Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
979/15.8T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
DEVEDOR
PESSOA SINGULAR
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 04/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AMBAS AS REVISTAS
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO.
Doutrina:
- Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e das Recuperação de Empresas”, Anotado, 140.
- Catarina Serra, «Processo especial de Revitalização – Contributos para uma “rectificação”», Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Abril/Setembro 2012, 716, nota 2.
- Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização, 20 e 21.
- Isabel Alexandre, “Efeitos processuais da abertura do processo de revitalização”, II Congresso de Direito da Insolvência, pp. 235 e 236.
- Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, vol. I, 39.
- Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 3.ª ed., tomo IV, pp. 238 e seguintes.
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa” Anotada, Tomo I, 120 e seguintes.
- Luís Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Vol. I, 2.ª ed., 15.
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª ed., 280; O Processo Especial de Revitalização, 15 e 16.
- Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 6.ª ed., 296.
- Paulo Olavo Cunha, “Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização de sociedades”, II Congresso de Direito da Insolvência, 220 e 221.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol. I, 58 e 59.
- Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 461, nota 5.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 1.º, N.º2, 17.º-A, N.º2, 249.º E SS..
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º, N.ºS 1 E 2.
*
PROPOSTA DE LEI Nº 39/XII, QUE ORIGINOU A LEI Nº 16/2012, DE 20 DE ABRIL.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 10/12/2015, PROCESSO N.º 1430/15.9T8STR.E1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

-DE 24/11/2015, PROCESSO N.º 22219/15.0T8SNT-1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

-DE 10/09/2015, PROCESSO Nº 531/15.8T8STR.E1, E DE 09-07-2015, PROCESSO N.º 718/15.3TBSTR.E1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

-DE 12/10/2015, PROCESSO N.º 1304/15.3T8STS.P1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - A lei apenas admite ao processo especial de revitalização o devedor pessoa singular que vise a revitalização de um substrato empresarial de que seja titular, e não já todo e qualquer devedor pessoa singular.

II - Não padecem de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade as normas legais atinentes do processo especial de revitalização assim interpretadas.
Decisão Texto Integral:

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Évora

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA e mulher BB promoveram perante a Comarca de Santarém (Instância Central, Secção de Comércio) a abertura de processo especial de revitalização (PER), nos termos do art. 17º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Do que alegaram e dos documentos que juntaram infere-se que são trabalhadores por conta de outrem, não exercendo qualquer atividade económica autónoma e por conta própria (empresarial).

O requerimento inicial foi liminarmente indeferido.

O indeferimento fundamentou-se precisamente na circunstância de os Devedores serem trabalhadores por conta de outrem. O tribunal considerou que o PER está orientado para a recuperação do tecido empresarial e não para a reabilitação de devedores pessoas singulares não comerciantes, empresários ou que não desenvolvem uma qualquer atividade económica autónoma e por conta própria. Para estas apenas pode estar reservado, mais decorre da decisão, o regime decorrente do chamado “plano de pagamentos aos credores”, previsto no art. 249º e seguintes do CIRE.

Inconformados com o assim decidido, apelaram os Devedores para a Relação de Évora.

Fizeram-no sem êxito, pois que a decisão recorrida foi confirmada (com voto de vencido).

De novo inconformados, pedem os Devedores revista.

Também o Ministério Público na Relação de Évora, na sua qualidade de parte acessória, interpõe recurso para este Supremo Tribunal de Justiça.

Para tanto, e nos termos e para os efeitos do nº 1 do art. 14º do CIRE, estribam-se as duas partes recorrentes no acórdão da Relação de Évora de 9 de julho de 2015 (proferido no processo nº 1518/14.3T8STR.E1), transitado em julgado, que decidiu a mesma questão fundamental de direito de forma divergente.

No exame preliminar o relator considerou verificada a aludida divergência de julgados e, como assim, admissível a revista.

                                                           +

Da respetiva alegação extraem os Devedores as seguintes conclusões:

1. O douto acórdão recorrido, não admitiu o PER apresentado pela recorrente, porquanto considerou que este instituto não se aplica a pessoas singulares.

