Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2424/21.0T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: ÓNUS DO RECORRENTE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :

I- Deve rejeitar-se o recurso quando o Recorrente impugna blocos de pontos da matéria de facto sem estreita ligação entre si.

II- Não há qualquer nulidade por omissão de pronúncia quando o Tribunal aprecia sobretudo a questão respeitante à aplicação do disposto no artigo 344.º. n.º 2, do Código Civil, porque essa foi, precisamente, a questão fulcral colocada pela Recorrente, tendo o cuidado de precisar que as afirmações das testemunhas invocadas não seriam, em todo o caso, suficientes para dar como provados os factos como a Recorrente pretendia.

Decisão Texto Integral:


 Processo n.º 2424/21.0T8CBR.C1.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

1. Relatório

AA intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Porserjanota Unipessoal, Lda. peticionando que fosse decidido o seguinte:

“a) declarado resolvido por justa causa, por iniciativa da Autora/Trabalhadora, o contrato de trabalho celebrado entre Autora e Ré, condenando-se a Ré a reconhecê-lo;

b) E consequentemente, condenada a Ré a pagar à Autora a título de indemnização o valor correspondente a 45 dias de trabalho por cada ano de antiguidade no valor global de 5.778, 75 € (cinco mil setecentos e setenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos);

c) acrescidos dos valores dos proporcionais relativos a férias, não gozadas, subsídios de férias e de Natal do ano da cessação, no valor de 1.249,51 € (mil duzentos e quarenta e nove euros e cinquenta e um cêntimos);

d) Condenada ainda a Ré, a pagar à Autora os valores a ela devidos, a título de créditos laborais devidos e não pagos, a saber:

d1) Remuneração base em falta, no valor global de 7.486,00 € (sete mil quatrocentos e oitenta e seis euros);

d2) Subsídios de Férias e Natal em falta, no valor global de 4.828,83 € (quatro mil oitocentos e vinte oito euros e oitenta e três cêntimos);

d3) Subsídio para falhas em falta, no valor de 2.034,50 € (dois mil e trinta e quatro euros e cinquenta cêntimos);

d4) Férias não gozadas não pagas, no valor global de 8.527,43 € (oito mil quinhentos e vinte sete euros e quarenta e três cêntimos);

d5) Subsídio de Domingo não pago, no valor global de 3.727,55 € (três mil setecentos e vinte sete e cinquenta e cinco cêntimos);

d6) Feriados trabalhados e não pagos, no valor global de 1.890,00 € (mil oitocentos e noventa euros);

d7) Trabalho suplementar prestado entre os anos de 2014 e 2020 e não pago, no valor global de 34.055,86 € (trinta e quatro mil e cinquenta e cinco euros e oitenta e seis cêntimos);

e) todos estes valores acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data do respetivo vencimento até efetivo e integral pagamento”.

A Ré contestou defendendo-se por exceção de prescrição e de abuso de direito e impugnação e deduziu reconvenção, requerendo a declaração de cessação do contrato de trabalho por abandono da Autora e a condenação da Autora na devolução de retribuições no valor de €3.810,00 e no pagamento de indemnização por danos morais.

A Autora respondeu à matéria de exceção e da reconvenção, concluindo nos seguintes termos:

A. Requer-se a vossa Excelência se digne declarar a cessação do contrato de trabalho, com efeitos reportados a janeiro de 2020, em função do Abandono de Trabalho da A.

B. Em consequência deve a A. ser condenada em reconvenção ao pagamento, que mais não significa a devolução dos valores que lhe foram indevidamente processados no valor de 3810.00€ (três mil oitocentos e dez euros)

C. E ainda assim no pagamento de uma indemnização por danos morais, no valor de 10.000€ (dez mil euros)”.

A reconvenção foi liminarmente indeferida na parte referente ao pedido de compensação por danos morais.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

Em 03.05.2022, o Tribunal de 1ª Instância decidiu o seguinte:

“I-Julgo a ação totalmente improcedente e absolvo Porserjanota Unipessoal, Lda. de todos os pedidos formulados por AA;

II-Julgo a reconvenção totalmente improcedente e absolvo AA de todos os pedidos formulados por Porserjanota Unipessoal, Lda.”.

