Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
764/11.6T4AVR.C2.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
RESOLUÇÃO PELO TRABALHADOR
TRABALHO SUPLEMENTAR
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DO AUTOR. CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA DA RÉ
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS.
DIREITO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS.
DIREITO DO TRABALHO - PRESTAÇÃO DO TRABALHO / RETRIBUIÇÃO E OUTRAS ATRIBUIÇÕES PATRIMONIAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / MULTAS E INDEMNIZAÇÃO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- BAPTISTA MACHADO, «Tutela da Confiança e Venire contra factum proprium», in Obra dispersa, vol. I, p. 416, e in RLJ, n.º 3726 e seguintes.
- MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, p. 275.
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1967, p. 217.
Legislação Nacional:
CCT PUBLICADO NO BTE, 1.ª SÉRIE, N.º 1, DE 8 DE JANEIRO DE 2007: - CLÁUSULA 34.ª.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º2, 334.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC):- ARTIGO 456.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT): - ARTIGO 87.º, N.º2.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT) / 2003: - ARTIGOS 197.º, N.º1, 258.º, N.º5
CÓDIGO DO TRABALHO (CT) / 2009: - ARTIGOS 226.º, N.º1, 268.º, N.º2
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º, 18.º, N.º2.
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 542.º, N.º2, 674.º, N.º3, 682.º
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30 DE MARÇO DE 2006, REVISTA N.º 3921/05, DA 4.ª SECÇÃO.
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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 635/99.
Sumário :
1.  Tendo a auditoria determinada pelo empregador revelado a existência de sistema de pagamento das retribuições, ao autor e a outros trabalhadores, que ocultava as retribuições efectivamente recebidas, em valor muito superior ao que era devido, a participação criminal apresentada contra todos os trabalhadores que beneficiaram desse sistema de pagamento, incluindo o autor, traduz o exercício legítimo de um direito do empregador, não consubstanciando a apresentação de tal participação ofensa à integridade moral, à honra e à dignidade do trabalhador, não ocorrendo, por isso, justa causa para resolver o contrato de trabalho pelo trabalhador.

2.  Tendo-se provado que o trabalhador, nos últimos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho, trabalhou para além do respectivo horário de trabalho, com o conhecimento e sem oposição do empregador, que teve interesse e tirou proveito do trabalho assim prestado pelo trabalhador, embora não se tenha demonstrado a prévia autorização do empregador quanto à prestação de trabalho suplementar, o mesmo não pode deixar de ser remunerado.

3.  Não tendo o empregador deduzido, com dolo ou negligência grave, pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, tendo-se limitado, isso sim, a expor o atinente entendimento jurídico, não se vislumbra fundamento legal para a respectiva condenação como litigante de má fé.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                    I

1. Em 1 de Setembro de 2011, na Comarca do Baixo Vouga, Aveiro, Juízo do Trabalho, 1.ª Secção, AA instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato de trabalho contra BB, S. A., pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia total de € 134.405,35, referindo-se (i) € 1.655, a férias não gozadas, vencidas em 1 de Janeiro de 2011, (ii) € 1.655, a subsídio de férias não gozadas, vencidas em 1 de Janeiro de 2011, (iii) € 827,50, a proporcionais das férias não gozadas no ano da cessação do contrato, (iv) € 827,50, a proporcionais do subsídio de férias no ano da cessação do contrato, (v) € 827,50, a proporcionais do subsídio de Natal no ano da cessação do contrato, (vi) € 61.080,18, a trabalho suplementar prestado nos últimos 5 anos, (vii) € 14.201,67, a trabalho suplementar prestado, aos sábados, nos últimos 5 anos, (viii) € 53.331, a indemnização por violação dos direitos laborais, quantia acrescida de juros de mora desde a data da resolução do contrato até integral e completo pagamento.

Alegou, em suma, que foi admitido como trabalhador da ré, em 1 de Abril de 1987, e que, no dia 30 de Junho de 2011, comunicou-lhe a resolução do contrato de trabalho fundada em ofensa à sua integridade moral, honra e dignidade, aditando que prestou à ré trabalho fora do horário de trabalho, incluindo aos sábados, e que a ré não satisfez os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação.

Realizada a audiência de partes e frustrada a tentativa de conciliação, a ré contestou alegando, em substância, que não existiu justa causa para o autor resolver o contrato de trabalho e que, de todo o modo, caducou o direito à resolução daquele contrato, pois decorreram mais de 30 dias desde que o autor teve conhecimento dos factos invocados como fundamento da resolução e a respectiva comunicação, mais tendo aduzido que a retribuição do autor, antes de 2008, era de montante inferior ao discriminado na petição inicial, que o autor nunca prestou trabalho para além das 40 horas semanais e que processou as prestações pecuniárias vencidas com a cessação do contrato de trabalho, descontando € 3.310 relativos à compensação pela ausência de justa causa e inobservância do prazo de aviso prévio, o que comunicou ao autor.

Saneado o processo e relegado para final o conhecimento das excepções de caducidade e de compensação, realizou-se julgamento e exarou-se sentença, a qual, objecto de recurso de apelação, foi anulada, «com vista à repetição do julgamento a incidir, exclusivamente, sobre o conhecimento que a ré tinha da prestação de trabalho pelo autor fora do seu horário de trabalho, sobre o consentimento dado pela ré à prestação desse mesmo trabalho fora desse horário, sobre o interesse da ré na prestação do mesmo e sobre o proveito para ela decorrente da prestação desse trabalho, matéria que deve ter-se por alegada no art. 35.º da petição inicial».

Refira-se, para melhor elucidação, que, no artigo 35.º da petição inicial, o autor fez consignar que «ao longo da vigência do contrato de trabalho que o ligava à ré, prestou assídua e constantemente trabalho suplementar, para além do período laboral, quer antes quer depois do mesmo, quer aos sábados de manhã, o que sempre fez com o conhecimento da Ré e na convicção de que tais prestações de trabalho eram por ela aceites, consentidas e do seu interesse e conveniência, nunca tendo tido dela qualquer oposição, e no total convencimento de que tais prestações se lhe não eram solicitadas eram por ela admitidas, trabalho esse que nunca lhe foi pago».

Após novo julgamento, exarou-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente e que (a) reconheceu que o autor tem a haver da ré a quantia ilíquida de € 5.792,50, pelas férias e respectivo subsídio, vencidas em 1 de Janeiro de 2011 e não gozadas, e pelas férias, subsídio de férias e subsídio de Natal proporcionais ao trabalho prestado em 2011, (b) reconheceu que a ré tem a haver do autor a quantia de € 3.310, a título de indemnização nos termos previstos no artigo 399.º do Código do Trabalho, e, operando a compensação dos créditos mencionados, (c) condenou a ré, a pagar ao autor, a quantia líquida de € 960,32, (d) tendo absolvido a ré quanto ao mais peticionado e (e) julgado improcedente o pedido de condenação da ré como litigante de má fé, em indemnização e multa a fixar.

2. Inconformado, o autor apelou para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual julgou parcialmente procedente o recurso de apelação, condenando a ré a pagar ao autor (a) a quantia a liquidar em execução de sentença correspondente ao crédito pelo trabalho suplementar prestado, com o limite de € 75.281,85, (b) a multa de duas UC por litigância de má-fé, e (c) indemnização por litigância de má fé a fixar pela 1.ª instância, após cumprimento do n.º 3 do artigo 543.º do Código de Processo Civil, e, quanto ao mais, julgou improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.

É contra esta deliberação que o autor e a ré se insurgem, mediante recurso de revista, formulando as conclusões seguintes:

RECURSO DO AUTOR:

                 «I.    Existe no caso sub iudice uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito;
                    II. Donde deve ser admitido o presente Recurso de Revista;
                   III. A lesão da confiança do Autor/Recorrente na manutenção da relação laboral por parte da Ré/Recorrida foi de gravidade suficiente, no contexto das relações entre as Partes, para justificar a rescisão do contrato de trabalho por ele promovida;
                   IV. A ofensa à integridade moral, à honra e dignidade do Autor/Recorrente perpetrada pela Ré/Recorrida basta-se com a punibilidade legal da actuação integradora dos factos consubstanciadores de tais valores, nos termos percepcionados pelo lesado, não exigindo a Lei a punição concreta dos mesmos;
                    V. Deve pois ser acolhido o Pedido do Autor/Recorrente de ver reconhecida a justa causa de resolução do contrato de trabalho que o ligava à Ré/Recorrida;
                   VI. O douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra ora posto em crise e com ele a douta sentença emanada da 1.ª Instância do Juízo do Trabalho de Aveiro, Comarca do Baixo Vouga, violou o disposto na alínea f) do n.º 2 do art. 394.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12/02, e os requisitos específicos do n.º 3 do art. 351.º do mesmo Diploma;
                VII.  Tal douto Acórdão posto em crise deve pois ser revogado e substituído por outro que, neste particular da verificação da justa causa de rescisão do contrato de trabalho invocada pelo Autor/Recorrente, acolha as pretensões deste.»

