Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5800/12.6TBOER.L1-A.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
INVALIDADE
PROPRIETÁRIO
TERCEIRO
BOA FÉ
AQUISIÇÃO
REGISTO PREDIAL
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 04/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS/ NEGÓCIO JURÍDICO / INVALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / AMPLIAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO.
Doutrina:
- Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 151.
- Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito, Almedina, Coimbra, 1992, pp. 140 e 143, 601 e ss., n.º 1003; «Efeitos do registo – terceiros – aquisição a “non domino”», RDE,1982, p.139.
- Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo, A protecção do terceiro adquirente de boa fé, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 332, 336, 338, 481.
- Orlando de Carvalho, «Terceiros para efeitos de registo», BFD, Vol. LXX,1994, p. 101.
- Rui de Alarcão, «Invalidade dos negócios jurídicos. Anteprojecto para o novo Código Civil», BMJ, n.º 89, 1959, pp. 245, 247, 611.
- Vaz Serra, «Hipoteca», BMJ, n.º 62, Jan. 1957, p.7.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 289.º, 291.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 682.º, N.º 3.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGO 5.º.
D.L. N.º 54/75, DE 12-02, ALTERADO PELA ÚLTIMA VEZ PELA LEI N.º 39/2008, DE 11-08: - ARTIGO 29.º.
Sumário :
I - A aplicação da norma contida no art. 291.º do CC pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: (i) declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo; (ii) aquisição onerosa; (iii) por um terceiro de boa fé; (iv) registo da aquisição a favor do terceiro; e (v) anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da ação de nulidade ou de anulação.

II - Ainda que verificados estes requisitos, a proteção do terceiro não funcionará se outra for a causa de invalidade, que não a falta de titularidade do alienante, e se a ação for proposta ou registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (art. 291.º, n.º 2), sendo prazo de caducidade que começa a contar a partir da data da celebração do primeiro negócio inválido, que dá origem à cadeia.

III - Inserto num sistema de registo meramente declarativo, o art. 291.º do CC não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido, excluindo-se da sua aplicação o caso em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.

IV - Tendo a autora alegado que a cadeia de negócios inválidos foi iniciada por um negócio celebrado por um falso procurador, este elemento factual e jurídico é decisivo para se saber se funciona ou não a proteção do terceiro adquirente de boa fé, impondo-se a ampliação da matéria de facto, com inclusão deste, em ordem a constituir base suficiente para a matéria da decisão de direito.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório

No 1.º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de Oeiras, AA Portugal - …, Lda, propôs ação declarativa de condenação com a forma de processo ordinário contra BB, Lda, CC Bank (Portugal) S.A., DD, Banco EE, S.A. e FF, formulando os seguintes pedidos:

a) Serem condenados os Réus a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre o veículo de marca M..., modelo Classe … ….. 2.1, de matrícula -GP-, com a consequente restituição definitiva do mesmo, em bom estado de funcionamento e conservação, e dos seus documentos;

b) Serem cancelados todos os registos de propriedade, posteriores ao registo da Autora, relativos ao veículo de marca M..., modelo Classe …. 2.1, de matrícula -GP-.

Os réus Banco EE, CC Bank e DD contestaram, tendo a autora replicado. 

Entretanto, foi proferida sentença homologatória da desistência do pedido, relativamente ao réu Banco EE, S.A., que foi absolvido do pedido.

Foi proferido despacho saneador, onde se entendeu conterem os autos todos os factos necessários para que fosse proferida sentença de mérito, sem necessidade de enunciação dos temas da prova, julgando-se, desde logo, a ação improcedente e tendo-se absolvido os demais réus do pedido.

Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação daquela sentença, tendo o Tribunal da Relação proferido acórdão em que negou provimento ao recurso, confirmando a sentença apelada, por unanimidade e sem divergir da fundamentação utilizada pela 1.ª instância.

