Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
857/14.8TBMGR-AM.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
INTERPRETAÇÃO
OBJETO DO PROCESSO
Data do Acordão: 12/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
A petição inicial (regulada nos arts. 552.º e ss. do CPC) deve ser considerada dogmaticamente como "acto postulativo" da parte autora, enquanto acto que constitui uma nova situação processual, se integra no procedimento adjectivo legalmente previsto e se pratica para formular um pedido (ou pedidos) ao tribunal, apoiado(s) em certos factos, demandando o seu poder decisório e constituindo o tribunal no dever de julgar dentro de determinados parâmetros que o próprio acto delimita e vincula. Por isso, a interpretação - decifração do sentido - que os intervenientes processuais e o tribunal fazem do acto postulativo de petição é fundamental para a delimitação do objecto do processo proposto pelo autor do acto e para fazer actuar as situações jurídicas na decisão final.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 857/14.8TBMGR-AM.C1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação ……, 1.ª Secção

Reclamação de Decisão Sumária (arts. 652º, 1, c), 656º, 652º, 3, 679º, CPC)

Reclamante: «Têxtil Ocidental, Lda.»

Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. A «Sociedade Têxtil Baiona S.A.», também apresentando-se processualmente como «Massa Falida Baiona S.A.» (uma vez decretada a respectiva falência no processo n.º ….. e prossecução processual a impulso do seu liquidatário judicial), intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário contra vários Réus, incluindo a «Têxtil Ocidental, Lda.». Formulou vários pedidos, sendo objecto de uma parte deles a «Têxtil Ocidental» como 5.º Réu. E concluiu solicitando que as indemnizações pedidas “a serem pagas não prejudicam a possibilidade de a indemnização poder ser fixada em montante superior, nos termos do artigo 569º do Código Civil, sendo esta com juros a contar da data da citação, nos termos do artigo 805º, n.º 3, in fine, do Código Civil”.

Os 1.º a 10.º Réus apresentaram Contestação, incluindo portanto a Ré «Têxtil Ocidental», impugnando parte da factualidade alegada pela Autora e pugnando pela improcedência da acção.  

2. Uma vez tramitada e prosseguida a acção, foi proferida sentença em …... 2010 pelo 0.º Juízo do Tribunal Judicial …… (cfr. fls. 156 e ss do Apenso de Reclamação), nos termos da qual se decidiu: “Na decorrência de todo o exposto e ao abrigo dos normativos legais citados, julga-se ser parcialmente procedente, porque parcialmente provada, a presente acção e, na medida dessa procedência, condena-se a ré Têxtil Ocidental, Lda. a ver resolvido o contrato de arrendamento/cessão de exploração acima melhor identificado e no pagamento à autora da quantia de € 797.194,91 (setecentos e noventa e sete mil cento e noventa e quatro euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados desde a data da citação e até integral pagamento, à taxa legal. No mais, julgam-se improcedentes os pedidos da autora, deles se absolvendo a identificada ré e todos os demais réus”.

3. Dessa sentença foram interpostos recursos de apelação pela Autora e pela Ré condenada, tendo sido proferido acórdão pelo Tribunal da Relação….., em ……2011, nos termos do qual se decidiu anular a decisão da 1ª instância, mandando que se repetisse o julgamento em ordem a apurar a indicada matéria controvertida de interesse para a decisão da causa, sem prejuízo de o tribunal recorrido poder pronunciar-se sobre outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão. O aresto alterou parte da decisão da matéria de facto, alterações introduzidas na redacção da matéria de facto considerada provada.

4. Em obediência, procedeu-se à ampliação da base instrutória da causa, com despacho proferido em ……2011 e rectificado em ……2011 (fls. 53 e ss deste apenso).

Realizou-se audiência final em várias sessões a partir de …2018, com vista à produção de prova sobre a matéria objecto de ampliação (fls. 310v e ss do apenso de Reclamação).

Após, em ………2018, pelo Juiz 0 do Juízo de Comércio ……. (Tribunal Judicial da Comarca ………) foi proferida sentença, em cujo dispositivo se decidiu:

“Julgo a presente acção parcialmente procedente, por apenas parcialmente provada, em consequência do que:

1. Condeno a ré “Têxtil Ocidental, Lda.” a pagar à autora a quantia de € 162.536,12 (cento e sessenta e dois mil quinhentos e trinta e seis euros e doze cêntimos), a título de capital, a que acrescem juros de mora vencidos desde a data da citação da ré “Têxtil Ocidental” para a presente acção, até efectivo e integral pagamento, sendo as taxas de juro a considerar as previstas para os juros comerciais.(…)”.

5. Em recursos de apelação interpostos pela Autora e pela referida Ré «Têxtil Ocidental» da decisão de 1ª instância referida sob 4., foi decidido pelo Tribunal da Relação ………, em acórdão prolatado e carreado para os autos em …….2019 (fls. 126 e ss deste apenso), no que para esta decisão releva:

Pedido da autora da condenação da 5ª ré a pagar à autora € 797,194, 91 [equivalente à diferença entre o montante de €833,4390,92 (preço dos equipamentos) e os € 36.236,01, que a autora admitiu ter recebido da ré (art. 78 a 81 da petição)].

Porém, tendo em vista a redacção dos factos 53, 54 e 56, mantém-se a condenação da ré a pagar à autora a quantia de € 162,536,12.”;

Recurso de apelação da sentença interposto pela ré Têxtil Ocidental:

Na sentença recorrida considerou-se que não podia deixar de se reconhecer à autora o direito à entrega da quantia de € 162.536, 12 a título de capital “a que acrescem juros de mora vencidos desde a data da citação da ré “Têxtil Ocidental” para a presente acção, até efectivo e integral pagamento, sendo as taxas de juro a considerar as previstas para os juros comerciais – cfr. artigos 406º, n.º 1, 798º, 799º, n.º 1, 804º, n.os 1 e 2, e 806º, n.os 1 e 2, 874º e 879º do Código Civil, e 102º, § 3, do Código Comercial.” E, em conformidade, condenou-se a ré Têxtil Ocidental, Lda. a pagar à autora quantia de € 162.536, 12 a título de capital “ a que acrescem juros de mora vencidos desde a data da citação da ré “Têxtil Ocidental” para a presente acção, até efectivo e integral pagamento, sendo as taxas de juro a considerar as previstas para os juros comerciais”.

Insurge-se a apelante ré apenas contra o segmento da sentença na parte em que dela consta que à quantia ali fixada acrescem juros de mora. Argumenta que o pedido formulado pela autora na letra G da petição inicial, pelos seus próprios dizeres, respeita, exclusivamente, à mora das quantias dos pedidos de indemnização de responsabilidade civil por factos ilícitos das alíneas d) e e) da letra A, da letra B e da letra E, formulados pela autora na petição inicial, e à possibilidade dessas quantias ser reclamadas por valores superiores, em caso de danos que viessem a revelar-se superiores.

O pedido é o seguinte: “Estas indemnizações a serem pagas não prejudicam a possibilidade de a indemnização poder vir a ser fixada em montante superior, nos termos do art 569º do Código Civil, sendo esta com juros a contar da data da citação, nos termos do art. 805, nº 3, in fine, do Código Civil”

É certo que o art. 569º do CC também se aplica à responsabilidade contratual (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, Volume I, 3ª edição, pág. 545). Sucede que a autora faz apelo ao art. 805º, nº 3 do CC, segundo qual, tratando-se de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação (…). Circunscreve, pois, o âmbito dos juros à indemnização em caso de responsabilidade civil, por factos ilícitos, omitindo qualquer pedido de pagamento de juris civis ou comerciais relativamente ao caso de responsabilidade contratual previsto na al. e) de D. (relativo ao montante correspondente ao preço das facturas, juntas como documentos 3 a 17 com a petição inicial, que ainda se não encontra liquidado)

Não podem, pois, incidir juros sobre a condenação.”

