Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
141/08.6P6PRT.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SOUSA FONTE
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
ILICITUDE CONSIDERAVELMENTE DIMINUÍDA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - O DL 15/93, de 22-01, desenhou um tipo base ou fundamental de tráfico de estupefacientes – o descrito no seu art. 21.º –, ao qual aditou certas circunstâncias atinentes à ilicitude que agravam – art. 24.º – ou atenuam – art. 25.º – a punição prevista para o crime matricial. O primeiro, destinado a cobrir os casos de média e grande dimensão; o segundo, para prevenir os casos de excepcional gravidade; o terceiro, para combater os de pequena gravidade, o pequeno tráfico de rua.
II - As modalidades de acção são, em qualquer dos casos, as mesmas, as descritas no tipo base. A diferenciação entre eles faz-se a partir do mesmo tipo base, tendo em consideração o concreto grau da ilicitude da conduta ajuizada. Esta, em resumo, a orientação, pode dizer-se pacífica, que o STJ vem trilhando há vários anos.
III - O STJ, a propósito deste crime privilegiado, tido como válvula de segurança do sistema, em ordem a evitar que situações efectivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas – trata-se de um crime «para o pequeno tráfico, para o pequeno “retalhista” de rua» – vem entendendo, também sem discrepâncias de relevo, que a conclusão sobre o elemento típico da considerável diminuição da ilicitude do facto terá de resultar de uma valoração global deste, tendo em conta, não só as circunstâncias que o preceito enumera de forma não taxativa mas, ainda, outras, que apontem para aquela considerável diminuição.
IV - A avaliação da ilicitude de um facto criminoso como consideravelmente diminuída não pode deixar de envolver uma avaliação global de todos os elementos que interessam àquele elemento do tipo, tanto no domínio do direito penal da droga como em qualquer outro; aqui, como em qualquer outro campo do direito penal, não bastará, por certo, a presença de uma circunstância fortemente atenuativa para considerar preenchido o conceito, quando as restantes, com incidência na avaliação, são de sentido contrário, do mesmo modo que um conjunto de circunstâncias fortemente atenuativas não poderá ser postergado, sem mais, pela presença de uma circunstância grave. A imagem global do facto, no que se refere à sua ilicitude (parece pacífico que, para efeitos de preenchimento do crime do art. 25.º, não intervêm considerações sobre a culpa) é que é decisiva, como nos parece evidente. As dificuldades estarão em eleger os critérios de aferição dessa imagem global dos factos.
V - A actuação isolada, por sua conta e risco, não constitui, em si, índice de que a ilicitude do tráfico que praticou deva considerar-se diminuída e, muito menos, consideravelmente diminuída, como exige o art. 25.º. A actuação criminosa individual, neste ou noutro domínio, poderá até ser mais eficaz, do ponto de vista da fuga à repressão, como a experiência da vida a cada passo nos mostra. As hipóteses de delação, por quebra de cumplicidades, são efectivamente remotas.
VI - Do mesmo modo, também não diminui consideravelmente a ilicitude a circunstância de o agente ser surpreendido logo na primeira ocasião em que decidiu enveredar por essa actividade marginal. Tudo dependerá da imagem global da conduta.
VII - No caso concreto, o arguido detinha, quando surpreendido pela PSP, apreciável quantidade de produtos estupefacientes, em que sobressaem 424 embalagens de heroína, com o peso líquido de 53,949 g, quantidade que era suficiente para abastecer dezenas de consumidores, tendo em conta a informação contida no mapa anexo à Portaria 94/96, de 24-03, onde se refere que o limite do quantitativo diário de consumo de heroína, por pessoa, é de 0,1 g. A essa quantidade de droga há que juntar a que já tinha vendido por aproximadamente € 910, o que indicia quantidade nada despicienda.
VIII - Além da quantidade, a qualidade da droga detida para venda, heroína, e cocaína, é das mais nefastas para a saúde, desde logo pelo grau e intensidade de adição que provocam.
IX - A modalidade da conduta – venda a consumidores com fins lucrativos – é das mais graves, se não a mais grave das enunciadas no tipo fundamental.
X - As circunstâncias em que agiu ao invés de atenuarem, agravam a ilicitude do seu comportamento: tem vivido praticamente sem trabalhar, mesmo depois de ter constituído família; foi, durante algum tempo, beneficiário do rendimento social de inserção que lhe foi retirado por não ter frequentado um curso de formação profissional que lhe poderia facilitar a integração no mercado de trabalho; pouco tempo depois, procurou na venda de droga os meios de sobrevivência.
XI - Estamos, assim, sem dúvida, perante um quadro que não consente que falemos em ilicitude consideravelmente diminuída, razão por que a conduta do arguido cai na previsão do art. 21.º do DL 15/93.
XII - A conduta do arguido, apesar de grave, assume um grau que não a afasta significativamente do mínimo pressuposto pelo tipo base, pelo que se entende adequada a pena concreta de 4 anos e 6 meses de prisão.
XIII - O STJ vem entendendo que, não se verificando no caso circunstâncias excepcionais, não deve suspender-se a execução da prisão aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes por a tanto se aporem as expectativas comunitárias da validade da norma violada.

