Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
158/04.0TMPRT-G.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
DECISÃO
FUNDAMENTOS
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
RELAÇÃO PROCESSUAL
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
INVENTÁRIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
ANALOGIA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
TÍTULO EXECUTIVO
AÇÃO EXECUTIVA
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Uma obrigação é líquida quando tem por objeto uma prestação cujo quantitativo está apurado.
II - A liquidação pós-sentença visa tão só concretizar o objeto da ação declarativa, funcionando como um complemento da anterior sentença, esta sim condenatória, estando o resultado daquela delimitado pelos termos do pedido formulado na ação declarativa, no preciso teor em que esse pedido mereceu acolhimento, não sendo possível às partes tomar uma posição diferente ou mais favorável do que a já assumida na ação declarativa.
III - Constituindo a sentença caso julgado nos precisos termos em que julga, o respetivo alcance depende da interpretação das decisões judiciais, merecendo consenso o entendimento que se consubstanciam num ato jurídico, a que se aplicam, por analogia, as regras reguladoras dos negócios jurídicos.
IV - Correspondendo a decisão judicial ao resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objetivo a essa situação, na procura do sentido objetivo do caso julgado material, quando controvertida a consideração autónoma da sua extensão a outros litígios entre as mesmas partes, não deve ser esquecido o atendimento das questões preliminares, enquanto seus antecedentes lógicos.
V - A decisão que declara extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, não forma caso julgado material, pois limita-se a extinguir a relação jurídica processual.
Decisão Texto Integral:


REVISTA n.º 158/04.0TMPRT-G.P1.S1

ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

           

I - Relatório

1. AA e BB[1] vieram deduzir oposição, mediante embargos, enquanto executados, nos autos de execução movidos por CC.

2. Alegam para tanto, no relevante, que o embargado deu à execução a sentença de 1.07.2019 e despacho de 26.09.2019, proferidos no processo de inventário, 158/04.TMPRT-A que, respetivamente, homologou a partilha constante do referente  mapa desses autos, e condenou os interessados – o Embargante e a Embargada, no pagamento do passivo, conforme o acordado em sede de conferência de interessados, realizada em 12.10.2010, mais juntando a relação de bens apresentada em 5.05.2008, peticionando a quantia global de 63.234,33€, correspondendo 62.677,66€ a capital,  e 556,37€ a juros de mora.

A obrigação exequenda, contudo, é ilíquida, por não se mostrar realizada a compensação do crédito do Embargante, conforme foi decidido no Acórdão da Relação do Porto de 31.03.2004, proferido no então processo n.º 928/00.

O Embargado lançara antes mão a uma ação executiva, 12847/06...., onde pedia a cobrança de 41.758,61€ e respetivos juros de mora, num total de 62.677,96€, apresentando a sentença proferida nos autos 928/00, como título, tendo o também aqui Embargante deduzido oposição, sendo extinta a execução por iliquidez da obrigação.

Oferecido agora um título executivo decorrente de inventário e com base na conferência de interessados no mesmo ocorrida, em 12.10.2010, quando já havia sido proferida sentença na oposição dos autos acima indicados, embora o crédito do Embargado surja relacionado e aprovado nos autos de inventário, com o valor indicativo de 62.677.96€, sempre se teria que interpretar tal verba nos termos exatos, como está relacionada, isto é, à luz da decisão proferida no apontado processo n.º 12847/06.....

Salienta ainda, em tal âmbito, que pretendeu ver reconhecido nos autos de inventário o valor do crédito do Embargado, não de 62.677,00€, mas sim o que resultasse da sentença pendente, que entretanto foi proferida, pois sendo o crédito ilíquido, teria sempre de ser considerado o apuramento do quantum do crédito do Embargante, de forma a operar a compensação com o crédito do Embargado.