Novamente inconformada, a autora interpõe revista excecional para este Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do art. 672.º, n.º 1. al. c) do CPC, a qual foi admitida pela formação a que se refere o art. 672.º, n.º 3 do CPC, nos termos do acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de outubro de 2015, que decide que a única questão cuja apreciação excecional deve ter lugar é a seguinte:

 - Saber se um negócio nulo, por falta de legitimidade para transferir a propriedade por parte do alienante e as subsequentes alienações às quais se estende a nulidade do negócio primitivo, são ou não oponíveis ao verdadeiro proprietário, que não foi parte naqueles negócios, assistindo-lhe o direito de reivindicar a coisa, em quaisquer circunstâncias, apesar do registo a favor dos ulteriores adquirentes, não sendo aplicável o regime estabelecido no art. 291.º do Código Civil.

Na sua alegação de recurso, a autora formula as seguintes conclusões:

A) A venda de coisa alheia é nula sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar;

B) Não tendo a autora, verdadeira proprietária do veículo automóvel com a matricula -GP-, transmitido à 1.ª ré, ora 1.ª recorrida, o seu direito de propriedade sobre o referido veículo, carece esta de o transmitir a terceiros, porque não se pode transmitir o que não se tem;

C) Se o fizer – como veio a fazer – a venda é nula, nos termos do artigo 892.º do Código Civil;

D) Nulidade que se estende às vendas subsequentes;

E) Esta nulidade pode ser invocada entre as partes intervenientes (inter alios acta) mas não perante quem não interveio nos negócios e lhes é estranho; a recorrente, verdadeira proprietária, não interveio nos negócios nulos pelo que não lhe é oponível tal nulidade;

F) Aliás, não tendo intervindo nos negócios nulos, é-lhe indiferente que os actos nulos subsistam ou seja declarados nulos ou anuláveis, porque, relativamente a si, são ineficazes, sendo insusceptíveis de produzir efeitos na sua esfera jurídica, em prol da defesa do direito de propriedade que lhe assiste;

G) Ora, pressupondo quer o art. 892.º, quer o art. 291.º, ambos do Código Civil, nulidades e anulabilidades, inoponíveis à recorrente, os seus regimes não lhe são aplicáveis, por não ter sido parte nos negócios;

H) Consequentemente, não é exigível o registo da acção nos três anos subsequentes à conclusão do primitivo negócio nulo, referido no n.º 2 do artigo 291.º do Código Civil, para salvaguarda da propriedade do dominus – a recorrente, no caso concreto.

I) As nulidades previstas nos referidos artigos são mitigadas, pois excepcionam o regime geral das invalidades previsto nos arts 285.º e seguintes do Código Civil, pelo que não comportam nos termos do art. 11.º do Código Civil, aplicação analógica, no sentido de se estenderem ao dominus alheio ao negócio;

J) O regime aplicável ao verdadeiro proprietário que não interveio no negócio é o da ineficácia, ipso iure, podendo reivindicar, ao abrigo do art. 1311.º do Código Civil, o seu direito de propriedade em qualquer momento, de quem não possua título que legitime a sua posse, incluindo de quem tem a propriedade inscrita no registo em seu nome;

K) Nos termos atrás referidos deve interpretar-se o art. 291.º do Código Civil e, consequentemente, concluir-se pela sua não aplicação ao caso dos autos; Tratando-se de ineficácia dos efeitos jurídicos dos negócios nulos, em relação à autora, deve esta accionar o mecanismo da reivindicação, previsto no art. 1311.º do Código Civil, o que, in casu, sucedeu;

L) Neste sentido, decidindo sobre a mesma questão fundamental de direito no âmbito da mesma legislação em vigor, se julgou nos Acórdãos – fundamento cujas cópias aqui se juntam, ao abrigo da alínea c) do número 2 do artigo 672.º do Código de processo Civil, sob os Docs 1, 2 e 3;

M) Ou seja, afastou-se a aplicação ao verdadeiro proprietário do artigo 291.º do Código Civil;