Decisão Texto Integral:




Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

1. Na 2ª Vara Criminal do Porto, no processo em epígrafe, respondeu o arguido AA, filho de V...A...dos S...C... e de A...M...O...de A... nascido em 18 de Maio de 1984, em Massarelos, no Porto, onde reside no Bairro do Aleixo (cfr. § 8º do nº 7 dos Factos Provados), sob a acusação de ter praticado, em autoria material, um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 14°, nº 1 e 26°, do CPenal, e 21°, nº 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
A final foi condenado pela prática desse crime na pena de 5 anos e 3 meses de prisão.

Inconformado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de cuja motivação extraiu as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1 – A factualidade provada permite concluir que o arguido detinha no dia 25 de Julho de 2008, produto estupefaciente, 53,949 gramas heroína, uma embalagem contendo 1,172 gramas de cocaína e 904,71 euros, resultantes das vendas efectuadas, não foram em data anterior, apuradas quaisquer vendas, uma vez que, o agentes da P.S.P intervieram no dia em apreço, em missão ocasional de vigilância, não foram identificados consumidores que lhe tenham adquirido droga, sendo que se apurou que a conduta do arguido se subsumiu ao dia da detenção, o arguido tinha à data da prática dos factos 24 anos de idade, sendo que o seu percurso vivencial foi afectado pelo meio onde vivia, e pelo consumo de produtos estupefacientes. Situação que foi alterada uma vez que o arguido constituiu agregado familiar, agregado que lhe proporciona um ambiente equilibrado e integrado socialmente, tendo abandonado o consumo de drogas, pelo que, a sua conduta dever-se-ia subsumir à previsão do artigo 25 do D.L 15/93 de 22-01.
2 – A determinação da medida da pena parte do postulado de que as finalidades de aplicação das penas são, em primeiro lugar, a tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, constituindo a medida da culpa o limite inultrapassável da medida da pena.
3 – Na determinação concreta da medida da pena, o julgador atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (art 71 do CP), ou seja, as circunstâncias do complexo integral do facto que relevam para a prevenção e para a culpa.
4 – Ponderada a globalidade da matéria factual provada, a conduta do arguido deveria ser subsumível à previsão do disposto no artigo 25 n° 1 do D.L 15/93 de 22-01.
5 – Face aos critérios legais (arts 70 e 71) o recorrente deveria ser punido atento às razões aduzidas na motivação do recurso ora interposto, com relevo para o tempo em que decorreu a actividade ilícita, um dia, durante algumas horas, a sua confissão ainda que parcial, mas que foi importante, uma vez que, os agentes, não presenciaram actos de venda em concreto, isto é, a detenção do mesmo decorre da observação pelos O.P.C, mas em simultâneo, a sua idade, 24 anos e abandono da prática do ilícito, em medida não superior a 3 ano e 6 meses de prisão, pena esta que atento á sua condição pessoal, e demais circunstancialismo referido no relatório social, deveria ser suspensa por igual período, sujeito ao regime de prova p.p no artigo 53 do CP.
O arguido poderá cumprir uma medida probatória dirigida, sujeita a um plano de intervenção técnica, com determinadas injunções entre as quais a melhoria das suas habilitações académicas, com vista á profissionalização e futura integração laboral que possam reforçar/potenciar as aquisições subjacentes a um processo normativo de integração social."
6 – A decisão recorrida violou, nessa parte, os arts 40, 50, 53, 70 e 71 do C. P.
7 – Sem prescindir, e mesmo entendendo que da conjugação dos factos provados e não provados, a conduta do arguido se subsume ao ilícito p.p no artigo 21 n° 1 do D-L15/93 de 22-01, haveria, atento ao circunstancialismo favorável apurado, designadamente, a já referido no ponto 9 da motivação do recurso, nomeadamente, ter confessado parcialmente os factos, 24 anos à data da prática dos factos, ter abandonado a prática do ilícito, mesmo em liberdade após a detenção, estar integrado no meio onde reside, vivendo com a esposa, 2 filhos menores e o progenitor, situação diversa daquela que o arguido tinha à data da detenção.
Na verdade, quer as razões de prevenção geral, quer as razões de prevenção especial se mostram atenuadas, na medida em que, o arguido admitiu a sua conduta, o que revela, capacidade crítica pelos actos cometidos, alterou o seu comportamento, cessando com o consumo de drogas, e procurando refugiar-se no agregado familiar de base, que não é conotado com a prática de ilícitos, mantendo um comportamento adequado ás regras sociais, após o cometimento do crime, não tendo pendentes processos. Tal denota, motivação por parte do arguido em querer alterar a sua trajectória de vida, que, se apoiada tecnicamente, poderá ser determinante na integração social do arguido. Na verdade, não existe no meio qualquer sintoma de rejeição ao arguido ou ao seu agregado. O crime cometido, foi ocasional, não teve continuidade no tempo, sendo que, o bem jurídico protegido, saúde pública, foi no caso em apreço, violado mas de forma muito menos grave, se se apurasse que a conduta do arguido era feita de uma forma regular e prolongada no tempo.
A sua detenção deveu-se única e exclusivamente ao facto dos agentes da P.S.P patrulharem o local, não era visado em qualquer investigação, e não se apuraram quaisquer factos que denotem uma especial cuidado, ou artifício na venda. O comportamento integra a forma mais simples do ilícito – venda directa. Não detinha consigo, objectos ligados ao doseamento do produto, sendo que, também não lhe foram apurados quaisquer sinais de riqueza.
10 [como no original] – Pelo que, e no caso em apreço, o Tribunal deveria ter aplicado ao arguido, a pena de 4 anos de prisão, [suspendendo-a] na sua execução por igual período, atendendo que no caso em apreço, e atento ás razões supra aduzidas, existe um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, sendo que a simples ameaça da pena será suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização (em liberdade) do arguido. Deveria ainda o arguido ser sujeito a regime de prova, cujo plano de readaptação individual do arguido, teria subjacente a continuidade da abstinência do consumo de drogas e a ocupação laboral certa e remunerada.
Pelo que, deve ser revogada nos termos sobreditos».

