Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
125/22.1SHLSB-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
REEXAME DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA
Data do Acordão: 05/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. Os motivos de «ilegalidade da prisão» que constituem fundamento da providência de habeas corpus, de enumeração taxativa, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, pelo que o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível ordenada por entidade competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto pelo qual a lei a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.

II. A prisão preventiva, enquanto medida de coação de ultima ratio, está sujeita aos prazos de duração máxima previstos no artigo 215.º do CPP, a contar do seu início, findos os quais se extingue.

III. O prazo de reexame dos pressupostos da prisão preventiva, a que se refere o n.º 1 do artigo 213.º do CPP, não é um prazo de prisão preventiva.

IV. No caso, nem este prazo foi excedido, pois que o reexame ocorreu antes de decorridos três meses sobre a sua aplicação.

V. Sendo manifestamente infundado, o pedido é indeferido, com condenação do peticionante nos termos do n.º 6 do artigo 223.º do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório

1. AA, arguido com identificação nos autos, indiciado da prática de um crime de roubo agravado, alegando encontrar-se atualmente em prisão ilegal, por considerar ultrapassado o prazo de duração máxima da prisão preventiva em que se encontra, apresenta petição de habeas corpus, subscrita por advogado, nos termos e com os seguintes fundamentos:

«1.º O requerente é arguido no processo em referência, à ordem do qual se encontra sujeito à medida de prisão preventiva, decretada na sequência do seu primeiro interrogatório judicial, desde 31/12/2023.

2.º Tendo sido sujeito à medida de prisão preventiva em 31/12/2023, deveria ter-se procedido ao reexame sobre a subsistência dos pressupostos da sua sujeição a tal medida de prisão preventiva, em obediência ao disposto no artigo 213.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (doravante, CPP), o mais tardar, até 31/03/2023.

3.º Contudo, até ao momento, não foi o requerente, nem o seu defensor, notificado de qualquer decisão de reexame dessa medida de coacção.

4.º Sendo que a falta de tal iniciativa processual determina, daí em diante, a ilegalidade da persistência da privação da liberdade do requerente e fundamenta a dedução de providência de habeas corpus.

5.º O artigo 27.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP), estabelece que a prisão preventiva só poderá manter-se «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», condições essas que são concretizadas pelo legislador ordinário, nomeadamente no artigo 213.º do CPP, que prevê a reapreciação trimestral.

6.º  Assim, qualquer privação da liberdade que ocorra em incumprimento da lei processual penal terá inevitavelmente que se qualificar como ilegal.

7.º Constituindo circunstância que se integra no âmbito do habeas corpus, contrariamente ao que tem sido propugnado por alguma jurisprudência.

8.º E o entendimento contrário é violador do disposto no artigo 32.º n.º 1 da Constituição.

9.º Com efeito, a interpretação do artigo 222.º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do CPP, no sentido de que o «facto de não ter sido estritamente respeitado o prazo a que alude o artigo 213.º do CPP, para reexame dos pressupostos da prisão preventiva, não constitui de per si fundamento para a providência de habeas corpus» é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 27.º, n.º 1; 28.º, n.º 2; 31.º,n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 2 da CRP.

10.º Efectivamente, a omissão do reexame oficioso trimestral da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, imposto pelo artigo 213.º do CPP, por determinar ilegalidade, constitui fundamento da providência, subsumível à previsão da invocada alínea c), sob pena de inconstitucionalidade material da respectiva norma, por violação dos arts. 27.º, n.º 1, 28.º, n.º 2 , 31.º,n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 2 da CRP.

11.º O art. 213.º, n.º 1 do CPP impõe ao juiz a obrigação de proceder oficiosamente, de três em três meses, ao reexame da subsistência dos pressupostos que determinaram a aplicação da prisão preventiva.

12.º A ausência dessa reapreciação viola aquela disposição legal, pelo que a manutenção da prisão preventiva configura uma situação de prisão ilegal.

13.º Tal ilegalidade, por se traduzir numa ofensa grave e grosseira à liberdade, e concretizar uma situação de abuso de poder, integra os fundamentos taxativamente enunciados no n.º 2 do art. 222.º CPP.

14.º Assim, trata-se de uma situação que, de per si, é fundamento para a concessão da providência de habeas corpus.

15.º Entendimento diverso, está ferido de inconstitucionalidade material, porquanto viola, como referido, o disposto nos arts. 27.º, n.º 1; 28.º, n.º 2; 31.º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição.

16.º O direito à liberdade e à segurança são direitos fundamentais (art. 27.º, n.º 1 CRP), que apenas admitem as restrições constantes no n.º 3 do art. 27.º da Lei Fundamental, pelo tempo e nas condições que a lei determinar.