Consequentemente, no que releva, o acórdão do TRC acordou em “julgar a apelação da ré procedente e revogar a sentença na parte em que condena a ré a pagar juros de mora” e, para além do mais decidido, “confirmar a sentença quanto ao restante”.

6. A Autora «Sociedade Têxtil Baiona, S.A.» interpôs recurso de revista para o STJ (fls. 171 e ss deste apenso), admitido após deferimento da Reclamação (art. 643º CPC) deduzida contra despacho do Ex.mo Senhor Relator Desembargador do TRC de não admissão por extemporaneidade, pedindo que o acórdão recorrido fosse revogado e substituído por outro que confirme a decisão de 1ª instância (“condenando a recorrida Têxtil Ocidental Lda. ao pagamento da quantia de 162.536,12€, a que acrescem juros de mora vencidos desde a data da citação da recorrida/ré para a presente ação, até efetivo e integral pagamento, sendo as taxas de juro a considerar as previstas para os juros comerciais – cfr. artigos 406º n.º 1, 798º, 799º n.º 1, 804º n.º 1 e 2 e 806.º n.º 1 e 2, 874º e 879.º do Código Civil, e 102º n.º 3 do Código Comercial”). Logo, incidindo a impugnação exclusivamente sobre o segmento decisório do acórdão da Relação …… que julgou não serem devidos juros moratórios sobre a condenação da Ré, julgando a apelação da Ré procedente enquanto revoga a sentença na parte em que condena a Ré a pagar juros de mora.

Para o efeito, a finalizar as suas alegações, apresentou as seguintes Conclusões:

“1. O presente recurso pretende impugnaro douto Acórdão, que julgou não serem devidos juros sobre o capital de 162 536,12€, contrariando a decisão de primeira instância que condenou a Ré Têxtil Ocidental, Lda., ao pagamento de 162.536,12€, “a título de capital a que acrescem juros de mora vencidos desde a data da citação da ré “Têxtil Ocidental” para a presente ação, até efetivo e integral pagamento, sendo as taxas de juro a considerar as previstas para os juros comerciais – cfr. artigos 406º n.º 1, 798º, 799º n.º 1, 804º n.º 1 e 2 e 806.º n.º 1 e 2, 874º e 879.º do CódigoCivil, e 102º n.º 3 do Código Comercial”.

2. Não se conforma a recorrente contra o segmento do Acórdão que julga aplicar-se ao pedido inscrito na alínea G) da sua petição, a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, desconsiderando, desta feita, juros moratórios sobre o capital de 162.536,12€.

3. O presente recurso de revista incide sobre as seguintes questões:

A – Sobre a interpretação e alcance das normas invocadas na decisão de 1ª instância, designadamente os artigos 406º n.º 1, 798º, 799º n.º 1, 804º n.º 1 e 2 e 806.º n.º 1 e 2, 874º e 879.º do Código Civil, e 102º n.º 3 do Código Comercial, no sentido de serem devidos os juros de mora sobre o capital de 162. 536, 12€;

B – Nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação ……, nos termos e para os efeitos dos artigos 674º n.º 1 al. c) e 615º n.º 1 al. c), ambos do CPC, com base em dois fundamentos:


1) O Acórdão não se pronuncia sobre a argumentação da recorrente e recorrida, ambas no domínio da aplicação (ou não) do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 9/2015;


2) O Acórdão desconsidera o principio vertido no artigo 5º n.º 3 do CPC. O douto Acórdão entende que a recorrente circunscreveu a matéria a obrigação de juros nos termos e para os efeitos do artigo 805º n.º 3 do CC, conforme alegado, erradamente, pela autora.

4. O Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5º n.º 3 do CPC), INCONSTITUCIONALIDADE, QUE DESDE JÁ SE ARGUI, COM BASE NA VIOLAÇÃO DO PRECEITO CONSTITUCIONAL 20º N.º 4 e 5 DA CONSTITUIÇÃO.

5. Analisado a interpretação e fundamentação do recorrido Acórdão da Relação …..viola o principio do processo equitativo em conjugação com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, na medida em que comina a parte por uma deficiente interpretação/aplicação das regras de direito com a rejeição do direito, interpretando incorretamente o n.º 3 do artigo 5.º do C.P.C., trazendo-lhe uma decisão surpresa e, sobretudo, uma decisão injusta e contrária à segurança jurídica e à proteção da confiança dos cidadãos.

6. A recorrida “Têxtil Ocidental, Lda.” recorreu apresentando   a argumentação relativa ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 9/2015, segunda a qual «Se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros.».

7.Todaaargumentaçãocríticadarecorrida“TextilOcidental,Lda.”girousob a argumentação plasmada no AUJ n.º 9/2015 de 14 de maio.

8. A força do recurso da Recorrida está concentrada nas considerações que faz sobre o referido Acórdão uniformizador de jurisprudência, no princípio do dispositivo (nos termos e para os efeitos dos artigos 609º, 615º n.º 1 al. e) e 608º n.º 2 do CPC), na distinção entre “preço” e “indemnização” para efeitos do artigos 874º al. e) e 879º, ambos do CC e 3º n.º1, 552º n.º 1 al. e), 609º e 608º do CPC, todos do CPC.

9.ARecorrentecontra-alegou,argumentandocontraaaplicaçãodoacórdão uniformizador de jurisprudência, por não estarmos no domínio da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, mas antes, como resulta natural do objecto do processo – incumprimento contratual da obrigação de pagamento – masno âmbito da responsabilidade contratual.
De outro modo não poderia ser.

10.Por Acórdão de ……2019 o Tribunal da Relação ………. entendeu que “(…) a autora faz apelo ao artigo 805º, n.º 3 do CC, segundo o qual, tratando-se de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação (…). Circunscreve, pois, o âmbito dos juros à indemnização em caso de responsabilidade civil por factos ilícitos, omitindo qualquer pagamento de juros civis ou comerciais relativamente ao caso de responsabilidade contratual previsto na alínea E) e D) (relativo ao montante correspondente ao preço das faturas, juntas como documentos 3 a 17 com a petição inicial, que ainda se não encontra liquidado).

11.Entendemos, salvo o devido respeito, que o douto Acórdão do Tribunal da Relação …de ….. 2019 fez uma errada interpretação e aplicação do direito, quer quanto à dedução dos pedidos da autora, quer quanto à aplicação dos artigos 805º n.º 3, artigo 804º n.º 1 e 2, artigo 806º n.º 1 e 2, artigo 874º e 879º, todos do CC.

12.Argumenta que o pedido formulado pela autora na letra G da petição inicial, pelos seus próprios dizeres, respeita, exclusivamente, à mora das quantias dos pedidos de indemnização de responsabilidade civil por factos ilícitos das alíneas d) e e) da letra A, da letra B e da letra E, formulados pela autora na petição inicial, e à possibilidade dessas quantias ser reclamadas por valores superiores, em caso de danos que viessem a revelar-se superiores.

13.O pedido é o seguinte: “Estas indemnizações a serem pagas não prejudicam a possibilidade de a indemnização poder ser fixada em montante superior, nos termos do artigo 569º do Código Civil, sendo esta com juros a contar da data da citação, nos termos do artigo 805º n.º 3, in fine, do Código Civil.

14.Das considerações em análise, quer da recorrida, quer do douto Acórdão da Relação ……. de …….2019, surgem evidentes confusões.