RECURSO DA RÉ:

                «A)   O A., no seu articulado, alegou genericamente a prestação de trabalho suplementar e para que essa prestação seja considerada como tal, não basta alegar e provar um horário, é necessário alegar em concreto, os dias e horas em que ele foi prestado, cabendo, como é óbvio, o ónus da alegação e prova ao autor, por ser constitutivo do seu direito (cfr. art. 342.º, n.º 1 do CC);
                  B)   O facto de se encontrar provado que o autor tivesse prestado trabalho para além do horário estabelecido, por si só não fica demonstrada a prestação do trabalho suplementar, atendendo às características da prestação e à forma como era executada a jornada diária de trabalho;
                  C) Na verdade, o recorrido não estava obrigado a registar a sua entrada ou a sua saída do trabalho, executando a respectiva prestação sem qualquer interferência da administração da recorrente ou de qualquer elemento hierarquicamente superior;
                  D) Era um colaborador de alta confiança, adquirida ao longo de três décadas ao serviço da R., a quem estavam atribuídas as chaves do escritório e de acesso directo ao seu local de trabalho, o que lhe permitia, sempre que o desejasse, entrar e sair do local de trabalho;
                  E)   Acresce que, apesar do recorrido manter com o presidente do conselho de administração uma relação de proximidade e cordialidade, nunca reclamou o pagamento de qualquer prestação de trabalho suplementar e nem sequer o registou no respectivo livro ou reclamou do seu não registo;
                  F)   A prestação de trabalho nos moldes supra expostos jamais poderia ser tida como de suplementar, considerando que recorrente e recorrido nenhuma relevância lhe atribuíram para efeitos de remuneração (cfr. n.º l do art. 226.º do CT);
                  G)   Ainda que o recorrido tivesse, efectivamente, prestado trabalho suplementar é manifesto que, com a sua atitude, renunciou tacitamente à remuneração a que eventualmente tivesse direito, por aquele tipo de prestação laboral (cfr. art. 809.º do Cód. Civil);
                  H)   Doutro modo, o exercício do direito nos moldes expostos, excedem os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, devendo tal exercício ser considerado ilegítimo, ou seja, há neste caso manifesto abuso de direito (cfr. art. 334.º do CC);
                  I) Ora, não havendo trabalho suplementar, como resulta das conclusões que antecedem, não há qualquer fundamento para, nos termos do art. 609.º do NCPC, condenar a R., ora recorrente, a pagar ao recorrido, a quantia a liquidar em execução de sentença correspondente ao crédito pelo trabalho suplementar;
                  J) Por outro lado, a exigibilidade do trabalho suplementar, ainda que efectivamente prestado, nos termos do CCT aplicável à relação em apreço — Cláusula 34.ª/3 — depende da autorização prévia do empregador, facto que nem sequer foi alegado e cujo ónus pertencia ao recorrido;
                  K)   A condição exigida pelo referido contrato colectivo de trabalho, ao contrário do defendido, não ofende qualquer direito constitucional, designadamente o princípio da justiça, ou da proporcionalidade, considerando a forma como se estabeleceram, ao longo da vigência do contrato, as regras de organização da prestação do trabalho diário;
                  L)    Também, contrariamente ao determinado no Douto Acórdão recorrido, carece de qualquer fundamento, a condenação da recorrente como litigante de má fé;
                  M)  Com efeito, a conduta da R., ao negar a existência da prestação de trabalho suplementar, fazia-o na convicção de que a prestação do trabalho do A. não preenchia os requisitos legais para ser classificada como tal, ou seja, a sua conduta não é nem dolosa nem praticada com negligência grave (cfr. n.os 1 e 2, alínea b), do art. 542.º do NCPC);
                  N)   Consequentemente, assim não tendo sido decidido o Douto Acórdão do Tribunal a quo, foram, entre outras, violadas as disposições legais supra citadas.»

O autor contra-alegou, suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso de revista da ré, com fundamento em alegada dupla conforme e, doutra parte, sustentou a confirmação do acórdão recorrido no segmento impugnado pela ré, sendo certo que, em sede de exame preliminar dos autos, o relator admitiu os dois recursos interpostos, tendo julgado improcedente a sobredita questão prévia, despacho que, notificado às partes, não foi objecto de impugnação.

Subsequentemente, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer, no qual sustentou que o recurso de revista do autor devia improceder e que o recurso de revista da ré devia proceder quanto «à condenação em multa e indemnização como litigante de má-fé», parecer que, notificado às partes, não foi objecto de resposta.

3. No caso vertente, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar:

                Se procede a justa causa alegada para a resolução do contrato de trabalho [conclusões I) a VII) da alegação do recurso de revista do autor];
              –   Se o autor não prestou trabalho suplementar, não havendo fundamento para condenar a ré no respectivo pagamento [conclusões A) a F), I) a K) e N, na parte atinente, da alegação do recurso de revista da ré];
              –   Se o autor, ainda que tivesse prestado trabalho suplementar, renunciou, tacitamente, à correspondente remuneração [conclusões G) e N), na parte atinente, da alegação do recurso de revista da ré];
              –   Se o autor, ao peticionar o pagamento de trabalho suplementar, excede os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, incorrendo em abuso do direito [conclusões H) e N), na parte atinente, da alegação do recurso de revista da ré];
                Se há fundamento para condenar a ré como litigante de má fé [conclusões L) a N), na parte atinente, da alegação do recurso de revista da ré].

Preparada a deliberação, cumpre julgar o objecto dos recursos interpostos.