N) Porém, no Acórdão ora em recurso julgou-se em sentido contrário, aplicando-se ao caso concreto o regime do artigo 291.º do Código Civil, como resulta do seu traslado, aqui junto;

O) Atenta a natureza fundamental do direito de propriedade e a expressão económica dos negócios que este envolve revela-se imprescindível para a segurança do comércio jurídico, a apreciação da questão, entendendo-se preenchidos os requisitos enunciados nas alíneas a), b) e c) do número 2 do art. 672.º do Código de processo Civil;

P) pelo que deverá ser admitida e apreciada a presente revista excepcional, sendo-lhe concedido provimento no sentido defendido pela Jurisprudência das Relações e do Supremo Tribunal de Justiça aqui junta sob. os Docs. 1, 2 e 3». 

 O réu CC – Sucursal em Portugal apresentou contra--alegações, em que pede que seja negado provimento à revista excecional e mantido o acórdão recorrido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Fundamentação de facto

Com base nos documentos juntos aos autos, no que respeita aos registos do automóvel referentes ao veículo -GP-, reivindicado pela autora, deu o Tribunal da Relação como provados os seguintes factos:

 

1 - Em 16/10/08, foi registada a propriedade do veículo a favor de M...- B… Porugal SA (fIs.59 a 62 e 162);

2 - Em 12/11/08, foi registada a propriedade a favor da autora, AA Portugal - …, Ld.ª, com base em contrato verbal de compra e venda celebrado em 21/10/08, conforme declaração da vendedora M…-B… Portugal SA (fls.63 a 66 e 162);

3 - Em 10/07/09, foi registada a propriedade a favor da ora 1.ª ré, BB - …, Ld.ª, com base em contrato verbal de compra e venda celebrado em 29/12/08, conforme declaração de venda de GG, na qualidade de procurador, com poderes para o ato, da ora autora (fIs.67, 68 e 162);

4 - Em 16/07/09, foi registada a propriedade a favor do 3.º réu, DD, com base em contrato verbal de compra e venda celebrado em 16/7/09, conforme declaração da ora l.ª ré (fls.69 a 71 e 162);

5 - Em 2/10/09, foi registada a propriedade a favor do 4.º réu, Banco EE, S.A, com base em contrato verbal de compra e venda celebrado em 21/9/09, conforme declaração do 3.º réu, DD (fls.72 a 74 e 162);

6 - Em 2/10/09, foi registada a propriedade a favor do 5.º réu, FF, com base em contrato verbal de compra e venda celebrado em 21/09/09, conforme declaração do 4.º réu, Banco EE, S.A. (fls.75 a 77 e 162);

7 - Em 27/12/10, foi registada a propriedade a favor da 2.º réu, CC Bank, com base em contrato de compra e venda, celebrado em 21/12/10, com HH, Unip., Ld.ª (fl8.155, 156 e 162);

8 - Em 27/12/10, foi registado o encargo-locação financeira do veículo, sendo locador CC Bank e locatário DD (fls.156, 157 e 162).

III – Fundamentação de direito

1. As instâncias decidiram, com base nestes factos, que não era necessário apurar a restante factualidade alegada pela autora relativa à intervenção de um falso procurador que, vendendo o automóvel em seu nome, mas sem poderes para o ato, teria dado lugar à cadeia de negócios nulos. Entenderam que, não tendo sido registada a ação de reivindicação, dentro de um prazo de três anos após o primeiro negócio nulo da cadeia, o terceiro adquirente de boa fé beneficiaria da aquisição a non domino regulada pelo art. 291.º, n.º 1, do Código Civil, cujos requisitos consideraram verificados: nulidade de negócio jurídico relativo a um bem móvel sujeito a registo, aquisição a título oneroso; boa fé do terceiro adquirente; registo da aquisição.