Concretizemos:


a) A recorrida Textil Ocidental, Lda., invoca o Acórdão Uniformizador de jurisprudência n.º 9/2015 no sentido de que a autora, não tendo, no pedido D. e) peticionado juros, não pode o tribunal de 1ª instância condenar no pagamento do capital de 162.536.12€, acrescido de juros. Ora, analisada a decisão de 1ª instância notamos que aquele tribunal aproveitou a invocação do pedido de juros (formulado no ponto G, para todos os pedidos anteriores – nos termos do artigo 569º e artigo 805º n.º 3, ambos do CC), para o pedido D. e).
Assim, dúvidasnão há que a recorrente/autora peticionou jurossobre o capital em dívida, ficando afastada toda a argumentação vertida nas suas alegações de recurso, as quais versam tão só sobre a questão extra vel ultra petitum. Pelo que não seria necessário abordar sequer o tema. Mas, também, mesmo que a recorrente tivesse omitido tal pedido de juros, não se aplicaria à matéria em discussão – incumprimento da obrigação de pagamento – o referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, o qual trata, apenas, e tão só, a responsabilidade extracontratual por factos ilícitos ou pelo risco.

b) O douto Acórdão do Tribunal da Relação ……. de ….2019 considera que, em virtude da autora/recorrente ter circunscrito o pedido de juros à aplicação do artigo 805º n.º 3 do CC não lhe daria o benefício de acrescer juros ao capital em que a recorrida foi condenada por estarmos fora do domínio da responsabilidade extra contratual por factos ilícitos, apesar desta no pedido em que invoca tal preceito, plasmar aí também o artigo 569º do CC, relativo à responsabilidade civil contratual.

15.Ora, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5º n.º 3 do CPC). Esta norma visa facultarao juizmeios necessáriospara produzir uma decisão de mérito que atinja, tanto quanto possível, o ideal da justiça material.

16.Basta, numa leitura breve do artigo 805 n.º 3 do CC, avaliar que estamos perante responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos. Ainda sobre este preceito vejam-se os exemplos que o prof. Antunes Varela carrega no seu comentário ao preceito (“Mas se é ele devedor, o culpado de se não ter feito a liquidação da prestação – se é pai, marido ou o procurador, (…)”), todos relacionados com essa temática e não com a dos autos, que é contratual.

17.Muito bem andou o tribunal de instância ao “emendar” a alegação do artigo 805 n.º 3, aplicando antes as disposições conjugadas dos artigos 804º, 805º e 806º do Código Civil, quanto ao pedido de juros formulado no ponto G, e corrigido (já que estamos perante matéria de incumprimento contratual, designadamente quanto ao desrespeito da obrigação de pagamento do preço. (destacado nosso).

18.A recorrente/autora formula os todos os pedidos (de A a G) contra cada uma das 13 (treze) Rés e no último pedido, no ponto G, contempla um pedido que corresponde aos juros (“G. Estas indemnizações a serem pagas não prejudicam a possibilidade de a indemnização poder serfixada em montante superior, nos termos do artigo 569º do Código Civil, sendo esta com juros a contar da data da citação, nos termos do artigo 805º n.º 3, in fine, do Código Civil”, cfr. pedido formulado na PI).

19.O tribunal de 1ª instância entendeu (e bem) por uma questão de clareza escrita que a autora foi deduzindo pedido a pedido contra cada uma das Rés e que no fim pedia a condenação em juros para todos os pedidos formulados anteriormente.

20.No caso, que fosse a 5ª Ré “obrigada a pagar à autora o montante correspondente ao preço das faturas, que ainda não se encontra liquidado, no valor de €1.031.081,23€, cfr. pedido D. e) da PI).

21. O pedido D. e) seduz o julgador, no sentido de entender que a recorrente/autora não formula pedido quanto a juros, mas não.

22. A recorrente/autora formula pedido de juros no ponto G, invocando – positivamente o artigo 569º do CC e por lapso o artigo 805º n.º 3 do CC.


I. Num primeiro momento, a condenação em juros na decisão de 1ª instância, nos termos e para os efeitos dos artigos designadamente os artigos 406º n.º 1, 798º, 799º n.º 1, 804º n.º 1 e 2 e 806.º n.º 1 e 2, 874º e 879.º do Código Civil, e 102º n.º 3 do Código Comercial, no sentido de serem devidos os juros de mora sobre o capital de 162. 536, 12€, é atacada em Recurso de apelação pela recorrida “Têxtil Ocidental” por esta entender que a recorrente não fez qualquer pedido de juros no ponto D. alínea e), baseando-se no AUJ 9/2015, de 14 de maio.


II. Num segundo momento a Recorrente/autora é surpreendida por uma decisão (surpresa), ao arrepio dos princípios orientadores do ordenamento jurídico da confiança e segurança jurídica, e de desnecessidade de invocação de direito, nostermose para osefeitosdo artigo 805º n.º 3 do CC, de 2ª instância que entende que, embora houvesse pedido de juros (contrariamente à argumentação da ora recorrida nas suas alegações de recurso) este estava circunscrito à responsabilidade civil extracontratual, nos termos e para os efeitos do artigo 805º n.º 3 do CC.

[Com renumeração nossa daqui em diante.]

23. Cumpre-nos, em defesa da manutenção da decisão de 1ª instância tecer, breves considerações, acerca de algumas questões, designadamente, o termo inicial dos juros de mora na responsabilidade civil contratual e extracontratual.

24. Nas obrigações pecuniárias, cfr. artigo 806º do CC – como é o caso dos presentes autos – “não precisa o credor de provar que teve prejuízos. Reconheceu-se que o dinheiro rende sempre, por ser maisfácil a sua colocação. Por outro lado, fixou-se no n.º 2, a taxa dos juros devidos, por ser praticamente impossível, na generalidade dos casos, fixar o montante exato do prejuízo sofrido com a mora pelo credor da obrigação pecuniária. Em princípio o devedor deve os juros legais, que são os referidos no n.º 1 do artigo 559º”.

25. Na verdade, se assim não fosse, estariam prejudicados os princípios da confiança, estabilidade e conservação dos contratos.

26. No caso dos autos o capital de 162.536,12€, vence juros, nos termos dos preceitos invocados pelo Tribunal de 1ª instância e pela recorrente/autora, 406º n.º 1, 798º, 799º n.º 1, 804º n.º 1 e 2 e 806.º n.º 1 e 2, 874º e 879.º do Código Civil, e 102º n.º 3 do Código Comercial, na quantia de € 192.293,92 (cento e noventa e dois mil, duzentos e três euros e noventa e dois cêntimos) desde a citação até à data de 26 de fevereiro de 2019.

27. Quanto ao pedido de condenação em juros de mora, o ónus de alegação do credor e a (des)necessidade do ónus de alegação de direito importa dizer que exigir-se o ónus de alegação do credor, tanto para o pedido de juros na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, como para a responsabilidade contratual, seria o mesmo subsumir os dois institutos a uma identidade quanto à natureza e conteúdo.

28. Não podemos aceitar.

29. No caso a recorrente/autora cumpriu o ónus de alegar o pedido de juros (cfr. pedido D. alínea e) e G) da PI), pelo que não entende a posição assumida pela recorrida Têxtil Ocidental, Lda., nem entende que o douto tribunal da Relação …….. perfilhe no sentido de orientar cegamente os pedidos da recorrente/autora, à circunscrição do art. 805º n.º 3 do CC.

30. Ora, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5º n.º 3 do CPC). Esta norma visa facultar ao juiz meios necessários para produzir uma decisão de mérito que atinja, tanto quanto possível, o ideal da justiça material.

31. Os factos atinentes à prova do incumprimento da recorrida Têxtil Ocidental, Lda. foram provados e em virtude disso foi aquela condenada nos pedidos formulados pela recorrente/autora, alicerçados sobre o ponto D. alínea e) e G, aí também se invocando normas de direito como o sejam o artigo 559º e 805º n.º 3 do CC.

32. Evidente que a invocação do artigo 805º n.º 3, quanto à obrigação de juros relativa à quantia de capital não está correta, embora a presença do artigo 559º do CC na alegação de direito o fizesse antever, já que refletem caminhos distintos, um o da responsabilidade contratual, outro o da responsabilidade extra-contratual por factos ilícitos.