                                              II

1. O tribunal recorrido deu como provados os factos seguintes:
1) A ré (sociedade anónima) tem por objecto o comércio por grosso de produtos para a agricultura e comércio por grosso de combustíveis líquidos, gasosos, sólidos e produtos derivados;
2) Estando, por força do exercício dessa actividade, inscrita na CC;
3) A sociedade anónima, constituída no ano de 2000, resultou da transformação da sociedade comercial por quotas (BB, Lda.) e esta resultou da empresa detida em nome individual por BB;
4) O capital social da ré está distribuído, na sua totalidade, por membros da mesma família que também integram os respectivos cargos sociais — BB e DD, sua esposa, os seus filhos EE e FF, a sua nora GG, HH, e as suas netas II e JJ;
5) O quadro de pessoal da ré integrava e integra trabalhadores subordinados com mais de duas dezenas de anos de antiguidade, nomeadamente: o autor, como encarregado de armazém; KK, como chefe de serviços e técnico oficial de contas; LL, como tesoureiro; MM, como ajudante de contabilidade; Eng.º NN, como chefe de departamento de vendas; e outros;
6) O autor trabalhou para a antecessora da ré entre 1980 e Março de 1986, altura em que foi para Angola;
7) Em 1 de Abril de 1987, o autor foi de novo admitido ao serviço da antecessora da ré por contrato de trabalho celebrado por tempo indeterminado, para sob as [suas] ordens e orientação, mediante remuneração, exercer as funções de encarregado de armazém;
8) O autor manteve-se, então, ininterruptamente como trabalhador da antecessora da ré e depois desta até 1 de Julho de 2011;
9) O autor exercia funções que se traduziam na execução de diversas tarefas: a superintendência das operações de entrada e saída de mercadorias; execução e fiscalização dos respectivos documentos; responsabilização pela arrumação e conservação de mercadorias, conferência entre as mercadorias recebidas e as notas de encomenda, recibos e outros documentos; e promoção e elaboração de inventários;
10) Funções que o autor sempre desempenhou com zelo e diligência, sendo tido como pessoa honesta e de absoluta confiança, quer do Presidente do Conselho de Administração da ré, quer de todos os demais órgãos sociais e accionistas;
11) Em Outubro de 2008, o Presidente do Conselho de Administração da ré (BB), foi alertado pelo Revisor Oficial de Contas — ROC (Dr. OO), de que havia nos últimos anos, um acréscimo anormal das remunerações e prémios que vinham sendo auferidos por alguns colaboradores da empresa e, em especial, por KK;
12) No desenrolar dos acontecimentos, o dito Presidente informou o ROC de que o aludido KK tinha uma retribuição mensal líquida de cerca de € 1.400, e que o pagamento se efectuava através de cheque;
13) Tendo, entretanto, exibido a fotocópia do cheque n.º …, sobre o Banco PP, no valor de € 1.440, emitido à ordem de KK, com data de emissão de 30 de Setembro de 2008, destinado ao pagamento da retribuição daquele mesmo mês;
14) Paralelamente, o mesmo Presidente do Conselho de Administração ordenou ao chefe de serviços (KK) que lhe fornecesse uma relação manuscrita dos vencimentos líquidos dos colaboradores da empresa, que estavam em vigor àquela data;
15) O chefe de serviços deu a listagem dactilografada ao tesoureiro que a manuscreveu, fazendo a correspondência de euros em escudos;
16) Em face dos elementos contabilísticos apresentados, ficou claro que o dito KK não auferia o salário mensal de € 1.440, mas o salário líquido mensal era antes de € 5.606,50;
17) Perante este facto, o Conselho de Administração ordenou que se procedesse à realização de uma auditoria destinada a apurar a evolução salarial do KK e de outros trabalhadores que com ele colaboravam directamente, a saber: AA, LL, MM e NN;
18) O âmbito da auditoria foi depois alargado a outras operações;
19) Entretanto, a mesma Administração ordenou que se procedesse a um inquérito prévio, como preliminar de procedimento disciplinar, sendo, de imediato, o chefe de serviços suspenso da prestação de trabalho;
20) O autor foi ouvido no âmbito do inquérito prévio referido no ponto anterior, perante o respectivo instrutor;
21) Os elementos contabilísticos revelavam que os trabalhadores visados recebiam de retribuição mensal quantias muito superiores às declaradas na relação manuscrita acima referida;
22) No que ao autor diz respeito, no ano de 2008, de acordo com essa relação manuscrita deveria receber a quantia líquida mensal de € 821, acrescida de € 100, de subsídio de alimentação (PTE 184.644$00);
23) Mas, constatou-se que, nesse mesmo ano, de Janeiro a Abril, estava a ser processado um salário ilíquido de € 1.500, acrescido de € 105, de subsídio de alimentação, e a partir de Maio a ser processado o salário de € 1.600;
24) Constatou-se, igualmente, que, no pagamento do salário do autor e outros funcionários, era usado o seguinte sistema, que ocultava as retribuições efectivamente recebidas: era elaborado um recibo de salários correspondente ao valor constante da referida lista manuscrita que era acompanhado de um cheque, também do mesmo valor, o qual era submetido à assinatura do Conselho de Administração; recebido deste o respectivo cheque o mesmo não era apresentado a pagamento, sendo o pagamento efectivo efectuado directamente por transferência bancária, accionada pelo chefe de serviços, o qual havia adquirido no BPP a possibilidade de movimentação da conta, via «lote BPPnet», pagamento que era feito por montantes divergentes, elaborando novo recibo (inutilizando o anteriormente assinado); era também alterado o valor do cheque nas listagens de cheques, onde passavam a constar os valores efectivamente recebidos;
25) No caso do autor, por exemplo, no mês de Outubro, a Administração assinou o cheque n.º …, de 31.10.2008, no valor de € 826,25, mas o chefe de serviços, por transferência bancária, no sistema «lote BPPnet», transferiu em conformidade com o exposto no ponto anterior, a quantia de € 1.320,75;
26) Da mesma forma, se processaram os salários de Janeiro a Setembro de 2008;
27) Na mesma altura, foi dado conhecimento à Administração da atribuição de prémios anuais de € 5.000, em 2005, 2006 e 2007;
28) Em 2 de Dezembro de 2008, a ré enviou ao autor a carta a que se refere fls. 25 — cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido — em que alegava a existência de um «processo de inquérito em curso» e que segundo «o que dele já é possível concluir», lhe remetia a remuneração do mês de Novembro de 2008, alegando ainda que «de acordo com a decisão da Administração, o valor mensal de retribuição vigente é o que corresponde ao montante líquido de € 921,00»;
29) Em 5 de Dezembro de 2008, o autor enviou à ré a carta a que se refere fls. 29 — cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido — em que se opunha expressamente [à] diminuição do seu vencimento, dizendo:
                    «Foi com inusitada surpresa que fui confrontado no passado dia 3 do corrente mês de Dezembro com a tentativa por parte de V.Ex.as de me pagarem o meu salário do mês de Novembro bastante inferior ao que vinha auferindo, acompanhado de uma carta que pretendiam que assinasse em como a tinha recebido e consentisse na referida diminuição de vencimento. Com efeito, desde Maio de 2008 que aufiro o vencimento base de € 1.600,00, acrescido do subsídio de refeição de € 5,25, pelo que grande foi o meu espanto quando pretenderam pagar-me sobre um vencimento base de € 985,00. Argumentaram V.Ex.as com a existência de um alegado “processo de inquérito” ao qual sou absolutamente alheio. Mais referiram V.Ex.as que por decisão da administração dessa Empresa o meu vencimento passaria a ser o correspondente ao montante líquido de € 921,00, sendo tal valor o que me foi atribuído como contraprestação do meu trabalho pelo exercício de funções inerentes à categoria profissional de Encarregado de Armazém. Ora, desde logo, que fique bem claro que não aceito qualquer redução do meu vencimento e qualquer decisão nesse sentido foi tomada à revelia da minha vontade e sem o meu consentimento, pelo que agradeço que me seja pago, relativamente a Novembro de 2008 e doravante, o valor líquido correspondente ao vencimento base de € 1.600,00, acrescido do subsídio de refeição à razão diária de € 5,25. A não se verificar conforme solicitado, terei de considerar em falta o respectivo pagamento, pelo que me verei na contingência de recorrer às vias legais adequadas, incluindo ao IDICT, que, embora a contragosto, não deixarei de fazer. Convenhamos que para um funcionário que vem dedicando uma vida de trabalho, que já ultrapassa os 28 anos, a essa Empresa e suas antecessoras, com zelo, diligência e empenho muito acima do exigível, com a prática habitual de total disponibilidade, traduzida inclusive na prestação de horas extraordinárias quotidianamente em função das exigências do serviço, a atitude de V.Ex.as surge ainda mais lamentável quanto incompreensível, pelo que espero que o bom senso acabe por prevalecer.»
30) Neste contexto, a ré, em Dezembro de 2008, entendeu remunerar o autor com a quantia mensal ilíquida de € 1.600, pagando a diferença em relação ao que fora pago relativamente ao mês de Novembro;
31) No âmbito da referida auditoria, em fins de Fevereiro ou princípios de Março de 2009, foi concluído que nos anos de 2005, 2006, 2007 e 2008 (até Novembro) o autor deveria receber o salário mensal ilíquido de € 850, mas, pelo mesmo processo supra referido para o ano de 2008, havia recebido: em 2005 a retribuição de € 1.100; em 2006, a retribuição de € 1.150; em 2007, a retribuição de € 1.500, às quais acrescem os prémios supra mencionados;
32) E, em 2008, o autor deveria receber o salário mensal ilíquido de € 1.150, mas de Janeiro até Abril de 2008 recebeu € 1.500, mensais, e de Maio de 2008 a Dezembro de 2010 auferiu o salário mensal ilíquido de € 1.600;
33) Em Janeiro de 2011, a ré aumentou o salário mensal ilíquido do autor para € 1.655, valor que se mantinha em Junho do mesmo ano;
34) A Administração da ré decidiu não instaurar procedimento disciplinar ao autor, considerando a eventualidade da responsabilidade pelos factos relatados pertencer ao chefe de serviços, KK;
35) Decisão idêntica foi tomada em relação a LL, o tesoureiro;
36) Em sentido inverso, o chefe de serviços veio a ser despedido com a alegação de justa causa, em Fevereiro de 2009, na conclusão do procedimento disciplinar que lhe foi instaurado (que foi impugnado judicialmente);
37) Em relação ao ajudante de contabilidade, MM, foi elaborada nota de culpa, que o mesmo recebeu em 13 de Janeiro de 2009, mas, nessa mesma data, o mesmo apresentou a resolução do contrato, invocando a «diminuição do salário para a quantia de 1.095,00 €, a partir do mês de Novembro, Dezembro e no subsídio de Natal de 2008»;
38) A ré foi demandada pelo mesmo, [no Tribunal do Trabalho de Aveiro],  através do Proc. n.º 242/09.3TTAVR — 1.ª Secção, e por sentença proferida no mesmo foi absolvida do pedido, sentença essa que foi igualmente confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do recurso de apelação interposto;
39) Em relação ao Eng.º NN, a ré tinha intenção de elaborar nota de culpa, mas antes de a elaborar, o mesmo, invocando razões de natureza pessoal, comunicou a cessação do contrato, em princípios de Dezembro de 2008, findando o seu contrato em 15.01.2009;
40) Concluída a referida auditoria, em finais de Fevereiro princípios de Março de 2009, considerando as suas conclusões, em 20.05.2009 a ré participou toda a factualidade ali apurada nos Serviços do Ministério Público de Albergaria-a-Velha, contra todos os visados, nomeadamente, o autor;
41) Accionou a ré, igualmente, meios civis: procedimento de arresto (contra KK e mulher deste) e na sequência do deferimento deste, instaurou a respectiva acção, pendente no Juízo de Grande Instância Cível de Anadia — Proc. n.º 407/10.5T2AND —, não sendo o autor parte nesse processo;
42) O Presidente do Conselho de Administração da ré (BB) sempre manteve com o autor, pelo menos até ao momento em que foi apresentada a participação referida no ponto 40) dos factos provados, uma relação muito próxima e cordial;
43) Por notificação datada de 26 de Maio de 2011, o autor foi notificado pela Polícia Judiciária — Departamento de Investigação Criminal de Aveiro — para comparecer no dia 02.05.2011, nas instalações daquela entidade, para prestar declarações no âmbito do Inquérito n.º 43/09.9T3ALB;
44) [eliminado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no primeiro acórdão proferido, nestes autos alínea b) do respectivo dispositivo final];
45) Tendo correspondido à notificação, o autor foi no dia constituído como arguido e sujeito à medida de termo de identidade e residência;
46) O autor, em 06.05.2011, prestou depoimento no âmbito do processo de oposição ao arresto — apenso à acção ordinária referida em [será 41)] —, tendo o seu depoimento merecido por parte da administração da ré indignação, sendo nessa altura falada a participação criminal;
47) O trabalhador da ré LL foi constituído arguido antes da data referida no ponto anterior;
48) Pela carta remetida à ré a que se refere fls. 326/327 — cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido — datada de 22 de Junho de 2011, conhecida pela ré em 24.06.2011, o autor solicitava a desistência da queixa crime ou, se tal não fosse legalmente possível, fosse emitida declaração assinada pela administração da empresa e com assinatura reconhecida em como o ilibam de toda e qualquer responsabilidade pelos factos que participaram, que pretendia ter na sua posse até 28 daquele mês, acrescentando que se não fosse correspondida a solicitação procederia à rescisão do contrato de trabalho por entender existir justa causa para o fazer, consubstanciado na ofensa à sua integridade moral, honra e dignidade em termos puníveis por lei, uma vez que considera caluniosa a queixa contra si apresentada, e nesse caso além de indemnização reivindicaria o pagamento das horas extraordinárias que prestou à ré e nunca foram contabilizadas e pagas;
