Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1097/14.1TBFUN-A.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
SÓCIO GERENTE
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
AVALISTA
SOCIEDADE UNIPESSOAL
QUALIDADE DE SÓCIO
SOCIEDADE COMERCIAL
RELAÇÕES IMEDIATAS
PACTO DE PREENCHIMENTO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 10/12/2017
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS – SOCIEDADES POR QUOTAS / GERÊNCIA E FISCALIZAÇÃO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / MODALIDADES DA DECLARAÇÃO / INTERPRETAÇÃO / PROVA DOCUMENTAL / DOCUMENTOS PARTICULARES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS .
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC), APROVADO PELO DEC.-LEI N.º 262/86, DE 02/09 (CSC): - ARTIGO 260.º, N.º 4.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, N.º 1, 236.º, N.º 1, 237.º, 238.º, E 378.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.ºS 3, 4 E 5 E 639.º, N.º 1.
LEI UNIFORME RELATIVA ÀS LETRAS E LIVRANÇAS (LULL): - ARTIGOS 10.º, 31.º E 77.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 06/12/2001, ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR N.º 1/2002, IN DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE - A, DE 24/01/2002.
Sumário :
I. Na subscrição de uma livrança emitida em branco quanto à data da emissão, ao montante e à data de vencimento, em que foi aposta uma assinatura no local destinado à subscritora, ali identificada pela respetiva firma social, mas sem menção expressa da qualidade do signatário, esta qualidade pode ainda assim, para os efeitos do preceituado no artigo 260.º, n.º 4, do CSC, ser deduzida de factos que com toda a probabilidade a revelem, nos termos dos artigos 217.º e 236.º, n.º 1, do CC, mormente com base noutros elementos literais constantes do próprio título e, nomeadamente em sede das relações imediatas, noutros elementos de prova extracartulares.

II. Assim, num caso em que a assinatura constante do local destinado à subscritora foi aposta nas sobreditas condições pelo único sócio e gerente da sociedade ali indicada como subscritora, o qual também apôs e assinou, no verso do mesmo título, a declaração de aval àquela subscritora, tendo ainda subscrito a respetiva autorização de preenchimento na qualidade de único sócio e gerente da referida sociedade e de seu avalista, é lícito concluir que tal assinatura foi aposta nessa qualidade.

III. No âmbito de uma livrança emitida em branco, incumbe aos obrigados cartulares, no domínio das suas relações imediatas com o portador daquela, alegar e provar a violação do respetivo pacto de preenchimento, como decorre do disposto no artigo 10.º, a contrario sensu, aplicável ex vi do artigo 77.º ambos da LULL e do artigo 378.º do CC.

IV. Para tal efeito, não releva, no entanto, a mera impugnação dos dizeres entretanto preenchidos naquela livrança.   

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. Por apenso a uma execução para pagamento de quantia certa ins-taurada pelo Banco AA, S.A., contra BB - Consultoria de Gestão e Sistemas de Informação Sociedade Unipessoal, Lda (1.ª executada) e CC (2.º executado), fundada numa livrança emitida em 07/07/2006, no montante de € 551.778,84, com a data de vencimento de 09/09/2011, a qual foi pretensamente subscrita pela 1.ª executada com aval à subscritora dado pelo 2.º executado, vieram estes deduzir embargos de executado, pedindo, além do mais e no que aqui interessa, que fosse:  

a) – declarada a nulidade da livrança por falta de objeto, quer no tocante à subscrição da mesma, quer no respeitante ao aval nela aposto;

b) – declarada a inexigibilidade do referido aval por falta de interpelação prévia ao preenchimento da livrança do 2.º executado.