17.º Da interpretação conjunta das normas dos arts. 27.º, n.º 3 e 28.º, n.º 4 da CRP, concluímos que a reapreciação trimestral dos pressupostos da prisão preventiva, constitui uma verdadeira condição para que aquela medida de coacção se mantenha de forma legal.

18.º Quanto ao art. 28.º, n.º 2 da Constituição, ele afirma o carácter excepcional da prisão preventiva, com os inerentes princípios da subsidiariedade e da precariedade.

19.º De acordo com estes princípios fundamentais do processo penal, o juiz tem de avaliar se as medidas de coacção menos gravosas são suficientes para assegurar as exigências cautelares do art. 204.º do CPP.

20.º Mas quando o juiz se decida pela aplicação da prisão preventiva, tem ainda o ónus de realizar uma vigilância atenta e constante sobre os pressupostos que determinaram a sua opção se mantém, actuando nas vestes de garante dos direitos fundamentais.

21.º Assim, a não observância do disposto no art. 213.º do CPP compromete irremediavelmente o núcleo essencial do direito à liberdade e à segurança, sendo a providência de habeas corpus o instrumento jurídico adequado a reagir contra este atropelo e, porventura, o mais expedito.

22.º Na verdade, não obstante os arts. 212.º e 219.º do CPP, conferirem ao arguido a possibilidade de recurso, este nunca será decidido num “espaço de tempo muito curto”, portanto,

23.º A providência de habeas corpus é o único meio capaz de responder com a celeridade desejável, pondo término a uma situação de prisão ilegal.

24.º De acordo com o art. 31.º, n.º 1 da CRP, a providência de habeas corpus pode ser usada “como remédio contra o abuso de poder do próprio juiz, em substituição da via normal do recurso” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993)

25.º Apesar de nos casos de omissão não ser tão perceptível o abuso de poder, é um facto que o silêncio do Tribunal, sem qualquer motivação consistente, se traduz num puro arbítrio.

26.º Por sua vez, o art. 32.º, n.º 1 da Lei Fundamental, assegura ao arguido uma protecção global e completa dos direitos de defesa, sendo certo que esta garantia pressupõe decisões céleres e eficazes.

27.º Com efeito, sendo o recurso um meio processual que se pode prolongar no tempo, a providência de habeas corpus é a que melhor assegura a mencionada celeridade.

28.º Finalmente, o art. 32.º, n.º 2 consagra a presunção de inocência e o direito a um processo célere e justo.

29.º No que à primeira tange, consideramos que não se pode manter preso um cidadão presumido inocente, numa situação de incerteza, e com a agravante de não se lhe apresentarem fundamentos para a subsistência da prisão preventiva.

30.º Pelo que, a não realização do reexame trimestral apresenta-se-nos como uma ofensa grave à liberdade e à segurança e, como tal é subsumível no art. 222.º, n.º 2 al. c) do CPP.

31.º Por outro lado, o direito a um processo célere e justo funciona como garantia de que os prazos legais para a prática de actos processuais têm de ser observados pelo Tribunal.

32.º Assim, se este Órgão de Soberania não tiver praticado tempestivamente o acto devido, nos termos do art. 213.º, n.º 1 do CPP, e sem que tenha apresentado motivação para tal omissão, verifica-se uma situação de puro arbítrio, enquadrável nas hipóteses taxativamente previstas no art. 222.º do CPP.

33.º Desta forma concluímos que o art. 222.º, n.º 2 al. c) refere-se a “prazos fixados na lei ou por decisão judicial”.

34.º No caso em apreço, é a lei, no art. 213.º, n.º 1 do CPP que fixa o prazo de três meses para a reapreciação dos pressupostos que determinam a aplicação da prisão preventiva, sendo que este reexame culmina num despacho judicial.

35.º Caso não seja cumprido o disposto naquele preceito, isto é, não havendo decisão judicial a renovar a prisão preventiva, deve operar-se a extinção desta e, em consequência a manutenção da prisão do arguido traduz-se numa ilegalidade que, como ficou demonstrado, é subsumível no art.º 222.º, n.º 1 e 2, al. c) do CPP.