32. O ónus da alegação do pedido de juros foi cumprido, ainda que em alegação de direito se tivesse indicado preceito errado, pois o mesmo é incompatível com o preceito a ele junto, designadamente o artigo 559º do CC.

33. Ainda que assim não fosse a obrigação pecuniária de juros decorre do artigo 806º e, o douto tribunal de 1ª instância também se poderia socorrer deste, optando por não o fazer.

34. E, por último, mesmo que assim não fosse, nunca procederia a argumentação plasmada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 9/2015 de 14 de maio.

35. O Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. artigo n.º 3 CPC).

36. O Acórdão do Tribunal da Relação ……proferido nos presentes autos está ferido de inconstitucionalidade material por contrariar o disposto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

37.Assim, sumariamente, somos compelidos a concluir:


A – Mal andou o Tribunal da Relação ……ao desconsiderar a interpretação e alcance das normas invocadas na decisão de 1ª instância, designadamente os artigos 406º n.º 1, 798º, 799º n.º 1, 804º n.º 1 e 2 e 806.º n.º 1 e 2, 874º e 879.º do Código Civil, e 102º n.º 3 do Código Comercial, no sentido de serem devidos os juros de mora sobre o capital de 162. 536, 12€;


B – Mais se requer a nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação ………, nos termos e para os efeitos dos artigos 674º n.º1 al. c) e 615º n.º 1 al. c), ambos do CPC, com base em dois fundamentos:


i) O Acórdão não se pronuncia sobre a argumentação da recorrente e recorrida, ambas no domínio da aplicação (ou não) do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 9/2015, antes limitando-se a aplicar o artigo 805º n.º 3 do CC;


ii) O Acórdão desconsidera o princípio vertido no artigo 5º n.º 3 do CPC: o douto Acórdão entende que a recorrente circunscreveu a matéria a obrigação de juros nos termos e para os efeitos do artigo 805º n.º 3 do CC, conforme alegado, erradamente, pela autora.

38.Assim, é inconstitucional, por violar o artigo 20º da CRP, a interpretação dos artigos 5.º n.º 3 do CPC, no sentido da insindicabilidade, em recurso restrito a matéria de direito, da aplicação deficiente ou não aplicação do principio segundo o qual o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, o que desde já se argui.”

            Não foram apresentadas contra-alegações.

8. No exercício do poder atribuído pelos arts. 652º, 1, c), e 656º, ex vi art. 679º, do CPC, foi proferida Decisão Sumária e Liminar, na qual se julgou procedente a revista, revogando-se parcialmente o acórdão recorrido no segmento objecto da revista e repristinando-se a sentença de 1.ª instância, com fundamentação adicional, no dispositivo em que condena a Ré com o acréscimo de “juros de mora vencidos desde a data da citação da ré “Têxtil Ocidental” para a presente acção, até efectivo e integral pagamento, sendo as taxas de juro a considerar as previstas para os juros comerciais”.

9. Inconformada, a Recorrida «Têxtil Ocidental, Lda.» apresentou Reclamação para a Conferência, solicitando que sobre a matéria da decisão singular recaia um acórdão, nos termos do art. 652º, 3, ex vi art. 679º, do CPC, apresentando para o efeito as seguintes Conclusões:

1ª – O pedido, formulado pela Autora na petição inicial, na alínea e) da letra D /: “Sem conceder, deverá a 5ª Ré ser obrigada a pagar à Autora o montante correspondente ao preço das facturas, que ainda não se encontra liquidado, no valor de € 1.031.081,23 ”, não contém condenação de pagamento de juros de mora.

2ª – Este pedido manteve-se inalterado até ao encerramento da discussão e julgamento da acção.

3ª – O pedido, formulado pela Autora na petição inicial, na letra G /: “Estas indemnizações a serem pagas não prejudicam a possibilidade de a indemnização poder vir a ser fixada em montante superior, nos termos do art. 569º do Código Civil, sendo esta com juros a contar da data da citação, nos termos do art. 805º, nº 3, in fine, do Código Civil”, nada a ver com o pedido das anteriores primeira e segunda conclusões, que tem causa de pedir diversa da dos pedidos das letras A /, B /, C / e F /, formulados na petição inicial, e cujas responsabilidades extracontratuais é diversa da responsabilidade contratual do pedido das anteriores primeira e segunda conclusões.

4ª – A fundamentação jurídica da decisão reclamada, é, totalmente, errada quer de facto quer de direito.

5ª – A decisão reclamada violou o disposto no nº 1 do artigo 609º do Código de Processo Civil, quanto ao pedido das antecedentes primeira e segunda conclusões, por referência ao disposto no nº 1 do artigo 3º e ao disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 552º, ambos do Código de Processo Civil, e, ainda, violou a jurisprudência do acórdão uniformizador de jurisprudência nº 9/2015 de 14 de Maio de 2015 deste Supremo Tribunal de Justiça, publicado no nº 121 de 24 de Junho de 2015 na 1ª Série do Diário da República, que a fixou “ Se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros”.

6ª – A decisão reclamada, em consequência, está ferida da nulidade prevista na primeira parte da alínea e) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, e na segunda parte da sua alínea d).

7ª – Deve, em consequência, a decisão reclamada ser revogada por acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, e que decida, em conformidade, o recurso de revista interposto pela Autora.”

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO

1. Admissibilidade do recurso

Estão verificadas as condições gerais e especiais de admissibilidade da revista (arts. 629º, 1, 631º, 1, 671º, 1, CPC) e da reclamação (art. 652º, 3, em referência aos arts. 652º, 1, c), e 656º, ex vi art. 679º, do CPC).

2. Objecto da Reclamação

Vistas as Conclusões da Reclamação, incidindo sobre a decisão que apreciou o objecto da revista (de acordo com as respectivas Conclusões: arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, CPC), incidindo sobre uma só das questões decididas pelo acórdão da Relação, identificam-se como questões agora a apreciar:

— erro de interpretação e aplicação do regime jurídico aplicável aos juros moratórios a aplicar à dívida a que a Ré “Têxtil Ocidental, Lda.» foi condenada pelas instâncias, no que toca ao segmento decisório do acórdão recorrido, identificado sob 5. no Relatório, em referência especial aos arts. 806º, 1 e 2, 804º, 1 e 2, 805º, 3, do CCiv., na relação com os arts. 3º, 1, 552º, 1, e), e 609º, 1, sempre do CCiv.;

— nulidade processual da decisão reclamada, tendo em conta o art. 615º, 1, d), 2.ª parte, e e), do CPC.

Não obstante a regra de conhecimento prioritário das nulidades imputadas à decisão reclamada (por aplicação do art. 684º, 1, do CPC), atento o encadeamento e o cruzamento jurídico-processual da questão de direito delimitada pela Reclamante, uma vez que a questão da nulidade surge como tópico subsequente e associado às considerações e apreciações relativas à questão anterior relativas a matéria de direito e sua fundamentação, seguiremos, como mais adequada para as respostas a essas matérias recursivas, a ordem enunciada pelas Conclusões.

2. Factualidade relevante

Com interesse para o conhecimento da Reclamação, foram considerados os seguintes factos como provados, com modificação/eliminação pela Relação:

“1. Por instrumento notarial lavrado a …… de 2001, na Loja nº … , da Avenida……, freguesia e concelho da……, os 1º a 6º réus, por si e/ou em representação dos 2º a 6º réus, lavraram instrumento de acta de eleição dos corpos sociais da autora, actualmente massa falida, em assembleia-geral de accionistas da empresa, tudo conforme acta que faz fls. 338 a 342 destes autos.

2. O 1º réu efectuou uma publicação no jornal “………” sob o título “Sociedade Têxtil Baiona, S.A. – Comunicado”, conforme documento de fls. 53, que aqui se dá por reproduzido.

3. Em 14 de Dezembro de 2001, pela inscrição da cota n.º 40, foi registada à respectiva matrícula da autora a designação dos 7º, 8º e 9º réus, respectivamente, para presidente e vogais do conselho de administração da autora.