         Alegam para tanto, no essencial, que:

- O 2.º executado é o único sócio e gerente da 1.ª executada, mas também representa outras sociedades, entre as quais a sociedade DD, Lda, com diversas operações de crédito perante o Banco exequente;  

- São da letra e punho do 2.º executado quer a assinatura aposta na frente da livrança dada à execução, quer a assinatura e expressão apostas no verso da mesma; 

- Porém, não são da letra e punho do 2.º executado os demais dizeres contidos nos diversos campos da frente da livrança, nomeadamente o nome e a morada da respetiva subscritora:  

- A 1.ª executada não subscreveu, a título algum, a livrança dada à execução, nem nenhum representante dela a assinou, nessa qualidade;

 - Na livrança em referência, não é feita nenhuma menção a qualquer representação da 1.ª executada nem dela consta qualquer carimbo;

 - A própria indicação ali feita da sede da 1.ª executada não lhe diz respeito, mas corresponde à sede da sociedade DD, Lda, e ao domicílio profissional do 2.º executado;  

 - O 2.º executado não subscreveu a livrança por si, mas por sociedade que nunca chegou a ser identificada;       

 - O mesmo executado apenas deu o seu aval, mas a sociedade que não se encontra identificada;

 - a exigibilidade, perante o avalista, de uma livrança em branco pressupõe a necessária interpelação daquele.

      Concluíram os embargantes que a livrança em causa é nula por falta de objeto, quer quanto à subscrição, quer quanto ao aval, não sendo, por isso, devida a quantia peticionada, nem exigível ao avalista.

        2. O Banco exequente contestou os embargos, sustentando que:

    - A livrança dada à execução foi emitida em 07/07/2006, em garantia de pagamento de um contrato de locação financeira, conforme se atesta na mesma e consta de documento junto aos autos;

    - Aquela livrança foi subscrita em branco, acompanhada de uma convenção de preenchimento, sendo depois preenchida pelo exequente ao abrigo dessa convenção;

     - Aceita a confissão vertida no art.º 42.º da petição de embargos de que pertence ao 2.º executado as assinaturas quer da subscrição quer do aval apostas naquela livrança.

         Concluiu, nessa parte, pela improcedência dos embargos.

    3. Findo os articulados, foi proferido saneador-sentença, a fls. 74-80, datado de 14/12/2015, a considerar inexistente o título executivo quanto à 1.ª executada, por manifesta discrepância entre a identificação da subscritora e a sua assinatura, e também, por virtude disso, nula a obrigação do avalista imputada ao 2.º executada, por vício de forma.

   Nessa base, os embargos foram julgados procedentes com a consequente absolvição dos executados da instância executiva, considerando-se prejudicados os demais fundamentos de oposição aduzidos.

 4. Inconformado com tal decisão, o Banco exequente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do qual foi julgada procedente a apelação e improcedentes os fundamentos dos embargos em apreço, determinando-se o prosseguimento do processo para apreciação, em 1.ª instância, dos fundamentos tidos por prejudicados, conforme acórdão de fls. 130-141, datado de 02/06/2016.

 5. Desta feita, os embargantes, inconformados, vêm pedir revista para o que formulam as seguintes conclusões:  

1.ª - O Tribunal de 1.ª instância entendeu que a livrança dada à execução pelo exequente e embargado, cujo subscritor se encontra identificado como sendo a sociedade executada e embargante, BB - Consultadoria de Gestão e Sistemas de Informação, Sociedade Unipessoal, Ld.ª, mas que no local da assinatura consta uma mera assinatura, sem menção de qualquer qualidade ou outra de qualquer tipo, nomeadamente de carimbo, não é título de crédito exequível, por padecer de vício que coloca em causa a sua validade como tal, pelo que, não se encontrando a livrança regularmente subscrita, decidiu que só se podia concluir pela inexequibilidade do título de crédito dado à execução;

2.ª - Diversamente, o Tribunal “a quo” entendeu que a assinatura aposta na livrança dada à execução e em causa, no lugar destinado à assinatura do subscritor, pelo embargante CC, pode e deve ser imputada à sociedade ali identificada como subscritora, a sociedade embargante BB..., Ld.ª, posto que se deduz do texto da livrança que tal assinatura foi ali aposta em representação desta sociedade e, consequentemente, concluiu pela exequibilidade do título de crédito dado à execução.