36.º Concluímos louvando-nos na posição expressa pelo Exmo Juiz Conselheiro Pamplona de Oliveira, no Acórdão n.º 64/2005 do Tribunal Constitucional:

«A natureza excepcional da prisão preventiva, condicionada a verificação judicial, actualizada e periódica, conduz a que não possa manter-se a partir do momento em que cessou a validade do despacho que a determina. Acresce que não é razoável exigir ao arguido preso que provoque ele próprio uma decisão que lhe é desfavorável, pois se destina a validar a prisão a que se acha sujeito. Entendo, portanto, que, no presente caso, o requerente não dispôs de outro meio, que não o habeas corpus, para fazer valer a sua pretensão. Ora, a taxatividade dos fundamentos do habeas corpus não pode sobrepor-se ao fim último do instituto, que é o de, em todos os casos em que tal se verifique, obstar ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal (artigo 31.º, n.º 1 da Constituição)» [disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050064.html].

Termos em que,

Com o sempre mui douto suprimento de V. Exas, se requer que seja declarada ilegal a manutenção da medida de prisão preventiva a que o requerente se encontra sujeito sem o devido reexame judicial trimestral e, em consequência, seja dado provimento à presente providência de Habeas Corpus.»

2. O Mmo. Juiz de instrução prestou a informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), sobre as condições em que foi efetuada e se mantém a prisão, dela fazendo constar o seguinte (transcrição):

«Como refere o Ministério Público, compulsados os autos, verifica-se que o arguido foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva a 2 de janeiro de 2023, conforme resulta do auto de interrogatório (decisão transitada em julgado).

A revisão trimestral da medida de coação foi realizada por despacho judicial, a 28 de março de 2023, na sequência de promoção do Ministério Público datada do dia anterior.

Foi solicitada a notificação do próprio arguido AA no EP ... em 29 de março de 2023.

Na mesma data foi devidamente efetuada a notificação ao defensor do arguido, ora subscritor do requerimento, para a morada que se encontrava e ainda se encontra consolidada no sistema.

O arguido AA foi pessoalmente notificado pelos Serviços Prisionais em 3 de abril de 2023, conforme certidão junta.

Relativamente à notificação do defensor do mesmo, apesar de a mesma ter sido devidamente efetuada, a carta veio devolvida aos autos, aberta, em 4 de abril de 2023, com a menção de “desconhecido”.

Não foi comunicada pelo defensor do arguido a mudança do seu endereço.

Assim, independentemente da construção legal em causa, não parece existir fundamento para a procedência do requerido.»

3. O processo encontra-se instruído com certidão da documentação processual pertinente, nomeadamente:

(a) Do auto de interrogatório de arguido detido e do subsequente despacho de indiciação e de aplicação da medida de prisão preventiva, de 2 de janeiro de 2023 (por lapso, fez-.se constar “2024”);

(b) Do mandado de condução do arguido ao estabelecimento prisional, com certificação de entrada no EP ... na mesma data;

(c) Do despacho de 28 de março de 2023 que procedeu ao reexame da prisão preventiva, nos termos do artigo 213.º do CPP;

(d) Do ofício de 29.03.2023 do Tribunal Central de Instrução Criminal ... dirigido ao Estabelecimento Prisional ..., solicitando a notificação desse despacho ao arguido;

(e) De certidão da notificação pessoal do despacho ao arguido, que a assinou no dia 03.04.2023;

(f) Da notificação por via postal dirigida ao advogado (defensor) do arguido, Dr. BB, que subscreve o requerimento de habeas corpus, no endereço Praça ..., ...;

(g) Da devolução desta carta de notificação ao tribunal, com a indicação de que o destinatário era “desconhecido”.

4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Após o que a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.


II. Fundamentação

5. O artigo 31.º, n.º 1, da Constituição consagra o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais.

O habeas corpus constitui uma providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344).

O artigo 27.º da Constituição, que se inspira diretamente no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 9.º), que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, garante o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço ou impedido de se movimentar (assim, por todos, o acórdão de 29.12.2021, Proc. 487/19.8PALSB-A.S1, em www.dgsi.pt).

Nos termos do artigo 27.º, todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena ou de aplicação judicial de medida de segurança privativas da liberdade (n.ºs 1 e 2), excetuando-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, em que se inclui a prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos [n.º 3, al. b)]. Como se tem afirmado, a prisão é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos neste preceito constitucional, de aplicação direta (por todos, o acórdão de 2.2.2022, Proc. n.º 13/18.6S1LSB-G, em www.dgsi.pt).

De acordo com o disposto no artigo 28.º, a detenção é submetida, no prazo máximo de 48 horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coação, em que se inclui a prisão preventiva, a qual tem natureza excecional e está sujeita aos prazos previstos na lei.

A prisão preventiva só pode ser aplicada por um juiz, que, em despacho fundamentado, verifica a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida, que a justificam (artigos 193.º, 194.º, n.ºs 1 e 5, e 202.º do CPP).