Inconformada a Autora interpôs recurso de apelação.

O Tribunal da Relação de Coimbra, em 09.11.0222, considerou a apelação improcedente.

Novamente inconformada a Autora veio interpor recurso de revista como revista excecional e subsidiariamente como revista nos termos gerais.

No seu recurso de revista a Recorrente impugna, desde logo, a decisão do Acórdão recorrido de rejeitar o seu recurso em matéria de facto por ter considerado que a Autora impugnou “em bloco” uma série de factos (mormente os factos 11 a 16) dados como provados e não cumpriu os ónus que lhe eram impostos pelo artigo 640.º (pode ler-se no Acórdão recorrido: “não individualizou em relação a cada um dos pontos de facto impugnados os meios de prova que sustentam o seu pedido de alteração, fazendo alusão a tais meios de prova de forma conjunta e misturada”). A Recorrente afirma, a propósito, que “indicou os concretos pontos da matéria de facto que considerou mal julgados – (pontos 11º a 16º dos factos provados e pontos 3º a prova que entendeu mal valorados, fornecendo a indicação da sessão onde foram prestados os depoimentos das testemunhas que, a seu ver, impunham decisão diferente, com referência ao início e termo dos mesmos, transcrevendo, inclusive, as passagens dos depoimentos que, no seu entender, levariam a decisão diversa conforme se constata das alegações de recurso nomeadamente em sede de conclusões (cfr. pontos 1º a 4º, 11º a 15º das conclusões de recurso de apelação)” (Conclusão 3.ª do recurso de revista).

Quanto aos pontos 11º a 16º da matéria de facto dada como provada a Recorrente considera que a mesma não foi referida pelos depoimentos das testemunhas.

Reiterou que “identificou os concretos pontos da matéria de facto que considerou incorretamente julgados bem como indicou os depoimentos, fornecendo a indicação da sessão onde foram prestados bem como identificando cada um dos registos áudio porquanto se nada foi dito, sobre tal matéria, pelas aludidas testemunhas, não poderia ter agido de outra forma” (Conclusão 5.ª)

Invocou, igualmente, uma nulidade por omissão de pronúncia do Acórdão recorrido na decisão atinente à impugnação da matéria de facto dada como não provada, por não ter reapreciado a prova testemunhal indicado e o depoimento de parte, restringindo-se à questão de natureza substantiva (Conclusão 13.ª), relativamente aos factos 3 a 32 do elenco de factos dados como não provados. Sublinhe-se que essa é a nulidade invocada nas Conclusões do recurso (a referente à alegada não apreciação da impugnação quanto aos factos não provados), mas no requerimento de recurso (na parte inicial antes da motivação), a Recorrente invoca também a nulidade do Acórdão na parte em que decidiu rejeitar a impugnação da matéria de facto quanto aos factos provados:  “ Com efeito, ao ter rejeitado o recurso da matéria de facto - quanto aos factos considerados provados - e ao não ter apreciado, a matéria de facto sob impugnação – quanto aos factos considerados não provados - incorreu o Acórdão em nulidade nos termos do disposto nos arts. 615º nº 1 d) e 666º ambos do C.P.Civil, o que expressamente se invoca como comanda o disposto no art. 77º do C.P.Trabalho.”

Neste Tribunal, no despacho que admitiu o recurso com efeito meramente devolutivo decidiu-se igualmente que “[o] recurso incide sobre a rejeição pelo Tribunal da Relação do recurso de apelação em matéria de facto, tanto no que toca à impugnação dos factos dados como provados, quer quanto aos factos dados como não provados. Ora em relação a essa decisão que é o objeto do recurso não se pode falar em “dupla conformidade”, tanto mais que tal decisão foi tomada pela primeira vez pelo Tribunal da Relação”, pelo que o recurso foi admitido em termos gerais e não como revista excecional.

