Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
43/09.9PJVFX-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO PENAL
RECURSO DE REVISÃO
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
IDENTIDADE DO ARGUIDO
ERRO DE IDENTIDADE
Data do Acordão: 11/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: CONCEDIDA A REVISÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS / REVISÃO / FUNDAMENTOS E ADMISSIBILIDADE DA REVISÃO.
Doutrina:
- Conde Correia, O «Mito» do Caso Julgado e a Revisão Propter Nova, Coimbra Editora, 2010, p. 381 e ss.;
- Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016, 2.ª ed..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 449.º, N.º 1, ALÍNEA D).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 29.º, N.º 6.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 10-04-2013, PROCESSO N.º 127/01JAFAR-C.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-01-2014, PROCESSOS N.º 1864/13.33T2SNT-A.S1;
- DE 16-01-2014, PROCESSO N.º 81/05.0PJAMD-A.S1;
- DE 19-03-2015, PROCESSO N.º 175/10.0GBVVD-A.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O direito à revisão de sentença, consagrado como direito fundamental (artigo 29.º, n.º 6, da Constituição), que se efectiva por via de recurso extraordinário que a autorize (art.º 449ss do CPP), com realização de novo julgamento, possibilita a quebra do caso julgado de sentenças condenatórias que devam considerar-se injustas, por ocorrer qualquer dos motivos taxativamente previstos na lei (artigo 449.º do CPP). A injustiça da condenação sobrepõe-se à eficácia do caso julgado, em homenagem às finalidades do processo, assim se operando o desejável equilíbrio entre a segurança jurídica da definitividade da sentença e a justiça material do caso.

II. Constitui jurisprudência constante deste Tribunal a de que, para efeitos de admissibilidade da revisão com fundamento no n.º 1, al. d), deste preceito, são factos novos ou novos meios de prova os que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação e que, sendo desconhecidos da jurisdição no acto de julgamento, permitam suscitar graves dúvidas acerca da culpabilidade do condenado; “novos”, acrescenta-se, são também os factos e os meios de prova que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser considerados pelo tribunal.

III. O recorrente fundamenta a sua pretensão em erro sobre a identidade, afirmando não ser a pessoa que foi julgada no processo.

IV. Das diligências realizadas e da prova produzida em instrução do pedido de revisão resulta que o recorrente nunca foi ouvido nem participou no processo e viu a sua identidade usurpada pela pessoa que foi detida, interrogada pelo juiz de instrução, julgada na ausência e condenada.

V. Devendo estes factos e meios de prova ser considerados «novos», suscitam-se graves dúvidas sobre a justiça da condenação, que justificam a revisão.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I.  Relatório


1. AA, arguido, com melhor identificação nos autos, vem, nos termos do disposto no artigo 449.º n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário de revisão do acórdão de 28 de Maio de 2012 do tribunal colectivo de …, transitado em julgado, que o condenou pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

2. Fundamenta o pedido em erro de identidade quanto à sua pessoa, apresentando meios de prova que alega serem novos.

Juntou 13 documentos e requereu a realização de exame das suas impressões digitais.

Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

«I. - O Recorrente não é a pessoa do Arguido detido no início dos presentes autos, apesar de ter o mesmo nome, naturalidade, filiação e data de nascimento.

II. - O Recorrente saiu de Portugal em 14 de Novembro de 2003 e reside no … desde 2004, tendo vindo a Portugal, uma única vez ao longo deste período, para passar 15 dias de férias em 17 de Agosto de 2017, tendo sido abordado pelo SEF logo no aeroporto e aí teve conhecimento do processo.

III. - Em 2009, data da prática dos factos descritos na Acusação e dados como provados, o Arguido detido residia com a sua companheira, de nome BB, em …, na Rua do …, Lote … - 1º Dto., Quinta da …, em casa arrendada.

Possuía conta Bancária e automóvel - Fiat Palio ...-...-JZ.

Já tinha tido diversas actividades profissionais remuneradas, com registo de descontos para a

Segurança Social desde 2001.

Tinha Bilhete de Identidade com o nº 1…0

Tinha nº de Contribuinte Fiscal

Tinha nº de Segurança Social

Declarou ainda ter uma filha.

IV. - Em 2009, o aqui Recorrente já vivia há vários anos no Canadá com a sua família, constituída pela sua esposa CC e os quatro filhos do casal: o DD de 11 anos; o EE de 3 anos; e os gémeos FF e GG com 1 ano. A filha HH viria a nascer no ano seguinte, igualmente no Canadá.

V. - Da consulta da Ficha Biográfica da Polícia Judiciária constante dos autos, resulta que existem vários inquéritos em que o Arguido se identificou como sendo AA, e também como II.

Daquela Ficha Biográfica, constam também os Sinais Particulares do Arguido:

Mão direita: Tatuagem // Barriga lado direito: Cicatriz // Antebraço direito: Tatuagem

Braço direito: Tatuagem // Geral: Canhoto

VI. - Aquelas características e sinais físicos não têm qualquer correspondência com o Recorrente, à excepção da cor da pele.

VII. - Do conjunto da prova documental apresentada e do confronto directo das assinaturas constantes de diversos documentos, atribuídas ao Arguido e ao Recorrente, resulta evidente tratar-se de assinaturas diferentes, forçosamente pertencentes a pessoas distintas.