A medida de prisão preventiva é sujeita a reexame sobre a manutenção e atualidade dos seus pressupostos, o qual tem lugar no prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame, e quando no processo for proferida decisão que conheça, a final, do objeto do processo e não determine a extinção da medida aplicada [artigo 213.º, n.º 1, al. a) e b), do CPP].

6. Enquanto medida de coação de ultima ratio, a prisão preventiva está sujeita aos estritos prazos de duração máxima previstos no artigo 215.º do CPP.

Nos termos do n.º 1 deste preceito, a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação.

Estabelecendo o n.º 2 do mesmo preceito que este prazo é elevado para seis meses, em casos, entre outros, de criminalidade violenta ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos.

Para efeitos do disposto no Código de Processo Penal considera-se «criminalidade violenta» as condutas que, entre outras, dolosamente se dirigirem contra a vida e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos [artigo 1.º, al. j)].

7. As decisões de aplicação e reexame dos pressupostos da prisão preventiva podem ser impugnadas por via de recurso ordinário, nos termos gerais (artigos 219.º, n.º 1, e 399.º e segs. do CPP), sem prejuízo de recurso à providência de habeas corpus contra abuso de poder por virtude de prisão ilegal (artigos 31.º da Constituição e 222.º a 224.º do CPP), com os fundamentos enumerados no n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Dispõe o artigo 222.º do CPP que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

8. Em jurisprudência constante, tem este Supremo Tribunal de Justiça reiteradamente afirmado que a providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excecional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ou detenção ilegais – perante ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, ou seja, sem lei ou contra a lei que admita a privação da liberdade, referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, e que não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reação tendo por objeto a validade ou o mérito de atos do processo através dos quais é ordenada ou mantida ou que fundamentem a privação da liberdade do arguido ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis (artigos 399.º e segs. do CPP), que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (assim e quanto ao que se segue, por todos, de entre os mais recentes, o acórdão de 22.03.2023, Proc. n.º 631/19.5PBVLG-MC.S1, em www.dgsi.pt).

A diversidade do âmbito de proteção do habeas corpus e do recurso ordinário configuram diferentes níveis de garantia do direito à liberdade, em que aquela providência permite preencher um espaço de proteção imediata da pessoa privada da liberdade perante a inadmissibilidade legal da prisão.

9. Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se tem afirmado em jurisprudência uniforme e reiterada (cfr. acórdão de 10.01.2023 cit.), o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (assim, de entre os mais recentes, por todos, os acórdãos de 16.11.2022, Proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, de 06.09.2022, Proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1, de 9.3.2022, proc. 816/13.8PBCLD-A.S1, e de 29.12.2021, proc. 487/19.8PALSB-A.S1, em www.dgsi.pt).

10. A concessão do habeas corpus pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que a petição é apreciada, como também tem sido repetidamente sublinhado (assim, os acórdãos anteriormente citados bem como, de entre outros, os acórdãos de 21.11.2012, proc. n.º 22/12.9GBETZ-0.S1, 09.02.2011, proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1, de 11.02.2015, proc. n.º 18/15.9YFLSB.S1, e de 17.03.2016, proc. n.º 289/16.3JABRG-A.S1, em www.dgsi.pt).

11. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP e dos documentos juntos, resulta esclarecido, em síntese, que:

- O arguido foi detido e sujeito a primeiro interrogatório judicial no dia 2 de janeiro de 2023, data em que lhe foi aplicada a medida de prisão preventiva.

- A aplicação da prisão preventiva, verificados que foram os respetivos pressupostos de necessidade, adequação e proporcionalidade, fundou-se em factos que indiciam a prática de um crime de um crime de roubo qualificado p. e p. pelos artigos 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), e 204.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, agravado pelo artigo 86.º, n.ºs 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 6/2006, de 23.2, na versão da Lei n.º 50/2019, de 24.7), em concurso efetivo com um crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito, dispositivo ou dados de pagamento p. e p. pelo artigo 225.º, n.º 1, al. c), do Código Penal.

- Em 28 de março de 2023, alguns dias antes de terminar o prazo de 3 meses para o efeito, o juiz de instrução procedeu ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva, proferindo despacho nos seguintes termos: «analisado o processo e inexistindo alterações aos pressupostos que determinaram a prisão preventiva dos arguidos AA e CC (fortes indícios e perigos verificados), não sendo necessária a sua audição, mantenho tal medida de coação quanto a ambos (art.º 213.º do Código de Processo Penal). Notifique

- Este despacho foi pessoalmente notificado ao arguido no EP ... e ao seu advogado (defensor) por via postal para o endereço que constava do sistema, que foi devolvida, o que em nada influencia a validade e eficácia do ato judicial de reexame dos pressupostos da prisão preventiva.