4. A autora foi declarada falida nos autos principais (n.º……) em …… de 2003.

5. AA, em ........ de 2000 e em representação da autora, dirigiu-se ao Cartório Notarial ……, onde outorgou a escritura aí lavrada a fls. 90 a 90 verso do Livro para Escrituras Diversas n.º ……, pela qual alterou a sede social da autora para Avenida………….

6. O primeiro réu celebrou um contrato de arrendamento e cessão de exploração entre a autora e a ré “Têxtil Ocidental, Lda.”, que faz fls. 94 a 98 dos autos e que aqui se dá por reproduzido: aquela, na qualidade de dona e legítima proprietária dos prédios urbanos, situados no lugar de ….., da freguesia de ….., do concelho de ….: a) Do destinado a escritório e serviços, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …; b) Do destinado a armazém e fiação, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …; c) Do destinado a armazém, tinturaria e acabamento, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …..; d) Do destinado a armazém de revista, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …; e) Do destinado a armazém de fio e tecelagem, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ….; e f) Do destinado a armazém e serralharia, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ….; deu-os de arrendamento à identificada ré, pelo prazo de sete anos, com início em ……. de 2001 e termo em … de ……. de 2008, mediante o pagamento, a título de rendas, das quantias anuais, respectivamente, de 1.200.000$00, 9.000.000$00, 6.000.000$00, 3.000.000$00, 6.600.000$00 e 2.000.000$00, a pagar em duodécimos mensais entre o dia um e o dia oito de cada mês. Nesse contrato, mais estabeleceram que o mesmo se renovaria automaticamente caso não fosse rescindido, por aquela ré, com uma antecedência mínima de seis meses a contar da data do seu termo, …….de 2008; que era da responsabilidade da ré a realização das obras que fossem necessárias, quer ordinárias, quer extraordinárias; que a mesma ré podia subarrendar qualquer um ou mais ou parte daqueles prédios, conquanto informasse a autora, conferindo-lhe o direito de recusar o subarrendamento, caso este fosse feito por um período superior a dois anos.

7. A ré “Têxtil Ocidental, Lda.”, através de cheque visado, com data de ….......de 2001, sacado sobre o………, agência……, com o n.º ……………, pagou à autora a importância de 14.529.336$00.

8. O equipamento constante de fls. 54 a 89 dos autos nunca saiu das instalações da autora.

9. O presidente do conselho de administração da autora foi AA, desde ……1995 até à data da declaração da falência da autora.

(…)

23. Os serviços de processamento de facturas da autora emitiram facturas de venda de variado equipamento da empresa autora à ora 5ª ré, conforme fls. 54 a 89, no valor total de € 833.430,92.

(…)

 

51. Da quantia referida em 7, 7.264.668$00 foram destinados pela ré, o que a “Têxtil Baiona” aceitou, ao pagamento das rendas referentes aos meses de ………de 2001 do contrato referido em 6) – quesito 4º.

52. Da quantia referida em 7, 7.264.668$00 foram destinados pela ré, o que a “Têxtil Baiona” aceitou, ao pagamento de parte do valor da factura n.º …… junta pela autora como documento n.º 16 – quesito 4º.

53. A “Têxtil Baiona” vendeu à ré “Têxtil Ocidental Lda.” os bens discriminados nas facturas por ela juntas como documentos 3 a 17, pelos preços nelas referido, no montante global de 167.087.898$00 – quesitos 5º e 6º.

54. Por conta deste preço, a ré “Têxtil Ocidental” efectuou pagamentos à “Têxtil Baiona” no montante de 134.502.331$00, faltando liquidar 32.585.567$00 – quesitos 7º e 8º.

55. De todas as vezes que a ré efectuou tais pagamentos, a “Têxtil Baiona” entregou-lhe os respectivos recibos, assinados, sob carimbo da Administração, pelo Presidente do Conselho de Administração AA – quesito 9º.

56. A ré não efectuou o pagamento integral do valor do preço constante da factura 14/IM (fls. 86 p.p.) – quesito 10º.”

3. O direito aplicável

3.1. A questão decidenda fulcral nesta revista visa apreciar a modificação pela Relação do julgado em 1.ª instância sobre a exigibilidade de juros moratórios, de natureza comercial, sobre a quantia de 162.536,12 €, montante em que as instâncias coincidiram em condenar a Ré e aqui recorrida “Têxtil Ocidental».

Na sentença da 1.ª instância, proferida a …… 2018, identificou-se como questão decidenda I, “conhecer da verificação de fundamento para que a 5.ª ré seja ‘obrigada a pagar à autora o montante correspondente ao preço das facturas, que ainda não se encontra liquidado, no valor de € 1.031.081,23’”, sendo conexas as questões decidendas M (“Da quantia referida em 7), a Ré Têxtil Ocidental, Lda. destinou: - 7.264.668$00 ao pagamento das rendas referentes aos meses ……. de 2001 do contrato referido em 6); 7.624.668$00 ao pagamento de parte do valor da factura nº …. (junta pela Autora como doc. 16)”), N (“A autora entregou à ré “Têxtil Ocidental Lda.” os bens discriminados nas facturas por ela juntas como docs. 3 a 17, pelos preços nelas referido, no montante global de 167.087.898$00.”), O (“Por conta deste preço, a ré Têxtil Ocidental efectuou pagamentos à autora no montante de 134.502.331$00, faltando liquidar 32.585.567$00.”) e P (“De todas as vezes que a ré efectuou tais pagamentos, a autora entregou-lhe os respectivos recibos, assinados, sob carimbo da Administração, pelo Presidente do Conselho de Administração AA.”). Em resposta, reconheceu-se à Autora o direito à entrega da quantia de € 162.536,12 a título de capital “a que acrescem juros de mora vencidos desde a data da citação da ré “Têxtil Ocidental” para a presente acção, até efectivo e integral pagamento, sendo as taxas de juro a considerar as previstas para os juros comerciais – cfr. artigos 406º, n.º 1, 798º, 799º, n.º 1, 804º, n.os 1 e 2, e 806º, n.os 1 e 2, 874º e 879º do Código Civil, e 102º, § 3, do Código Comercial”.

Para tal fundamentou-se, no essencial, no que tange ao “pedido deduzido sob a letra D., al. e)” [Pretende a Autora, sem conceder, que seja a 5.ª ré obrigada a pagar à autora o montante correspondente ao preço das facturas, que ainda não se encontra liquidado, no valor de € 1.031.081,23.]:

“Como decorre das considerações acima expostas, pela mera celebração do acordo de vender e de comprar, pelas aqui autora e ré, esta tornou-se titular do direito de propriedade sobre o equipamento referido, cfr. artigo 879º/a) do Código Civil, passando desde então a impender sobre a autora a obrigação de entregar a coisa e sobre a ré a obrigação de pagar o preço, cfr. artigo 879º/c) do mesmo diploma legal.

No caso provou-se que os serviços de processamento de facturas da autora emitiram facturas de venda de variado equipamento da empresa autora à ora 5ª ré, conforme fls. 54 a 89, no valor total de € 833.430,92.

(…)

À competia a prova de ter efectuado o pagamento do preço, em parte ou na totalidade, por se tratar de facto impeditivo do direito da autora, cfr. artigo 342º/2 do Código Civil.

A provou que por conta deste preço efectuou pagamentos à autora no montante de €670.894,80, estando em dívida o valor de 162.536,12, na moeda com actual curso legal. Sendo a obrigação de pagamento do preço um dos efeitos do contrato de compra e venda celebrado, cfr. artigo 879º/c) do Código Civil, configurando o não pagamento, em abstracto e em sentido lato, uma situação de incumprimento, cfr. artigo 798º do Código Civil, a seria, em princípio, condenada a pagar àquela o remanescente do preço em dívida: € 162.536,12.