Respondeu o Senhor Procurador da República que concluiu pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação do acórdão recorrido.

O Senhor Procurador-geral Adjunto deste Tribunal emitiu parecer em que, tendo embora repelido a pretensão do Recorrente de ver alterada a qualificação dos factos, no sentido de integrarem o crime de «tráfico de menor gravidade», p. e p. pelo artº 25º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, concluiu que, na consideração, além de outras circunstâncias, «das penas aplicadas por este Tribunal em situações semelhantes para um tráfico de relevo não acentuado», a pena se deve aproximar dos 4 anos e 6 meses de prisão cuja execução entende não dever ser suspensa.

Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do CPP, o Arguido veio «reiterar o teor da motivação».

Corridos os vistos legais, vieram os autos à conferência para decisão.
Cumpre, pois, decidir.

2. Decisão
2.1. É do seguinte teor a decisão sobre a matéria de facto, que igualmente se transcreve:
«Os factos provados
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1) Cerca das 23h30 do dia 25 de Junho de 2008 e quando, trajando à civil, patrulhavam a zona do Bairro do Aleixo, nesta cidade, agentes da P.S.P. aperceberam-se que o arguido se encontrava junto à Torre 1 daquele bairro, estando o mesmo rodeado de diversos indivíduos que apenas permaneciam junto dele pelo período de tempo estritamente necessário a com ele efectuarem rápidas transacções.
2) Por tal motivo, aqueles agentes policiais dirigiram-se ao local em que permanecia o arguido e tendo logrado aproximar-se do mesmo sem serem reconhecidos como agentes de autoridade, conseguiram interpelar o arguido, desta forma lhe tendo apreendido um saco plástico que o mesmo segurava nas mão e em cujo interior se encontravam:
- 424 (quatrocentas e vinte e quatro) embalagens de plástico contendo um produto em pó que, posteriormente e em sede de exame laboratorial, revelou ser heroína - substância incluída na Tabela I-A do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro - com o peso líquido global estimado de 53,949 gramas (correspondente ao peso bruto total de 115,813 gramas, deduzido de 61,864 gramas de peso estimado da respectiva tara), assim como,
- uma embalagem contendo um produto sólido que laboratorialmente revelou ser cocaína - substância incluída na Tabela I-B do diploma acima indicado - com o peso líquido global de 1,172 gramas.
3) Ainda na mesma ocasião foi apreendido ao arguido uma mochila que o mesmo trazia então, ao pescoço, e em cujo interior se encontrava a quantia de €904,71 (novecentos e quatro euros e setenta e um cêntimos), por ser resultantes das vendas de heroína e cocaína pelo mesmo efectuadas momentos antes de ter sido alvo da descrita acção policial.
4) Também na mesma ocasião foram apreendidos ao arguido uma nota de €5 (cinco euros), assim como os objectos em ouro examinados a fls. 45, sendo que aquele dinheiro era resultante de venda de produto estupefaciente.
5) Agiu o arguido com perfeito conhecimento da natureza e características das substâncias que lhes foram apreendidas nos autos e que destinava à venda a quaisquer consumidores das mesmas que o procurassem no Bairro do Aleixo, não obstante saber que a respectiva aquisição, detenção, cedência e/ou venda lhe eram actividades vedadas, porque proibidas e punidas por lei
6) Mais agiu o arguido de forma livre e conscientemente.
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Mais se apurou, quanto às condições de vida do arguido:
7) Que o processo educativo do arguido decorreu no agregado familiar de origem, sendo o único filho da união dos progenitores, que já tinham descendentes de relações anteriores.
O arguido cresceu com um dos irmãos mais velhos, junto da mãe, uma vez que todos os outros já tinham agregados familiares autónomos, por serem mais velhos.
A dinâmica familiar ficou marcada pelos hábitos etílicos de ambos os pais. O pai trabalhava como sapateiro e a mãe como cozinheira.
O seu percurso escolar foi iniciado em idade regulamentar, tendo-o abandonado, aos 14 anos, com o 4º ano de escolaridade. Este ficou marcado por retenções e absentismo, a favor do grupo de pares que mantinham comportamento idêntico ao dele. Apesar de ter frequentado o colégio "Novo Sol", em regime externo, não conseguiu ultrapassar aquela situação. Permaneceu inactivo desde o abandono da escola até aos 17 anos de idade, em contexto do espaço residencial, Bairro do Aleixo, junto de indivíduos que se dedicavam à ociosidade.
A sua actividade profissional restringe-se a experiências esporádicas e curtas, exercidas, no máximo, cerca de 3 meses, como ajudante de electricista.
Aos 22 anos iniciou uma relação de namoro, tendo quase de imediato passado a viver em união de facto. O casal decidiu contrair matrimónio ao fim de 8 meses.
AA viveu, durante algum tempo, em casa da sogra, na morada constante nos autos, sendo essa a sua morada à data dos factos.
Em Novembro de 2008, o casal passou a residir no Bairro do Aleixo em casa do pai do arguido, que vivia só e já se encontrava reformado. Esta alteração ficou a dever-se à exiguidade de espaço da casa da sogra, tendo a do progenitor melhores condições para acolher os seus dois filhos menores
A relação do casal tem sido marcada por algumas dificuldades, uma vez que a mulher lhe atribuiu relações extra-conjugais, as quais, contudo não valoriza.
O arguido permanece inactivo, bem com a sua mulher, pelo que subsistem do rendimento social de inserção atribuído àquela, no valor de € 335, dos subsídios familiares de, respectivamente, maternidade, no valor de € 121 e filhas, no valor de € 84.
AA foi beneficiário da prestação do rendimento social de inserção até há pouco tempo, tendo o mesmo sido cessado pelo não cumprimento de uma das acções acordados no seu plano de inserção social – frequência de um curso de revalidação de competências – para o habilitar com a escolaridade obrigatória, com vista a integrar formação profissional e ou mercado de trabalho
O casal habita um apartamento T2, com boas condições integrado no Bairro do Aleixo, espaço conotado com práticas sociais desviantes, nomeadamente o tráfico e consumo de estupefacientes.
O arguido consumiu haxixe, dos 13 aos 17 anos, problema, entretanto, ultrapassado.
8) O arguido apresenta os seguintes antecedentes criminais:
Por decisão datada de 19/11/07, transitada em julgado em 19/11/07, por factos praticados em 02/07/07, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução ilegal, p. e p. pelo art. 3º, do D.L. 2/98, de 3/1, na pena de admoestação (P. n° 628/07.8PGMTS, do 2o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos).
9) Confessou parcialmente os factos.
*
Os factos não provados
Com interesse para a decisão da causa, não se provou o seguinte facto
A) Que os objectos em ouro referidos no ponto 4) dos factos provados tinham sido pelo arguido recebidos em troca das porções de cocaína e heroína
B) Que o arguido vendia por conta de outrem.
Com utilidade para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos que não estejam já em oposição ou prejudicados pelos que foram dados como provados e não provados».