12. O peticionante pretende que seja declarada a ilegalidade da prisão porque, alega, na data em que apresentou a petição, em 23.05.2023, nem ele nem o seu advogado (defensor) foram notificados de “qualquer decisão de reexame dessa medida de coação”. E porque a “falta de tal iniciativa processual determina”, a seu ver, “daí em diante, a ilegalidade da persistência da provação da liberdade”.

Acrescenta que o reexame trimestral dos pressupostos da prisão preventiva constitui um dos elementos que integram as “condições” de manutenção da sua legalidade, a que se refere o artigo 27.º, n.º 3 da Constituição, pelo que o prazo de reexame se deve comportar nos “prazos fixados por lei” para determinação da legalidade da prisão nos termos da al. c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP. Da perspetiva do requerente, a falta de reexame dos pressupostos da prisão preventiva, que, na sua alegação, se verificou no caso presente, constitui motivo da ilegalidade da prisão, sendo inconstitucional interpretação diversa “por violação dos artigos 27.º, n.º 1; 28.º, n.º 2; 31.º,n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 2 da CRP.”

13. Como se viu, a pretendida omissão de reexame dos pressupostos da prisão preventiva não tem correspondência com o que está demonstrado no processo.

Diferentemente do que afirma, sem poder alegar falta de conhecimento, por ter sido pessoalmente notificado do despacho – o que seria facilmente verificável pelo senhor advogado subscritor do requerimento por consulta do processo ou mediante contacto com o arguido –, o pretenso motivo de ilegalidade nunca se verificaria, pois que, como resulta dos autos, o reexame dos pressupostos da prisão preventiva foi efetuado por despacho do juiz de instrução de 28 de março de 2023, ou seja, antes de decorridos 3 meses sobre a data de aplicação da medida.

O que retira todo o fundamento à argumentação e à pretensão do requerente, não só quanto à invocada ilegalidade da prisão, mas também quanto à pretendida inconstitucionalidade da interpretação do artigo 222.º, n.º 2, al. c), do CPP, que, assim, não tem de ser conhecida.

14. Mas, mesmo que tal reexame não tivesse ocorrido, isso não seria motivo de ilegalidade da prisão, nos termos do artigo 222.º, n.º 2, al. c), do CPP, que se refere aos prazos de manutenção da prisão preventiva, que são os estabelecidos no artigo 215.º do CPP. Como se tem repetidamente afirmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, o prazo do n.º 1 do artigo 213.º do CPP não é um prazo de prisão preventiva, mas de reexame dos seus pressupostos [assim, nomeadamente, os acórdãos de 04-02-2010 (Manuel Braz), Proc, 837/08.2JAPRT-A.S1, de 23-10-2019 (Nuno Gonçalves), Proc. 780/16.1T9VFX-A, de 23-08-2021 (Sénio Alves), Proc. 869/18.2JACBR-F.S1, e de 17-03-2022 (Orlando Gonçalves), Proc. 544/21.0GCBRG-B.S1].

15. Assim, tendo a medida de coação de prisão preventiva sido aplicada em 02-01.2023 e podendo manter-se durante 6 meses até que seja deduzida acusação, por ocorrer o motivo de elevação do prazo do n.º 2 do artigo 215.º do CPP, dada a pena aplicável ao crime de roubo agravado por que o arguido se encontra indiciado (superior a 8 anos de prisão), que constitui criminalidade violenta (artigo 1.º, al. j), do CPP), não se verifica o motivo de ilegalidade previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, por a prisão não se manter atualmente para além do prazo fixado por lei.

Para além disso, tendo a privação da liberdade, por aplicação da prisão preventiva, sido ordenada por um juiz, que é a entidade competente, e motivada por facto pelo qual a lei a permite, também não ocorre qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo preceito.

16. Em consequência se conclui que o pedido carece manifestamente de fundamento, devendo ser indeferido [artigo 223.º, n.º 4, al. a), e 6 do CPP].


III. Decisão

17. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.ºs 3, 4, alínea a), e 6 do artigo 223.º do Código de Processo Penal (CPP), decide-se indeferir o pedido, julgando a petição de habeas corpus manifestamente infundada.

Nos termos do artigo 223.º, n.º 6, do CPP, vai o peticionante condenado na soma de 8 (oito) UC.

Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Supremo Tribunal de Justiça, 31 de maio de 2023.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Ernesto Carlos dos Reis Vaz Pereira

Pedro Manuel Branquinho Ferreira Dias

Nuno António Gonçalves