VIII. - Estas questões conduzem à dúvida séria quanto à identidade da pessoa e quanto à justiça da condenação. Estas dúvidas assentam no conjunto das provas novas, o que fundamenta o pedido de revisão do Acórdão condenatório, com vista à anulação do mesmo.

Para tanto, apresenta como meios de prova, os documentos identificados nesta peça processual:

-   Doc. 1 - Título de Autorização de Residência

-   Doc. 2 - Passaporte … do Recorrente,

-   Doc. 3 - Visto de entrada nos …

-   Doc. 4 a 9 - passaportes canadianos do Recorrente, esposa e filhos

-   Doc. 10 a 13 - fotos recolhidas ao Arguido, comprovativas de ausência de tatuagens ou cicatrizes

E requer a realização de exame comparativo das suas impressões digitais com a ficha biográfica da Polícia Judiciária.»

3. Pronunciando-se sobre o mérito do pedido, de acordo com o disposto no artigo 454.º do CPP, consigna a Senhora Juíza do processo:

«O arguido AA veio interpor recurso extraordinário de revisão de sentença, com fundamento na al. d) do n.º 1 do artigo 449.º do C.P.P., invocando, em síntese, que houve um erro de identidade, tendo os factos pelos quais o recorrente foi condenado sido praticados por uma outra pessoa que, no momento em que foi detido, se identificou com os seus elementos de identificação. Alegou que saiu de Portugal em 14-11-2003, residindo no … desde 2004, tendo apenas vindo a Portugal no mês de agosto de 2017, tendo apenas tido conhecimento deste processo quando foi abordado pelo SEF no aeroporto. Juntou vários documentos e solicitou a realização de exame comparativo das suas impressões digitais com a ficha biográfica da Polícia Judiciária.

Após realizado exame na pessoa do recorrente no INML, resulta do relatório pericial de fls. 97-98 que o mesmo não apresenta nenhuma tatuagem ou marca corporal.

Por outro lado, o exame pericial efectuado no LPC da Polícia Judiciária conclui, no respetivo relatório de fls. 107-108, que não existe qualquer correspondência entre a impressão digital aposta no título de “Autorização de Residência n.º 30…” em nome de AA (que o recorrente juntou aos autos de recurso) e as impressões digitais apostas na resenha n.º 54118 do LPC da P.J. em nome de AA, concluindo a perícia que se trata de pessoas diferentes.

Foi, ainda, solicitado ao SEF, para consulta, o processo administrativo, tendo sido remetida certidão por aquele Serviço, e que se encontra apensada, por linha.

O Ministério Público emitiu douto parecer, a fls. 117-124, no sentido da procedência do presente recurso de revisão.

Nos termos do disposto no artigo 454.º do Código do Processo Penal, passamos a prestar informação sobre o mérito do pedido.

O recorrente (indicado como arguido nos autos principais) foi condenado como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º do D.L. 15/93, de 22-01, na pena de um ano e três meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por factos praticados entre um a dois meses anteriores ao dia 02 de dezembro de 2009.

No presente recurso extraordinário de revisão o recorrente invoca, como fundamentos para a sua procedência, factos novos bem como meios de prova que eram desconhecidos aquando da realização do julgamento que, recorde-se, ocorreu na ausência do arguido, tendo o ora condenado apenas tido conhecimento dessa condenação quando voltou a Portugal em 17-08-2017.

Dispõe a al. d) do n.º 1 do artigo 449.º do C.P.P. que “a revisão de sentença transitada em julgado é admissível se se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

Por um lado os elementos constantes dos autos principais, por outro, os documentos juntos pelo recorrente, as perícias efetuadas quer à pessoa do mesmo quer às impressões digitais constantes dos documentos (autorização de residência e ficha policial) e, por fim, o processo administrativo do SEF (certidão apensa por linha), após análise de tais factos e meios de prova ora apresentados, cremos que os mesmos suscitam efetivamente, em nossa opinião, graves dúvidas sobre a justiça da condenação do recorrente.

Tal conclusão estriba-se nos fundamentos aduzidos pela Digna e Insigne Procuradora da República no doutíssimo parecer que antecede, e aos quais aderimos, dando-os por reproduzidos pois melhor não lograríamos:

“- no dia 02/12/2009, pelas 18h00, a PSP deteve, em flagrante delito, um indivíduo que se identificou com a exibição da Autorização de Residência Permanente com o nº P0002…, emitida em …/07/2008, pelo SEF de Lisboa, onde figura o nome AA, nascido em …/10/1976, em …, filho de JJ e KK (cfr. auto de notícia por detenção de fls. 3 e ss);

- no dia 03/12/2009 foi o mencionado indivíduo, o arguido AA, submetido a primeiro interrogatório judicial, tendo-se identificado com o BI nº 1…0, de onde constavam as mesmas menções, conforme se alcança do teor do auto de interrogatório de fls. 35 e ss;

- nessa diligência foi assistido pela Dr.ª LL, que então patrocinava o arguido oficiosamente;

- em 28/12/2011 foi deduzida acusação pública, imputando ao arguido a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. art.º 21º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22/01;

- em 30/04/2012, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, na ausência do arguido (cfr. acta de fls. 268 e ss);

- por douto acórdão datado de 28/05/2012, foi o arguido AA condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. art.º 25.º, al. a) do D.L. n.º 15/93, de 22/01, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período (cfr. fls. 272 e ss);

- desde então foram realizadas as mais diversas diligências no sentido de localizar e notificar o arguido e

- em 01/09/2017, foi o ora Recorrente notificado pessoalmente do acórdão, conforme se alcança do teor da certidão de fls. 416, já transitado em julgado (cfr. fls. 431).