2. Conclusão que retira do facto de entender que, quanto às pessoas singulares, já estas beneficiavam da possibilidade de, suspender a declaração de insolvência, através da apresentação de um plano de pagamentos.

3. Ora, tal possibilidade, em nada distingue as pessoas singulares das pessoas coletivas que beneficiam da mesma possibilidade de apresentar um plano de insolvência e dessa forma encerrar o processo de insolvência.

4. Com o devido respeito andou mal o acórdão recorrido porquanto nenhuma distinção é feita na Lei que permita concluir que o PER não se aplica às pessoas singulares, pelo contrário.

5. Acresce que, até ao aparecimento do PER, qualquer pessoa singular que se encontrasse em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente acabava, na maioria dos casos, por ser declarada insolvente. Sofrendo todos os efeitos negativos associados à declaração de insolvência. E isto para não falar do estigma social que, ainda hoje, é associado à declaração de insolvência.

6. A interposição de um plano PER, permite assim às Pessoas Singulares fugirem a esse estigma.

7. Tem sido sufragado pelos credores, tal entendimento, dado que, como se pode constatar, são inúmeros os casos em que os credores votam favoravelmente os muitos planos apresentados no âmbito do PER de pessoas singular s, não titulares de empresas.

8. O entendimento acolhido no Douto Acórdão recorrido, cria urra desigualdade inexplicável e legalmente injustificável, entre as pessoas singulares não titulares de empresas e as pessoas singulares titulares de empresas.

9. A acolher o entendimento do Acórdão recorrido, as pessoas singulares, ao contrário das coletivas e das pessoas singulares titulares de empresas, mesmo estando em situação económica difícil, devem aguardar até estarem insolventes, para poderem recorrer a um eventual plano de pagamentos, visto que a sua recuperação através de um plano de pagamentos em sede de PER, lhes estaria vedada,

10. Essa desigualdade de tratamento na aplicação da Lei é, além de ilegal inconstitucional.

11. O próprio Governo Português, elucida os cidadãos, através do IAPMEI, (http://www.iapmei.pt/resources/download/FAQ_PER.pdf) informando que «pode recorrer ao PER todo o devedor que se encontre comprovadamente em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, independentemente de o devedor ser uma pessoa singular ou uma pessoa coletiva, ou mesmo um ente jurídico não personalizado (por ex. um património autónomo)».

12. A decisão recorrida viola o disposto no artigo 17-A do CIRE e o disposto no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa (Direitos Fundamentais).

São as seguintes as conclusões que o Ministério Público extrai da sua alegação:

I. Verifica-se oposição entre o acórdão recorrido e o proferido nesta Relação de Évora em 09/7/2015, no Proc. n° 1518/14.3T8STR.E1, ambos preferidos no domínio da mesma legislação, sem que entre um e outro tenham ocorrido quaisquer alterações legislativas, tendo os mesmos decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e sendo certo que não existe sobre a matéria em causa jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

II. O legislador não quis afastar os devedores pessoas singulares, não comerciantes, do regime do PER, onde não existe qualquer norma expressa nesse sentido, antes admitindo implicitamente a inclusão dos mesmos nesse regi me, face à redação do disposto no art°17°- D, n° 11, do CIRE.

III. Os objetivos que o legislador pretendeu obter com) PER de "combate ao desaparecimento de agentes económicos" e de "não geração de desemprego" é conseguido não apenas quando são minoradas as dificuldades das empresas, mas igualmente as dificuldades dos consumidores, uma vez que uma diminuição da procura por parte destes condiciona inevitavelmente a manutenção e o desenvolvimento das empresas, levando a eventuais despedimentos - e assim o "combate até ao desaparecimento de agentes económicos" engloba quer empresas quer consumidores, que são igualmente agentes económico relevantes.

IV. Inexistindo no regime legal do PER qualquer norma expressa que afaste a sua aplicação a devedores pessoas singulares não comerciantes, tal regime é-lhes aplicável, uma vez que não deve o intérprete distinguir onde a lei não distinguiu, conforme se entendeu no douto acórdão fundamento:

“O regime do PER aplica-se a qualquer devedor seja ele, pessoa a singular, pessoa coletiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a qualquer dos requisitos - cfr. art°s 1º, nº 2, 2º, nº 1 e art° 17º- A, nº 1, do CIRE.”