3.ª - Para assim decidir, o Tribunal “a quo” fundamentou-se no facto de que, tendo a livrança dada à execução sido entregue ao embargado com as assinaturas nela apostas, é irrecusável a conclusão de que a mesma foi acompanhada de uma autorização de preenchimento, não sendo questionável que uma livrança subscrita em branco se destina a poder ser preenchida, sendo a sua entrega ao credor acompanhada de um acordo/autorização de preenchimento, devendo, assim, ser considerada inconsequente a alegação dos embargantes de que a livrança em causa tinha sido preenchida pelo embargado sem a sua autorização, posto que, a simples entrega da mesma, depois de subscrita, tem implícita a autorização do seu preenchimento pelo portador, concluindo que a assinatura do embargante Hélder na livrança, no lugar destinado à assinatura do subscritor, foi ali aposta em representação da embargante sociedade, ou que, a apor aquela assinatura, aquele quis vincular esta;

4.ª - Os recorrentes não discordam do entendimento subjacente ao acórdão recorrido, mas sim da sua aplicação ao caso concreto, dado não estar em causa a violação ou não de um pacto de preenchimento, expresso ou implícito, relativamente a uma livrança, patente e validamente subscrita pela concreta sociedade executada, porquanto o título cambiário dito “em branco”, e como tal suscetível de subsequente preenchimento ao abrigo de pacto expresso ou implícito para o efeito, não o pode ser - isto é, nem em branco, nem subsequentemente preenchido -, quanto à respetiva e própria subscrição; por outro lado, imputada pelo exequente à sociedade executada a subscrição da livrança em causa, e impugnada a mesma pelos embargantes, a sindicância de tal questão controvertida deverá ser feita à luz dos normativos atinentes à representação e vinculação societária; e, finalmente, tais normativos aplicados à factualidade assente nos autos, designadamente em face do título dado à execução, bem como da matéria de facto não impugnada pelo exequente, impõe a conclusão de que a sociedade executada não subscreveu a livrança em causa.

5.ª - Com efeito, resulta da documentação junta aos autos e da matéria invocada pelos embargantes e confessada pelo embargado, porque não impugnada pelo mesmo, designadamente que:

- o executado individual é, também, representante de diversas outras sociedades, com diversas operações de crédito perante o exequente;

- nenhum representante da 1.ª executada se mostra identificado como tal na livrança dada à execução;

- na livrança dada à execução não consta aposto qualquer carimbo da executada sociedade;

- a própria identificação desta na livrança se mostra errada, não tendo a executada sociedade, nem nunca tendo tido, sede no local que ali se mostra identificado;

- essa é a sede que corresponde a outra das sociedades representadas pelo executado individual;

- no pacto de preenchimento apresentado pelo exequente, ao contrário do que acontece com a livrança, está devidamente identificada e representada a sociedade executada;

- a morada que do mesmo consta para a sociedade executada não coincide com a aposta na livrança.

6.ª - Dessa factualidade, impõe-se concluir, desde logo, que o executado individual não subscreveu a livrança por si, mas por sociedade, a qual nunca chegou a ser identificada, de entre as várias em relação às quais o poderia ter sido, posto serem várias as sociedades representadas pelo mesmo com relações de crédito com o exequente; ora, não podendo a livrança ser "em branco" no tocante à própria subscrição em si, para poder o exequente, respetivo portador, subsequentemente apor a seu livro arbítrio, a identificação da sociedade subscritora de entre as várias representadas pelo executado individual, verifica-se a respetiva nulidade, por falta de objeto;

7.ª - Mais se impõe concluir que a representação de uma determinada sociedade, podendo deduzir-se de factos que, com toda a probabilidade, a revelem, mostra-se a mesma, no caso concreto, e pelo contrário, contrariada pelos factos patenteados pelo título e pelo alegado pacto de preenchimento, concretamente, face à ausência de carimbo, face à morada identificada no título e a qual, aliás, nem sequer coincide com a do alegado pacto de preenchimento, coincidindo, isso sim, com outra a de outra sociedade representada pelo executado individual com relação de crédito com o exequente - ou seja, inexistem os factos que "com toda a probabilidade" revelem a representação da sociedade executada em termos da subscrição da livrança dada à execução.