Com a motivação de recurso o Recorrente juntou, neste apenso, os seguintes documentos:

- a fls. 7 e ss cópia da Autorização de Residência nº 3…, emitida pelo SEF em …/08/2001, de que foi titular, onde figura a data de nascimento, filiação, fotografia e assinatura;

- as fotografias de fls. 11 a 14, que o retratam;

- de fls. 15 a 21, fotocópias dos passaportes dos seus filhos, emitidos pelas autoridades do … e

- de fls. 23 a 25 figuram fotocópias do passaporte NO…7, emitido em nome do Recorrente, onde consta um visto dos … válido para o período compreendido entre 28/08/2003 e 27/11/2003, com carimbo de entrada naquele país em 15/Nov/2003.

A fls. 42 e ss foi junta pelo Recorrente certidão do passaporte emitido pelo … a favor do Recorrente e, bem assim, dos passaportes emitidos a favor dos seus filhos.

No decurso da instrução do recurso foi realizada uma perícia médico-legal, resultando do relatório de fls. 97 e ss que o ora Recorrente não apresenta nenhuma tatuagem e/ou marca corporal.

Foi, ainda, realizado um exame pericial comparativo das impressões digitais, junto a fls. 107 e 108, onde se conclui que a impressão digital aposta na fotocópia da Autorização de Residência nº 3…2, de que foi titular o Recorrente, não coincide com as impressões digitais apostas na resenha nº 5…8, existente na Ficha Biográfica da Polícia Judiciária, em nome de AA.

Em anexo aos presentes autos mostra-se junta uma certidão extraída do processo de residente nº 2…3, existente no SEF, referente ao cidadão nacional de …, AA, nascido a 05/10/1976, onde constam, com revelo para o que ora interessa, os seguintes documentos:

- a fls. 52, o pedido de renovação de autorização de residência formulado em07/07/2008, por um indivíduo que se identificou como AA, residente na Rua do …, …, 1 Dtº, …, com uma fotografia;

- a fls. 59 e ss, cópia certificada do passaporte … nº N0…8, emitido a favor de AA, nascido a …/10/1976;

- a fls. 62, Declaração emitida pela PSP em 10/01/2006, da comunicação do extravio dos documentos efectuada por AA, onde se inclui a Autorização de Residência;

- a fls. 71 e 72, comunicação do SEF para o DIPD, datada de 07/07/2008, do extravio do título de residência nº 30…2, emitido em 08/05/2001, pertencente ao cidadão AA e

- de fls. 75 a 78 figuram as autorizações de residência emitidas a favor de AA, nomeadamente, com o nº 30…2, que foi dada como extraviada (coincidente com a cópia junta pelo Recorrente a fls. 7 e ss).

No mencionado anexo, consta ainda, a fls. 79 e ss, a certidão, com o nº 2552, relativa ao mesmo processo de residente nº 2…3, onde consta um novo pedido de renovação do título de residência formulado por AA, onde consta uma assinatura e uma fotografia de um cidadão, que não coincidem, com a assinatura e fotografia da Autorização da Residência junta a fls. 7 e ss que identifica o ora Recorrente e, bem assim, fotocópia do passaporte … nº N0…8, emitido a favor de AA, nascido a ... /10/1976 (idêntico a fls. 59 e ss).

Da análise da argumentação aduzida pelo Recorrente e, sobretudo, da análise conjugada dos documentos supra elencados, impõe-se concluir que, efectivamente, o ora Recorrente não é a pessoa que no dia 02/12/2009, pelas 18h00, foi detido em flagrante delito pela PSP e no dia 03/12/2009 foi submetido a primeiro interrogatório judicial, nem tampouco a pessoa que foi julgada e condenada pelo douto acórdão datado de 28/05/2012, já transitado em julgado, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. art.º 25.º, al. a) do D.L. n.º 15/93, de 22/01.

Com efeito, resulta claro do confronto das fotografias constantes das fotocópias dos passaportes e das autorizações de residências juntas aos autos e das assinaturas apostas nesses documentos - visivelmente distintas à vista desarmada - que não se trata da mesma pessoa (cfr. nomeadamente o anexo de certidões) o que é corroborado pelos exames periciais efectuados, designadamente, às marcas e cicatrizes e às impressões digitais constantes na AR de fls. 7 e ss (correspondente à AR que figura a fls. 75 e ss do certidão anexa) e da Ficha Biográfica existente na Polícia Judiciária.

Pelo exposto, resulta demonstrado à saciedade que o Recorrente, actualmente cidadão …, viu usurpada a sua identidade, por um indivíduo que, pelo menos desde 07/07/2008, passou a utilizar uma autorização de residência emitida pelo SEF, na sequência de um pedido de título de autorização de residência que formulou (cfr. as já mencionadas fls. 52 e ss) e que se encontra resenhado na Polícia Judiciária.”

