Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
29/20.2PJLRS-C.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: EDUARDO LOUREIRO
Descritores: HABEAS CORPUS
NULIDADE INSANÁVEL
PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL DE ARGUIDO DETIDO
AUSÊNCIA
PRISÃO PREVENTIVA
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I. O habeas corpus, que visa reagir contra o abuso de poder por prisão ou detenção ilegal, constitui não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação ilegal de privação de liberdade.

II. Concretizando-se o abuso de poder em prisão ilegal, há-de a ilegalidade resultar – art.º 222º n.º 2 do CPP – ou de a prisão ter sido efectuada por entidade incompetente – al.ª a) –, ou de ser motivada por facto por que a lei a não permite – al.ª b) – ou de se manter para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - al.ª c).

III. A ilegalidade fundante da providência haverá de ser evidente, um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais ou à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo.

IV. O habeas corpus não é o meio próprio para impugnar as decisões processuais ou de arguir nulidades e irregularidades eventualmente cometidas no processo, decisões essas cujo meio adequado de impugnação é o recurso ordinário.

Decisão Texto Integral:



Proc. n.º 29/20.2PJLRS-C.S1
5ª Secção
Habeas Corpus

acórdão
Acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: 

I. relatório.
1. AA, arguido nos autos de Inquérito Criminal n.º 29/20……Secção .... do Departamento de Investigação e Acção Penal do Tribunal Judicial da Comarca ...– doravante, Requerente –, «recluso no EP  ....., vem […] requerer a concessão da providência de "Habeas Corpus" nos termos do art.º 222º n.º 2 b) do C.P.P.» nos termos que seguem transcritos:
─ «1º - O peticionante foi detido no dia 16 do corrente e interrogado no JIC de ... no dia seguinte.
2.º - Durante o citado interrogatório, depois de ser inquirido pelo Tribunal, foi, por ordem da Mª JIC, mandado sair da sala, sendo assim impedido de assistir à douta Promoção do Digno MP e às alegações do seu mandatário que discretearam acerca da aplicação de medida de coacção.
3.° E Isso no decurso da sessão nos termos do disposto no art.º 141º do CPP.
4.º - O arguido requerera, através do seu mandatário, como da Acta consta, que pudesse estar presente em todo o decurso da audiência, mas tal pretensão foi-lhe indeferida por despacho de que o arguido já interpôs – e motivou – o respectivo recurso.
5.° - A nulidade do Auto de Interrogatório é assim patente a olho nu, por verificação da nulidade prevista no art.° 119.° c) do CPP uma vez que o arguido não esteve presente em acto processual cuja comparência era obrigatória (art° 141.° CPP e art.° 61.° n.° 1 alínea a) CPP).
Assim,
6.° - Sendo nulo o respetivo Auto de Interrogatório, por aplicação do art.° 122.° do mesmo CPP o arguido encontra-se ainda sob detenção, que ultrapassa já o prazo de 48 horas, atenta a data da sua detenção.
7.° - Pelo que a detenção do arguido se mostra ilegal.
8° - Pelo que a detenção e subsequente prisão do peticionante do arguido se mostram, por isso, a todos os títulos ilegais e assim devem ser declaradas por este Supremo Tribunal de Justiça.
9.°- A qualquer pessoa que se encontre ilegalmente presa, o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência extraordinária do Habeas Corpus. (art.° 222 n.° 1 do CPP).

Requer-se, por isso,
a) -  a concessão da referida providência do Habeas Corpus, com a declaração de ilegalidade da   prisão imposta ao peticionante, a qual que se mantém actual,
b) e a imediata restituição à liberdade do peticionante AA (art.° 222.° n.° 1 e 2 alínea b) do CPP e art.° 31.° n.° 1   2 e 3 da Constituição da República).
[…].»

2. No momento previsto no art.º 223º n.º 1 do CPP, a Senhora Juíza do Juiz … do Juízo de Instrução Criminal de ... lavrou informação do seguinte teor:
─ «Os arguidos AA fls, 4153-4157) e BB (fls. 4249-4253) suscitaram a providência de habeas corpus com base no art. 222.º, n° 2, al. B) do C.P.P. (sic).
Em síntese, alegaram os arguidos que aquando da realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, depois de terem prestado declarações, o Tribunal determinou que os arguidos saíssem da sala, tendo os mesmos ficado impedidos de assistir à promoção do MºP° e aos requerimentos do respectivo mandatário judicial, o que consubstancia a nulidade do auto de interrogatório, nos termos do art. 119°, al. C) do CPP.
Assim, concluem os arguidos que, encontrando-se os mesmos detidos há mais de 48 horas, a sua detenção é ilegal.
Concluem pugnando pela libertação imediata.