A fundamentação do acórdão recorrido foi a seguinte:

«Ora, no caso dos autos, a autora não exibe um título de aquisição derivada do último proprietário inscrito regularmente no registo, sendo que os 2°, 3° e 5° réus apresentaram títulos de aquisição com datas posteriores à inscrição do direito da autora no registo e registaram tais aquisições, posteriormente, como resulta dos documentos juntos aos autos, atrás referenciados (em relação à 1.ª ré, o título de aquisição é o contrato que a autora considera nulo, por ter sido celebrado por pessoa sem poderes de representação e por não ter sido por ela ratificado - cfr. o art.268º, n.º 1, do C.Civil).

Logo, tinha a autora necessidade de invocar, como invocou, e de obter, a declaração de nulidade do título apresentado pela 1.ª ré, que, como alegou, terá sido objecto de uma falsificação.

(…)

                “ (…) pelo que haverá que analisar se, no caso, os direitos dos 2°, 3° e 5° réus, como terceiros, podem ou não vir a ser reconhecidos. 

O que passa, desde logo, pela questão de saber se a presente acção foi proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio cuja declaração de nulidade se pretende, atento o disposto no citado art.291.º, n.º2.

Assim, dispõe o n.º 1, daquele artigo, que:

«A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio».

Acrescentando o n.º2, do mesmo artigo, que:

«Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio». 

Deste modo, os efeitos extintivos característicos da nulidade ou anulação do contrato mantêm-se plenamente durante os três anos posteriores à conclusão do negócio impugnado, desde que a acção, estando sujeita a registo, seja efectivamente registada.

Ou seja, passado esse período, se o contrato nulo ou anulado respeitar a bens imóveis ou a móveis sujeitos a registo e esses bens tiverem sido alienados ou onerados a favor de terceiro, que tenha registado a sua aquisição, os efeitos da nulidade ou da anulação podem ter que ceder perante o direito do terceiro adquirente.

Para tal bastará que o registo da aquisição de terceiro seja anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação, que a aquisição tenha sido a título oneroso e que o adquirente tenha agido de boa fé.

Constata-se, pois, que, por um lado, durante os três anos posteriores à conclusão de qualquer contrato o registo não defende o titular do direito formalmente inscrito contra os efeitos da nulidade ou da anulação do contrato que tenha servido de pressuposto à sua aquisição, o que confirma a falta de valor constitutivo do registo.

Mas que, por outro lado, se permite ao titular da inscrição efectuada no registo, embora só a partir de certo período posterior à conclusão do contrato nulo ou anulável (três anos), fazer prevalecer o seu direito real referente ao imóvel ou ao móvel sujeito a registo sobre o direito, relativo à mesma coisa, do beneficiário da nulidade ou da anulação, o que representa uma significativa conquista do registo contra o regime tradicional da nulidade e da anulação.

Ora, no caso dos autos, a acção não foi proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio, já que este terá ocorrido em 29/12/08 e a acção foi proposta em 13/7/12.

Consequentemente, os efeitos da nulidade sempre teriam que ceder perante os direitos dos terceiros adquirentes, que registaram as suas aquisições, feitas a título oneroso e de boa fé.

Isto é, no caso sub judice, a lei atribui àqueles adquirentes uma protecção tal que se sobrepõe ao direito do verdadeiro titular.

Logo, a acção não tinha que prosseguir com a realização do julgamento, para apreciação das nulidades alegadas.  

E não se diga que os réus não integram o conceito de «terceiros de boa fé», para efeitos do disposto no art. 291.º, por ter cessado a sua boa fé com a citação e por não terem adquirido de um autor comum. 

Assim, por um lado, a boa fé, que consiste na ignorância de que a coisa vendida não pertence ao vendedor, apura-se no momento da celebração do contrato (cfr, o n.º 3, do art. 291°). Ou seja, o conhecimento posterior de que a coisa é alheia não afecta as consequências da boa fé inicial (cfr. Raul Ventura, ob. cit., pág. 313 e Paulo Olavo Cunha, ob.cit., pág. 452).