Pelo exposto, entende-se que deverá proceder o presente recurso de revisão.»

4. A Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido emitiu parecer nos seguintes termos:

«Creio que assiste razão ao arguido.

Vejamos.

Compulsados os autos principais constata-se que:

- no dia 02/12/2009, pelas 18h00, a PSP deteve, em flagrante delito, um indivíduo que se identificou com a exibição da Autorização de Residência Permanente com o nº P000…3, emitida em 07/07/2008, pelo SEF de Lisboa, onde figura o nome AA, nascido em …/10/1976, em …, filho de JJ e KK (cfr. auto de notícia por detenção de fls. 3 e ss);

- no dia 03/12/2009 foi o mencionado indivíduo, o arguido AA, submetido a primeiro interrogatório judicial, tendo-se identificado com o BI nº 1…0, de onde constavam as mesmas menções, conforme se alcança do teor do auto de interrogatório de fls. 35 e ss;

- nessa diligência foi assistido pela Drª LL, que então patrocinava o arguido oficiosamente;

- em 28/12/2011 foi deduzida acusação pública, imputando ao arguido a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. art.º 21.º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22/01;

- em 30/04/2012, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, na ausência do arguido (cfr. acta de fls. 268 e ss);

- por douto acórdão datado de 28/05/2012, foi o arguido AA condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. art.º 25.º, al. a) do D.L. nº 15/93, de 22/01, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período (cfr. fls. 272 e ss);

- desde então foram realizadas as mais diversas diligências no sentido de localizar e notificar o arguido e

- em 01/09/2017, foi o ora Recorrente notificado pessoalmente do acórdão, conforme se alcança do teor da certidão de fls. 416, já transitado em julgado (cfr. fls. 431).

Com a motivação de recurso o Recorrente juntou, neste apenso, os seguintes documentos:

- a fls. 7 e ss cópia da Autorização de Residência nº 3…2, emitida pelo SEF em 03/08/2001, de que foi titular, onde figura a data de nascimento, filiação, fotografia e assinatura;

- as fotografias de fls. 11 a 14, que o retratam;

- de fls. 15 a 21, fotocópias dos passaportes dos seus filhos, emitidos pelas autoridades do … e

- de fls. 23 a 25 figuram fotocópias do passaporte NO…7, emitido em nome do Recorrente, onde consta um visto dos … válido para o período compreendido entre 28/08/2003 e 27/11/2003, com carimbo de entrada naquele país em 15/Nov/2003.

A fls. 42 e ss foi junta pelo Recorrente certidão do passaporte emitido pelo … a favor do Recorrente e, bem assim, dos passaportes emitidos a favor dos seus filhos.

No decurso da instrução do recurso foi realizada uma perícia médico-legal, resultando do relatório de fls. 97 e ss que o ora Recorrente não apresenta nenhuma tatuagem e/ou marca corporal.

Foi, ainda, realizado um exame pericial comparativo das impressões digitais, junto a fls. 107 e 108, onde se conclui que a impressão digital aposta na fotocópia da Autorização de Residência nº 3…2, de que foi titular o Recorrente, não coincide com as impressões digitais apostas na resenha nº 5…8, existente na Ficha Biográfica da Polícia Judiciária, em nome de AA.

Em anexo aos presentes autos mostra-se junta uma certidão extraída do processo de residente nº 2…3, existente no SEF, referente ao cidadão nacional de …, AA, nascido a …/10/1976, onde constam, com revelo para o que ora interessa, os seguintes documentos:

- a fls. 52, o pedido de renovação de autorização de residência formulado em 07/07/2008, por um indivíduo que se identificou como AA, residente na Rua …, …, 1 Dtº, …, com uma fotografia;

- a fls. 59 e ss, cópia certificada do passaporte … nº N0…8, emitido a favor de AA, nascido a …/10/1976;

- a fls. 62, Declaração emitida pela PSP em 10/01/2006, da comunicação do extravio dos documentos efectuada por AA, onde se inclui a Autorização de Residência;

- a fls. 71 e 72, comunicação do SEF para o DIPD, datada de 07/07/2008, do extravio do título de residência nº 3…2, emitido em 08/05/2001, pertencente ao cidadão AA e

- de fls. 75 a 78 figuram as autorizações de residência emitidas a favor de AA, nomeadamente, com o nº 3…2, que foi dada como extraviada (coincidente com a cópia junta pelo Recorrente a fls. 7 e ss).

No mencionado anexo, consta ainda, a fls. 79 e ss, a certidão, com o nº 25...2, relativa ao mesmo processo de residente nº 2…3, onde consta um novo pedido de renovação do título de residência formulado por AA, onde consta uma assinatura e uma fotografia de um cidadão, que não coincidem, com a assinatura e fotografia da Autorização da Residência junta a fls. 7 e ss que identifica o ora Recorrente e, bem assim, fotocópia do passaporte … nº N0…8, emitido a favor de AA, nascido a …/10/1976 (idêntico a fls. 59 e ss).