2.2. O Objecto do recurso
Nas conclusões com que encerra a motivação que, em última instância, definem o objecto do recurso (cfr. arts. 412º, nº 1, do CPP e 684º, nº 3 e 685-A, do CPC), o Recorrente suscita três questões:
1ª) a qualificação jurídica dos factos cuja prática lhe é assacada;
2ª) a medida da pena;
3ª) a espécie da pena.

2.2.1. Quanto à qualificação dos factos
O Tribunal a quo, ponderando a integração do factos provados no tipo-base do artº 21º do DL 15/93 ou no crime privilegiado, dito «tráfico de menor gravidade», do artº 25º do mesmo diploma, concluiu que a qualificação correcta era a de que o Arguido incorria na prática do primeiro.

O Recorrente, como se viu, impugna essa qualificação, considerando, ao invés, que deve ser condenado pela autoria do crime do artº 25º.

Curiosamente, a leitura e interpretação que ambos fazem dos preceitos legais em análise são substancialmente idênticas.
Mas diferem radicalmente na concreta valoração dos factos provados.

Ora bem.
O DL 15/93, de 22 de Janeiro, desenhou um tipo base ou fundamental de tráfico de estupefacientes – o descrito no seu artº 21º –, ao qual aditou certas circunstâncias atinentes à ilicitude que agravam – artº 24º – ou atenuam – artº 25º – a punição prevista para o crime matricial. O primeiro, destinado a cobrir os casos de média e grande dimensão; o segundo, para prevenir os casos de excepcional gravidade; o terceiro, para combater os de pequena gravidade, o pequeno tráfico de rua.

As modalidades da acção são, em qualquer dos casos, as mesmas, as descritas no tipo base. A diferenciação entre eles faz-se a partir do mesmo tipo base, tendo em consideração o concreto grau da ilicitude da conduta ajuizada.

Esta, em resumo, a orientação, pode dizer-se pacífica, que o Supremo Tribunal de Justiça vem trilhando há vários anos e que, tanto o Tribunal recorrido como o Recorrente, mostram ter perfilhado.

O problema que, então, há que resolver é o de saber se a ilicitude da conduta do Arguido, materializada nos factos que foram julgados provados, concretamente os dos nºs 1 a 6 que ficaram transcritos no início, deve/tem de se qualificar como consideravelmente diminuída ou, antes, se assume um grau de gravidade médio ou elevado (a excepcional gravidade está fora de questão).

O Supremo Tribunal de Justiça, a propósito deste crime privilegiado, tido como válvula de segurança do sistema, em ordem a evitar que situações efectivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas – trata-se de um crime «para o pequeno tráfico, para o pequeno “retalhista” de rua», como se disse, por exemplo, no Acórdão de 31.01.02, Pº nº 4624/01-5ª, citando Maia Costa em “Direito Penal da droga: breve história de um fracasso”, Revista do Ministério Público, Ano 19, Nº 74, 103 e segs. –, vem entendendo, também sem discrepâncias de relevo, que a conclusão sobre o elemento típico da considerável diminuição da ilicitude do facto terá de resultar de uma valoração global deste, tendo em conta, não só as circunstâncias que o preceito enumera de forma não taxativa mas, ainda, outras que apontem para aquela considerável diminuição.
Reiteramos, mais uma vez, este entendimento, porquanto também pensamos que a avaliação da ilicitude de um facto criminoso como consideravelmente diminuída não pode deixar de envolver uma avaliação global de todos os elementos que interessam àquele elemento do tipo, tanto no domínio do direito penal da droga como em qualquer outro. Aqui, como em qualquer outro campo do direito penal, não bastará, por certo, a presença de uma circunstância fortemente atenuativa para considerar preenchido o conceito, quando as restantes, com incidência na avaliação, são de sentido contrário, do mesmo modo que um conjunto de circunstâncias fortemente atenuativas não poderá ser postergado, sem mais, pela presença de uma circunstância grave. A imagem global do facto, no que se refere à sua ilicitude (parece pacífico que, para efeitos de preenchimento do crime do artº 25ª, não intervêm considerações sobre a culpa) é que é decisiva, como nos parece evidente. As dificuldades, como o demonstra o presente recurso, estarão em eleger os critérios de aferição dessa imagem global dos factos.