49) Antes do envio da carta referida no ponto anterior, o autor ainda falou com o Presidente do Conselho de Administração da ré e com uma das suas administradoras, no sentido de, pelo menos, desistirem da queixa crime em relação a ele;
50) A ré respondeu àquela carta, através da carta a que se refere fls. 328/329 — cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido —, datada de 28.06.2011, em que refere:
                    «Acusando a recepção da sua comunicação de 22 de Junho p.p., que nos mereceu a melhor atenção, passamos a responder à mesma da forma seguinte: O Conselho de Administração manifesta a sua surpresa e não compreende as razões que levaram V .Ex.ª a subscrever o teor da comunicação, que nos enviou, afigurando-se-nos sem qualquer relevância o facto de, em determinados condicionalismos e circunstâncias, haver beneficiado de clemência, no que respeita a ilícitos de natureza disciplinar, consubstanciados em condutas cometidas em períodos anteriores a Novembro de 2008. Porém, ao contrário do que eventualmente pudesse julgar o Conselho de Administração sobre tais condutas — e em seu entender não foram objecto de procedimento disciplinar — a verdade é que, tendo os mesmos factos sido do conhecimento dos órgãos de justiça criminal, os mesmos decidiram-se, pelo que nos afirma na sua comunicação, pela sua constituição como arguido. É óbvio que o processo de inquérito, onde foi ouvido, se encontra em segredo de justiça e esta Administração desconhece os factos pelos quais se encontra indiciado e quais as provas e os elementos recolhidos que fundamentam a constituição de arguido e aplicação da medida de coação de termo de identidade e residência. Por conseguinte, o prosseguimento do procedimento criminal não depende da acção da BB, S.A., mas tão-só e exclusivamente da actuação do Ministério Público, pelo que estará nas suas mãos a possibilidade de organizar a sua defesa e demonstrar a sua inocência. Desta forma, não lhe reconhecemos o direito de exigir o quer que seja, designadamente “uma declaração assinada pela administração da Empresa e com as assinaturas reconhecidas em como me ilibam de toda e qualquer responsabilidade pelos factos…”. Quanto à ameaça de rescisão do contrato de trabalho, esta Administração nada pode fazer, já que a lei laboral lhe permite tal direito, embora se possa exigir que a desvinculação sem justa causa, só é regular quando precedida do pré-aviso legal, sob pena de se constituir no dever de indemnizar por todos os danos causados.»
51) Pela carta a que se refere fls. 45/46 — cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido —  registada com aviso [de] recepção, em 30 de Junho de 2011, o autor comunicou à ré que rescindia o contrato de trabalho que o ligava à mesma, alegando justa causa, como segue:
                    «Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 2 do art. 394.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12/02, ocorre justa causa de resolução de contrato de trabalho no caso de ofensa à integridade moral, à honra e à dignidade do trabalhador, punível por lei, praticada pelo empregador ou seu representante, o que entendo ocorrer na situação presente. Ora, sucede que no passado dia 2 de Junho fui prestar declarações à Polícia Judiciária, em Aveiro — tendo para o efeito sido devidamente notificado — no âmbito do Processo de Inquérito Crime n.º 43/09.9T3ALB da 2.ª secção do DIAP de Águeda, Serviços do Ministério Público — Comarca do Baixo Vouga. Fiquei então a saber que tal notificação se prendia com uma Queixa-Crime apresentada por V.Ex.as contra diversas pessoas, incluindo eu próprio, relacionada com o recebimento alegadamente indevido de vencimentos na esfera das relações laborais que me ligam a essa Empresa. Da referida inquirição na Polícia Judiciária saí constituído Arguido, o que foi entretanto validado pelo Ministério Público. Convém desde logo referir que sou vosso funcionário vai para 31 anos, tendo-me sempre pautado por uma dedicação e lealdade que considero exemplares, nunca tendo negado esforços na defesa dos interesses da BB, muito para além das meras obrigações contratuais. Sem conhecer horários, quase sempre prejudicando o meu descanso e Família, sempre tive BB em primeiríssimo lugar! O meu trabalho sempre foi por mim encarado como um dever sagrado! Devo recordar a V.Ex.as que em Dezembro de 2008 fui inusitadamente confrontado com a tentativa da vossa parte de me pagarem o meu salário do mês de Novembro desse ano bastante inferior ao que vinha auferindo, acompanhado de uma carta que pretendiam que assinasse em como a tinha recebido e consentia na referida diminuição de vencimento. Nessa altura, em carta que vos dirigi, referi expressamente a minha oposição a tal decisão e vinquei, como acima já referi que para “um funcionário que vem dedicando uma vida de trabalho, que já ultrapassa os 28 anos, a essa Empresa e suas antecessoras, com zelo, diligência e empenho muito acima do exigível, com a prática habitual de total disponibilidade, traduzida inclusive na prestação de horas extraordinárias quotidianamente em função das exigências do serviço a atitude de V.Ex.as surge ainda mais lamentável quanto incompreensível, pelo que espero que o bom senso acabe por prevalecer”. Então, V.Ex.as reconsideraram e mantiveram-no tal como vinha sendo pago. Certamente entenderam que não tinham motivos para o fazer, em relação a mim, como efectivamente não tinham. Mais sucedeu que contra mim não foi promovido despedimento com justa causa, ao contrário do que sucedeu com outros, tendo sido mantido o meu vínculo laboral e, volvidos mais de 2 anos, vi mesmo o meu vencimento ser recentemente aumentado. Do vosso comportamento em relação a mim não se pode assacar outra conclusão que não seja a de que V.Ex.as tinham perfeita consciência de que eu não havia praticado qualquer acto ou tido qualquer comportamento censurável, quer no plano laboral quer no plano criminal, pois só assim se compreende que não tenha sido despedido, que me tenham mantido o vencimento e agora, aumentado o mesmo. Assim, a Queixa Crime contra mim apresentada por V.Ex.as e a minha constituição como Arguido, com a sujeição a medidas de coação de Termo de Identidade e Residência, surge ainda mais gravosa e atentatória da minha dignidade e honra e constituem um vexame inusitado e incomportável, ao mesmo tempo que consubstancia uma denúncia caluniosa, prevista e punida pelo art. 365.º do Código Penal. Com o vosso comportamento — que só pode ser considerado culposo — entendo terem ficado irremediavelmente comprometidos os laços de confiança que são necessários para a manutenção dum vínculo laboral, pois se V.Ex.as não tiveram pejo de participar criminalmente contra um funcionário dedicado e leal com quase 31 anos de “casa”, mesmo tendo V.Ex.as praticado actos absolutamente contrários a tal atitude (manutenção do contrato, manutenção do vencimento, aumento de vencimento), então não é possível manter a relação de trabalho, porque a vossa atitude é para mim tão ofensiva que alcança uma gravidade insuperável a par de ter destruído, como disse, os laços de confiança que tinha, pelo que ficou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. É pois neste contexto, que notifico V. Ex.as que, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 395.º do Código do Trabalho, aprovado pela referida Lei n.º 7/2009, de 12/02, é minha intenção rescindir com justa causa o Contrato de Trabalho celebrado com essa Empresa, fazendo-o cessar imediatamente ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 394.º Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12/02, com o fundamento de ofensa à minha integridade moral, honra e dignidade, punível por lei, praticada pelo empregador ou seu representante, como melhor explanado acima e que se me afigura que pela sua gravidade e consequências torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho. Deste modo, informo que deixarei de prestar qualquer serviço nessa Empresa a partir da data de assinatura do aviso de recepção da presente carta. Informo também que irei de imediato apresentar Queixa Crime por denúncia caluniosa contra quem subscreveu a Queixa Crime contra mim apresentada e que deu origem ao Processo de Inquérito no início referenciado. Solicito a V.Ex.as a promoção das diligências necessárias para que me sejam pagos os créditos laborais em dívida até à data da resolução do contrato de trabalho, bem como a indemnização a que tenho direito, nos termos do disposto no art. 396.º n.º 1 do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12/02, a qual, computo em 40 dias de salário por cada ano ou fracção de antiguidade e as horas de trabalho suplementar prestadas a essa Empresa nos últimos cinco anos, quer nos dias úteis quer nos dias de descanso semanal (Sábados de manhã) que, quer umas quer outras não foram pagas oportunamente, as quais contabilizo em 2.200 horas de trabalho suplementar em dias úteis e 770 horas de trabalho suplementar em dia de descanso semanal, as quais devem ser pagas de acordo com os critérios do art. 268.º do Código do Trabalho, tendo em atenção que, nos dias úteis aludidos prestei sempre 2 horas em cada um e que nos dias de descanso semanal prestei sempre 3 horas e meia, também em cada um. Mais solicito a V. Ex.as a emissão de documento comprovativo dos factos supra referidos, causa da presente resolução.»
52) A ré, em 13.07.2011, processou as prestações pecuniárias vencidas com a cessação do contrato, descontando a quantia de € 3.310, em compensação pela ausência de justa causa de despedimento e falta de pré-aviso (correspondente a dois meses de retribuição), como consta de fls. 266 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
53) Por carta registada, datada de 13.07.2011, como consta de fls. 268, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a ré comunicou ao autor não reconhecer a justa causa por ele invocada para a rescisão do contrato e informou da retenção daquela quantia;
54) O autor respondeu à carta referida no ponto anterior por carta registada com aviso de recepção de 18 de Julho de 2011, a que se refere fls. 127 — cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido — em que diz:
                    «Recebi a V. prezada carta de 13 de Julho de 2011 que me surpreende pela intenção de reterem os créditos a que tenho direito para compensação de uma alegada indemnização. Ora, contudo, a nossa percepção das coisas é perfeitamente antagónica, uma vez que tendo resolvido o contrato de trabalho com alegação de justa causa, obviamente que não reconheço a V.Ex.as qualquer crédito sobre mim adveniente de resolução ilícita, questão essa que terão de ser os Tribunais a decidir e não V.Ex.as. Assim, inexiste ainda — e estou convicto de que inexiste de todo — qualquer crédito de V.Ex.as sobre mim, pelo que tal compensação não pode operar. Além de que, como bem sabem tal atitude, na falta de decisão judicial, é ilegal e constitui contraordenação muito grave, como refere o art. 279.º do Código do Trabalho. Finalmente, conforme decorre do disposto no art. 824.º do Cód. Proc. Civil, são impenhoráveis 2/3 dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, pelo que os meus créditos sobre V.Ex.as são insusceptíveis, nessa medida de 2/3, de qualquer compensação, como prescreve o art. 853.º do Código Civil. Assim, caso os créditos salariais a que tenho direito não me sejam pagos no final do corrente mês, participarei o facto à ACT, para além da reivindicação judicial dos meus direitos.»
55) Em Agosto de 2011, o autor apresentou nos Serviços do Ministério Público queixa crime contra os administradores da ré que subscreveram a denúncia de que resultou o Processo de Inquérito n.º 43/09.9T3ALB, por denúncia caluniosa e difamação;
56) Após a cessação do contrato de trabalho com o autor, a ré ainda não providenciou à sua substituição, sendo as funções que ao mesmo incumbiam em parte executadas por uma vogal do Conselho de Administração (D. QQ) e outra parte por outros;
57) O autor era um colaborador de alta confiança adquirida ao longo de quase três décadas ao serviço da ré e, por isso, era um dos poucos trabalhadores a quem estavam atribuídas chaves dos escritórios e do acesso directo ao seu local de trabalho, o que lhe permitia, sempre que o desejasse, entrar e sair do seu local de trabalho;
58) O horário de trabalho estabelecido para o autor era: de segunda a sexta-‑feira, das 09:00 horas às 18:00 horas, com uma hora de intervalo para refeição;
59) O autor não estava obrigado a registar a sua entrada ou a sua saída do trabalho, executando o seu trabalho sem qualquer interferência ou controlo da administração, ou de qualquer elemento hierarquicamente superior;
60) Nos últimos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho, por regra, o autor iniciava o trabalho entre as 8h e as 8h15m e saía do trabalho entre as 18h 30m e as 19h;
61) Nos últimos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho, o autor trabalhou vários sábados na parte da manhã, pelo menos 1 por mês, pelo menos entre três a três horas e meia por sábado em que trabalhasse;
62) Para o exercício das suas funções, o autor dispunha de um computador com programa informático, altamente especializado, da P.H.C.;
63) O autor nunca pediu livro para registo de trabalho suplementar ou reclamou da ausência de registo do alegado trabalho suplementar;
64) O autor nunca se dirigiu ao Presidente do Conselho de Administração a reclamar alguma quantia por realização de trabalho suplementar;
65) A ré sabia que o autor prestava trabalho fora do horário de trabalho estabelecido e referido no ponto 58);
66) A ré nunca se opôs a que o autor prestasse trabalho fora do horário de trabalho estabelecido e referido no ponto 58);
67) A ré teve interesse e retirou proveito na prestação de trabalho pelo autor fora do horário de trabalho estabelecido e referido no ponto 58).

Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, nem se vislumbra qualquer das situações referidas no n.º 3 do artigo 682.º do novo Código de Processo Civil, que é imediatamente aplicável, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, pelo que será com base nesses factos que hão-de ser resolvidas as questões suscitadas nos recursos.

2. O autor sustenta que a lesão da sua confiança «na manutenção da relação laboral por parte da Ré/Recorrida foi de gravidade suficiente, no contexto das relações entre as Partes, para justificar a rescisão do contrato de trabalho por ele promovida» e que a ofensa à integridade moral, à honra e dignidade «perpetrada pela Ré/Recorrida basta-se com a punibilidade legal da actuação integradora dos factos consubstanciadores de tais valores, nos termos percepcionados pelo lesado, não exigindo a Lei a punição concreta dos mesmos», logo deve «ser acolhido o Pedido do Autor/Recorrente de ver reconhecida a justa causa de resolução do contrato de trabalho que o ligava à Ré/Recorrida», violando o acórdão recorrido «o disposto na alínea f) do n.º 2 do art. 394.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12/02, e os requisitos específicos do n.º 3 do art. 351.º do mesmo Diploma».

As instâncias convergiram no sentido de não se verificar justa causa para a resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, com a consequente improcedência do pedido indemnizatório formulado pelo autor com esse fundamento.

Estando em causa a resolução de um contrato de trabalho efectivada, por iniciativa do trabalhador, em 30 de Junho de 2011, há que tomar em consideração o regime jurídico acolhido no Código do Trabalho de 2009, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, em vigor a partir de 17 de Fevereiro de 2009.

Nos termos do preceituado nos artigos 340.º, alínea g), e 394.º do Código do Trabalho de 2009, diploma a que pertencem as normas adiante referidas, sem menção da origem, o contrato de trabalho pode cessar por resolução do trabalhador.

Segundo o n.º 1 do artigo 394.º, quando ocorra justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.

 A declaração de resolução deve ser feita por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos trinta dias subsequentes ao conhecimento desses factos (artigo 395.º, n.º 1), sendo que, no caso de falta culposa de pagamento pontual da retribuição, «o prazo para resolução conta-se a partir do termo do período de 60 dias ou da declaração do empregador» (artigo 395.º, n.º 2), havendo lugar a uma indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, se a mesma se fundar nos factos previstos no n.º 2 do artigo 394.º, indemnização essa a fixar entre quinze e quarenta e cinco dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade ou fracção, neste último caso calculada proporcionalmente (artigo 396.º, n.os 1 e 2).

Consoante o disposto no n.º 2 do artigo 394.º, «[c]onstituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, nomeadamente, os seguintes comportamentos do empregador: (a) falta culposa de pagamento pontual da retribuição; (b) violação culposa de garantias legais ou convencionais do trabalhador; (c) aplicação de sanção abusiva; (d) falta culposa de condições de segurança, higiene e saúde no trabalho; (e) lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador; (f) ofensa à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, praticada pelo empregador ou seu representante.»

Trata-se da chamada justa causa subjectiva (culposa).

Constituem justa causa objectiva (não culposa) de resolução do contrato pelo trabalhador, conforme estipula o n.º 3 do artigo 394.º, as circunstâncias que se seguem: «(a) necessidade de cumprimento de obrigação legal incompatível com a continuação do contrato; (b) alteração substancial e duradoura das condições de trabalho no exercício legítimo de poderes do empregador; (c) falta não culposa de pagamento pontual da retribuição.»

Em qualquer das apontadas situações está subjacente o conceito de justa causa, que o artigo 394.º não define, mas que corresponde à ideia de impossibilidade para o trabalhador de manutenção do vínculo laboral, nos termos de similar locução constante no n.º 1 do artigo 351.º, até porque, consoante o previsto no n.º 4 do artigo 394.º, a justa causa é apreciada de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 351.º, com as necessárias adaptações, ou seja, atendendo-se ao grau de lesão dos interesses do trabalhador, ao carácter das relações entre as partes e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.

Deste modo, o trabalhador só pode resolver o contrato de trabalho com justa causa subjectiva se o comportamento do empregador for ilícito, culposo e tornar imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, em razão da sua gravidade e consequências, ou seja, é necessária a existência de nexo de causalidade entre aquele comportamento e a insubsistência da relação laboral.