Por outro lado, o conceito de terceiro (de boa fé) usado no art.291°, não coincide com o termo terceiro utilizado no art.5°, do Código do Registo Predial, porquanto os problemas versados numa e noutra disposição legal são inteiramente distintos.

Por conseguinte, além de não ter que prosseguir para julgamento, a presente acção não podia deixar de improceder, como improcedeu, desde logo, no saneador».

2. A disposição do art. 291.º do Código Civil constitui uma norma inovadora do Código Civil de 1966, inserida na Parte Geral, na Secção III, do Capítulo I – Nulidade e anulabilidade do negócio jurídico. Trata-se de uma norma de influência germânica, inspirada no § 892 do BGB (Rui de Alarcão, «Invalidade dos negócios jurídicos. Anteprojecto para o novo Código Civil», BMJ, n.º 89, 1959, p. 245), mas que introduzida num país de registo declarativo e que até há pouco tempo era facultativo, não pode assumir o mesmo significado que assume na ordem jurídica alemã, em que o registo é constitutivo.

O facto de o art. 291.º se enquadrar num sistema de registo declarativo, de mera condição de oponibilidade em face de terceiros, nos termos do art. 5.º do CRPred. (aplicável ao registo automóvel), limita o seu âmbito de aplicabilidade, o qual não pode ser semelhante ao princípio da fé pública do registo no direito alemão.

O registo automóvel, à semelhança do registo predial (as lacunas do regime jurídico do registo automóvel são integradas pelas regras do registro predial, segundo o art. 29.º do DL n.º 54/75, de 12-02 alterado pela última vez pela Lei n.º 39/2008, de 11-08), não supre os vícios do título, ou seja, não supre outros vícios para além da falta de legitimidade do alienante, resultante de uma alienação ou oneração anterior não registada. Neste sentido, o registo não garante ao adquirente que o prédio pertence ao transmitente e não a outrem nem assegura a bondade dos títulos inscritos ou do ato de inscrição. A ser de outro modo, qualquer pessoa, mesmo que tivesse registado o respetivo facto constitutivo, poderia vir a ser expropriada dos seus bens, se alguém conseguisse registar um título falso e posteriormente alienasse o «pseudo-direito» a terceiro de boa fé que registasse a aquisição, o que representaria uma insegurança demasiado grande nas posições jurídicas estáticas (cf. Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo, A protecção do terceiro adquirente de boa fé, Almedina, Coimbra, 2010, p. 332).

Na dupla alienação do mesmo bem, os chamados efeitos centrais do registo (Orlando de Carvalho, «Terceiros para efeitos de registo», BFD, Vol. LXX,1994, p. 101), a prioridade da inscrição registal não protege o terceiro adquirente, se este adquirir de um sujeito que nunca foi proprietário do bem. O registo visa assegurar, não a titularidade efetiva do alienante, mas apenas que o direito a ter existido, ainda se conserva (Vaz Serra, «Hipoteca», BMJ, n.º 62, Jan. 1957, p.7).

Historicamente, o registo foi introduzido em Portugal para constituir um instrumento de pressão à inscrição dos negócios aquisitivos ou constitutivos de direitos reais, acompanhado da consequente sanção para quem não registasse – a inoponibilidade do ato perante terceiros – sanção que criava, nos casos da dupla alienação ou oneração do mesmo bem, o risco da perda do direito a favor de um terceiro de boa fé que registasse em primeiro lugar. Contudo, está ao alcance do titular do direito evitar a perda do seu direito, procedendo ao registo da sua aquisição.

 

O registo nunca teve por objetivo, nas ordens jurídicas em que assume natureza declarativa, constituir um instrumento de proteção perante os vícios do ato inscrito, decorrentes de uma invalidade substancial do próprio ato ou de outro ato anterior da cadeia de negócios.

A função de proteção do terceiro contra os efeitos da invalidade e contra a declaração de nulidade do registo surgiu mais tarde no Código Civil de 1966 e foi importada dos países de origem germânica, onde vigora o sistema do registo constitutivo. Trata-se da proteção do adquirente a non domino prevista e regulada no art. 291.º do Código Civil, e que pressupõe requisitos diferentes dos exigidos para a proteção do terceiro no caso da dupla alienação.