Da análise da argumentação aduzida pelo Recorrente e, sobretudo, da análise conjugada dos documentos supra elencados, impõe-se concluir que, efectivamente, o ora Recorrente não é a pessoa que no dia 02/12/2009, pelas 18h00, foi detido em flagrante delito pela PSP e no dia 03/12/2009 foi submetido a primeiro interrogatório judicial, nem tampouco a pessoa que foi julgada e condenada pelo douto acórdão datado de 28/05/2012, já transitado em julgado, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. artº 25º, al. a) do D.L. nº 15/93, de 22/01.

Com efeito, resulta claro do confronto das fotografias constantes das fotocópias dos passaportes e das autorizações de residências juntas aos autos e das assinaturas apostas nesses documentos - visivelmente distintas à vista desarmada - que não se trata da mesma pessoa (cfr. nomeadamente o anexo de certidões) o que é corroborado pelos exames periciais efectuados, designadamente, às marcas e cicatrizes e às impressões digitais constantes na AR de fls. 7 e ss (correspondente à AR que figura a fls. 75 e ss do certidão anexa) e da Ficha Biográfica existente na Polícia Judiciária.

Pelo exposto, resulta demonstrado à saciedade que o Recorrente, actualmente cidadão …, viu usurpada a sua identidade, por um indivíduo que, pelo menos desde 07/07/2008, passou a utilizar uma autorização de residência emitida pelo SEF, na sequência de um pedido de título de autorização de residência que formulou (cfr. as já mencionadas fls. 52 e ss) e que se encontra resenhado na Polícia Judiciária.

Destarte, sem necessidade de mais considerações, sou do parecer que o presente recurso deve ser julgado procedente, por ser manifesto que o Recorrente invocou factos novos, sustentados em novos meios de prova, que infirmam os pressupostos que presidiram à prolação do acórdão em crise, quanto à identidade do autor dos factos.»

5. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça emite parecer em concordância, nos termos do artigo 455.º do CPP, no sentido de ser autorizada a revisão, dizendo:

«Acompanham-se na íntegra os fundamentos aduzidos na Resposta do MºPº em 1ª instância, junta a fls. 117/124 dos autos, sufragados igualmente na informação prestada pela Sr.ª Juiz em 1ª instância a fls. 125, os quais pelo rigor e profundidade de análise nos dispensam de quaisquer considerações adicionais, pronunciando-nos igualmente pela procedência do recurso de revisão interposto, nos termos do art. 449º nº1-d) do CPP.»

6. O recorrente tem legitimidade para requerer a revisão (artigo 450.º, n.º 1, al. c), do CPP) e este tribunal é o competente (artigos 11.º, n.º 4, al. d), e 454.º do CPP), nada obstando ao conhecimento do recurso.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

Factos provados na sentença recorrida

7. Na sentença recorrida, cuja revisão agora se pretende, foram julgados provados os seguintes factos:

«1.1. Desde data não apurada, anterior entre 1 a 2 meses ao dia 2 de Dezembro de 2009, o arguido procedia à venda de cannabis aos indivíduos que o procuravam para o efeito, designadamente junto ao parque de estacionamento junto do Jardim …, sito na Rua da …, em …;

1.2. Nessa data e local, pelas 17.00 horas, o arguido encontrava-se no interior do seu veículo automóvel de matrícula ...-...-JZ, sendo abordado por MM, a quem o arguido, nessas circunstâncias, entregou um embrulho em papel de jornal contendo sementes e folhas de cannabis com o peso líquido de 4,809 gramas, dele recebendo em troca a quantia de 20,00€, correspondente ao respectivo preço;

1.3. Nessas circunstâncias, o arguido tinha na sua posse outros embrulhos idênticos contendo cannabis, alguns dos quais arremessou ao chão quando foi abordado por agentes da PSP e mantendo outros num bolso das calças;

1.4. Tinha ainda então o arguido, no interior das calças, junto à zona genital, um maço de notas no valor de 150,00€ e no bolso das calças mais 60,00€;

1.5. E tinha ainda na sua posse, no quarto que ocupava na residência sita a Rua …, nº…, 1ºdtº, e, …, dentro de uma mala de viagem, vários outros embrulhos idênticos contendo cannabis;

1.6. Ainda no seu quarto, o arguido tinha a quantia de 180,00€, em notas de 20,00€;

1.7. A cannabis que o arguido detinha consigo e no seu quarto tinha o peso líquido global de 118,762 gramas;

1.8. O arguido utilizava habitualmente o veículo ...-...-JZ, designadamente para proceder à venda de cannabis;

1.9. O arguido destinava a cannabis que detinha à venda a consumidores desse produto, venda da qual provinham as quantias monetárias que detinha;

1.10. O arguido agiu de modo descrito de forma deliberada, livre e consciente, conhecendo as características estupefacientes da cannabis que detinha e vendia, com o propósito de obter proventos económicos, sabendo que não estava autorizado a fazê-lo e que essa sua conduta era criminalmente ilícita e punível;

1.11. O arguido desempenhou actividades indiferenciadas por conta de diversas entidades profissionais, designadamente através de empresas de trabalho temporário;

1.12. O arguido foi condenado:

- no âmbito do processo sumário nº 450/07.1S…, do … Juízo de Pequena Instância Criminal de …, por sentença proferida em 22/03/2007 e transitada em julgado em 27/12/2007, pela prática em 21/02/2007, de um crime de condução sem habilitação legal, p.e p. pelo ar.º 3º do DL n.º 2/98, de 03/01, em pena de multa, convertida em 66 dias de prisão subsidiária;

- no âmbito do processo comum singular n.º 290/10.0S…, do … Juízo Criminal de …, por sentença proferida em 30/11/2011 e transitada em julgado em 02/02/2012, pela prática em 15/11/2007, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo ar.º 3º do DL n.º 2/98, de 03/01, em pena de multa.»

