Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
059465
Nº Convencional: JSTJ00002650
Relator: ALBERTO TOSCANO
Descritores: SEGUNDAS NÚPCIAS
VIUVEZ
BINUBEZ
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ196405120594651
Data do Acordão: 05/12/1964
Votação: MAIORIA COM 2 DEC VOT E 2 VOT VENC
Referência de Publicação: DG IªS 06-06-1964; BMJ 137, 285
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 2/1964
Área Temática: DIR CIV - DIR SUC.
Legislação Nacional: CPC61 ARTIGO 763.
CCIV867 ARTIGO 1103 ARTIGO 1236 ARTIGO 1969 ARTIGO 2009 ARTIGO 2011 ARTIGO 2170 ARTIGO 2171 ARTIGO 2174.
DL 19126 DE 1930/12/16.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1962/07/10 IN BMJ N119 PAG493.
ACÓRDÃO STJ DE 1954/10/12 IN BMJ N45 PAG265.
Sumário :
O artigo 1236 do codigo Civil refere-se somente aos bens herdados pelo viuvo, depois de ter contraido novas nupcias.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A recorreu para o Tribunal Pleno do acordão de 10 de Julho de 1962 (Boletim, n. 119, pagina 493), alegando que a decisão nele proferida esta em oposição com a constante do acordão deste Tribunal, de 12 de Outubro de 1954, que transitou em julgado (Boletim, n. 45, pagina 265) - verificando-se a oposição sobre questão fundamental de direito e tendo sido proferidas estas decisões sobre o dominio da mesma legislação.
A folhas 17 foi proferido acordão admitindo o recurso para o Tribunal Pleno, por se ter verificado o condicionalismo determinado no artigo 763 do Codigo de Processo Civil.
A questão fundamental de direito no objecto do recurso e a de saber se o artigo 1 236 do Codigo Civil somente se aplica aos bens herdados pelo pai ou pela mãe de filho falecido depois de o pai ou a mãe ter passado a segundas nupcias ou se tambem e aplicavel no caso de tais bens serem herdados durante a viuvez.
O acordão recorrido decidiu a questão no sentido de o preceito ser aplicavel ao caso de o pai ou a mãe do filho falecido se encontrar no estado de primeira viuvez. O acordão de 12 de Outubro de 1954 decidiu que e aplicavel aos bens pelo binubo herdados de filho falecido durante a simples viuvez.
E esta a questão, contraditoriamente decidida nos dois arestos.
De ha muito se faz sentir a necessidade de providencia legislativa ou judicial que torne certa a aplicação do disposto no artigo 1 236 do Codigo Civil, pelo que respeita ao destino hereditario dos bens que na hipotese dos autos se contempla.
E conhecida a "genesis" do preceito; não nos ocuparemos, pois, da sua historia, nem das vicissitudes da sua interpretação.
Entremos directamente no problema, que se situa no instituto da sucessão e do direito sucessorio.
Convem, para a inteligencia do que vai expor-se , fixar determinados principios sobre que assenta a expressão do nosso entendimento.
Um deles, expressamente exarado na lei, comum a todas as especies de sucessões, e o de que a herança se abre pela morte do seu autor - do que consequentemente deriva fixar-se no momento da morte do autor da herança a transmissão do seu dominio e posse para os herdeiros, quer instituidos quer legitimos.
Assim o dispõem os artigos 2 009 e 2 011 do Codigo Civil.
Outro dominante principio, tambem expresso na lei, inerente a este instituto, e o da ordem da sucessão legitima, determinada no artigo 1 969, na redacção do Decreto n. 19 126.
E relativamente a ordem legal de sucessão dos herdeiros legitimarios convem ter presente a caracteristica da sua inalterabilidade, visto que a lei fulmina de inexistente ou como não escrita qualquer convenção ou disposição que a altere - artigo 1 103.
A par destas regras preponderantes no instituto das sucessões, não deixaremos de recordar uma outra que domina o direito de propriedade, constituindo o preceito do artigo 2 170, assim concebida: "O direito de propriedade não tem outros limites se não aqueles que lhe forem assinados pela natureza das coisas, por vontade do proprietario ou por disposição da lei".
Por ultimo deixamos consignado que, ainda por expressa disposição da lei, a propriedade resoluvel e a que, conforme o titulo da sua constituição, esta sujeita a ser revogada, independentemente da vontade do proprietario; e que os efeitos da resolução da propriedade são declarados nos titulos relativos a sua constituição - artigos 2 171 e 2 174.
Todos estes principios se encontram fixados em preceitos legais, caracterizadamente de interesse e ordem publica, por serem destinados a garantir e defender os interesses da colectividade, as condições fundamentais da vida moral e juridica da sociedade - na expressão do Doutor Jose Tavares (Principios, volume 1, pagina 142).
E por serem de interesse e ordem publica, não podem estas leis ser alteradas por mero alvedrio dos individuos.
Fixados estes principios, entremos na apreciação da materia em causa, com o seu fulcro no disposto no artigo 1236.
Temos a convicção de que propriamente a letra do preceito, na sua primitiva redacção, não podia sugerir duvidas sobre a pessoa a quem se referia: o varão ou a mulher que contrair segundas nupcias, tendo filhos de matrimonio anterior.