8.ª - Ao entender de modo diverso o acórdão recorrido violou o disposto no art.º 76.º da LULL, no art. 260.º, n.º 4, do CSC e no art. 217.º, n.º 1, do CC, pugnando-se, como tal, pela sua integral revogação, bem como pela efetiva procedência do entendimento sufragado pela sentença de 1.ª Instância.

 6. O Banco exequente/embargado apresentou contra-alegações a sustentar a confirmação do acórdão recorrido.


      Cumpre apreciar e decidir.


II – Delimitação do objeto do recurso      


Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

Das conclusões do Recorrente resulta que o objeto da revista consiste em saber:

i) – se a assinatura constante do anverso da livrança dada à execução, no local destinado à subscritora, foi aposta pelo 2.º executado como representante da 1.ª executada, BB - Consultoria de Gestão e Sistemas de Informação Sociedade Unipessoal, Lda;    

ii) – se, em função disso, é válida e exigível a obrigação decorrente da declaração de aval aposta no verso da mesma livrança pelo 2.º executado.


  III – Fundamentação

 

1. Factualidade provada


Vem dada como provada a seguinte factualidade:

1.1. A livrança dada à execução, de que se mostra junta cópia a fls. 112/113 dos autos, foi subscrita em branco;

1.2. A mesma foi emitida com data de 07-07-2006 e preenchida com o valor de € 551.778,44, respeitante a “Contrato de locação Financeira 45…1”, e com vencimento a 09/09/2011;

1.3. No lugar destinado à identificação da subscritora, foi indicada a ora 1.º executada e ora embargante “BB – Consultoria Gestão Sist. Inf. Soc. Unipessoal Lda.”;

1.4. O 2.º executado e também aqui embargante CC apôs a sua assinatura no lugar destinado à assinatura do subscritor, sem outra indicação;

1.5. E também apôs a sua assinatura no verso da livrança, antecedida da menção “por aval à firma subscritora”;

1.6. O referido embargante é o único sócio e gerente da sociedade BB – Consultoria Gestão Sist. Inf. Soc. Unipessoal Ld.ª;

1.7. No dia 29/12/2005, os embargantes subscreveram e remeteram ao exequente a autorização de preenchimento de livrança de que está cópia a fls. 29, na qual autorizaram o exequente:

a preencher, a livrança subscrita pela signatária, quanto às data de emissão e vencimento, local de pagamento, bem como o respetivo montante, até ao limite das responsabilidades assumidas pela mesma signatária, perante este mesmo Banco, provenientes dos: "CONTRATO-PROMESSA LOCAÇÃO FINANCEIRA IMOBILIARIA" assinado nesta data e o correspondente contrato prometido de "LOCAÇÃO FINANCEIRA/MOBILÁRIA", no montante global de € 1.040.000,00, pelo prazo de 15 anos, que têm por objeto o prédio urbano, composto de casa de quatro pavimentos e logradouro, que confronta a Norte com Caminho de …, Sul e Oeste ribeiro, e a Leste com EE, sito em …, freguesia de S…, concelho do F…, descrito na Conservatória do Registo Predial do F… sob o número QUATRO MIL DUZENTOS, da referida freguesia, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º 7…8, acrescidos de juros e outros encargos, ficando o Banco, através de qualquer dos seus colaboradores, autorizado a preenchê-la naqueles termos sempre que se verifique o incumprimento por parte dos signatários de qualquer das obrigações que lhe competem, resultantes dos referidos contratos

1.8. O contrato prometido de locação financeira imobiliária foi celebrado no dia 07/07/2006, nos termos que constam do escrito junto a fls. 67 v.º e seguintes destes autos, nele intervindo o ora embargado, como locador, e a ora embargante sociedade, como locatária.

    

     2. Do mérito do recurso


    Estamos no âmbito de uma execução para pagamento de quantia certa baseada na livrança reproduzida a fls. 112/113, de que é portador o Banco AA, S.A.., exequente e ora embargado.

    Da face daquela livrança consta a data de emissão de 07/07/2006, a especificação do montante de € 551.778,44, a data de vencimento de 09/ 09/2011 e a referência a um contrato de locação financeira n.º 45…1.