*

*
Nos seus fundamentos de petição da providência extraordinária de habeas corpus entendemos que, na verdade e salvo melhor opinião, o arguido aduziu argumentos de discordância relativamente ao facto de terem sido impedidos de assistir à promoção do M°P° e requerimentos do seu Mandatário judicial. Sobre a suscitada questão, já o Tribunal se pronunciara na própria acta de primeiro interrogatório judicial.
O meio processual próprio/idóneo para reagir à decisão que impediu os arguidos de assistirem à promoção do MºPº e requerimentos do seu mandatário judicial, é a interposição de recurso, admissível nos termos previstos no regime dos recursos ordinários da Lei processual penal.
Em bom rigor, nenhuns dos argumentos/fundamentos invocados pelos arguidos se aproximou, sequer timidamente, da norma legal por si enunciada como fundamento de prisão ilegal.
Entendo, portanto, que o arguido se encontra legalmente preso, carecendo de fundamento o requerimento de habeas corpus para o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, não estando, de todo em lodo, preenchido o requisito previsto no art. 222.°, n.°2, alínea b) do Código de Processo Penal.
No entanto, Vossas Excelências, Colendos Senhores Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, melhor decidirão.
[…].».

3. O procedimento vem instruído da 1ª instância com certidão das, entre outras, seguintes peças processuais:
─ Despacho de indiciação/apresentação do Requerente e de seis outros arguidos detidos a primeiro interrogatório judicial, datado de 17.9.2021 e subscrito por magistrado do Ministério Público do DIAP  ...; e
─ Auto de primeiro interrogatório judicial do Requerente e dos demais arguidos, de 17.9.2021, com despacho, da mesma data, de aplicação de medidas de coacção.
Já neste Supremo Tribunal de Justiça, requisitou-se certidão do expediente de detenção em 16.9.2021 do Requerente.

4. Convocada esta 5ª Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o Defensor dos Requerentes, realizou-se a audiência pública – art.os 223º n.os 2 e 3 e 435.º do CPP.   
Cumpre, assim, publicitar a respectiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

II. Fundamentação.

A. Factos.
5. Dos elementos documentais que instruem o processo e da informação prestada ao abrigo do art.º 223º n.º 1 do CPP, emergem, com relevância para decisão, os seguintes factos e ocorrências processuais:

(1). No decurso de uma busca domiciliária realizada no Inq. n.º 29/20… da 2ª Secção  ... do Departamento de Investigação e Acção Penal do Tribunal Judicial da Comarca  ..., o Requerente foi detido no dia 16.9.2021 pela suspeita da prática de crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.1, e tabela 1-C anexas.

(2). Sob requerimento do Ministério Público, foi, no dia seguinte, 17.9.2021, submetido a primeiro interrogatório judicial – aliás, ele e seis outros arguidos igualmente detidos – no Juiz … do Juízo de Instrução Criminal  ....

(3). Findos os interrogatórios, o Requerente, através do defensor constituído que o assistia e que, igualmente, patrocinava dois outros arguidos, formulou requerimento do seguinte teor:
─ «Os mandatários judiciais no processo penal agem de acordo com a vontade dos seus constituintes no caso presente os três arguidos e o mandatário no uso da palavra que representa encontram-se privados de liberdade e tem o direito de conhecer, em sede de requerimento a posição do seu advogado no processo bem como a argumentação que o mesmo ira utilizar na defesa do seu constituinte segundo as regras processuais vigentes nomeadamente o artigo 61.º , n.º 1 , al. a) do Cód. Proc. Penal o arguido goza em especial em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei do direito de estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito, por outro lado tem o arguido o direito de ser assistido por defensor em todos os atos processuais . nos termos do disposto no artigo 63.º o defensor exerce os direitos que a lei recomenda ao arguido a interpretação do disposto no artigo 64.º, n.º 1 , al. b) do Cód. Proc. Penal quanto à obrigatoriedade da assistência do defensor nos interrogatórios feitos perante autoridade judiciária tem de ser entendida como a possibilidade de o arguido assistir quer à promoção do Digno Ministério Público que se ira propor a media de coação que entender, como ainda os argumentos que o seu advogado ira apresentar junto do Tribunal.
O conteúdo do mandato emitido pelos arguidos ao mandatário implica e contém essa mesma possibilidade, ou seja, de o arguido assistir a atos processuais que decorrem numa audiência e que lhe dizem em primeiro lugar respeito. Não há no nosso ornamento penal nenhuma exceção que implica a proibição de os arguidos detidos se encontrarem presentes na sala de audiência enquanto usam da palavra quer o Digno do Ministério Público quer o mandatário.
O artigo 141.º do Cód. Proc. Penal nada refere sobre essa impossibilidade apenas estabelece no número 6 em primeiro interrogatório o Ministério Público e o defensor se abstêm de qualquer interferência. Nesta conformidade atenta o principio da lealdade processual, que obriga a uma absoluta transparência no que se passa na audiência em que se discute um futuro próximo dos arguidos detidos requer-se que o outo Tribunal conceda a autorização a que os arguidos do mandatário presente possam estar na sala de audiência nesta fase processual já apontada, sob pena de interpretação claramente inconstitucional pelo artigo 61.º, n.º 1, al.ª a) do Cód. Proc. Penal e à contrario do artigo 1.º do Cód. Proc. penal, por clara violação de vários preceitos constitucionais referentes aos direitos dos arguidos em processo penal, máxime, pelo exposto no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República.».