(…)

Emtermosgerais,onãocumprimentoéasituaçãoobjectivadenãorealização da prestação debitória e de insatisfação do interesse do credor, independentemente da causa de onde a falta procede.

A violação do dever de prestar por causa imputável ao devedor pode revestir uma tríplice forma: aimpossibilidadedaprestação (artigos801ºa803ºdoCódigo Civil), o que ocorre quando, por culpa do devedor, pereceu ou se deteriorou por completo a coisa devida; o não cumprimento definitivo ou falta de cumprimento (inadimplemento ou inadimplência), que pode decorrer dos termos fixados pelo artigo 808º, n.º 1, do mesmo diploma legal, bem como das situações em que, sendo a prestação ainda possível e com interesse para o credor, o devedor declara a este não querer cumprir; e a mora, que se assume como o atraso, demora ou dilatação culposo no cumprimento da obrigação e que ocorre sempre que, por causa que lhe seja imputável, o devedor não realiza a prestação no tempo devido, continuando a prestação a ser ainda possível.

No essencial, os pressupostos essenciais da mora são a ilicitude no retardamento da prestação e a culpa.

(…)

Dispõe o artigo 798º do Código Civil que “o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação se torna responsável pelo prejuízo que causa ao credor”, prejuízo que abrange tanto o dano emergente como o lucro cessante, nos termos do artigo 564º, correspondendo ao chamado “interesse contratual positivo”, ou seja, aquele que resultaria para o credor do cumprimento curial do contrato, e é determinado em função dos danos concretamente sofridos pelo credor.

A mora, quando se verifica, temdoisefeitosfundamentais: porumlado, obriga o devedor a reparar os danos determinados nos termos dos artigos 562º e seguintes do citado diploma legal – que causa ao credor o atraso culposo no cumprimento – artigo 804º, n.º 1; por outro, lança sobre o devedor o risco da impossibilidade da prestação

Na obrigação pecuniária, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora, sendo os juros devidos os legais – artigo 806º, n.os 1 e 2, 1ª parte, do Código Civil.

A autora pretende a condenação da ré no pagamento dos juros de mora devidos desde a data da citação – cfr. pedido deduzido sob a letra G –, assim se impondo considerar a sua pretensão, nos termos do disposto no artigo 609º/1 do Código de Processo Civil.”


Ao invés, o acórdão recorrido da Relação expôs uma mudança de posição, que isentou a Ré do pagamento desses juros moratórios:

“Insurge-se a apelante ré apenas contra o segmento da sentença na parte em que dela consta que à quantia ali fixada acrescem juros de mora. Argumenta que o pedido formulado pela autora na letra G da petição inicial, pelos seus próprios dizeres, respeita, exclusivamente, à mora das quantias dos pedidos de indemnização de responsabilidade civil por factos ilícitos das alíneas d) e e) da letra A, da letra B e da letra E, formulados pela autora na petição inicial, e à possibilidade dessas quantias ser reclamadas por valores superiores, em caso de danos que viessem a revelar-se superiores.

O pedido é o seguinte: “Estas indemnizações a serem pagas não prejudicam a possibilidade de a indemnização poder vir a ser fixada em montante superior, nos termos do art 569º do Código Civil, sendo esta com juros a contar da data da citação, nos termos do art. 805º, nº 3, in fine, do Código Civil”

É certo que o art. 569º do CC também se aplica à responsabilidade contratual (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, Volume I, 3ª edição, pág. 545). Sucede que a autora faz apelo ao art. 805º, nº 3 do CC, segundo qual, tratando-se de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação (…). Circunscreve, pois, o âmbito dos juros à indemnização em caso de responsabilidade civil, por factos ilícitos, omitindo qualquer pedido de pagamento de juros civis ou comerciais relativamente ao caso de responsabilidade contratual previsto na al. e) de D. (relativo ao montante correspondente ao preço das facturas, juntas como documentos 3 a 17 com a petição inicial, que ainda se não encontra liquidado)

Não podem, pois, incidir juros sobre a condenação.

4.2. Na argumentação da decisão aqui objecto de Reclamação, discorreu-se assim:

Vejamos o que interessa reter:


(i) a Ré “Têxtil Ocidental, Lda.» foi condenada ao pagamento da quantia de € 162.536,12, correspondente ao preço da compra de equipamento à Autora, devidamente comprovada por facturas emitidas e correspondentes aos contratos celebrados – cfr. factos provados 23. e 52. a 56.;
(ii) os juros moratórios (relativos à falta de cumprimento tempestivo de obrigação) impostos legalmente, de natureza comercial, são devidos nos casos previstos no CCom. ou em outras leis, vencendo-se como “comerciais” quando for de «direito vencerem-se» e por estarem em causa dívidas provenientes da celebração de “actos de comércio”, objectivos ou subjectivos (corpo do art. 102º do CCom.);
(iii) vencem-se juros moratórios legais no caso das “obrigações pecuniárias”, ao abrigo do art. 806º do CCiv. – «1. Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora. / 2. Os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal.» (preceito básico da disciplina da responsabilidade negocial ou contratual por incumprimento: arts. 798º e ss) –, assim como do art. 4º, 1, do DL 62/2013, de 10 de Maio: «Os juros aplicáveis aos atrasos de pagamentos das transações comerciais entre empresas são os estabelecidos no Código Comercial ou os convencionados entre as partes nos termos legalmente admitidos[1].
(iv) a exigibilidade de juros moratórios legalmente devidos decorre secundariamente da indemnização decorrente do incumprimento tempestivo da obrigação, de acordo com o art. 804º, 1 e 2, do CCiv., sempre que estejamos perante responsabilidade negocial ou contratual por incumprimento;
(v) aplica-se aos juros moratórios legais de natureza comercial o regime, com os seus pressupostos, do art. 102º, corpo, § 3.º a 5.º, do CCom., em conjugação com os arts. 2º, 2, 3º, b), 4º e 5º do DL 62/2013)[2].

Visto isto, o pedido da Autora em obter a condenação da Ré, aqui Recorrida, “a pagar à autora o montante correspondente ao preço das facturas, que ainda não se encontra liquidado, no valor de € 1.031.081,23” (letra D, al e)), terá que ser conciliado com a letra G constante da petição inicial, lidos os segmentos desta letra no seu todo:
(i) os vários pedidos (incluindo várias indemnizações) nos vários pedidos e alíneas das letras A, B, D, E e F para os vários Réus não são prejudicadas pela possibilidade de fixação de montante indemnizatório superior para todas as indemnizações pedidas no seu conjunto para cada um dos Réus, de acordo com o art. 569º do CCiv, independentemente da sua natureza de responsabilidade negocial ou extra-negocial[3] (para esta, v. ainda, quanto aos juros moratórios suplementares, o art. 806º, 3, do CCiv.), incluindo o pedido feito na al. e) da letra/pedido D para a Ré “Têxtil Ocidental” – o que foi alegado e pedido, para eventual ampliação nos termos do art. 265º, 2 e 3, do CPC;
(ii) o pedido de condenação em juros moratórios é feito pela Autora para contagem desde a citação da petição inicial para todas as indemnizações pedidas nessas letras/pedidos, mesmo quando e se acrescidas nos termos do art. 569º do CCiv. e então resultantes numa só indemnização para cada um dos Réus individualmente considerados (calculada com os juros pedidos);
(iii) também assim será se as indemnizações pedidas em algumas das alíneas/pedidos das letras se fundarem em responsabilidade extra-contratual por facto ilícito ou pelo risco e o crédito for ilíquido, caso em que a data de contagem de juros resulta da referência (enquanto opção do credor lesado) no pedido ao art. 805º, n.º 3, 2.ª parte, do CCiv. – conferindo-se, por expressa declaração petitória, um termo inicial específico da mora do lesante-devedor, em excepção à regra que resultaria do art. 805º, 2, b), e 566º, 2, do CCiv., mais severa para o lesante-devedor[4] (e até do art. 4º, 2, do DL DL 62/2013, de 10 de Maio).