O acórdão recorrido, depois de passar em revista aqueles factos (os dos nºs 1 a 6) concluiu:
«Basta atentar nos factos acima elencados para logo se alcançar da gravidade imanente do presente quadro factual.
Temos um típico episódio de venda de produtos estupefacientes, em que o arguido, à noite e num local consabidamente dedicado ao tráfico, vendeu droga a vários toxicodependentes, que para o efeito o procuraram, com a transacção de drogas apelidadas de "duras" (heroína e cocaína), de uma forma que denota ou revela já alguma "endurance" ou prática, e em que foi apreendida quantidade de dinheiro já com algum relevo.
Em súmula, torna-se insusceptível de subsumir a conduta do arguido ao disposto no art. 25° pelo que forçosamente está o mesmo incurso na prática do art. 21°…».

O Recorrente, por sua vez, sublinha que, «face à factualidade provada de que o arguido detinha nas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o produto estupefaciente apreendido, aliadas ao facto de à data da prática dos factos o arguido ser consumidor de produtos estupefacientes (…) sem o suporte de qualquer tipo de organização, sem ter sido apuradas quaisquer vendas anteriores e ao acto ilícito se subsumir ao dia da detenção – …, tendo-se presentes as implicações do princípio da proporcionalidade, tem de se concluir que se está perante uma actividade de tráfico de menor gravidade relativamente à ilicitude típica do Art. 25º…».
E, enfrentando directamente a argumentação do acórdão recorrido, argumenta, por um lado, que, «embora a quantidade de dinheiro e droga apreendida, a mesma, não sendo de considerar diminuta, também não pode considerar-se grande quantidade …» e, por outro, que «para além do produto estupefaciente e dinheiro que detinha, nada mais foi apreendido ao recorrente como ligado à actividade ilícita …».

O Senhor Procurador-geral Adjunto, por seu turno, realçou, em defesa do decidido, a quantidade de droga que o Arguido detinha no momento da prisão, especialmente de heroína, susceptível de abastecer várias dezenas de consumidores; a circunstância de, antes, ter transaccionado quantidades significativas do produto, no que apurou mais de €900,00; a sua qualidade, «das mais perniciosas»; o móbil da actividade, o de, permanecendo inactivo, obter vantagens económicas.
Nesta conformidade, concluiu: «apesar da actuação do arguido se tenha concretizado apenas numa única acção, não lhe sendo referenciadas outras antes ou depois da intervenção das autoridades policiais, também é verdade que as mesmas autoridades detectaram que o arguido estava “rodeado de diversos indivíduos que apenas permaneciam junto dele pelo período de tempo estritamente necessário a com ele efectuarem rápidas transacções”, o que faz naturalmente pressupor um conhecimento anterior, ou seja, uma ligação àquele circuito do tráfico».