   No canto inferior direito daquela face, no local destinado à identificação do subscritor, encontra-se a indicação manuscrita “BB – Consultoria Gestão Sist. Inf. Soc. Unipessoal, Ld.ª”, encimada por uma assinatura que o 2.º executado CC reconheceu, sob o artigo 42.º da petição de embargos, como sendo aposta por ele.

    No verso da referida livrança, consta a expressão manuscrita “Bom para aval à firma subscritora”, seguida de uma assinatura, aquela e esta reconhecidamente apostas também pelo 2.º executado (art.º 42.º da petição de embargos).

    Acresce que o 2.º executado reconheceu ainda, sob o art.º 47.º do mencionado articulado, que é o único sócio e gerente da sociedade executada.

Não obstante isso, os embargantes, ora recorrentes, sustentam que a sociedade 1.ª executada não subscreveu, a título algum, a livrança dada à execução, nem nenhum representante dela a assinou, nessa qualidade, argumentando que ali não é feita nenhuma menção a qualquer representação da 1.ª executada, nem dela consta qualquer carimbo e que nem tão pouco a morada lá indicada, como sendo a da subscritora, respeita a esta, mas que corresponde à sede da sociedade “DD, Lda”, e ao domicílio profissional do 2.º executado.


A 1.ª instância considerou que a assinatura aposta no local destinado à subscritora não vem acompanhada de qualquer menção da qualidade do signatário nem de outra de qualquer tipo, nomeadamente de carimbo, daí resultando uma manifesta discrepância entre a identificação da subscritora e a sua assinatura, concluindo, nessa base, pela inexistência de título quanto à 1.ª executada enquanto pretensa subscritora da livrança.

Ao invés, o Tribunal da Relação conjugou a referida assinatura e o seu contexto literal com o reconhecimento feito pelo 2.º executado quer daquela assinatura e do teor e assinatura do aval, quer de ser ele o único sócio e gerente da 1.ª executada, associando ainda o acordo de preenchimento reproduzido a fls. 29. E, à luz da doutrina firmada no acórdão uniformizador do STJ n.º 1/2002, concluiu que “não podem resultar dúvidas fundadas quanto à imputação” daquela primeira assinatura à subscritora.    


Vejamos.


Antes de mais, convém recordar que a anterior Lei das Sociedades por Quotas, de 11/04/1901, no seu artigo 29.º, & 1.º, estabelecia que:

Para que a sociedade fique obrigada, basta que um dos gerentes assine com a firma social.

 Todavia, o atual Código das Sociedades Comerciais (CSC), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 262/86, de 02/09, que, além do mais, revogou aquela Lei, prescreve, no seu artigo 260.º, n.º 4, o seguinte:

Os gerentes vinculam a sociedade, em actos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade. 

     Perante a questão controversa então surgida, em especial na jurisprudência, de saber em que moldes tal indicação seria requerida, foi proferido o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2002, datado de 06/12/2001, publicado no Diário da República, I Série - A, de 24/01/2002, em que se firmou a seguinte doutrina:

A indicação da qualidade de gerente prescrita no n.º 4 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais pode ser deduzida, nos termos do artigo 217.º do Código Civil, de factos que, com toda a probabilidade, a revelem.

        No mencionado aresto, foi considerado que:

«[…] constituindo a literalidade dos títulos de crédito uma regra de protecção do tráfico jurídico, não vale com o sentido excessivo de impor a interpretação literal do texto.

Aos títulos de crédito aplicam-se, portanto, os princípios da interpretação da declaração negocial estabelecidos nos artigos 236.º a 238.º do CC.

Observe-se de resto, quanto à impressão do destinatário, como se harmoniza com o princípio da aparência jurídica e a tutela da confiança basilares no direito cambiário

(…)

O artigo 217.º, n.º 1, do CC, considera tácita a declaração negocial que se deduz de factos concludentes que, com toda a probabilidade, a revelem.

Há aqui uma inferência a partir dos factos concludentes, que se aplica a actos e negócios jurídicos, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto.

Das declarações que constam do título executivo, e das suas circunstâncias, apreciadas na perspectiva do que acontece na “vida dos negócios” e de acordo com a impressão do destinatário (artigo 236.º do CC), afigura-se inequívoco que [o ali signatário – sócio e único gerente da sacadora identificada] assinou a letra na qualidade de representante (gerente) da sociedade.» 