A este propósito, o acórdão recorrido teceu as considerações seguintes:

                  «Sustenta o autor estar verificada uma situação de justa causa subjectiva que lhe permitia a resolução do contrato de trabalho.
                      Lida a carta que se encontra identificada no ponto 51 dos factos provados, conclui-se que o autor resolveu o seu contrato de trabalho com o seguinte fundamento factual: a ré participou criminalmente contra o autor e outros, o que deu origem ao processo de Inquérito Crime n.º 43/09.9T3ALB, da 2.ª secção do DIAP de Águeda, no âmbito do qual haveria de ser constituído arguido; apesar dessa participação, o autor foi mantido ao serviço da ré, sem instauração de qualquer procedimento disciplinar; a ré tinha perfeita consciência de que o autor não tinha cometido em relação a ela qualquer acto censurável, quer no plano laboral quer no plano criminal, designadamente os que lhe eram imputados na dita participação criminal; esta, a constituição do autor como arguido e a sua sujeição a Termo de Identidade e Residência atentaram contra a dignidade e honra do autor e causaram-lhe um vexame inusitado e incomportável, constituindo a referida participação denúncia caluniosa, prevista e punida pelo art. 365.º do Código Penal; ficaram irremediavelmente comprometidos os laços de confiança que são necessários para a manutenção do vínculo laboral entre o autor e a ré, ficando imediata e praticamente comprometida a subsistência da relação de trabalho.
                      Ou seja, o aqui autor radica o comportamento culposo justificador da resolução operada na apresentação pela ré da participação criminal acima aludida com alegada consciência de que o autor não teria praticado os factos ilícitos nela relatados como tendo sido por ele praticados.
                      Sem razão, a nosso ver.
                      Com efeito, importa contextualizar factualmente a apresentação daquela denúncia, considerando que:
                     a)    em Outubro de 2008, o presidente do Conselho de Administração  da ré foi alertado para um anormal crescimento da massa salarial auferida por alguns colaboradores da ré, na sequência do que se encetaram diligências das quais resultou, inequivocamente, que um trabalhador da ré auferia um salário largamente superior ao que era suposto ser-lhe pago — pontos 11.º) a 16.º) dos factos;
                     b)    na sequência do assim constatado, a ré ordenou a realização de uma auditoria para apurar da evolução salarial desse trabalhador e de outros que com ele colaboravam directamente, tendo-se verificado que o autor e os demais trabalhadores em questão auferiam remunerações largamente superiores às que era suposto receberem — pontos 17.º), 21.º) a 23.º), 25.º), 26.º) e 31.º) dos factos provados;
                     c)    constatou-se que o pagamento de salários superiores aos realmente devidos era efectuado mediante um mecanismo de falsificação e destruição de documentos — ponto 24.º dos factos provados.
                      Por outro lado, dos factos provados não resulta, tanto mais que tal não foi objecto de alegação nos articulados constantes dos autos, que o conselho de administração da ré conhecia, antes de Outubro de 2008 (mês em que se suscitou a questão referente a eventuais irregularidades no pagamento de salários e em que foi ordenada a auditoria a que se reporta o documento de fls. 210 a 219), concretamente nos anos de 2005 a 2007 e de Janeiro a Outubro de 2008, que é o período de tempo referido pela ré em relação ao autor nos arts. 43.º e 44.º da denúncia criminal que apresentou e que está documentada a fls. 338 a 352, a existência de um qualquer sistema de pagamento de salários do tipo do descrito no ponto 24.º) dos factos provados; muito menos vem alegado, na petição ou na contestação, que esse mesmo conselho de administração conhecia que o autor era um dos beneficiários desse sistema de pagamento.
                      Acresce que no decurso da audiência não foi suscitado qualquer mecanismo legal tendente a incluir, na matéria de facto a conhecer pelo tribunal recorrido, o aludido conhecimento pelo conselho de administração da ré do referido sistema de pagamentos e do facto do autor ser um dos seus beneficiários.
                      É o que resulta das actas das diversas sessões da audiência, das quais não consta qualquer pretensão das partes no sentido da atendibilidade de factos não alegados, sendo que também o tribunal não advertiu qualquer das partes no sentido da possível atendibilidade de factos não alegados.
                      Finalmente, como se deixou escrito no primeiro acórdão desta Relação proferido no âmbito destes autos, devidamente transitado em julgado, não era possível dar como provado, sequer, que algum membro do Conselho de Administração da ré, mesmo aqueles que aparentemente beneficiariam de um sistema de pagamentos de remunerações encobertas igual ao que está descrito no ponto 24.º) dos factos provados, por forma a eles auferirem mais do que o titulado por cheques ficticiamente emitidos para pagamento das respectivas remunerações, concretamente EE e QQ, conheciam igualmente que o autor também beneficiava do mesmo sistema, pois:
                     a)    resulta da prova documental e testemunhal produzida em audiência que as transferências bancárias pelas quais se pagavam os salários encobertos e realmente auferidos pelo autor eram realizadas pelo chefe de serviços (KK), sem o menor indício do envolvimento daqueles administradores na concreta realização das transferências realizadas no âmbito do sistema de pagamentos encobertos;
                     b)    não foi produzida qualquer prova, testemunhal ou documental, reveladora de que aqueles membros do conselho de administração conheciam o facto de KK executar a favor do autor e de outros trabalhadores da ré transferências bancárias para pagamento de salários superiores aos cheques ficticiamente emitidos para o pagamento  dos mesmos salários.
                      A tudo acresce que o conselho de administração da ré era integrado pelo menos por uma pessoa em relação à qual inequivocamente não se fez a mínima prova do conhecimento desse esquema remuneratório, nem dos seus beneficiários — o seu Presidente (BB); em relação a este a prova foi, aliás, no sentido de que pelo menos até Outubro de 2008 o mesmo desconhecia em absoluto esse sistema de pagamento de remunerações encobertas.
                      Face a todo o antecedente enquadramento factual, em que estava claramente indiciada uma prática fraudulenta e lesiva para a ré, de pagamento a vários trabalhadores dela de salários superiores aos devidos mediante emissão de documentos falsos e de destruição de outros documentos anteriormente emitidos, sem o mínimo indício factual que tenha resultado provado de que os membros do conselho de administração da ré conhecessem em relação aos ditos trabalhadores aquela prática e os efeitos dela decorrentes para o património da ré, afigura-se-nos de todo legítima a participação criminal apresentada pela ré contra todos aqueles trabalhadores, autor incluído, não representando aquela participação mais do que o exercício legítimo de um direito da ré no sentido da perseguição e punição criminal daqueles que por via da dita prática tivessem praticado ilícitos de natureza criminal.
                      Excluída está, portanto, qualquer possibilidade de a apresentação daquela participação criminal poder representar em relação ao autor um comportamento culposo por parte da sua entidade patronal que tornasse inexigível para o trabalhador a subsistência da relação de trabalho.
                      A incomodidade, a vergonha, o vexame e a humilhação que o autor tenha sofrido na sequência da apresentação daquela participação e da sua constituição como arguido não têm na sua génese a dita participação, mas sim um esquema fraudulento de pagamento de salários superiores aos devidos de que o autor beneficiava, sem que dos factos provados resulte a mínima participação da ré nesse esquema ou qualquer conhecimento dele por parte dela.
                      O facto de a ré ter não ter procedido disciplinarmente contra o autor e de o manter no seu quadro de trabalhadores subordinados representa, apenas, uma opção da própria ré em matéria disciplinar, sem qualquer espécie de renúncia ao exercício do direito de participação criminal; de resto, aquela opção omissiva por parte da ré encontra uma justificação na factualidade que está descrita no ponto 34 dos factos provados.
                      Por isso, a omissão de procedimento disciplinar laboral contra o autor não pode relevar para efeitos de integrar a dita participação criminal num comportamento censurável da entidade empregadora integrador de justa causa de resolução do contrato de trabalho por parte do trabalhador.
                      A manutenção do salário que vinha sendo pago ao autor a coberto daquele esquema fraudulento, sem se saber quais as concretas razões que motivaram da parte da ré essa manutenção, também de nada relevam para efeitos de qualificar a apresentação pela ré da supra referida participação criminal como um comportamento censurável que justificasse ao autor a resolução do contrato com invocação de justa causa.
                      Finalmente, não se sabendo que concretos e definitivos resultados teve a participação criminal feita pela ré em relação ao autor, sabendo-se apenas, face à prova documental que dos autos consta, que este foi constituído arguido em Junho de 2011, datando a participação de Outubro de 2009, de nada releva, para os efeitos em análise, o aumento salarial de que o autor beneficiou por parte da ré em Janeiro de 2011, tanto mais quanto é certo que se desconhecessem absolutamente as circunstâncias factuais e jurídicas que determinaram aquele aumento.
                      Como assim, é de manter a sentença recorrida na parte em que não reconheceu ao autor justa causa para resolver o contrato de trabalho, com a consequente improcedência do pedido indemnizatório formulado pelo autor com esse fundamento e concomitante procedência do pedido reconvencional da ré no sentido da condenação do autor lhe pagar uma indemnização por denúncia sem observância do prazo de pré-aviso, que a sentença recorrida quantificou em 3.310 euros, nessa parte sem impugnação do recorrente.»

Tudo ponderado, subscrevem-se, no essencial, as considerações transcritas e, bem assim, o juízo decisório enunciado.

Com efeito, provou-se que o conselho de administração da ré ordenou que se procedesse à realização de uma auditoria destinada a apurar a evolução salarial de KK e de outros trabalhadores que com ele colaboravam directamente, a saber, AA (o autor), LL, MM e NN [facto provado 17)] e que os elementos contabilísticos revelavam que os trabalhadores visados recebiam de retribuição mensal quantias muito superiores às declaradas na relação manuscrita processada [facto provado 21)], sendo que, relativamente ao autor, «no ano de 2008, de acordo com essa relação manuscrita, deveria receber a quantia líquida mensal de € 821, acrescida de € 100, de subsídio de alimentação (PTE 184.644$00)», no entanto, «constatou-se que, nesse mesmo ano, de Janeiro a Abril, estava a ser processado um salário ilíquido de € 1.500, acrescido de € 105, de subsídio de alimentação, e a partir de Maio a ser processado o salário de € 1.600» [factos provados 22) e 23)].

