no dia seguinte, 2 de Dezembro de 2014, o Sr. Administrador da Insolvência reagiu à recepção desse e-mail, impugnando desde logo a existência de qualquer comunicação de intenção de preferir enviada em prazo.

31. Ao manifestar a intenção de preferir o autor não juntou cheque caução de 5% do valor que lhe foi comunicado pelo Sr. Administrador da Insolvência.

32. No dia 23/12/2014, a ré C adquiriu o prédio urbano identificado em 1.

33. Esta aquisição foi efetuada em venda judicial, no âmbito do processo de insolvência n.º….

34. A ré C, com a aquisição do imóvel, teve as seguintes despesas:

- Com IMT-Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas e IS -Imposto e Imposto de Selo, a ré despendeu a quantia global de 54€ (Cinquenta e quatro euros).

- Em emolumentos para o Título de Transmissão e Registo Predial, despendeu a ré C a quantia de 500€ (Quinhentos euros).

- Com honorários de serviços de advocacia despendeu a quantia de 300€. (trezentos euros).

- Despendeu com taxa de justiça para contestar a presente ação a quantia de 714€ (setecentos e catorze euros).

Vejamos.

Insurge-se a Recorrente contra o Aresto impugnado uma vez que não concorda com tal decisão proferida, na parte em que a mesma entende que a comunicação para preferir efectuada pelo Sr. Administrador de insolvência não observa as exigências do n.º1 do artigo 416º do C. C, sendo por isso ineficaz, fazendo improceder a excepção de caducidade, pois, na sua tese a notificação do Sr. Administrador chegou ao destinatário de forma adequada, e em condições de poder ser entendida e conhecida, como efectivamente o foi, pelo que existe uma errada apreciação dos factos e aplicação do direito pelo acórdão recorrido.

Dispõe o artigo 1091º, nº1, alínea a) do CCivil, que o arrendatário de prédio urbano tem o direito de preferência na compra e venda do local arrendado há mais de três anos.

 

Como resulta da matéria dada como provada, o Autor é arrendatário há mais de vinte anos do prédio urbano destinado a habitação, sita no lugar de X, descrito na Conservatória do Registo Predial de Y, que foi propriedade dos Insolventes e, consequentemente, da massa insolvente.

Decorre do normativo inserto no artigo 165º do CIRE que «Aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável ao exercício dos respectivos direitos na venda em processo executivo.», o que nos remete, nesta sede, para o preceituado no disposto nos artigos 811º, nº1, 819º, 823º, 824º, 825º e 831º do CPCivil.

No que à economia da questão a decidir, diz respeito, preceitua o artigo 819º do CPCivil:

“1. Os titulares do direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, na alienação dos bens são notificados do dia, da hora e do local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio acto, se alguma proposta for aceite.

2. A falta de notificação tem a mesma consequência que a falta de notificação ou aviso prévios na venda particular.

3. À notificação prevista no nº 1 aplicam-se as regras relativas à citação, salvo no que se refere à citação edital, que não terá lugar.

4. A frustração da notificação do preferente não preclude a possibilidade de propor acção de preferência, nos termos gerais.”.

Insurge-se o Apelante contra a sentença recorrida, uma vez que na sua tese a Apelada teria tido conhecimento dos elementos essenciais da alienação atempadamente e não requereu a venda para si, ou o processo para determinação do preferente no prazo legal de seis meses, pelo que deixou caducar o seu direito de harmonia com o disposto no artigo 1410º, nº1 do CCivil.

Como resulta do segmento normativo a que alude o artigo  416º, nº1 do CCivil «Querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.», acrescentando o seu nº2 que «Recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo.».

Estamos perante dois prazos de caducidade: um de oito dias, decorrente do artigo 416º do CCivil, quanto ao exercício do direito de preferência; outro decorrente do artigo 1410º do mesmo diploma, no que tange ao direito de acção para preferência.

Aquele primeiro prazo, do qual aqui curamos, pressupõe a comunicação pelos vendedores (obrigados a dar preferência de harmonia com o disposto no artigo 414º do CCivil) aos preferentes (titulares do direito de preferência de harmonia com o disposto no artigo 1091º do CCivil) do projecto de venda e as cláusulas do contrato, cfr artigo 416º, nº1 do CCivil, o que pressupõe o conhecimento de todos os elementos essenciais da venda, sendo estes entre outros o preço, condições do seu pagamento e a pessoa do interessado comprador, cfr Henrique Mesquita, Obrigações Reais E Ónus Reais, 210/211; Ac STJ de 25 de Maio de 2004 (Relator Noronha do Nascimento) e de 19 de Março de 2009 (Relator Alberto Sobrinho), in www.dgsi.pt, podendo-se ler neste último «(…) Para que o preferente possa exercer o seu direito de opção é imprescindível que esteja na posse de todos os elementos concretos com base nos quais o alienante se propõe negociar com terceiro. Só conhecendo todos os dados que envolvem o negócio é que o preferente poderá formar a vontade de exercer, ou não, o direito que lhe assiste. Essenciais à formação dessa vontade serão todos os elementos decisivos para o titular se poder decidir pelo exercício do direito, configurando-se como tal, desde logo e inquestionavelmente, o preço, condições do seu pagamento e a pessoa do interessado comprador.(…)».