Apesar da clareza do texto, o certo e que uma forte corrente jurisprudencial, apoiada no parecer de eminentes doutrinarios, esquecidos dos principios que se deixaram enunciados e sem atenção ao ensinamento inserto no projecto do Codigo Civil frances, concebido na formula -
- " quando uma lei e clara não se deve por de parte a sua letra sob o pretexto de penetrar o seu espirito" - passou a decretar que o dito varão não era apenas o que tinha contraido segundas nupcias mas ainda o que se encontrava em circunstancias de as poder contrair, ou seja o que se encontrava no estado de viuvo.
E fez carreira uma volumosa corrente firmando a doutrina da existencia da condição resolutiva da propriedade dos bens deixados pelos filhos falecidos, ficando a propriedade dependente da celebração do novo casamento dos pais.
E a doutrina fixada no acordão deste Tribunal, de 10 de Julho de 1962 - Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 95, pagina 329 - para referir o ultimo aresto que a contem.
São conhecidos os fundamentos em que assenta.
Preponderantemente se salienta a defesa das estirpes. De supor e que as decisões proferidas, firmando esta doutrina, tenham sido influenciadas pelo assento de 29 de Março de 1955, que o ilustre Professor Doutor Pires de Lima, assim sintetizou: "O artigo 1236 deve aplicar-se sempre que os bens recebidos do conjuge predefunto possam beneficiar um novo consorte do sobrevivo ou a sua descendencia dum segundo ou posterior leito".
Em vão tentou o legislador de 1930 por termo a controversia que o artigo suscitou, imprimindo-lhe nova redacção. Nem a substituição das palavras "varão ou mulher" pela palavra "binubo", nem a nota explicativa que acompanhou o Decreto n. 19126, impuseram jurisprudencia uniforme, como era de supor. Manteve-se a divergencia de julgados - como todos sabem.
A mens legis e a mens legislatores - o forte argumento de defesa das estirpes, continuaram a dominar sobre o imperativo texto legal.
Oferece-se-nos oportunidade para transcrever estas luminosas expressões do Doutor Pires de Lima, extraidas da notavel oração de sapiencia, proferida na Universidade de Coimbra:
"Os tribunais tendem a perder o respeito devido a lei, deixam de lhe obedecer e, dominados por uma falsa equidade, pela justiça aparente do caso concreto, criam uma situação intoleravel que e a incerteza do direito".
Salienta o ilustre Professor que o juiz, em face de um Codigo com principios antiquados, descurando o direito e procurando a solução que lhe parece mais justa e equitativa, esquece-se de que esta a fomentar a insegurança, a incerteza, a intranquilidade na vida juridica, que deve ser disciplinada por normas objectivas.
E depois de preconizar a disciplina juridica, cujo conteudo so ao Estado, por intermedio de outros orgãos que não os jurisdicionais, cabe fixar, anota que se torna necessario que a jurisprudencia não assuma funções que lhe não pertencem, não devendo cair na casuistica, nas soluções particulares, dominadas pelos interesses sociais em jogo, que so a norma abstracta sabe definir e proteger.
E não nos furtamos ao prazer daquela passagem que refere o pedido dos povos de Saboia a Francisco I de França, para que se proibisse aos juizes o julgar conforme a equidade, querendo antes ser julgados segundo os termos precisos da lei.
Esta transcrição fizemos, por grata ao nosso espirito. E que sempre entendemos estar vedado ao interprete e nomeadamente ao julgador a aplicação da norma por maneira abertamente contraria ao sentido, a propria expressão que nela se contem.
No caso particular que nos ocupa, tendo em atenção em primeiro lugar o proprio dispositivo, os principios legais que imperativamente dominam o instituto que contem o objecto do recurso, condensados em preceitos de interesse e ordem publica e ainda os principios que presidem na actividade da interpretação das leis, afirmamo-nos no conceito de que os pais viuvos não são binubos e de que so são binubos os pais que passaram a segundas nupcias. E na consideração de que a herança se abre pela morte do seu autor e que e nesse momento de morte que se verifica a transmissão do dominio e posse da herança para os herdeiros - os quais sucedem em todos os direitos e obrigações do seu autor; e de que nenhum preceito legal cerceia a propriedade absoluta que estava no direito do de cujos, que assim se transmitiu para os seus herdeiros; e de que o pai, viuvo, e o sucessor legitimo do filho falecido sem descendentes, não podemos aceitar a aplicabilidade do preceito por forma contraria a todos esses principios e a sua propria letra.
Nestes termos se acorda em conceder provimento ao recurso e firmar o seguinte assento:
"O artigo 1236 do Codigo Civil refere-se somente aos bens herdados pelo viuvo, depois de ter contraido novas nupcias".

Lisboa, 12 de Maio de 1964

Alberto Toscano (Relator) - Fragoso de Almeida - Albuquerque Rocha - Lopes Cardoso - Fernando Toscano Pessoa - Barbosa Viana - Lucena e Vasconcelos - João Caldeira - Torres Paulo - Tovar de Lemos - Albino Resende Gomes de Almeida - Jose Meneses (Vencido. A razão de ser do artigo 1236 do Codigo Civil aconselha a que o seu regime se aplique mesmo que os bens sejam herdados durante o periodo da viuvez) - Simões de Carvalho (Vencido porque em meu entender nem a letra da lei nem a sua historia impõem necessariamente a solução adoptada, a qual contraria a sua razão de ser - evitar que os bens de uma estirpe vão parar a outra completamente diferente. Esta razão subsiste quer os bens sejam herdados na viuvez quer na binubez).