V. Não tendo assim decidido, violou o douto acórdão recorrido o disposto nas normas legais referidas na conclusão que antecede, normas que deveriam ter sido interpretadas no sentido adotado pelo acórdão fundamento.

 

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

- A de saber se os Devedores, pessoas singulares trabalhadoras por conta de outrem, podem utilizar o PER que suscitaram

- A de saber se se verifica a inconstitucionalidade, por ofensa ao princípio da igualdade, das normas legais que possam impedir tal utilização.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto:

De acordo com o que vem assumido pelas instâncias, os Devedores são trabalhadores por conta de outrem, não exercendo qualquer atividade económica autónoma e por conta própria.

De direito:

A questão de saber ser a utilização do PER é legalmente admitida no caso em que o devedor é pessoa singular cujo substrato patrimonial revitalizando não é inserível ao conceito de “tecido económico ou empresarial” é controversa no plano doutrinário e jurisprudencial.

Não está em causa, por certo, a exclusão pura e simples do PER das pessoas singulares, pois que não pode haver dúvidas que estas também são elegíveis para o PER. O que se discute é simplesmente se essa admissão é permitida em quaisquer circunstâncias (admissão incondicionada) ou se a admissibilidade é restrita ao caso da pessoa singular visar a reabilitação de um qualquer substrato económico ou empresarial de que seja titular (trata-se aqui, por assim dizer, de uma atividade económica autónoma e por conta própria).

Segundo alguns autores, baseados essencialmente na letra da lei (maxime nº 2 do art. 17º-A do CIRE), o PER poderia ser atuado por qualquer devedor pessoa singular, independentemente pois de estar em questão a reabilitação de qualquer substrato económico empresarial. Neste sentido, se pronunciam Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 280, e O Processo Especial de Revitalização, pp. 15 e 16; Luís Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Vol. I, 2ª ed., p. 15; Catarina Serra, Processo especial de Revitalização – Contributos para uma “rectificação” – Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Abril/Setembro 2012, p. 716, nota 2; Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização, pp. 20 e 21; Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 296; Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, p. 461, nota 5; Isabel Alexandre, Efeitos processuais da abertura do processo de revitalização, II Congresso de Direito da Insolvência, pp. 235 e 236;

Já outros autores têm uma visão diferente do tema.

Assim, Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e das Recuperação de Empresas, Anotado, p. 140), aduzem o seguinte:

“Perante o teor literal do preceito [art. 17º-A do CIRE], dir-se-ia que ele abrange qualquer devedor, independentemente das respetivas natureza ou qualidade.

Cremos, todavia, existir um bom par de razões para um entendimento distinto.

Com efeito, a ideia de recuperabilidade do devedor tem constantemente sido ligada pela lei à existência de uma empresa no seu património e, neste sentido, à sua qualidade de empresário (…).

Por outro lado, a principal motivação da criação do processo de revitalização (…) foi, como confessado na Exposição de Motivos que fundamentou a apresentação pelo Governo à Assembleia da República da Proposta de Lei nº 39/XII, a promoção da recuperação, «privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial» (…), acrescentando-se (…) que «a presente situação económica obriga (…) a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas».

Manifestamente, pois, a realidade que preenche o pensamento legislativo é o tecido empresarial, no seu conjunto, e de uma forma muito lata, facilitada, de resto, pelo conceito geral de empresa que, para os efeitos do Código (…) se acolhe no art. 5º”.

Acode, também, uma outra razão (…). É que, embora já num enquadramento insolvencial, a lei contempla um procedimento especialmente vocacionado para devedores que não sejam titulares de empresas, previsto e regulado nos art.s 251º e seguintes, por força do qual não se particular utilidade em cumular a possibilidade de recurso, por eles, ao processo de revitalização (…).

Temos, pois, por adequada a conclusão de que o processo de revitalização se dirige somente a devedores empresários, justificando-se a correspondente restrição ao significado literal do texto”.