(4). Após pronúncia desfavorável do Senhor Procurador da República e favorável dos Senhores Defensores dos demais arguidos, a Senhora Juíza de Instrução proferiu despacho do seguinte teor:
─ «Em relação à requerida presença dos arguidos durante a formulação das conclusões deste interrogatório e atendendo a que os arguidos prestaram declarações sobre o que entenderam, tomaram conhecimento dos factos que lhe são imputados bem como dos crimes de que vem indiciados.
No demais encontram-se devidamente representados pelos respetivos mandatários judiciais, sendo certo que inexistem qualquer fundamento legal para que os arguidos assistam às mencionadas conclusões sobre a prova e requerimentos sobre as medidas de coação, verificando-se asseguradcs todos os direitos a que alude o artigo 61º do Cód. Proc. penal.
Acresce que o Tribunal não tem que assegurar o conhecimento pelos arguidos da estratégia da defesa.
Pelo exposto por falta de fundamento legal indefiro o requerido.».

(5). De tal despacho requereu, de imediato, o Requerente, através do seu defensor, a interposição de recurso, protestando juntar a motivação no prazo previsto no art.º 411º n.º 1 al.ª a) do CPP

(6). O que mereceu da Senhora Juíza despacho nos seguintes termos:
─ «Deixa-se consignado que tal requerimento tendo em conta o disposto no artigo 411.º, n.º 3, 411.º, n.º 1 e 412.º apenas atrapalha o andar da presente diligência.
Assim sendo e não tendo sido apresentada motivação de momento nada a decidir.».

(7). Despacho este contra o qual o Requerente também reagiu, requerendo o seu defensor a interposição de recurso dele, «sendo a fundamentação legal exatamente a mesma do anterior requerimento de interposição de recurso, […].».

(8). E requerimento sobre o qual a Senhora Juíza fez recair despacho do seguinte teor:
─ «Atendendo a quo no despacho antecedente se referiu que nada havia a decidir renova-se tal afirmação.».

(9). Retirados o Requerente – e os demais arguidos – da sala onde decorriam os trabalhos, o Ministério Público e os defensores pronunciaram-se sobre a indiciação e qualificação do factos e a definição do estatuto cautelar dos arguidos.

(10). De seguida, a Senhora Juíza proferiu despacho a impor, para o que aqui releva, ao Requerente a medida de coacção de prisão preventiva, a acrescer à de Termo de Identidade e Residência já prestado, e tudo assim em razão da forte indiciação da prática do crime de tráfico de estupefacientes apontado, da verificação de riscos de continuação da actividade criminosa, de perturbação da tranquilidade púbica e de perturbação do inquérito «na modalidade de aquisição e conservação da prova», e da insuficiência acautelar de medida menos gravosa, tudo nos termos das disposições conjugadas dos art.os 191º n.º 1, 192º, 193º n.º 1, 194º n.º 2, 196º, 202º n.º 1 al.as a) e c) e 204~al.as b) e c), do CPP.

(11). Recolhido, depois, o Requerente a estabelecimento prisional para execução da medida de coacção, aí se mantém até ao momento presente.

(12). O Requerente interpôs recurso dos despachos referidos em (7)., (9). e (11). supra, que foi admitido por despacho de 24.9.2021, para subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

(13). De momento, o procedimento criminal ainda se encontra em fase de inquérito. 

B. Direito.
6. O artigo 31º n.º 1 da Constituição da República figura o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegais.

Visando reagir contra tal abuso de poder, o habeas corpus constitui «não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade» [1]: trata-se de «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, de prisão e, não, de toda e qualquer ilegalidade, essa sim, objecto de recurso ordinário ou extraordinário» [2].