8. Da motivação da decisão condenatória em matéria de facto consta o seguinte:

«A prova da matéria de facto descrita em 1. resultou da análise conjugada, á luz dos princípios da lógica e das pertinentes regras da experiência comum:

- do teor dos documentos juntos aos autos:

- a fls. 3-6: auto de notícia e detenção;

- a fls. 10-14 e 18: autos de busca e apreensão, teste rápido de produto estupefaciente apreendido ao arguido e autorização de busca domiciliária;

- a fls. 22-27: reportagem fotográfica das apreensões efectuadas nos autos, auto de ocorrência relativo à apreensão de cannabis adquirida ao arguido MM e respectivo teste rápido;

- a fls. 59-61: reportagem fotográfica e auto de exame e avaliação do veículo do arguido, apreendido nos autos;

- a fls. 65-66: aditamento ao auto de notícia e depósito autónomo da quantia apreendida ao arguido, no valor global de 390,00 €;

- a fls. 71-75: extracto emitido pela Segurança Social relativo a remunerações auferidas pelo arguido, do qual resulta que aquando da prática dos factos se encontrava desempregado;

- a fls. 102: relatório de exame toxicológico à cannabis apreendida ao arguido MM;

- e a fls. 261-265: certificado do registo criminal do arguido.

- com o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas:

- MM: consumidor de cannabis que adquiriu esse produto ao arguido conforme consta dos factos provados, o qual depôs no sentido de ter sido essa a única vez que o fez, por ter ouvido falar a amigos que já tinham adquirido ao arguido esse produto estupefaciente, que ele se encontrava naquele local a vendê-lo a quem ali o procurasse para esse efeito;

- NN e OO: agentes da PSP que, na sequência de denúncias no sentido de que o arguido se dedicava à venda de cannabis naquele local a quem ali o procurasse para esse efeito, efectuaram ali vigilância e procederam á detenção do arguido e intercepção de MM, bem como às apreensões subsequentes.

Testemunhas estas que demonstraram conhecimento directo dos factos sobre que depuseram, de forma objectiva, coerente, consistente e consentânea entre si e com o que resulta dos elementos probatórios objectivos colhidos nos autos, que mereceu credibilidade no sentido apurado.»

Do recurso de revisão

9. O direito à revisão de sentença condenatória tem consagração, como direito fundamental, no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição, que dispõe: «Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.»

O direito à revisão, que se efectiva por via de recurso extraordinário que a autorize (art.º 449ss do CPP), com realização de novo julgamento, possibilita a quebra do caso julgado de sentenças condenatórias que devam considerar-se injustas por ocorrer qualquer dos motivos taxativamente previstos na lei. A linha de fronteira da segurança jurídica resultante da definitividade da sentença, por esgotamento das vias processuais de recurso ordinário ou do decurso do prazo para esse efeito, enquanto componente das garantias de defesa no processo (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), estabelece-se, enquanto garantia relativa à aplicação da lei penal (artigo 29.º da Constituição), no limite resultante da inaceitabilidade da subsistência de condenações que se revelem «injustas».

O juízo de grave dúvida sobre a justiça da condenação, por virtude da demonstração dos fundamentos contidos no numerus clausus definido na lei, que justifica a realização de novo julgamento, sobrepõe-se, assim, à eficácia do caso julgado, em homenagem às finalidades do processo – a realização da justiça do caso concreto, no respeito pelos direitos fundamentais –, desta forma se operando o desejável equilíbrio entre a segurança jurídica da definitividade da sentença e a justiça material do caso.

O fundamento do caso julgado «radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito», sublinha o Prof. Eduardo Correia (Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Teoria do Concurso em Direito Criminal, Almedina, 1963, p. 302), que acrescenta: «a força de uma sentença transitada em julgado há-de estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos a julgamento», sendo que «posta uma questão ante um magistrado, deve este necessariamente resolvê-la esgotantemente até onde deva e possa» (p. 304).

Num processo penal de tipo acusatório completado por um princípio de investigação, a que corresponde o modelo do Código de Processo Penal, as garantias e procedimentos que devem ser respeitados tendo em vista a formação de uma decisão judicial definitiva de aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (artigo 340.º e segs. do CPP), incluindo as possibilidades de impugnação, de facto e de direito, por via de recurso ordinário (artigo 412.º do CPP), reduzem e previnem substancialmente as possibilidades de um erro judiciário que deva ser corrigido por via de recurso extraordinário de revisão contra as «injustiças da condenação», o que eleva especialmente o nível de exigência na apreciação dos fundamentos para autorização da revisão. As exigências decorrentes da garantia do direito a um processo equitativo (processo justo), nas suas múltiplas dimensões, tal como se consagra no artigo 32.º da Constituição e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que concorrem neste sentido, impõem que ao arguido seja dado o tempo e os meios necessários para preparação da sua defesa e apresentar os meios de prova a produzir em audiência. Com esta finalidade, dispõe o artigo 315.º do CPP que o arguido tem o prazo de 20 dias a contar da notificação do despacho que designa dia para a audiência para apresentar a contestação e o rol de testemunhas, peritos e consultores técnicos, sem prejuízo da sua alteração posterior e da possibilidade de indicação de novos meios de prova em audiência (artigo 340.º do CPP).