O Recorrente, como se constata, põe o acento tónico da sua argumentação na circunstância de a sua actividade de traficante, que surge não inserida em qualquer tipo de organização, se ter resumido à detectada naquele dia e hora e de ser então, também ele, consumidor de estupefacientes.
Relendo a decisão sobre a matéria de facto, é evidente que esta última circunstância não tem aí qualquer suporte. Está até em contradição com o que vem provado: praticou os factos quando tinha 24 anos de idade e o que vem provado é que «consumiu haxixe, dos 13 aos 17 anos, problema, entretanto ultrapassado».
Por outro lado, se não se provou estar o Arguido integrado, associado ou de qualquer modo conotado com qualquer estrutura ou organização dedicada ao tráfico de estupefacientes, também não se provou que estejamos perante um acto ocasional de tráfico. Seja como for, a actuação isolada, por sua conta e risco, não constitui, em si, índice de que a ilicitude do tráfico que praticou deva considerar-se diminuída e, muito menos, consideravelmente diminuída, como exige o artº 25º. A actuação criminosa individual, neste ou noutro domínio, poderá até ser mais eficaz, do ponto de vista da fuga à repressão, como a experiência da vida a cada passo nos mostra. As hipóteses de delação, por quebra de cumplicidades, são efectivamente mais remotas.
Do mesmo modo, também não diminui consideravelmente a ilicitude a circunstância de o agente ser surpreendido logo na primeira ocasião em que decidiu enveredar por essa actividade marginal – o que, repete-se, nem sequer se pode dar por assente no nosso caso.
Tudo dependerá, como o próprio Recorrente aceita, da imagem global da conduta
Ora, o caso concreto, com relevo para a valoração da ilicitude da conduta ajuizada diz-nos, em primeiro lugar, que o Arguido detinha, quando surpreendido pela PSP, apreciável quantidade de produtos estupefacientes, em que sobressaem 424 embalagens de heroína com o peso líquido de 53,949, quantidade que, como salientou o Senhor Procurador-geral Adjunto, era suficiente para abastecer dezenas de consumidores, tendo em conta a informação contida no mapa anexo à Pª 94/96, de 24 de Março, onde se refere que o limite do quantitativo diário de consumo de heroína, por pessoa, é de 0,1 grama.
A essa quantidade de droga há que juntar a que já tinha vendido por aproximadamente €910,00 – o que indicia quantidade nada despicienda.
Além, da quantidade, a qualidade da droga detida para venda, heroína e cocaína, é das mais nefastas para a saúde, desde logo pelo grau e intensidade de adição que provocam.
A modalidade da conduta – venda a consumidores com fins lucrativos – é das mais graves, se não a mais grave das enunciadas no tipo fundamental.
As circunstâncias em que agiu ao invés de atenuarem, agravam a ilicitude do seu comportamento: tem vivido praticamente sem trabalhar, mesmo depois de ter constituído família; foi, durante algum tempo, beneficiário do rendimento social de inserção que lhe foi retirado por não ter frequentado um curso de formação profissional que lhe poderia facilitar a integração no mercado de trabalho; pouco tempo depois, procurou na venda de droga os meios de sobrevivência.
Estamos, assim, sem dúvida, perante um quadro que não consente que falemos em ilicitude consideravelmente diminuída, razão por que a conduta do arguido cai na previsão do artº 21º do DL 15/93, como bem decidiu o acórdão recorrido.

2.2.2. Quanto à medida da pena
Em face do que acabamos de concluir, a pretensão do Recorrente em ver reduzida a pena em função da qualificação privilegiada que reclamava, fica prejudicada.
Mas, mesmo a manter-se, como mantivemos, a qualificação operada pela 1ª instância, entende o Arguido que também nessa hipótese a pena deve ser reduzida para o mínimo legal, de 4 anos de prisão.
Os fundamentos desta sua pretensão são os levados à conclusão 7.
O acórdão recorrido, na determinação da medida concreta da pena, começou por qualificar o grau de ilicitude da conduta de elevado.
Já vimos que não estamos perante um caso cuja ilicitude possa ser qualificada como consideravelmente diminuída, razão por que o caso cai na previsão do artº 21º
A moldura penal aqui cominada vai de 4 a 12 anos de prisão. O que significa que a amplitude do grau de ilicitude abrangida é muito larga, aí cabendo um vastíssimo leque de condutas, desde aquelas que, embora não possam qualificar-se como de menor gravidade, confinam com o conceito, até às muito graves, já contempladas no artº 24º. Ou seja, desde as condutas de média gravidade às de grande dimensão.
Dentro desta realidade, entendemos que a conduta do Arguido, apesar de grave, assume um grau que não a afasta significativamente do mínimo pressuposto pelo tipo base.
Por outro lado, o Arguido, como antecedentes criminais, regista apenas uma condenação por condução sem habilitação legal, em pena de admoestação, o que, do ponto de vista do seu comportamento ético, não é significativamente desvalioso.
Está inserido familiarmente.
Embora não seja rejeitado no meio, a verdade é que não exerce, nem verdadeiramente tem vindo a exercer, de forma contínua, qualquer actividade profissional. Como referem os factos provados, «a sua actividade profissional restringe-se a experiências esporádicas e curtas, exercidas, no máximo, cerca de 3 meses, como ajudante de electricista»; e, à data do acórdão, «permanecia inactivo».
Não lhe são apontadas faltas posteriores.
Deste modo, sem querermos desvalorizar nem o grau de culpa nem as exigentes razões de prevenção geral, devidamente ponderadas pelo Tribunal a quo, entendemos que razões de prevenção especial de socialização, com vista a fortalecer a sua inserção e integração na comunidade, justificam ou reclamam, como propõe o Senhor Procurador-geral Adjunto, uma pena mais próxima do limite mínimo da moldura aplicável, que por isso fixamos em 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2.2.3 Quanto à suspensão da execução da prisão
Fixada naquela medida a pena, abre-se efectivamente a discussão sobre a eventual suspensão da sua execução, nos termos previstos pelo artº 50º do CPenal.