Nesse despacho afirmou-se, também, que “[a] Recorrente invoca, ainda, uma nulidade (“ao ter rejeitado o recurso da matéria de facto – quanto aos factos considerados provados – e ao não ter apreciado a matéria de facto sob impugnação – quanto aos factos considerados não provados –incorreu o Acórdão em nulidade nos termos do disposto nos artigos 615.º n.º 1 d) e 666.º ambos do C.P.Civil”), mas atinente à mesma decisão, não sendo indispensável ordenar a baixa do processo (artigo 617.º, n.º 5, do CPC)”.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT, o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

2. Fundamentação

De Facto

Foram os seguintes os factos dados como provados nas instâncias:

1. A ré é uma sociedade unipessoal por quotas cujo escopo social é o comércio de carnes e seus derivados e assamento de leitões;

2. BB figura como único sócio e gerente da ré;

3. Autora e sócio-gerente da ré casaram em 15 de julho de 1989;

4. Por sentença proferida em 19 de fevereiro de 2021 foi decretada a dissolução, por divórcio, do casamento entre a autora e o sócio-gerente da ré;

5. O estabelecimento M... explorado pela ré não encerra ao público em nenhum dos dias da semana;

6. Desde 10 de outubro de 2014 a autora desempenhou as seguintes funções ao serviço da ré, no estabelecimento M...:

- Contactos comerciais com fornecedores e clientes;

- Tratamento de contabilidade;

- Preparação de leitões para assamento (incluindo preparação de massa para o respetivo tempero);

- Distribuição dos leitões assados junto do público e outros clientes;

- Cortadora de carnes verdes (preparação dos leitões para assamento);

- Cozinheira (preparação dos produtos utilizados no molho);

- Limpeza das instalações e copa;

- Caixa (recebimento das quantias devidas pelos clientes, no balcão e nas entregas);

7. Autora e ré não celebraram contrato de trabalho escrito;

8. Autora e sócio-gerente da ré eram os únicos que figuravam no quadro de trabalhadores da ré;

9. Autora e sócio-gerente da ré eram auxiliados por pessoa contratada para proceder à limpeza geral do estabelecimento à segunda-feira (dia de menor movimento);

10. e por outras contratações pontuais para auxílio nas épocas de maior movimento, designadamente, nos meses de verão (festas de casamentos e batizados) e nas alturas festivas do fim do ano, Natal e da Páscoa;

11. Autora e sócio-gerente da ré geriam conjuntamente o dinheiro da sociedade ré;

12. Autora e sócio-gerente da ré decidiam da contratação de trabalhadores para os auxiliar nas épocas de maior movimento do estabelecimento;

13. Autora e sócio-gerente da ré definiam o que ambos auferiam como contrapartida pelo exercício das suas funções ao serviço da ré;

14. A autora tinha cartão bancário da ré;

15. A autora não estava obrigada a justificar as suas faltas ao serviço;

16. Nos dias em que não havia encomendas de leitões, a autora não trabalhava e não se deslocava às instalações da ré;

17. No dia 2 de agosto de 2020, pelas 8 horas, nas instalações do estabelecimento M..., o sócio-gerente da ré e o filho CC, desferiram murros e pontapés na autora e expulsaram-na das instalações;

18. No dia 2 de agosto de 2020 a autora participou criminalmente contra o gerente da ré e o filho de ambos, CC, nos termos que constam do auto de notícia junto de fls. 47 a 49 cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos;

19. Na sequência da participação criminal referida em 18.º, corre termos no DIAP ... o processo de inquérito n.º 64/20....;

20. Na sequência do evento descrito em 17.º, no dia 4 de agosto de 2020, a autora submeteu-se a exame médico-legal no INML ... e apresentava as seguintes lesões:

- Membro superior direito: no terço médio da face posterior do antebraço equimose discretamente arroxeada, medindo 3 cm de cumprimento por 1 cm de largura; na face posterior da região correspondente ao 1.º metacárpico do primeiro dedo, equimose arroxeada medindo 2 cm de diâmetro;

- Membro superior esquerdo: no terço médio da face anterior do braço, 3 equimoses arroxeadas, arredondadas, medindo 1 cm de diâmetro cada uma;

- Membro inferior esquerdo: no terço médio da face lateral da coxa equimose arroxeada medindo 20 cm de diâmetro;

21. A autora remeteu à ré a carta datada de 10 de agosto de 2020 junta a fls. 54 cujos dizeres dou por integralmente reproduzidos, da qual consta, designadamente:

Assunto: Resolução de contrato de trabalho com justa causa

AA (…), trabalhadora dessa empresa, venho por este meio comunicar a resolução do meu contrato de trabalho com justa causa, nos termos do n.º 2, alínea f), do artigo 394.º do Código do Trabalho, por ofensa à integridade física e moral, contra si no dia 2 de agosto de 2020, conforme participação efetuada junto da GNR de ....

Mais solicito a emissão do modelo 5044, para efeitos do desemprego, no prazo de 5 dias úteis, como impõe o artigo 341.º do Código do Trabalho e artigo 43.º do DL n.º 220/2006, de 3 de novembro.

Bem como solicito o pagamento de todos os créditos laborais, incluindo vencimentos, prestações complementares, subsídios de férias, subsídios de Natal, que sejam devidos na sequência da cessação do contrato de trabalho e a indemnização prevista nos termos apregoados pelo artigo 396.º do Código do Trabalho (…);

22. A carta referida em 21.º foi devolvida por a ré não ter procedido ao seu levantamento;

23. Em 7 de setembro de 2020 a autora reenviou à ré a carta referida em 21.º, por correio simples, a qual não foi devolvida ao remetente;

24. A autora nunca foi alvo de processo disciplinar instaurado pela ré;

25. A ré não remeteu à autora carta invocando eventual situação de abandono de trabalho;

26. Após o dia 2 de agosto de 2020 a autora não voltou às instalações da ré para prestar trabalho;

27. A autora desempenhou as funções descritas em 6.º para a ré desde 10 de Outubro de 2014, em dias de semana, sábados, domingos e feriados e em horários não concretamente apurados;

28. A ré declarou à Segurança Social as seguintes quantias referentes a salários auferidos pela autora:

» ano de 2014: € 505,00;

» ano de 2015: € 505,00 (janeiro a dezembro);

» ano de 2016: € 530,00 (janeiro a dezembro);

» ano de 2017: € 557,00 (janeiro a dezembro);

» ano de 2018: € 580,00 (janeiro a dezembro);

» ano de 2019: € 600,00 (janeiro a dezembro);

» ano de 2020: € 635,00 (janeiro a junho);

29. A autora esteve de baixa médica desde 29 de dezembro de 2019 até 5 de fevereiro de 2020;

30. Desde janeiro até 2 de agosto de 2020, a ré não pagou à autora quantias a título de retribuição mensal;

31. A ré nunca pagou à autora quantias a título de subsídio de falhas, trabalho suplementar, trabalho noturno e trabalho prestado em dias de descanso;

32. A ré não pagou à autora proporcionais da retribuição de férias e dos subsídios de férias e de Natal relativos ao ano de 2020;

33. A ré não pagou à autora subsídios de férias referentes aos anos de 2015, 2016, 2017 e 2020;

34. A ré não pagou à autora subsídios de Natal referentes aos anos de 2016, 2018 e 2019;

35. A autora nasceu em .../.../1963;

36. Sofre de ..., o que a obriga à toma de medicação prolongada;

37. e que motivou a emissão de atestado médico de incapacidade multiuso, em 13 de maio de 2003, tendo-lhe sido atribuída uma desvalorização de 60% nos termos da Tabela Nacional de Incapacidades (DL 341/93 de 30 de setembro), por doença do foro neurológico identificada no Cap. III, número 5.2.3.1., al. a);