Os fundamentos do habeas corpus estão taxativamente enumerados nos artigos 220º n.º 1 e 222º nº 2 do CPP, consoante o abuso de poder derive de situação de detenção ilegal ou de prisão ilegal, respectivamente, só com base neles podendo ser deferido.
Sendo que, tratando-se de habeas corpus em virtude de prisão ilegal, há-de a ilegalidade resultar – art.º 222º n.º 2 do CPP – ou de a prisão «ter sido efectuada por entidade incompetente» – al.ª a) –, ou de «ser motivada por facto por que a lei a não permite» – al.ª b) – ou de «[m]anter para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial» – al.ª c).

E há-de tratar-se, ainda, de ilegalidade actual, é dizer de prisão ilegal que persista no momento em que é apreciado o pedido [3].

C. Apreciação.
7. Flui, então da factualidade assente que, sob apresentação do Ministério Público, o Requerente foi submetido a interrogatório judicial em 17.9.2021 e viu ser-lhe aplicada a medida de coacção de prisão preventiva por referência à forte indiciação de crime de tráfico de estupefacientes do art.os 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, à existência de perigo de perturbação do inquérito, de continuação de actividade criminosa e de perturbação da tranquilidade pública e à insuficiência cautelar de medidas de coacção menos gravosas.
E, anotando não lhe ter sido permitido assistir aos momentos em que, após o seu primeiro interrogatório judicial, o Ministério Público e o seu defensor se pronunciaram sobre os pressupostos definidores do seu estatuto coactivo e deduziram os pertinentes pedidos e em que a Senhora Juíza proferiu o correspondente despacho, sustenta que tudo equivale à sua ausência em acto em que a lei exige a sua comparência, e, que decorrentemente:
─ Ocorre nulidade insanável, nos termos do que conjugadamente dispõem os art.º 119º al.ª c), 61º n.º 1 al.ª a) e 141º do CPP.
─ É consequencialmente nulo o acto do seu primeiro interrogatório judicial, nos termos do art.os 122º n.º 1 do CPP, por isso que se encontrando ainda sob detenção que, porém, ultrapassa, e em muito, o máximo de 48 horas;
─ São, por isso, tal detenção e a prisão que se lhe seguiu «a todos os títulos ilegais», tudo constituindo fundamento de habeas corpus nos termos do art.º 222º n.º 2 al.ª b) do CPP que determina a sua imediata libertação.

Mas, salvo o muito devido respeito, não assiste ao Requerente – diz-se já – o fundamento de habeas corpus que invoca – nem, aliás, qualquer outro dos previstos no art.º 222º n.º 2 CPP –, havendo a sua pretensão de ser indeferida.
Com efeito:

8. Como acaba de se ver, o que o Requerente se propõe aqui discutir enquanto fundamento da ilegalidade da prisão que invoca é a verificação de uma, suposta, nulidade insanável prevista no art.º 119º n.º 1 al.ª c) do CPP que diz ter ocorrido e as consequências da sua projecção, nos termos do art.º 122º n.º 1 do CPP sobre a validade, logo, do próprio acto de primeiro interrogatório judicial e, depois, sobre a legalidade da privação da sua liberdade.
Sucede, todavia, que, como é próprio da natureza que acima se lhe assinalou – «não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade», recorde-se – o procedimento de habeas corpus não é lugar para discutir esse tipo de questões, mais calhadas, isso sim, em procedimentos recursórios, ordinários e extraordinários.
Com efeito e como, também, já se sublinhou, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência é – e só é – a que esteja prevista nas três alíneas do art.º 222º n.º 2 do CPP, é dizer, a ilegalidade que resulte ou de ter sido ordenada ou efectuada por entidade incompetente – e incompetente no sentido estatutário, no de se tratar de uma entidade não judicial –, ou de ter sido motivada por facto por que a lei a não permite ou de manter-se para além dos prazos fixados por lei ou decisão judicial [4].
Podendo o fundamento da al.ª b) do n.º 2 do art.º 222º do CPP invocado abranger uma multiplicidade de situações – v. g., a não punibilidade dos factos imputados ao preso; a prescrição do procedimento ou da pena; a amnistia da infracção imputada ou o perdão da respectiva pena; a inimputabilidade do preso; a falta de trânsito da decisão condenatória; a inadmissibilidade legal de prisão preventiva –, certo é que se há-de tratar de «uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso» [5].
A providência de habeas corpus não pode, assim – insiste-se –, decidir sobre a regularidade de actos de procedimento com dimensão e efeito específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente admissíveis de impugnação.
No objecto da providência apenas há que apurar, quando o fundamento se refira a uma dada posição processual do requerente, se os actos de um determinado processo, valendo os efeitos que em cada momento nele produzam e independentemente da discussão que aí possam suscitar e a dirimir segundo o regime normal dos recursos, reclamações, arguições e requerimentos, em geral, produzem alguma consequência que se possa acolher aos fundamentos previstos no art.º 222º n.º 2 referido.
O habeas corpus assume, desse modo, uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as garantias defensivas do direito à liberdade.
Por isso que, e como é entendimento indiscutido na jurisprudência deste Supremo Tribunal, «não é o meio próprio para sindicar as decisões sobre medidas de coacção privativas de liberdade, ou que com elas se relacionem directamente», não se destinado «a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade, ou a sindicar eventuais nulidades, insanáveis, ou não, ou irregularidades, cometidas na condução do processo ou em decisões, ou alegados erros de julgamento de matéria de facto», ou erros de qualificação jurídica,  servindo, «para esses fins», isso sim, «os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede apropriada» [6].
Meio(s) próprio(s) esse(s) de que, de resto, o Requerente (já) se valeu, interpondo, como assente em (12). dos factos, o competente recurso dos despachos que o impediram de assistir aos actos ulteriores ao seu interrogatório e à prolação do despacho de decretamento da prisão preventiva em que tudo culminou.
 