Como decorre da matéria dada como provada, factos 6. a 20., a venda do imóvel começou por ser ensaiada judicialmente, porque iniciada em sede de processo de insolvência pelo AI, através de propostas em carta fechada, tendo sido emitidas as respectivas notificações efectuadas nos termos do artigo 819º do CPCivil.

E, nessas circunstâncias, o Autor veio a ser notificado das vendas marcadas para os meses de Novembro de 2012 e 2013, tendo tido nessa altura perfeito conhecimento do objecto da mesma, isto é, o local por si arrendado.

Tendo tais vendas ficado desertas, passou-se a uma fase subsequente na qual a aqui Ré C apresentou ao AI uma proposta para compra do imóvel, que este comunicou aos credores dos Insolventes e porque não foi deduzida oposição, veio a ser aceite a proposta recebida.

Contudo, tal venda não veio a ser concretizada, uma vez que o filho dos insolventes solicitou o exercício do seu direito de remissão, sem que tenha vindo a efectivar a remissão pretendida.

Todas estas démarches processuais, com vista à venda do imóvel foram do conhecimento do Autor, com excepção da proposta de compra por parte da Ré C e subsequente intenção de remição do filho dos Insolventes, que fez precludir aquela, e concomitantemente se gorou, face ao não pagamento do preço por este.

 Resulta ainda da materialidade assente, pontos 21. a 26., que o AI voltou a contactar a Ré C, no sentido de esta informar se mantinha o interessse na compara do prédio, face à circunstância de a remissão ter sido dada sem efeito, tendo aquela procedido ao depósito do pagamento do preço e solicitado a marcação da respectiva escritura.

Face ao exposto, o AI notificou o Autor através de carta registada com aviso de recepção, datada de 30 de Outubro de 2014, recepcionada em 6 de Novembro de 2014, carta essa que em cópia consta de fls 25 e tem o seguinte teor «[V]enho pela presente informar V. Exa., na qualidade de inquilino, que o imóvel apreendido, sob a verba n.º4, foi adjudicada a C, pelo valor de € 3.000,00. Mais, fica notificado nos termos e para os efeitos do artigo 165.º do CIRE.» e na sequência dessa comunicação o Autor, através do seu Mandatário, em 24 de Novembro de 2014  enviou ao AI o e-mail cujo teor em cópia faz fls 27, onde se lê «[e]m nome e no interesse do meu cliente A, face à notificação que este recebeu, de que junto cópia bem como uma procuração, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 165º do CIRE., pretendendo este, exercer o direito de preferência na compra do imóvel, do qual é arrendatário, agradeço me informe, os elementos de identificação da proponente a quem foi adjudicado o imóvel em questão, e/ou, à ordem de quem entende deve ser efectuado o depósito do preço.».

Ora, sem embargo de entendermos que a carta datada de 30 de Outubro de 2014, enviada pelo AI ao Autor conter irregularidades susceptíveis de inquinar a sua função de comunicação para o exercício do direito de preferência nos termos em que o normativo inserto no artigo 416º, nº1 do CCivil impõe, desde logo por não fixar a data da escritura e por outro lado, acrescentamos nós, por nem sequer indicar em que cartório notarial a venda seria concretizada. No que tange à identificação da compradora, ela foi feita, embora não constasse o nome completo da mesma.

 Todavia, veja-se que o Autor, apesar das apontadas irregularidades, respondeu ao AI, embora para além do prazo legal de oito dias, que estava interessado em adquirir o imóvel, exercendo o seu direito de preferência, não tendo na altura suscitado qualquer problema em relação às omissões enunciadas, as quais, ao que parece, não o impediram de compreender o que se estava a passar, bem como de solicitar as informações que entendeu por pertinentes.

Apenas sentiu a falta dos aludidos elementos quando lhe foi dado conhecimento de que o exercício do direito de preferência era intempestivo, cfr factos 26. a 30.

Essa falta, na tessitura negocial em equação, não se nos afigura relevante para fazer impedir o decurso daquele prazo de caducidade: a intenção de venda foi perfeitamente entendida pelo Autor, o qual se predispôs, com os elementos que lhe foram enviados, a exercer o seu direito de preferência nos termos do artigo 165º do CIRE, embora numa resposta tardia, conforme se apurou, pois o e-mail datava de 24 de Novembro de 2014.

Ora, não poderia o Autor pretender manifestar exercer o seu direito de preferência, embora tardiamente, através de um e-mail datado de 24 de Novembro, e posteriormente vir dizer que a comunicação para a preferência não lhe foi feita no estrito cumprimento do preceituado no artigo 416º do CCivil, sem entrar, quiça, numa situação de abuso de direito, acrescendo ainda a esta situação aqueloutra que entretanto foi desencadeada pelo Autor e que se mostra espelhada nos pontos 27. a 30. da materialidade assente, isto é, a invocação de um outro e-mail pretensamente datado de 11 de  Novembro de 2014, mas que terá sido enviado apenas em 1 de Dezembro de 2014 e recebido nessa data pelo AI.