E Paulo Olavo Cunha (Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização de sociedades, II Congresso de Direito da Insolvência, pp. 220 e 221) sustenta que:

“O PER é exclusivamente aplicável a empresas, só para estas fazendo sentido. Com efeito, apesar de os art.s. 17º-A e seguintes serem omissos sobre eventuais restrições à aplicação do procedimento a pessoas singulares que não sejam titulares de empresas, a recuperação a empreender com este procedimento visa essencialmente salvaguardar e viabilizar uma empresa, sendo suficiente aplicar o plano de insolvência ao devedor que seja pessoa singular, visto que a sua situação patrimonial é, por definição, estática relativamente à de uma empresa, em que as variações patrimoniais são constantes. Consideramos, pois, o PER aplicável às empresas, incluindo as de titularidade individual, e diferenciando, assim, as empresas (singulares e coletivas) das pessoas singulares que não são titulares de empresas no acesso a este procedimento de revitalização”.

Na jurisprudência das Relações (publicada em www.dgsi.pt) prevalece este último entendimento. Assim se decidiu, entre outros, nos acórdãos da RE de 10-09-2015 (proferido no processo nº 531/15.8T8STR.E1, relator Sílvio Sousa) e de 09-07-2015 (proferido no processo nº 718/15.3TBSTR.E1, relator Silva Rato), da RL de 24-11-2015 (proferido no processo nº 22219/15.0T8SNT-1, relator Afonso Henrique) e da RP de 12-10-2015 (proferido no processo nº 1304/15.3T8STS.P1, relatora Isabel Soeiro).

Este Supremo Tribunal de Justiça teve oportunidade de se pronunciar muito recentemente sobre o assunto. Assim, no acórdão de 10 de dezembro de 2015 (Processo nº 1430/15.9T8STR.E1.S1, relator Pinto de Almeida, acessível em www.dgsi.pt) entendeu-se o seguinte:

«Como se concluiu no Acórdão da Relação do Porto de 23.02.2015, o PER não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários nem exerçam, por si mesmas, qualquer atividade económica.

Propende-se para esta solução (…), afigurando-se-nos que as normas que regem o PER devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo especial não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários ou que não desenvolvam uma atividade económica por conta própria.

Não devendo a interpretação cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (art. 9º, nº 1, do CC), crê-se que (…) a razão de ser da lei, o fim visado pelo legislador e as circunstâncias político-económicas que motivaram a lei (elemento racional ou teleológico) e o elemento histórico (trabalhos preparatórios) concorrem, parece-nos, para que se deva adotar aquele sentido interpretativo.

Só essa solução, com efeito, parece compatível com o objetivo anunciado pelo legislador, de promover a revitalização ou recuperação do tecido empresarial e, assim, dos agentes económicos que nele se integrem, privilegiando a manutenção dessa atividade económica, em detrimento da liquidação do seu património.

Neste sentido, será difícil conceber a recuperabilidade de pessoa singular que não exerça essa atividade, pessoa a que é inerente, como se disse, uma “situação patrimonial estática”. É o que sucede, no caso, com os devedores, que são trabalhadores por conta de outrem: o PER não poderia visar a manutenção de uma atividade que estes não exercem e promover uma recuperação, que não passaria, necessariamente, de simples exoneração do passivo.

Por outro lado, como tem sido observado, existe no âmbito da insolvência um procedimento particularmente adequado – o plano de pagamentos (arts. 249º e segs. do CIRE) – de que essas pessoas singulares podem beneficiar, permitindo que estas “sejam poupadas a toda a tramitação do processo de insolvência (com apreensão de bens, liquidação, etc.), evitem, quaisquer prejuízos para o seu bom nome ou reputação e se subtraiam às consequências associadas à qualificação da insolvência como culposa” (Preâmbulo do DL 53/2004, de 18/3).

Procedimento de que decorre, como sublinha ANA FILIPA CONCEIÇÃO[1], “menor duração do processo, menores custos e inexistência dos efeitos da declaração de insolvência sobre o devedor, comportando menor desgaste psicológico e patrimonial e evitando o estigma social da declaração de insolvência, uma vez que a declaração de insolvência não é publicitada (art. 259º, nº 2)”.