9. A presente providência – reinsiste-se, para concluir – não pode, em contrário do que o Requerente pretende, ser utilizada como meio para discutir as decisões tomadas no processo e das quais acabou por resultar o decretamento da sua prisão preventiva, que têm os efeitos que devam produzir de acordo com a ordenação e disciplina processual própria.
Não sendo essa a ilegalidade própria e específica que releva do abuso de poder de que fala o art.º 31º n.º 1 da CRP e que o art.º 222º do CPP concretiza no plano do direito ordinário, mormente na al.ª b) do seu n.º 2 de que o Recorrente se socorre.

D. Conclusão.
10. Vale tudo o que precede por dizer que improcede o fundamento em que o Requerente apoia o seu pedido de libertação imediata por via de habeas corpus, não havendo sombra de ilegalidade que, à luz do art.º 222º do CPP, afecte a privação de liberdade a que está sujeito, sendo muito evidente que a medida de coacção de prisão preventiva foi decretada por entidade competente – por um juiz de instrução criminal –, por factos pelos quais a lei a admite – pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes, cuja forte indiciação foi judicialmente reconhecida – e que se contém dentro dos limites legais e judiciais – iniciada em 17.9.2021, pode-se prolongar, na actual fase de inquérito e até à dedução da acusação, por 6 meses nos termos do art.º 215º n.os 1 al.ª a) e 2 do CPP e 21º n.º 1, 24º al.ª b) e 51º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, portanto, até 17.3.2022 –, por isso que estando muito longe do seu termo final.

Motivos por que nada mais resta do que indeferir o pedido, como imediatamente segue.

III. decisão.
11. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.os 3 e 4 al.ª a) do art.º 223º do CPP, acordam os juízes desta secção criminal em indeferir o pedido da habeas corpus por falta de fundamento bastante.

Custas pelo Requerente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC's (art.º 8º n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).

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Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP).

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Supremo Tribunal de Justiça, em 7.10.2021.


Eduardo Almeida Loureiro (Relator)


António Gama


António Clemente Lima






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[1] Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal II", Editorial Verbo, p. 260. 
[2] AcSTJ de 11.11.2018 - Proc. n.º 601/16.SPBSTB-A.S1, aliás, citando o AcSTJ de 16.3.2003 - Proc. n.º 4393/03.
[3] Neste sentido, v. g., AcSTJ de 25.6.2020 - Proc. n.º 5553/19.7T8LSB-F.S1, in www.dgsi.pt.
[4] E segue-se doravante muito de perto a exposição do AcSTJ de 10.4.2013, in SASTJ.
[5] AcSTJ de 20.11.2019 - Proc. n.º 185/19.2ZFLSB-A.S1, in www.dgsi.pt.
[6] AcSTJ de 20.11.2019 referido. No mesmo sentido e para só citar alguns dos mais recentes, Ac'sSTJ DE 14.10.2020 - Proc. n.º 116/18.7PAABT-B.S1, de 20.2.2020 - Proc. n.º 397/15.8GTABF-A.S1, de 8.4.2020 - Proc. n.º 679/18.7PALSB-B.S1, de 29.4.2020 - Proc. n.º 832/10.1TXCBR-R.S1 e de 22.4.2020 - Proc. n.º 4993/13.0TDLSB-J.S1, estes in ECLI - European Case Law Identifier.