Mais ficou demonstrado que, no pagamento da retribuição ao autor e outros funcionários, era utilizado um sistema, que ocultava as retribuições efectivamente recebidas — «era elaborado um recibo de salários correspondente ao valor constante da referida lista manuscrita que era acompanhado de um cheque, também do mesmo valor, o qual era submetido à assinatura do Conselho de Administração; recebido deste o respectivo cheque o mesmo não era apresentado a pagamento, sendo o pagamento efectivo efectuado directamente por transferência bancária, accionada pelo chefe de serviços, o qual havia adquirido no BPP a possibilidade de movimentação da conta, via “lote BPPnet”, pagamento que era feito por montantes divergentes, elaborando novo recibo (inutilizando o anteriormente assinado); era também alterado o valor do cheque nas listagens de cheques, onde passavam a constar os valores efectivamente recebidos» — e que, no caso do autor, «no mês de Outubro, a Administração assinou o cheque n.º …, de 31.10.2008, no valor de € 826,25, mas o chefe de serviços, por transferência bancária, no sistema “lote BPPnet”, transferiu […] € 1.320,75» e, da mesma forma, «se processaram os salários de Janeiro a Setembro de 2008», concluindo-se na sobredita auditoria que, «nos anos de 2005, 2006, 2007 e 2008 (até Novembro), o autor deveria receber o salário mensal ilíquido de € 850, mas, pelo mesmo processo supra referido para o ano de 2008, havia recebido: em 2005 a retribuição de € 1.100; em 2006, a retribuição de € 1.150; em 2007, a retribuição de € 1.500, às quais acrescem os prémios supra mencionados» [factos provados 24) a 26) e 31)].

Ora, tendo a auditoria determinada pela ré revelado a existência de sistema de pagamento das retribuições, ao autor e a outros trabalhadores da ré, que ocultava as retribuições efectivamente recebidas, em valor muito superior ao que era devido, e não resultando provado que o conselho de administração da ré conhecesse aquela prática, a participação criminal apresentada contra os trabalhadores que beneficiaram desse sistema de pagamento, incluindo o autor, traduz o exercício legítimo de um direito da ré, estando, por isso, excluído que a apresentação daquela participação pudesse consubstanciar, relativamente ao autor, ofensa à integridade moral, à honra e à dignidade, a lesão grave da confiança na manutenção da relação laboral por parte da ré ou uma conduta culposa por parte da empregadora que tornasse inexigível para o trabalhador a subsistência da relação de trabalho.

Tudo para concluir que o invocado comportamento da empregadora não constitui justa causa para resolver o contrato de trabalho pelo trabalhador, termos em que improcede o pedido de indemnização deduzido pelo autor com esse fundamento.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões I) a VII) da alegação do recurso de revista do autor.
3. A ré defende, por sua vez, que o autor «alegou genericamente a prestação de trabalho suplementar e para que essa prestação seja considerada como tal, não basta alegar e provar um horário, é necessário alegar em concreto, os dias e horas em que ele foi prestado, cabendo, como é óbvio, o ónus da alegação e prova ao autor, por ser constitutivo do seu direito (cfr. art. 342.º, n.º 1 do CC)» e que o autor «não estava obrigado a registar a sua entrada ou a sua saída do trabalho, executando a respectiva prestação sem qualquer interferência da administração da recorrente ou de qualquer elemento hierarquicamente superior», sendo que «nunca reclamou o pagamento de qualquer prestação de trabalho suplementar e nem sequer o registou no respectivo livro ou reclamou do seu não registo», pelo que aquela prestação de trabalho «jamais poderia ser tida como de suplementar, considerando que recorrente e recorrido nenhuma relevância lhe atribuíram para efeitos de remuneração (cfr. n.º l do art. 226.º do CT)», não havendo, por isso, «fundamento para, nos termos do art. 609.º do NCPC, condenar a R., ora recorrente, a pagar ao recorrido, a quantia a liquidar em execução de sentença correspondente ao crédito pelo trabalho suplementar».

E acrescenta, neste conspecto, que «a exigibilidade do trabalho suplementar, ainda que efectivamente prestado, nos termos do CCT aplicável à relação em apreço — Cláusula 34.ª/3 — depende da autorização prévia do empregador, facto que nem sequer foi alegado e cujo ónus pertencia ao recorrido» e que aquela estipulação «não ofende qualquer direito constitucional, designadamente o princípio da justiça, ou da proporcionalidade, considerando a forma como se estabeleceram, ao longo da vigência do contrato, as regras de organização da prestação do trabalho diário».

O tribunal de 1.ª instância recusou o reconhecimento ao autor dos créditos atinentes ao trabalho suplementar com o fundamento de que, sendo aplicável o n.º 3 da Cláusula 34.ª do CCT entre a CC e outras e o CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (BTE, 1.ª série, n.º 1, de 8 de Janeiro de 2007), o autor não tinha  provado, tal como exige essa norma, a prévia autorização do empregador à prestação do trabalho suplementar.
Diversamente, o acórdão recorrido deliberou reconhecer ao autor o direito à remuneração do trabalho suplementar prestado, cuja prestação, no seu entender, foi realizada de modo a não ser previsível a oposição por parte da entidade empregadora.

Neste particular, o acórdão recorrido teceu as considerações seguintes:

                  «Como bem assinala a sentença recorrida, é inequívoco que o autor prestou à ré trabalho suplementar — é o que inequivocamente resulta da conjugação dos pontos 58, 60 e 61 dos factos provados com os artigos 197.º/1 do CT/03 e 226.º/1 do CT/09.
                      Porém, a sentença recorrida recusou o reconhecimento ao autor dos créditos correspondentes ao trabalho suplementar assim prestado com o fundamento de que sendo aqui aplicável a cláusula 34.ª/3 do CCT entre a Assoc. Comercial de Aveiro e outras e o CESP – Sind. dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal publicado no BTE, 1ª série, n.º 1, de 8/1/07, o autor não provou, como prescreve essa norma para efeitos de exigibilidade da remuneração do trabalho suplementar, prévia autorização do empregador à prestação do trabalho suplementar.
                      Sem razão.
                      Comece por referir-se que sob pena de inconstitucionalidade da mesma por violação do art. 59/1/a/d da CRP e dos princípios de justiça e da proporcionalidade ínsitos na ideia de Estado de Direito (arts. 2.º e 18.º/2 da CRP), a dita cláusula 34.ª/3 deve ser interpretada no sentido de que também é exigível a remuneração do trabalho suplementar se, pelo menos, tal trabalho for prestado com conhecimento e sem oposição da entidade empregadora — cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 635/99, processo 1111/98 (DR, II Série de 21/3/00), acórdãos do STJ de 16/5/2000, publicado na Col. Jur. do STJ, II, p. 267, e de 28/9/05, proferido no âmbito da revista n.º 578/05, e acórdão da Relação de Lisboa de 15/02/2006, proferido no âmbito da apelação 1816/2005-4.
                      Por outro lado, o autor provou que nos últimos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho trabalhou para a ré fora do seu horário de trabalho (pontos 58, 60 e 61 dos factos provados), com o conhecimento e sem oposição da ré (pontos 65 e 66 dos factos provados), sendo que a ré teve interesse e tirou proveito do trabalho assim prestado pelo autor (ponto 67 dos factos provados).
                      Tanto basta, pois, para que se reconheça ao autor o direito à remuneração do trabalho suplementar assim prestado, em consonância com a corrente jurisprudencial acima identificada e com o estatuído nos arts. 258.º/5 do CT/03 e 268.º/2 do CT/09, na parte em que neles de alude ao pagamento de trabalho suplementar cuja prestação tenha sido realizada de modo a não ser previsível a oposição do empregador.
                      Caberia agora proceder à quantificação da remuneração assim inequivocamente devida ao autor.
                      Simplesmente, tal não é possível neste momento.
                      Desde logo porque não está judicialmente determinado quais os salários que o autor deveria realmente auferir da ré durante os anos em que prestou trabalho suplementar — aqueles que a auditoria concluiu como sendo os devidos ao autor ou aqueles que este realmente auferiu.
                      Por outro lado, dos factos provados não resulta, por exemplo: a) o número exacto de sábados em que o autor trabalhou para a ré (ponto 61 dos factos provados); b) o número exacto de horas de trabalho suplementar prestadas ao sábado (ponto 61 dos factos provados); c) o número exacto de dias úteis em que o autor trabalhou para a ré fora do horário de trabalho e, em cada um deles, o número exacto de horas de trabalho prestado fora do horário de trabalho do autor (ponto 60 dos factos provados).
                      Trata-se de elementos que poderão ainda ser apurados em sede de liquidação em execução de sentença, razão pela qual e ao contrário do sustentado na decisão recorrida deve ser relegada aquela quantificação para tal liquidação (art. 661.º/2 do VCPC e 609.º/2 do NCPC), pois que o autor demonstrou inequivocamente ter um crédito referente a trabalho suplementar prestado à ré, apenas não tendo conseguido demonstrar a exacta grandeza quantitativa desse crédito.
                      A referida liquidação deve ser efectuada nos termos previstos nos arts. 358.º e ss. do NCPC, com recurso, se necessário, a prova pericial (art. 360.º/4 NCPC), tendo em conta, sendo caso disso, a prática da empresa e os usos do sector ou locais (arts. 265.º do CT/03 e  272.º do CT/09), e com observância dos limites peticionados pelo autor e que constam dos arts. 36.º a 38.º, 40.º e 41.º da petição inicial.»

Tudo ponderado, subscrevem-se, no essencial, as considerações transcritas e, bem assim, o juízo decisório enunciado.

Com efeito, considera-se trabalho suplementar aquele que é prestado fora do horário de trabalho (artigos 197.º, n.º 1, do Código do Trabalho de 2003 e 226.º, n.º 1  do Código do Trabalho de 2009), sendo que é exigível o pagamento de trabalho suplementar cuja prestação tenha sido prévia e expressamente determinada, ou realizada de modo a não ser previsível a oposição do empregador (artigos 258.º, n.º 5, do Código do Trabalho de 2003 e 268.º, n.º 2  do Código do Trabalho de 2009).