11. A lei enumera os fundamentos e dispõe sobre admissibilidade da revisão no artigo 499.º do CPP, revisto em 2007 (Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que adicionou três novos fundamentos – os das al. e), f) e g) do n.º 1). Estabelece este preceito:

«1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.

3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.»

No caso sub judice deve a pretensão do condenado apreciar-se em função da previsão normativa da al. d) do n.º 1 desta disposição legal, havendo, pois, que averiguar se existem novos meios de prova que justifiquem a autorização da revisão, por suscitarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

12. A compreensão do conceito de «justiça da condenação», contido nesta alínea d), tem-se sedimentado por recurso a elementos históricos e sistemáticos de interpretação, tendo em conta, nomeadamente, a evolução da legislação.

Na sua formulação inicial, a possibilidade de revisão com fundamento em novos factos e em novos meios de prova requeria que estes constituíssem grave presunção de inocência do condenado. Dispunha o artigo 673.º, n.º 4, do CPP de 1929 que «Uma sentença com trânsito em julgado só poderá ser revista: (…) 4.º Se, no caso de condenação, se descobrirem novos factos ou elementos de prova que, de per si ou combinados com os factos ou provas apreciados no processo, constituam graves presunções da inocência do acusado». 

No actual CPP, a possibilidade de revisão alargou-se, porém, para além das situações em que possa haver «graves presunções da inocência do acusado». Por virtude da nova formulação – «graves dúvidas sobre a justiça da condenação» – expandiu-se o campo das possibilidades de revisão com base em novos factos ou meios de prova, em harmonia com o conteúdo do princípio da presunção da inocência e do direito a um processo justo, embora, como tem sido sublinhado, aquelas situações continuem a reconduzir-se ao núcleo essencial da previsão da al. d) do n.º 1 do artigo 449.º, com a limitação resultante do n.º 3 deste mesmo preceito, que se traduz na inadmissibilidade da revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada (sobre este ponto, Conde Correia, O «Mito» do Caso Julgado e a Revisão Propter Nova, Coimbra Editora, 2010, p. 381ss).

13. Nas circunstâncias do caso sub judice, a questão deverá, assim, analisar-se metodologicamente em dois momentos: (a) Na verificação e determinação da “novidade”, isto é, em determinar se os factos e os meios de prova indicados pelo requerente são “novos”; (b) Se reconhecida a novidade, na verificação da sua necessária aptidão para que se possam constituir fundadas bases de um juízo de fortes dúvidas sobre os fundamentos da condenação, de modo a poder concluir-se que a aplicação da pena constituiu o resultado de inaceitável erro judiciário de julgamento da matéria de facto.

14. A jurisprudência consolidada deste Tribunal tem sublinhado que, para efeitos da al. d) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, são «novos meios de prova» os que não tenham sido apreciados no processo que levou à condenação e que, sendo desconhecidos da jurisdição no acto de julgamento, permitam suscitar graves dúvidas acerca da culpabilidade do condenado. Novos meios de prova são, pois, aqueles que são processualmente novos, que não foram apresentados no processo da condenação. A novidade, neste sentido, refere-se a meio de prova – seja pessoal, documental ou outro –, e não ao resultado da produção de prova [como se tem salientado, no sentido, nomeadamente, do acórdão de 10.04.2013, proc. 127/01JAFAR-C.S1 (Henriques Gaspar), em www.dgsi.pt]. 

Porém, «novos» meios de prova são apenas os que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e, porque aí não apresentados, não puderam ser considerados pelo tribunal [acórdãos de 26.10.2011 proc. 578/05.2PASCR.A.S1 (Sousa Fonte), de 30.1.2013, proc. 2/00.7TBSJM-A.S1 (Raul Borges), com indicação exaustiva de jurisprudência e doutrina, e de 19.03.2015, proc. 175/10.0GBVVD-A.S1 (Isabel São Marcos), em www.dgsi.pt]. Admitindo-se ainda que, embora não sendo ignorados pelo recorrente, poderão estes ser considerados desde que o recorrente justifique a razão, atendível, por que os não apresentou no julgamento (assim, entre outros os acórdãos de 8.1.2014, no proc. 1864/13.33T2SNT-A.S1, e de 16.1.2014, no proc. 81/05.0PJAMD-A.S1, em Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 2016, 2.ª ed. e anotação ao artigo 449.º, de Pereira Madeira).

15. A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada. Não basta a mera existência da dúvida; é necessário que ela se eleve a um patamar de solidez que permita afirmar a sua «gravidade» [como se nota, entre outros, nos acórdãos de 30.1.2013, proc. 2/00.7TBSJM-A.S1 cit. e de 29.4.2009, proc. 15189/02.6.DLSB.S1 (Pires da Graça)], 3.ª Secção), isto é, que, na ponderação conjunta de todos os meios de prova, seja possível justificadamente concluir que, tendo em conta o critério de livre apreciação (artigo 125.º do CPP) e sem prejuízo da sujeição das novas provas ao teste do contraditório, imediação e oralidade do novo julgamento, deles resulta uma forte possibilidade de não condenação.