O Recorrente reclama esse benefício, porquanto o «enquadramento familiar, abstinência do consumo e apoio social» permitem «um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido», mas sujeito a regime de prova, com a imposição de algumas regras de conduta: «manter a abstinência quanto ao consumo de drogas», «procurar valorizar-se profissionalmente frequentando cursos de formação que lhe permitam ter mais valias na integração do mercado de trabalho»; «manter ocupação laboral, ainda que temporária…».

O Senhor Procurador-geral Adjunto tem opinião contrária: «por um lado, não se vê que as circunstâncias do caso possibilitem a formulação dum prognóstico favorável ao arguido, e por outro lado, como este Supremo Tribunal vem decidindo em casos idênticos, “são fortes as razões de prevenção geral de integração e de intimidação, pois sempre que o Estado enfraquece a sua reacção contra as condutas de tráfico, não diminui e antes recrudesce a respectiva prática. Assim, a suspensão da execução da pena nos casos de tráfico comum, em que não se verifiquem razões muito ponderosas, que no caso se não postulam, seria atentatória da necessidade estratégica nacional e internacional de combate a esse tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria imperativos de prevenção geral».

Nos termos do nº 1 do artº 50º do CPenal, «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Na formulação desse prognóstico favorável, o tribunal, reportando-se ao momento da decisão e não ao momento da prática dos factos, atenderá especialmente às condições de vida do arguido e à sua conduta anterior e posterior ao facto. No entanto, mesmo quando razões de prevenção especial de socialização conduzam a esse prognóstico, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime. Não estão em causa quaisquer considerações de culpa mas apenas considerações de prevenção geral. «Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto…» (Figueiredo Dias,“As Consequências…”, 343).

Pois bem.

À luz destes ensinamentos, vem o Supremo Tribunal de Justiça entendendo que, não se verificando no caso circunstâncias excepcionais, não deve suspender-se a execução da prisão aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes por a tanto se oporem as expectativas comunitárias da validade da norma violada. Exemplos desta jurisprudência podemos encontrá-las, entre outros, nos Acórdãos de 27.09.07, Pº 3297/07-5ª, de 24.10.07, Pº nº 3220/07-3ª, de 18.12.08, Pº 3926/08-3ª; de 21.10.09, Pº 5/05.5GASTB:S1-5ª e de 15.07.09, Pº 200/02.9JELSB.S1.
O Arguido tem, é certo, um passado criminal pouco relevante – ainda assim, sem grande significado favorável, atenta a sua juventude. E não lhe são conhecidas actividades delituosas posteriores.
Confessou parcialmente os factos, o que, em termos de reflexo da personalidade, também não é particularmente abonatório porque confessou o… óbvio, detido que foi em flagrante.
As condições de vida – tem vivido na ociosidade praticamente desde que abandonou a escola, aos 14 anos, mesmo tendo constituído família; não tem hábitos de trabalho nem nunca procurou adquirir competência para se inserir ou facilitar a sua inserção no mercado de trabalho, mesmo sabendo que esse desinteresse seria, como foi, motivo para lhe ser retirada a prestação do rendimento social de inserção – não abalizam nem sequer favorecem o exigido prognóstico favorável; não nos dão garantias de que não volte a trilhar caminho idêntico.
Por outro lado, já vimos que, na falta de um quadro fortemente abonatório, razões de prevenção geral, consideradas as devastadoras consequências, designadamente para a saúde pública e para a coesão social, do tráfico de estupefacientes, sempre desaconselhariam a suspensão da execução da pena.
Nesta conformidade, improcede esta pretensão do Recorrente.

3. Nestes termos, na procedência parcial do recurso, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em reduzir para 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão a pena aplicada ao Arguido, confirmando no mais o acórdão recorrido
Sem custas (artº 513º, nº 1, do CPP)

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2010

Sousa Fonte (relator)
Santos Cabral