Na invalidade sequencial ou derivada, verifica-se a conclusão de um negócio nulo ou anulável pelo qual aparentemente se alienam direitos, e a seguir, o sujeito que ocupa a posição de adquirente celebra um segundo negócio, que é afetado pela invalidade do primeiro, de modo que também os seus próprios efeitos são prejudicados pelo princípio da retroatividade da declaração de nulidade ou da anulação do primeiro negócio inválido (art 289.º do Código Civil). Há uma cadeia de negócios e uma cadeia de terceiros, que são todos os sub-adquirentes, depois da celebração do primeiro negócio inválido (Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito, Almedina, Coimbra, 1992, p. 605, n.º 1003).

 O art. 291.º protege os terceiros adquirentes de boa fé contra os efeitos retroativos da declaração de nulidade e da anulação do negócio jurídico (Hörster, «Efeitos do registo – terceiros – aquisição a “non domino”», RDE,1982, p.139), operando como uma exceção ao princípio da retroatividade da declaração de nulidade ou da anulação do primeiro negócio de uma cadeia de negócios inválidos, por força do princípio da conservação dos negócios jurídicos (Cf. Hörster, A Parte Geral…ob. cit., pp. 601 e ss, pp. 604 ss).

Os requisitos desta norma são os seguintes:

1. Declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo

2. Aquisição onerosa

3. Por um terceiro de boa fé

4. Registo da aquisição do terceiro

5. Anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da ação de nulidade ou de anulação.

Esta norma jurídica visa resolver um problema de conflito de direitos entre o primeiro alienante, o verdadeiro proprietário, e o terceiro sub-adquirente de boa fé, que desconhecia, sem culpa, o vício do negócio, atuou de forma honesta e com a diligência exigível no tráfico jurídico e registou a sua aquisição.

O contrato entre o alienante não legitimado (que celebrou o primeiro negócio inválido com o verdadeiro titular do direito) e o terceiro de boa fé não pode padecer de outra causa de invalidade para além da falta de titularidade do alienante. Por exemplo, em caso de incapacidade do alienante, o terceiro não está protegido. O artigo 291.º também não protege um terceiro adquirente que, mesmo de boa fé em relação à falta de titularidade do transmitente, tenha usado coação moral ou dolo para concluir o negócio.

O momento relevante para aferir da boa fé é o da data da conclusão do negócio de que o terceiro adquirente é parte, mas a boa fé exigida pela lei (art. 291.º, n.º 3) é uma boa fé em sentido ético, que equipara a ignorância culposa à má fé.

Mesmo mediante a verificação destes requisitos, a proteção do terceiro não funcionará se a ação for proposta ou registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (art. 291.º, n.º 2), entendendo-se que este prazo de caducidade se começa a contar a partir da data da celebração do primeiro negócio inválido, que dá origem à cadeia (Cf. Hörster, A Parte Geral…ob. cit., pp. 140 e 143; Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 151; Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo, ob. cit., p. 611).

A intenção da lei foi a de não levar demasiado longe a protecção de terceiros, pois tal significaria um sacrifício grave dos interessados na nulidade ou na anulabilidade, para além de ter sido considerado que o nosso sistema registal não oferece as garantias de exactidão que oferecem outros sistemas, como o alemão (cf. Rui de Alarcão, «Invalidade dos Negócios Jurídicos, Anteprojecto para o Novo Código Civil», 1959, p. 247). Por isso, a lei usou um conceito ético de boa fé, excluiu a protecção dos terceiros adquirentes a título gratuito e consagrou um período de carência de três anos (art. 291.º, n.º 2).