Não se vê, assim, utilidade em os referidos devedores, pessoas singulares, poderem recorrer também ao processo especial de revitalização, não se justificando, por isso, a duplicação de recursos que tal implicaria.»

Esta é, quanto a nós, a boa interpretação da lei.

Efetivamente, e como adequada e pertinentemente se aduz no supra referido acórdão da RE de 10-09-2015:

«- Na interpretação da lei o intérprete não pode esquecer “os fins que a lei prossegue, as soluções que tem em vista realizar, e que constituem a sua razão de ser” ou, noutras palavras, “o interesse específico socialmente relevante que a lei pretende tutelar”; além disso, a lei a interpretar tem de ser vista no âmbito da “disciplina jurídica em que ela está inserida”, e não isoladamente, uma vez que “a relevância de um interesse é sempre medida e condicionada pela relevância reconhecida a outros interesses”; ao intérprete é, finalmente, exigido que “atenda, por um lado às circunstâncias em que foi elaborada, e por outro às condições específicas do tempo em que é aplicada, isto é, que a interpretação seja coerente com o sistema de valores que a comunidade aceita como fundamento da própria convivência”[2];

- Sempre que a vontade real do legislador não seja clara e inequívoca, importa ter em consideração “critérios de carácter objetivo”, como sejam o da presunção de que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” e da rejeição de um sentido decisivo da lei, se no texto desta “não se encontrar um mínimo de correspondência verbal”[3]

Ora, percorrendo a Proposta de Lei nº 39/XII, que originou a Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, que, por seu turno, consagrou o processo especial de revitalização, encontramos o seguinte:

«(…) O principal objetivo prosseguido por esta revisão passa por reorientar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação.” (…) Na mesma linha, é criado o processo especial de revitalização (artigos 17.º-A a 17.º-I), lançando-se a primeira pedra deste processo logo no n.º 2 do artigo 1.º, explicitando-se, em traços muito largos, quais os devedores que ao mesmo podem recorrer. O processo visa propiciar a revitalização do devedor em dificuldade, naturalmente que sem pôr em causa as respetivas obrigações legais, designadamente para regularização de dívidas no âmbito das relações com a administração fiscal e a segurança social.

O processo especial de revitalização pretende assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência atual. A presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao “desaparecimento” de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas. Este processo especial permite ainda a rápida homologação de acordos conducentes à recuperação de devedores em situação económica difícil celebrados extrajudicialmente, num momento de pré-insolvência, de tal modo que os referidos acordos passem a vincular também os credores que aos mesmos não se vincularam, desde que respeitada a legislação aplicável à regularização de dívidas à administração fiscal e à segurança social e observadas determinadas condições que asseguram a salvaguarda dos interesses dos credores minoritários (…)».

Por sua vez, esta Proposta de Lei deve (tem que) ser compaginada com os ditames do chamado “Programa de Assistência Financeira” estabelecido entre a Comissão Europeia, o Banco central Europeu, o Fundo Monetário Internacional e a República Portuguesa, nos termos do qual o Estado Português acedeu a criar legislação com vista a alterar o CIRE, com a finalidade de “facilitar o resgate efetivo de empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis”.

Do que fica dito resulta, com clareza (a nosso ver), que o propósito do legislador, ao criar o PER, foi o de permitir a revitalização da atividade económica do devedor que funcione como “agente económico empresarial”, e não de quaisquer outros devedores, nomeadamente pessoas singulares trabalhadores por conta de outrem. Sendo esta, como é, a mens legislatoris, o elemento racional (ou teleológico) da interpretação e o elemento histórico impõem tal conclusão.

Donde, é á luz desse propósito e interpretação que deve ser lido todo o articulado legal (maxime art.s 1º nº 2 e 17º-A nº 2 do CIRE) que regula para o PER. O que nos leva, pois, a uma interpretação restritiva, com o sentido que fica exposto, do âmbito subjetivo do PER.