           

    Ora, como foi acima dito e consta dos factos assentes, a subscritora encontra-se identificada na livrança em referência mediante a menção da firma “BB – Consultoria Gestão Sist. Inf. Soc. Unipessoal Ld.ª”, não se afigurando que tal identificação fique, de modo algum, afetada pela mera incorreção da morada ali indicada, a qual, de resto, segundo os embargantes, corresponderá à morada do 2.º executado.

     Acresce que o 2.º executado reconheceu, expressamente, quer a autoria da assinatura por ele aposta no local destinado à subscritora, quer o facto de ser ele o único sócio e gerente da subscritora ali indicada.

       A par disso, o mesmo 2.º executado reconheceu ser do seu punho tanto a declaração de “Bom para aval à subscritora” como a respetiva assinatura, apostas no verso da livrança.

      Por fim, do documento reproduzido a fls. 29, datado de 29/12/2005, consta uma autorização de preenchimento de livrança, quanto às datas de emissão, vencimento e respetivo montante, dada ao Banco AA, S.A.., em que figura como signatária “BB – Consultoria Gestão e Sistema de Informação, Sociedade Unipessoal, Ld.ª”, com a assinatura do seu único sócio e gerente e também ali designado por avalista CC.

     Deste contexto resulta ainda que o Banco portador da livrança (a exequente e ora embargada) e os signatários cartulares aqui demandados (1.ª executada e 2.º executado) se encontram no domínio das relações imediatas subjacente à subscrição daquele título de crédito. Tal contexto permite pois moderar o rigor do formalismo cambiário, que é dirigido, fundamentalmente, à proteção de terceiros.  


    Nestas circunstâncias, mostra-se puramente evasiva a afirmação dos embargantes, constante do art.º 59.º da petição de embargos, de que o 2.º executado “não subscreveu a livrança por si, mas por sociedade, a qual nunca chegou a ser identificada”. 

     Em face de todos estes elementos, tendo em linha de conta os usos correntes da prática associada ao comércio cartular e o princípio da normal impressão do destinatário, ao abrigo do disposto no artigo 217.º e 236.º, n.º 1, do CC, tem-se por inequivocamente concludente que a assinatura do 2.º executado CC, no local destinado à subscritora da livrança dada à execução, ali identificada como “BB – Consultoria Gestão e Sistema de Informação, Sociedade Unipessoal, Ld.ª”, de quem aquele se assume como único sócio e gerente, foi aposta nesta qualidade, tornando-se assim vinculativa para a 1.ª executada.

Daí decorre também que a declaração do aval dado pelo 2.º executado àquela subscritora não se encontra afetada na sua validade formal, de harmonia com o preceituado no artigo 31.º aplicável ex vi do artigo 77.º, último parágrafo, da LULL.    


Por outro lado, tratando-se de uma livrança que fora emitida em branco, incumbia aos obrigados cartulares, no domínio das suas relações imediatas com o portador daquela, alegar e provar a violação do respetivo pacto de preenchimento, como decorre do disposto no artigo 10.º, a contrario sensu, aplicável ex vi do artigo 77.º ambos da LULL e do artigo 378.º do CC, não relevando, para esse efeito, a mera impugnação dos dizeres nela entretanto preenchidos, sendo que tal violação nem sequer constitui objeto do presente recurso.


Em suma, ao decidir nessa conformidade, o acórdão recorrido não infringiu as disposições dos artigos 76.º da LULL, 260.º, n.º 4, do CSC e 217.º, n.º 1, do CC, como pretendem os Recorrentes, nem quaisquer outras aplicáveis, sem prejuízo dos demais fundamentos da oposição de que cumprirá conhecer no prosseguimento do processo, conforme o ali determinado. 

Termos em que improcede a revista.    

                     

IV - Decisão

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas do recurso são a cargo dos embargantes/executados e aqui recorrentes.

Lisboa, 12 de Outubro de 2017

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

António Abrantes Geraldes

Maria da Graça Trigo