38. O gerente da ré foi internado no serviço de medicina interna do C... em agosto de 2019 e admitiu-se diagnóstico de hepatite alcoólica;

39. Entre autora e gerente da ré existem, pelo menos, três processos judiciais em curso relativos a violência doméstica;

40. Quando os filhos de ambos eram menores, foram vários os processos de acompanhamento e proteção de menores relativos aos mesmos;

41. Correu termos no Tribunal de Família de Menores ... o processo de divórcio litigioso da autora e do gerente da ré;

42. Corre termos Tribunal de Família de Menores ... o processo de partilha dos bens comuns do extinto casal da autora e gerente da ré;

De Direito

As questões colocadas no presente recurso são as seguintes:

No seu recurso de apelação, em sede de impugnação da matéria de facto, a Autora satisfez, ou não, os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640.º do CPC?

E verifica-se, ou não, a aludida omissão de pronúncia do Tribunal da Relação quanto à impugnação da decisão respeitante aos factos dados como não provados, mais precisamente, os factos 3 a 32 do elenco de factos dados como não provados?

Quanto àquela primeira questão, o Acórdão recorrido afirmou o seguinte:

“ (…) Importa notar que no caso de ser impugnado mais do que um facto de entre os enunciados na decisão fáctica impugnada, a delimitação do âmbito probatório do recurso deve efetuar-se de forma individualizada em relação a cada um dos pontos da matéria de facto impugnada; isto é, o recorrente tem de indicar, circunstanciadamente, os concretos meios de prova relevantes em relação a cada um dos factos impugnados – neste sentido, acórdãos do STJ de 5/9/2018, processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, de 20/12/2017, no processo 299/13.2TTVRL.G1.S2, de 7/7/2009, processo 322/09.5YFLSB, acórdãos Relação de Guimarães de 19/4/2018, na apelação 7620/15.7T8GM.G1, de 28/6/2018, processo 123/11.0TBCBT.G1, da Relação do Porto de 11/4/2018, processo 512/17.7T8VFR.P1, de 30/5/2018, processo 6676/17.2T8PRT.P1, da Relação de Évora de 8/3/2018, processo 1498/16.0T8BJA-A.E1, da Relação de Coimbra de 8/9/2015, processo 1262/13.9TBFIG.C1, de 8/4/2014, processo 998/11.3TBSCD-K.C1

A título de exemplo no Ac. STJ de 20.12.2017, proc. 299/13.2TTVRL.G1.S2, pode ler-se: “I- A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos. II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna”.

E ainda no passado mês de Setembro, o STJ (Secção Social) voltou a afirmar essa posição, no Ac. de 21-09-2022, proc. 1996/18.1T8LRA.C1.S1, em cujo sumário se pode ler: «A impugnação da matéria de facto “em bloco” viola o disposto no artigo 640.º do CPC, mormente quando não está em causa um pequeno número de factos ligados entre si e um número reduzido de meios de prova (por exemplo, o mesmo depoimento), mas um amplíssimo conjunto de factos e numerosos meios de prova».

Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Processo do Trabalho, p. 67), “… procurando sintetizar o sistema sempre que o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto: (…) b) Quando o recorrente funde a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; ...” – no mesmo sentido e do mesmo autor, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, p. 132.

As referidas exigências no cumprimento do ónus de impugnação devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Como refere também Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, págs. 128 e 129), trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.

Há que reconhecer que, à luz da jurisprudência deste Tribunal, a fundamentação é inteiramente exata e procedente, não se admitindo, em princípio, uma impugnação em bloco, com a indicação a esmo e para um conjunto de factos, dos meios de prova em que o Tribunal se deveria basear para outra decisão. Tem-se, apenas, decido que “é excessiva a rejeição da impugnação da matéria de facto feita em «blocos» quando tais blocos são constituídos por um pequeno número de factos ligados entre si, tendo o Recorrente indicado os meios de prova com vista à sua pretensão” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido a 27.10.2021, no âmbito do processo n.º 1372/19.9T8VFR.P1-A.S1, Relator Conselheiro Chambel Mourisco).