Pois bem.

Se assim é, o facto de a Autora ter referido o art. 805º, 3, do CCiv. – adequada ou inadequadamente reflectido no teor literal da letra/pedido G –, salvo o devido respeito, não pode significar sem mais argumento que circunscreveu o pedido de juros às indemnizações das letras/pedidos fundadas em responsabilidade civil extra-contratual por facto ilícito ou pelo risco (ou por facto lícito), omitindo-se o pedido de condenação em juros moratórios fora desses casos. Se os pedidos se fundam indistintamente em sede de responsabilidade contratual e extra-contratual, qual a lógica de, a propósito do pedido expresso de condenação em juros de mora, se referir um regime exclusivo da responsabilidade extra-contratual (como é o art. 805º, 3, 2.ª parte, do CCiv.) e daí extrair-se que o pedido de juros de mora não abrangia os restantes e demais pedidos fundados em responsabilidade contratual?

Antes é adequado considerar feito esse pedido, em nome e actuação do arts. 3º, 1, 552º, 1, e), e 609º, 1, do CCiv.[5], para todos os pedidos indemnizatórios feitos nas alíneas dos pontos referidos do petitório, incluindo naturalmente a al. e) do ponto D, relativo ao montante não pago das compras pela Ré (responsabilidade contratual). E fê-lo a Autora usando do mesmo termo inicial de mora para todos os pedidos. Ressalvando, a final, o (coincidente) termo inicial de mora para as indemnizações pedidas com base em responsabilidade extra-contratual, nos termos secundum legem do art. 805º, 3, do CCiv., usando assim da faculdade de afastar a intervenção para esse efeito do critério geral estabelecido pelo art. 566º, 2, do CCiv.[6].”

E mais se acrescentou:

“A este propósito do pedido de juros moratórios como indemnização acrescida à indemnização-base correspondente ao prejuízo-dano efectivo do incumprimento contratual (art. 798º do CCiv.), esta interpretação não briga com o alcance do princípio do dispositivo (em íntima conexão com o princípio do pedido), com consagração genérica no art. 3º, 1, do CPC, que alegadamente impediria que o âmbito decisório nesta sede fosse diverso do que se delimitara objectiva e subjectivamente na pretensão (impulso processual) da Autora como objecto do processo (cfr. art. 609º, 1, CPC). Isto porque se impede que o tribunal decida ultra ou extra petitum – o que se respeita na íntegra, pois o pedido de juros está inscrito expressamente na pretensão da Autora – mas não se impede que (nomeadamente quando o tribunal se confronta com os «factos» enunciados no art. 5º, 2, do CPC) se chegue à solução – decorrente da necessidade de enquadrar a referência ao art. 805º, 3, do CPC – justificada pela verdade material e efectividade adjectiva que o dever de gestão processual (com sentido material) também almeja (art. 6º CPC)[7]. E tal resultado, sublinhe-se, desde que respeitada a causa de pedir, se inscreva no âmbito da pretensão formulada e do efeito jurídico a obter com a providência jurisdicional requerida[8] – o que é o caso do que se aqui se decide a final com o efeito jurídico subjectivamente decretado em alinhamento com o pedido de condenação em juros moratórios para o decidido quanto à al. e) da letra D e, ainda como questão de «indagação, interpretação e aplicação das regras de direito» (art. 5º, 3, CPC), adequado à justa composição da situação litigiosa.”

4.3. Não se vê razões para alterar os fundamentos usados na decisão sumária reclamada, em todas as vertentes analisadas. Importa, pois, agora colegialmente em conferência, sublinhar a sua adequação e decidir pela sua confirmação, que não é contrariada pela argumentação trazida pela Reclamante.

Não obstante, afigura-se ajustado, por fim, tecer algumas considerações que julgamos tornar adicionalmente sustentada a posição vazada na decisão com que a Reclamante não se conformou.

Vejamos.

A petição inicial (regulada nos arts. 552º e ss do CPC) deve ser considerada dogmaticamente como “acto postulativo” da parte Autora, enquanto acto que constitui uma nova situação processual, se integra no procedimento adjectivo legalmente previsto e se pratica para formular um pedido (ou pedidos) ao tribunal, apoiado(s) em certos factos, demandando o seu poder decisório e constituindo o tribunal no dever de julgar dentro de determinados parâmetros que o próprio acto delimita e vincula[9]. Por isso, a interpretação – decifração do sentido – que os intervenientes processuais e o tribunal fazem do acto postulativo de petição é fundamental para a delimitação do objecto do processo proposto pelo autor do acto e para fazer actuar as situações jurídicas na decisão final[10].

Sendo verdade que o CPC não contém um regime geral de interpretação dos actos processuais das partes, o certo é que – na hipótese de dissenso das partes sobre o sentido de um segmento do pedido demandado em tribunal, enquanto parcela da “forma de tutela jurídica que pretende para a situação jurídica alegada”[11] – devemos lançar mão de um critério que, afastando-se em princípio do regime-regra de interpretação das declarações negociais expresso no art. 236º, 1, do CCiv. (teoria da impressão do destinatário)[12], mas ainda por força da convocação do art. 295º do mesmo CCiv., se aproxime e se enquadre nas previsões relativas à interpretação dos negócios formais, ou seja, o art. 238º, 1, do CCiv. («Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.») e, sempre que a parte contrária conheça a intenção do autor do acto postulativo, na valência do sentido correspondente a essa intenção, de acordo com o previsto no art. 236º, 2, do CCiv. (falsa demonstratio non nocet: vontade real do declarante, conhecida pelo declaratário).

Ora, no caso presente, não podemos deixar de assinalar que a divergência da Ré «Têxtil Ocidental» quanto ao sentido do pedido de juros moratórios feito no ponto G do petitório da Autora não se reflecte de todo na sua Contestação – cfr. a síntese feita nas decisões das instâncias. O que significa que a Ré conhecia, ou não podia deixar de conhecer, e se conformou com o sentido relevante do acto postulativo nesse segmento, tal como indicado pela Autora parte e decidido pelo tribunal de 1.ª instância. E assim interpretou e compreendeu o sentido exacto que a autora pretendia fazer aderir à sua expressão literal, desde logo por aplicação do critério legal que se incorpora no art. 186º, 3, do CPC no que toca à interpretação conveniente da petição inicial: “a petição vale de acordo com o sentido real que o autor pretendia atribuir-lhe. A interpretação (no caso de inintelegibilidade) ou a integração (no caso de falta) realizadas pelo réu mostram que ele atribuiu o sentido correcto à imprecisa ou incompleta forma de expressão do autor. (…) havendo uma coincidência entre a intenção do autor e o sentido apreendido da formalização dessa intenção, será esse o sentido com que deve valer o acto”[13].[14]

Só depois de confrontada com a decisão de 1.ª instância, veio a Ré, no seu recurso de apelação, problematizar esse sentido, pugnando pela restrição do pedido de juros moratórios às indemnizações pedidas em razão da subsistência de responsabilidade extra-contratual (cfr. as respectivas Conclusões 3.ª a 7.ª), em contradição com a inexistência de qualquer discórdia relevada na Contestação. E, inconformado com a decisão de segundo grau, veio a Autora, aqui Recorrente, explicitar o sentido de expressa menção ao pedido de condenação em juros moratórios no texto do ponto G – v., em esp., as Conclusões 14., 17., 19., 22. e 29. da revista. Ora, aqui, a função interpretativa do tribunal, confrontado com a dúvida, não pode deixar de se socorrer do art. 238º, 1, do CCiv. – correspondência mínima do sentido com o texto reflectido no acto processual – mas dando prevalência ao sentido favorável ao autor do acto, quanto à amplitude da declaração, em nome de uma “presunção fundada na normalidade”: “quem quer que lhe seja reconhecido um direito, quer que todas as razões que possam concorrer para este resultado sejam consideradas”, desde que – como evidenciam as circunstâncias adjectivas anteriormente relatadas – a parte contrária não pudesse deixar de razoavelmente contar com a inclusão do sentido que o autor pretende ver concedido[15].  