Doutra parte, reza a Cláusula 34.ª do CCT entre a CC e outras e o CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (BTE, 1.ª série, n.º 1, de 8 de Janeiro de 2007), que se considera trabalho suplementar «aquele que é prestado fora do horário normal de trabalho» (n.º 1) e que a prestação de trabalho suplementar carece de prévia autorização da entidade empregadora, ou de quem tenha competência delegada, sob pena de não ser exigível a respectiva remuneração (n.º 3).

No caso em apreciação, decorre inequivocamente da matéria apurada que o autor, nos últimos cinco anos antes da cessação do contrato de trabalho, trabalhou para a ré fora do respectivo horário de trabalho [factos provados 58), 60) e 61)], com o conhecimento e sem oposição da ré [factos provados 65) e 66)], sendo que a ré teve interesse e tirou proveito do trabalho assim prestado pelo autor [facto provado 67)].

Ora, neste caso, ainda que não se tenha demonstrado a prévia autorização da entidade empregadora relativamente à prestação de trabalho suplementar, o trabalho suplementar não pode deixar de ser remunerado, sob pena de se frustrar o direito do trabalhador à retribuição do trabalho prestado e de se acolher uma manifesta ofensa aos princípios da justiça e da proporcionalidade ínsitos na ideia do Estado de direito, que decorre dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Na verdade, tal como se assevera no citado Acórdão n.º 635/99 do Tribunal Constitucional, «não é aceitável num Estado de Direito assente sobre o conceito da dignidade da pessoa humana a manutenção de uma norma que permita a realização de trabalho, mesmo suplementar, sem que o trabalhador veja remunerado o seu esforço, tanto mais que tal actividade foi desenvolvida no âmbito de uma relação de trabalho por conta de outrem. O princípio de justiça impede o legislador de dar o seu aval a uma norma que, de forma mais ou menos arbitrária (i. e., sem razão válida), não respeite as mais elementares concepções de justiça que vigoram na comunidade e que o concreto ordenamento jurídico pressupõe.»

E prossegue o mencionado acórdão do Tribunal Constitucional, «[t]ambém o princípio da proporcionalidade que, nesta perspectiva, mais não é do que uma precipitação do princípio de justiça, não pode deixar de considerar-se violado: releva claramente do arbítrio, uma interpretação da norma que não permita uma equiparação aos casos em que existe “prévia e expressa determinação” do empregador, dos casos em que o trabalho suplementar é prestado com conhecimento da entidade patronal e sem a sua oposição, como também é desrazoável e desproporcionado que a norma, neste casos, torne “não exigível o respectivo pagamento” do trabalho suplementar prestado de tal modo.»

Tudo para concluir que deve reconhecer-se ao autor o direito à remuneração do trabalho suplementar peticionado, relegando-se a correspondente quantificação para posterior incidente de liquidação, nos termos assinalados pelo acórdão recorrido.

Improcedem, pois, as conclusões A) a F), I) a K) e N, na parte atinente, da alegação do recurso de revista da ré.

4. A ré pugna, também, que, mesmo que o autor «tivesse, efectivamente, prestado trabalho suplementar é manifesto que, com a sua atitude, renunciou tacitamente à remuneração a que eventualmente tivesse direito, por aquele tipo de prestação laboral (cfr. art. 809.º do Cód. Civil).»

A norma invocada estabelece que «[é] nula a cláusula pela qual o credor renuncia antecipadamente a qualquer dos direitos que lhe são facultados nas divisões anteriores nos casos de não cumprimento ou mora do devedor, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 800.º».
Ora, por um lado, a pretendida renúncia não foi dada como provada, e, por outro lado, está vedado a este Supremo Tribunal extrair ilações da matéria de facto assente, cabendo-lhe apenas aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, como resulta do n.º 2 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho, conjugado com os artigos 674.º, n.º 3, e 682.º do novo Código de Processo Civil.

Nesta conformidade, improcedem as conclusões G) e N), na parte atinente, da alegação do recurso de revista da ré.

5. A ré invoca, igualmente, que «o exercício do direito nos moldes expostos, excedem os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, devendo tal exercício ser considerado ilegítimo, ou seja, há neste caso manifesto abuso de direito (cfr. art. 334.º do CC)».

O abuso do direito, conforme decorre do artigo 334.º do Código Civil, traduz-se no exercício ilegítimo de determinado direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular, ao exercê-lo, exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Não basta, pois, que o titular do direito exceda os limites referidos naquele preceito, é necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito que é exercido.

Doutra parte, não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, ou seja, não é necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, basta que na realidade (objectivamente) esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e intolerável, pois, como é sabido, o ordenamento jurídico acolheu a concepção objectiva do abuso do direito (cf., por todos, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1967, p. 217).

A proibição do venire contra factum proprium é uma das modalidades que o abuso de direito pode revestir, caracterizando-se pelo «exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente» (cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, p. 275) e, no dizer de BAPTISTA MACHADO («Tutela da Confiança e Venire contra factum proprium», in Obra dispersa, vol. I, p. 416, e in RLJ, n.º 3726 e seguintes), o ponto de partida do venire é «uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira», podendo «tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico».

«Todavia, para que o venire se verifique não basta a existência de condutas contraditórias. É necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que com base nessa situação de confiança a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis, isto é, que tenha investido nessa situação de confiança e que esse investimento não possa ser desfeito sem prejuízos inadmissíveis» (Acórdão deste Supremo Tribunal, de 30 de Março de 2006, Revista n.º 3921/05 da 4.ª Secção).

Ora, cabe àquele que invoca o abuso de direito demonstrar os factos em que assenta tal invocação (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), sendo que, atenta a matéria de facto provada, esse ónus, no caso, não se mostra cumprido.

Com efeito, da factualidade discriminada, não resulta provado que o autor tenha assumido qualquer actuação que, objectivamente considerada, constitua uma ofensa grave e manifesta das regras da boa fé e do fim social e económico do direito.

Não se configurando abuso do direito na actuação do autor, ao peticionar o pagamento de trabalho suplementar prestado, improcedem as conclusões H) e N), na parte atinente, da alegação do recurso de revista da ré.
             
6. Em derradeiro termo, a ré insurge-se contra a respectiva condenação como litigante de má fé, aduzindo que o seu comportamento, «ao negar a existência da prestação de trabalho suplementar, fazia-o na convicção de que a prestação do trabalho do A. não preenchia os requisitos legais para ser classificada como tal, ou seja, a sua conduta não é nem dolosa nem praticada com negligência grave (cfr. n.os 1 e 2, alínea b), do art. 542.º do NCPC)».

Nos termos do n.º 2 do artigo 456.º do anterior Código de Processo Civil, a que corresponde o n.º 2 do artigo 542.º do novo Código de Processo Civil, «[d]iz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.»

Ora, examinando a actuação processual da ré/recorrente nos segmentos em causa, não se vislumbra que aquela, com dolo ou negligência grave, tenham deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, ou tenham feito do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, tendo-se limitado, isso sim, a expor o seu entendimento jurídico.

Tal como alude a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal, «[t]endo obtido a Ré provimento na 1.ª instância sobre a não verificação de trabalho suplementar prestado e/ou que devesse ser remunerado, e não sendo unânime o entendimento sobre a inconstitucionalidade das normas que apenas permitem o pagamento do trabalho suplementar quando houver expressa autorização da entidade patronal(-), não entendemos que a posição assumida pela Ré na oposição que fez, de facto e de direito, ao pedido do A. neste segmento, deva caber na previsão do art. 542.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e b), do CPC — certo que nunca poderão entender-se verificados os pressupostos da condenação por litigância de má-fé previstos nas alíneas c) e d) do mesmo normativo. A matéria de facto que veio a provar-se foi controvertida desde o início do processo e obteve-se mediante prova testemunhal, por essência falível. A qualificação jurídica dos factos julgados provados teve um enquadramento oposto nas instâncias, o que valerá por dizer que é ilegítimo concluir-‑se que a Ré não devia ignorar a falta de fundamento da oposição que exerceu à pretensão do A. Pois se até a posição que defendeu foi julgada procedente na 1.ª instância!»

Tudo para concluir que não se vislumbra fundamento legal para condenar a ré como litigante de má fé, termos em que procedem as conclusões L) a N), na parte atinente, da alegação do recurso de revista da ré.

                                              III

Pelos fundamentos expostos, delibera-se:

               a) Negar a revista trazida pelo autor, confirmando-se, nessa parte, o acórdão recorrido;
               b) Conceder parcialmente a revista da ré e revogar o acórdão recorrido no segmento em que condenou a ré como litigante de má fé, em multa e indemnização, confirmando‑se, no mais, o acórdão recorrido.

Custas, nas instâncias, a cargo do autor e da ré, na proporção do respectivo decaimento, sendo suportadas, provisoriamente, em partes iguais, relativamente à condenação a liquidar, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao autor.

Custas do recurso de revista do autor pelo respectivo recorrente, isto sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao autor.

Custas do recurso de revista da ré, a cargo do autor e da ré, na proporção de 1/4 e 3/4, respectivamente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao autor.

Anexa-se o sumário do acórdão.

                                Lisboa, 25 de Junho de 2014

Pinto Hespanhol (Relator)

Fernandes da Silva

Gonçalves Rocha