Mas tal situação não ocorre no caso vertente: não são factos ligados entre si, mas sim, ao invés, factos claramente autónomos, saber se a Autora tinha que justificar as faltas (facto 15), por exemplo, ou se tinha um cartão bancário da Ré (facto 14).

E isto mesmo foi sublinhado no Acórdão recorrido: “[os] seis factos considerados assentes e impugnados no recurso têm, cada um deles, um distinto recorte de realidade e não têm entre si uma verdadeira interligação dependente (cada um pode ser considerado, por si mesmo, independentemente dos demais)”.

Resultando da Conclusão 3 do recurso de apelação que a impugnação da decisão quanto aos factos provados foi feita em bloco, justifica-se a rejeição do recurso por incumprimento do ónus previsto no artigo 640.º do CPC.

Ainda que a questão da nulidade por omissão de pronúncia quanto à decisão sobre os factos dados como provados não tenha sido referida nas Conclusões, diga-se que não há aqui qualquer nulidade já que o Tribunal se pronunciou expressamente sobre a questão (poderia, outrossim, é ter havido, um erro de julgamento, mas como se disse não foi esse o caso).

Relativamente à invocação da nulidade por omissão de pronúncia do segmento decisório respeitante à impugnação de factos dados como não provados, importa salientar, como destacou o Ministério Público no seu douto Parecer emitido junto deste Tribunal, que tal nulidade só ocorre quando o Tribunal não conhece, de todo, a questão suscitada pela parte, não desencadeando tal nulidade o facto de o Tribunal não ter conhecido e respondido a todos os argumentos invocados pela mesma. Por outro lado, no Acórdão recorrido pode ler-se, a este respeito, o seguinte:

“O conjunto desses factos [factos dados como não provados 3 a 32] oferece uma similitude relacionada com o fundamento da impugnação ser de ordem essencialmente jurídico. Ou seja, a apelante entende que, quanto a tais factos, deve funcionar a inversão do ónus da prova prevista no art. 344.º n.º 2 do Código Civil, já que para prova do trabalho suplementar, trabalho noturno e do trabalho prestado em dias de descanso, requereu a junção pela ré do registo de trabalho suplementar e da respetiva comunicação à ACT, tendo o tribunal determinado tal junção, mas a ré não cumpriu tal determinação nem apresentou qualquer justificação para tal omissão. Este é o fundamento atendível na unificação apreciativa, já que a circunstância também invocada de duas das testemunhas terem genericamente feito referência ao volume habitual de trabalho da autora não é suficiente para apoiar a prova de factos bem concretos como os que estão em causa”.

Sublinhe-se, antes de mais, que o Acórdão recorrido tratou da questão da inversão do ónus da prova à luz do disposto no artigo 344.º. n.º 2, do Código Civil, porque essa foi a questão fulcral colocada pela Recorrente nesta sede, como decorre das Conclusões 6 a 10 e 16. E o Tribunal, ao acrescentar que as referências feitas no depoimento das testemunhas ao volume de trabalho habitual da autora não são suficientes para fornecer a prova de factos concretos como os que estão em causa, demonstra que não houve qualquer omissão de pronúncia. De resto, a própria Autora no seu recurso de apelação defendia que o depoimento das testemunhas permitiria dar como provados os factos 5 e 27 do elenco dos factos dados como não provados (Conclusão 14 do recurso de apelação) quando pretendia dar como provados todos os factos 3 a 32.

Não há, pois, qualquer nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia.

Decisão: Negada a revista

Custas pela Recorrente

Lisboa, 10 de maio de 2023

Júlio Gomes (Relator)

Ramalho Pinto

Domingos José de Morais