Perante a imperfeição do constante no ponto G do petitório na referência ao art. 805º, 3, do CCiv. – assumida expressamente pela Autora, aqui Recorrente –, a aplicação dos referidos critérios, em razão do que os autos nos oferecem quanto à posição das partes e à compreensão adequada do ponto G na globalidade dos pedidos feitos pela Autora na petição inicial, confere como razoáveis e adequados os sentidos identificáveis que a decisão reclamada surpreende nesse ponto G, que assim se pode dividir:

(i) pedido conjunto de acréscimo de montante indemnizatório para todas as indemnizações pedidas singularmente para cada um dos Réus, de acordo com o art. 569º do CCiv., independentemente da sua natureza de responsabilidade negocial ou extra-negocial, incluindo o pedido feito na al. e) da letra/pedido D para a Ré «Têxtil Ocidental»;

(ii) pedido expresso de juros moratórios, para todos os montantes indemnizatórios a fixar, acrescidos, se fosse o caso, de montantes superiores decretados ao abrigo do art. 569º do CCiv.;

(iii) identificação do mesmo termo inicial de mora na contagem dos juros correspondentes para todos os pedidos (= citação da acção/petição), sendo também a citação o momento relevante para as indemnizações pedidas com base em responsabilidade extra-contratual, aqui por aplicação do referido art. 805º, 3, do CCiv, alinhado com o n.º 1 desse art. 805º.

 Merece, pois, ser confirmada a decisão de fazer proceder as Conclusões, em esp. 3., A), 11. a 20. e 27, do recurso da Recorrente, repristinando-se no segmento recursivo o decidido pela 1.ª instância e revogando o acórdão recorrido na parcela em que isenta a Ré/Recorrida dos juros sobre a condenação decidida. E, por esta via, o não conhecimento  das restantes questões incorporadas e identificadas nas Conclusões da revista (art. 608º, 2, 2ª parte, CPC).

4.4. Aqui chegados, cumpre rejeitar a pretensão da Reclamante quando alega e invoca que a decisão sumária enferma das nulidades baseadas em “excesso de pronúncia” (art. 615º, 1, d), 2.ª parte, CPC) e em “condenação em quantidade diversa ou em objecto diverso do pedido” (art. 615º, 1, e), CPC).

Quanto à primeira, não se vislumbra que o tribunal, em sede de recurso, tenha conhecido de questões de que não podia ter conhecimento, uma vez que resolveu a questão recursiva, identificada e delimitada nas conclusões da revista (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, do CPC), do alcance e interpretação do ponto G do petitório da Autora quanto ao pedido de juros moratórios. Para isso, usou do discurso argumentativo e da motivação jurídica que entendeu serem consistentes para se compreender a bondade do percurso destinado à interpretação e aplicação do direito à questão litigiosa desse alcance e interpretação (art. 5º, 3, do CPC).

Quanto à segunda, pelas razões expostas, nomeadamente na coordenação dos arts. 3º, 1, 552º, 1, e), e 609º, 1, do CCiv., não resulta a decisão numa condenação “ultra petitum” que ultrapasse os limites do pedido (ou dos pedidos deduzidos).  

III. DECISÃO

Nos termos expostos, indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão sumária reclamada, que julgou procedente a revista, revogando parcialmente o acórdão recorrido no segmento objecto da revista – “recurso de apelação da Ré Têxtil Ocidental” – e no correspondente dispositivo em que, sob a respectiva alínea C), acorda “julgar a apelação da Ré procedente e revogar a sentença na parte em que condena a ré a pagar juros de mora”, e, assim, repristinando na íntegra, mas com fundamentação adicional, a sentença de 1.ª instância, quando condena a Ré, no que respeita à “entrega da quantia de € 162.536,12, a título de capital”, com o acréscimo de “juros de mora vencidos desde a data da citação da ré “Têxtil Ocidental” para a presente acção, até efectivo e integral pagamento, sendo as taxas de juro a considerar as previstas para os juros comerciais”.

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Custas pela Recorrida e Reclamante, que, nesta impugnação, se fixa em taxa de justiça correspondente a 3 (três) UCs.

STJ/Lisboa, 15 de Dezembro de 2020

Ricardo Costa (Relator)

Ana Paula Boularot

Fernando Pinto de Almeida

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

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[1] V. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, Volume I, Introdução, Actos de Comércio, Comerciantes, Empresas, Sinais Distintivos, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 66-67.
[2] Que não se discutiram nos autos e não chega como questão a esta sede recursiva (v., por todos e em síntese, RICARDO COSTA, “O direito comercial português: direito misto, autónomo e basicamente empresarial”, Estudos Dispersos, Almedina, Coimbra, 2020, págs. 328-329 e nts. 46-47).
[3] Em geral, v. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 394.
[4] V., neste sentido, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, Volume II (Artigos 762.º a 1250.º), 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1997, sub art. 805º, pág. 65.
[5] V. o AUJ n.º 9/2015 e o seu segmento uniformizador, correspondente ao Ac. do STJ de 14/5/2015, processo n.º 1520/04.3TBPBL.C1.S1-A, Rel. FERNANDO PINTO DE ALMEIDA, publicado in DR, 1.ª Série, n.º 121, de 24/6/2015.
[6] V. ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, nt. (2) – pág. 1050.
[7] V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Os princípios estruturantes da nova legislação processual civil”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 69, 88-89, MIGUEL MESQUITA, “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno Processo Civil – Anotação ao Acórdão de 8 de Julho de 2010 do Tribunal da Relação do Porto”, RLJ n.º 3983, Ano 143.º, 2013, págs. 145 (“a gestão material conduz a uma interferência judicial ao nível do fundo, conteúdo ou mérito da acção, sendo susceptível de influenciar o conteúdo da sentença”), 150 (“o interesse público da boa Administração da justiça” implica “a intervenção do juiz destinada a alcançar a maior efectividade das sentenças”). 
[8] V. LOPES DO REGO, “O princípio dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, págs.789-790, 793-796 (em sede de, numa visão substancialista, “convolação” ou “reconfiguração jurídica” para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa), FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, págs. 80-81 e, em esp., nt. 127. Na jurisprudência do STJ, v., para este alcance dogmático-processualista, o Ac. de 11/2/2015, processo n.º 607/06.2TBCNT.C1.S1, Rel. ABRANTES GERALDES, in www.dgsi.pt (ponto I. do Sumário).
[9] PAULA COSTA E SILVA, Acto e processo. O dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs. 208-210, 211, 255 e ss, 262-263, 263 e ss.
[10] Para esta caracterização, v. PAULA COSTA E SILVA, Acto e processo… cit., págs. 375 e ss. V. também MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao processo civil, Lex, Lisboa, 1993, págs. 93-94, FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume I cit., pág. 434 (destacando o nexo de pertença a um dado processo ou procedimento).
[11] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “O procedimento em 1.ª instância”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, pág. 270.
[12] Neste sentido crítico e excludente, PAULA COSTA E SILVA, Acto e processo… cit., págs. 380 e ss.
[13] Sobre o art. 186º, 3, do CPC (= art. 193º, 3, CPC 1961) como tradução de um princípio interpretativo da petição inicial, em paralelismo com o art. 236º, 2, do CCiv., v. ainda PAULA COSTA E SILVA, Acto e processo… cit., págs. 388 e ss (que, nessa base, sustenta mesmo que “o sentido do acto pode ser fixado contra o texto”).
[14] V. PAULA COSTA E SILVA, Acto e processo… cit., págs. 432 e ss, em esp. 444-446.
[15] Seguimos a conclusão de PAULA COSTA E SILVA, Acto e processo… cit., págs. 446 e ss, em esp. 447 e 450.