E assim, e como se aponta no também supra citado acórdão da RE de 09-07-2015, “a mais dos pressupostos objetivos do processo de revitalização que se materializam na situação económica difícil ou de insolvência iminente do devedor e da sua recuperabilidade, acresce o pressuposto subjetivo traduzido na exigência de que se trate de devedor em cujo património se integra numa empresa – devedor empresário.” Ou, como se escreve no igualmente citado acórdão da RP de 12-10-2015, “o processo especial de revitalização foi construído em torno da ideia da recuperação de agentes económicos, ou seja, de comerciantes, de empresários ou de quem exerce uma atividade autónoma e por conta própria que gera receita e/ou cria emprego, não sendo aplicável a pessoas singulares que não sejam devedores empresários.”

Pelo que fica dito, conclui-se que o acórdão recorrido fez, ao ter denegado o acesso dos ora Devedores ao PER, uma adequada interpretação e aplicação da lei, pelo que improcedem na totalidade as conclusões do recurso do Ministério Público e as conclusões do recurso dos Devedores aí onde sustentam o contrário do que fica dito.

Os Devedores mais sustentam que “O entendimento acolhido no Douto Acórdão recorrido, cria uma desigualdade inexplicável e legalmente injustificável, entre as pessoas singulares não titulares de empresas e as pessoas singulares titulares de empresas”, que “Essa desigualdade de tratamento na aplicação da Lei é (…) inconstitucional” e que “A decisão recorrida viola o disposto (…) no artigo 13° da Constituição da República Portuguesa (Direitos Fundamentais) ”.

Mas, quanto a nós, estão carecidos de razão, nada tendo de inconstitucional o normativo legal do PER quando interpretado no sentido que fica dito.

Como tem sido apontado na doutrina (v. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 3ª ed., tomo IV, pp. 238 e seguintes; Jorge Miranda-Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pp. 120 e seguintes) e na jurisprudência do Tribunal Constitucional, o tratamento legal igual é exigido para situações iguais, enquanto para situações substancial e objetivamente desiguais (impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas) é admitido tratamento diferenciado. E a prevalência da igualdade tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica.

Ora, a diferenciação de que se queixam os Recorrentes está plenamente fundada em circunstâncias objetivas também diferenciadas. No caso de pessoas singulares titulares de empresas está em causa a tentativa de recuperação para a economia geral do país de meios produtivos geradores de riqueza e emprego, enquanto no caso de pessoas titulares trabalhadoras por conta de outrem essa vantagem não se coloca. Isto não significa, bem entendido, que a força do trabalho, a empregabilidade e o circuito geral de consumo não relevem para a economia. Apenas acontece que para o legislador (conforme aliás as vinculações assumidas no acima referido “Programa de Assistência Financeira”), na sua liberdade de ponderação, de conformação e de regulação, a implementação da revitalização do devedor tal como feita constar do CIRE justifica-se apenas quando esteja em equação a salvaguarda do tecido económico empresarial, e não já quando esteja em causa um qualquer devedor pessoa singular, ademais quando é certo que a legislação (art. 249º e seguintes do CIRE) já prevê medidas de salvaguarda direcionadas para devedores pessoas singulares não titulares de empresa.

Improcedem pois as conclusões do recurso dos Devedores na parte em que invocam a inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade das normas legais que os abduzem da admissão ao PER.

Pelo que fica dito resta concluir que o acórdão recorrido não é passível das censuras que os Recorrentes lhe endereçam, devendo por isso ser confirmado.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedentes os recursos interpostos pelos Devedores e pelo Ministério Público.

Regime de custas:

Os Devedores são condenados nas custas inerentes à revista que interpuseram.

                                                           ++

Sumário:

I. A lei apenas admite ao processo especial de revitalização o devedor pessoa singular que vise a revitalização de um substrato empresarial de que seja titular, e não já todo e qualquer devedor pessoa singular.

II. Não padecem de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade as normas legais atinentes do processo especial de revitalização assim interpretadas.

                                                           ++

Lisboa, 5 de abril de 2016

José Rainho (Relator)

Salreta Pereira

João Camilo

___________________
[1] Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no CIRE, em I Congresso de Direito da Insolvência, 32.
[2] Artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil e Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, vol. I, pág. 39.
[3] Artigo 9.º, nºs 1 e 2, do Código Civil e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, págs. 58 e 59.