Preceitua o normativo inserto no artigo 334º do CCivil que «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.».

Na espécie o comportamento contraditório do Autor, conduz-nos a uma actuação susceptível de quadrar a modalidade do venire contra factum próprio, pois a sua conduta subsequente ao e-mail enviado a 24 de Novembro, onde manifestou inequivocamente a vontade de preferir, sem levantar qualquer tipo de obstáculo à comunicação que lhe fora feita em 30 de Outubro e por si recepcionada em 6 de Novembro, traduz uma clamorosa ofensa dos princípios de lealdade e de correcção que a ordem jurídica faz impender sobre os sujeitos nas suas relações negociais, cfr Ac STJ de 12 de Novembro de 2013 (Relator Nuno Cameira), 24 de Fevereiro de 2015 (Relator Pinto de Almeida, aqui primeiro Adjunto) e de 14 de Fevereiro de 2017 (Relator José Rainho), in www.dgsi.pt.

A proibição de comportamento contraditório, embora não constitua uma regra geral de direito civil, mostra-se perspectivada, hoje em dia, como uma cláusula geral de segundo grau, cuja função essencial consiste em corrigir as distorces que existiriam com a aplicação meramente formal do direito. Assim, fazendo-se apelo a critérios ético-jurídicos, maxime, os resultantes do princípio da confiança, poder-se-á obtemperar uma solução que, embora aparentemente conforme à Lei, exceda os limites impostos pela boa fé, porque violadora daquele princípio.

E, embora não haja uma regra geral de coerência de comportamento, uma vez que nada impede que os sujeitos mudem a sua opinião inicial, a ordem instituída contém mecanismos de defesa impeditivos da violação do princípio geral da tutela da confiança, fazendo assim assegurar as normais expectativas dos cidadãos, na realização dos seus negócios, cfr António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé No Direito Civil, 1997, 742/750 «[O] âmbito extenso de que o venire contra factum proprium se pode revestir requer uma delimitação prévia, ainda que empírica e provisória, do alcance da figura da fórmula. Desse modo, só se considera como venire contra factum proprium a contradição directa entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor. Por outro lado afasta-se, também, à partida, a hipótese de o factum proprium, por integrar postulados da autonomia privada, surgir como acto jurídico que vincule o autor em termos de o segundo comportamento representar uma violação desse dever específico; acionar-se-iam, então, os pressupostos da chamada responsabilidade obrigacional e não os do exercício inadmissível de posições jurídicas. Feitas estas precisões, há venire contra factum proprium, em primeira linha, numa de duas situações: quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificamente adstrita, declare pretender avançar com certa actuação e, depois, se negue.».

Desta feita, a resposta do Autor à notificação do AI para que exercesse o seu direito de preferência na compra do imóvel, nos sobreditos termos já enunciados, sem que aquele tenha manifestado alguma objecção ao seu teor, nomeadamente, que o mesmo estivesse eivado de irregularidades que o impedissem de compreender o seu conteúdo e alcance, faz criar a convicção de que houve o pleno entendimento, tanto assim que a sua reacção foi positiva, embora tardia, o que consubstancia um factum proprium susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança: o Autor, naquelas precisas circunstâncias e mesmo com uma informação deficiente, quis adquirir o prédio.

Por outro lado, subsequentemente, ao ter conhecimento que a sua pretensão era extemporânea, para além de ter criado uma situação de aparente tempestividade daquela resposta, instaura esta acção fundada na omissão de informação relevante para o exercício daquele direito, comportamento este contraditório com aqueloutro, ambos imputáveis ao Autor.

Por seu turno a Ré, aqui Recorrente, atingida com a actuação do Autor adquiriu o prédio de boa fé, confiando na situação que lhe foi apresentada.

Por último, verificamos que o AI apenas procedeu à venda do imóvel à Recorrente depois de decorrido o prazo concedido ao Autor para exercitar o seu direito de preferência.

A situação objectivamente criada pelo Autor foi de molde a conduzir os intervenientes a inferir da mesma, uma concludência sobre o cabal entendimento das condições negociais que lhe foram transmitidas, de onde, se poder concluir, aliás em consonância com o primeiro grau e o voto vencido aposto à decisão de segundo grau, que ficou precludido pelo decurso do prazo de oito dias aludido no artigo 416º, nº2 do CCivil o direito do Autor a exercer a preferência na compra do prédio de que é arrendatário e que foi objecto da compra e venda efectuada pelo AI à Ré/Recorrente.

III Destarte, concede-se a Revista, revogando-se a decisão ínsita no Acórdão recorrido, repristinando-se a sentença de primeiro grau.

Custas pelo Autor, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 3 de Outubro de 2017

Ana Paula Boularot - Relatora

Pinto de Almeida

Júlio Gomes