Apreciação

16. O recorrente fundamenta a revisão da decisão condenatória na apresentação de novos meios de prova pelos quais pretende demonstrar séria dúvida da justiça da condenação em resultado de erro sobre a identidade, pois que, afirma, «não é a pessoa do Arguido detido no início dos presentes autos».

Em síntese, alega que:

(a) A pessoa detida residia com a sua companheira, de nome BB, em …, na Rua …, Lote … - 1º Dto., Quinta …, em casa arrendada, possuía conta bancária e automóvel (Fiat Palio ...-...-JZ), já tinha tido diversas actividades profissionais remuneradas, com registo de descontos para a Segurança Social desde 2001, e tinha bilhete de identidade com o nº 1…0, número de contribuinte fiscal e número de beneficiário da Segurança Social, indicações que não dizem respeito ao recorrente; para além disso, da consulta da ficha biográfica da Polícia Judiciária constante dos autos resulta a existência de vários inquéritos em que o arguido se identificou como sendo AA, e também como II, e que dessa ficha constam também sinais particulares do arguido – canhoto, com tatuagem na mão, no antebraço e no braço direitos, cicatriz no lado direito da barriga -, que o recorrente não possui;

(b) O recorrente não é essa pessoa, pois que, além de não possuir as características físicas mencionadas, saiu de Portugal em 14 de Novembro de 2003 e reside no … desde 2004, tendo vindo a Portugal, uma única vez ao longo deste período, para passar 15 dias de férias em 17 de Agosto de 2017; em 2009, vivia há vários anos no … com a sua família, constituída pela sua esposa CC e os quatro filhos do casal: o DD de 11 anos, o EE de 3 anos e os gémeos FF e GG com 1 ano, tendo também uma filha, HH, que viria a nascer no ano seguinte, igualmente no … .

17. Foram realizadas as diligências requeridas e necessárias no tribunal recorrido, nomeadamente, exame pericial na pessoa do recorrente, que não apresenta qualquer tatuagem ou marca corporal, e exame pericial das impressões digitais da pessoa detida e do recorrente, que concluiu tratar-se de pessoas diferentes, e foi obtida certidão extraída do processo de residente n.º 2…3 existente no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), como consta da informação prestada pela Senhora Juíza do processo.

Desta informação consta ainda que a pessoa detida, que se identificou como sendo o recorrente, foi apresentada a interrogatório judicial, acusada, julgada e condenada sem estar presente em audiência de julgamento, que teve lugar em 30.04.2012, que foram efectuadas diligências no sentido de localizar e notificar essa pessoa da sentença proferida na sua ausência, e que o recorrente foi pessoalmente notificado dessa condenação, sem que dela ou do processo tivesse anterior conhecimento, em 01.09.2017.

Da prova produzida nestes autos resulta – como, em seu parecer, salienta a Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido, no que merece concordância da Senhora Juíza do processo, que o convoca como fundamento da informação produzida – que está «demonstrado à saciedade que o Recorrente, actualmente cidadão canadense, viu usurpada a sua identidade, por um indivíduo que, pelo menos desde 07/07/2008, passou a utilizar uma autorização de residência emitida pelo SEF, na sequência de um pedido de título de autorização de residência que formulou e que se encontra resenhado na Polícia Judiciária».

Daí se extrai a conclusão de que «o ora Recorrente não é a pessoa que no dia 02/12/2009, pelas 18h00, foi detido em flagrante delito pela PSP e no dia 03/12/2009 foi submetido a primeiro interrogatório judicial, nem tampouco a pessoa que foi julgada e condenada pelo douto acórdão datado de 28/05/2012, já transitado em julgado, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. art.º 25.º, al. a) do D.L. n.º 15/93, de 22/01», e, consequentemente, de que «após análise de tais factos e meios de prova ora apresentados, cremos que os mesmos suscitam efectivamente, em nossa opinião, graves dúvidas sobre a justiça da condenação do recorrente».

18. Esta conclusão, que se impõe perante as provas produzidas – que devem considerar-se novas, na acepção legal –, mostra-se solidamente fundamentada, gerando-se, por conseguinte, sérias dúvidas quanto à justiça da condenação, que só poderá resolver-se mediante a realização de novo julgamento.

Pelo que, em conformidade com o exposto e em concordância com a informação da Senhora Juíza do processo e com o Ministério Público, se conclui no sentido de que o recurso se mostra dotado do fundamento previsto na al. d) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, devendo ser julgado procedente.

       Quanto a custas

  19. De acordo com o disposto no artigo 456.º do CPP, se o Supremo Tribunal de Justiça negar a revisão condena o requerente em custas. O que não é o caso.

   III. Decisão

 20. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em, nos termos do disposto no artigo 457.º, n.º 1, do Código de Processo Penal:

a) Autorizar a revisão da sentença condenatória;

b) Reenviar o processo ao tribunal de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão a rever e que se encontrar mais próximo, devendo o tribunal da condenação providenciar pela transmissão do processo a esse tribunal.

Sem custas.


Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Novembro de 2019


José Luís Lopes da Mota (Relator)

Maria da Conceição Simão Gomes