«O método que fundamentou a decisão legislativa, relativamente a esta questão, terá sido o da ponderação conjunta dos interesses do proprietário na reivindicação do bem, do interesse do terceiro e do interesse colectivo da segurança do tráfico jurídico, que é também, indirectamente, o interesse do proprietário na facilidade de circulação dos seus direitos. A tutela do interesse do proprietário está limitada a um período de três anos decorridos após a conclusão do negócio inválido. A lei pretende, com este prazo, dar uma oportunidade ao verdadeiro proprietário para repor a verdade jurídica material, considerando que, após o decurso do prazo, o seu interesse deixa de merecer protecção. O centro do raciocínio do legislador é o comportamento do verdadeiro titular, justificando-se o sacrifício do direito deste, na sua própria negligência ou inércia em impugnar o negócio inválido, durante um período de três anos, após a sua conclusão» (cf. Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo. A protecção do terceiro adquirente de boa fé, ob. cit., p. 336).

«(…) o fundamento do art. 291.º é a estabilidade dos negócios jurídicos, sofrendo o alienante que deu origem à cadeia de negócios inválidos as consequências de não ter actuado, dentro do prazo de três anos, interpondo a acção de nulidade ou de anulação. A lei faz uma conciliação entre os interesses do verdadeiro proprietário, que pode impor a realidade jurídico-material ao terceiro, durante um prazo de três anos, a contar da data da conclusão do negócio inválido, e os do terceiro sub-adquirente, interessado em salvaguardar a sua aquisição dos efeitos retroactivos da invalidade» (Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo, ob. cit., p. 338).

Contudo, esta proteção opera apenas quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa de terceiro adquirente de boa fé.

A aquisição a non domino prevista no art. 291.º, n.º 1 do Código Civil não permite que, através da intervenção de um terceiro que obtenha um registo falso ou baseado em títulos falsos, fique sanada a nulidade negocial derivada da cadeia transmissiva assim gerada, pois tal solução seria equivalente a admitir a expropriação do verdadeiro titular que não terá meios para se aperceber da fraude por não ter praticado qualquer negócio jurídico que desse origem à cadeia de negócios inválidos (Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo…ob. cit., p. 481).

 

Sendo assim, dentro da lógica de um registo meramente declarativo, o art. 291.º do Código Civil não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido.

3. Para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.

Partindo da premissa acima enunciada, a que mais se adequa ao sistema translativo de direitos reais da ordem jurídica portuguesa e aos efeitos limitados do registo, tem razão a autora quando pede que seja ampliada a matéria de facto para que se averigue a alegada falsificação do registo obtido com base num contrato de compra e venda verbal feito, em seu nome, por um falso procurador.

Não têm razão as instâncias quando entendem que estes factos são irrelevantes para a verificação dos pressupostos do art. 291.º do Código Civil.

 

Tendo a autora alegado que a cadeia de negócios inválidos foi iniciada por um negócio celebrado por um falso procurador, este elemento factual e jurídico é decisivo para sabermos se funciona ou não a proteção do terceiro adquirente de boa fé.

 

 O facto de a autora ter intentado a ação de reivindicação contra o terceiro decorridos mais de três anos após a conclusão do primeiro negócio inválido (prazo de caducidade previsto no art. 291.º, n.º 2), e de esta ação não ter sido registada antes do registo do terceiro, como exige o art. 291.º, n.º 1, não tem relevância se vier a provar-se que a autora não teve intervenção no primeiro negócio da cadeia de negócios inválidos descrito no facto provado n.º 3. 

 

Em consequência, devido à insuficiência dos factos para a decisão, ordena-se a baixa do processo ao tribunal de 1.ª instância, nos termos do art. 682.º, n.º 3 do CPC, para que aí se proceda à enunciação dos temas de prova e ao apuramento da matéria de facto relevante para a decisão de direito, conforme o alegado pela autora.

IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, conceder a revista e revogar o acórdão recorrido, ordenando-se que o processo baixe ao tribunal de 1.ª instância para enunciação dos temas de prova e ampliação da matéria de facto, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 19 de abril de 2016

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Sebastião Póvoas

Alves Velho