3. Os Embargados[2] pronunciaram-se no sentido da improcedência dos embargos deduzidos.

4. Foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes.

5. Inconformados, vieram os Embargantes interpor recurso de apelação, tendo sido proferido Acórdão pela Relação do Porto, que revogou a decisão recorrida quanto aos embargos deduzidos, julgando-os procedentes, e em consequência declarou extinta a execução.

6. O Embargado, por sua vez inconformado, veio interpor recurso de revista, formulando nas suas alegações, as seguintes conclusões:

1. A dívida passiva relacionada no âmbito dos autos de inventário sob a Verba nº1 pelo cabeça de casal (aqui recorrido) a favor do aqui recorrente, em causa nos autos, em consequência do despacho que decidiu o incidente da reclamação contra a relação de bens, confirmado pelo Acórdão da Relação do Porto (Proc.nº158/04.0TMPRT-C.P1 – 3ªSecção), manteve-se como relacionada e remetida a sua resolução para a conferência de interessados a realizar, na qual os interessados poderiam aprovar (ou não) tal dívida ou ser verificada (ou não) pelo juiz.

2. Tal dívida passiva relacionada a favor do aqui recorrente, ora em apreço, não foi discutida por qualquer um dos interessados diretos na partilha, nem na sua existência, nem no seu valor, a qual foi relacionada como certa e líquida do património comum do casal.

3. Essa dívida passiva resulta de decisão judicial proferida no Proc. nº9..., ... Secção, 1ª Vara Cível do Porto (atual Proc. nº 7906/00...., do Juízo Central Cível do Porto, J...), nessa parte, confirmada por acórdão desta Relação (Proc. nº ...4, ... Secção), que a fixou na quantia de € 41.758,61 de capital, acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, contados desde 11.07.1998, até efetivo e integral pagamento.

4. Na data da realização da conferência de interessados no âmbito dos autos de inventário, já os aqui recorridos haviam apresentado as suas contestações no incidente de liquidação deduzido pelo aqui recorrente no Proc. nº 7906/00...., do Juízo Central Cível do Porto, J... (anterior Proc. nº9..., ... Secção, 1ª Vara Cível do Porto), nas quais os recorridos peticionaram a sua suspensão por existência de causa prejudicial (pendência do processo de inventário nº158/04.0TMPRT-A), tendo alegado para fundamentar tal pedido que nesse processo de inventário poderiam ser decididos e definidos os créditos das partes.

5. Aquando da realização da conferência de interessados, por efeito da decisão proferida que decidiu o incidente da reclamação contra a relação de bens (confirmada pelo Acórdão proferido no âmbito o processo de inventário), a questão do crédito ativo relacionado sobre o aqui recorrente havia sido remetida para os meios comuns.

6. Os aqui embargantes/recorridos, na data da realização da conferência de interessados, sabiam que ao aceitar e aprovar a dívida em apreço nos autos, se encontravam a aceitar e aprovar o valor líquido na mesma constante.

7. Com a aceitação e aprovação da dívida ao aqui recorrente, na conferência de interessados realizada no dia 12/10/2010, em cuja diligência se encontravam acompanhados pelos respetivos Ilustres Mandatários Judiciais, os ora recorridos aceitaram e aprovaram o valor da mesma constante, ou seja, aceitaram e aprovaram que devem ao recorrido o valor líquido de € 62.677,96, que eles próprios liquidaram, com a sua relacionação, aceitação e aprovação.

8. A decisão de aceitação e aprovação da dívida a favor do ora recorrente por banda dos ora recorridos em sede de conferência de interessados, só dependia da vontade dos ali interessados diretos na partilha, podendo ser aceite e aprovada (ou não) por um ou pelos dois aqui recorridos, uma vez que a sua decisão não dependia de decisão de qualquer outro interveniente processual.

9. Se outra fosse a intenção dos recorridos na conferência de interessados, não teriam pura e simplesmente aceitado e aprovado a dívida em apreço, ou, em alternativa, poderiam acordar pela sua exclusão para efeitos de uma eventual compensação de créditos, face à remessa para os meios comuns do crédito ativo que relacionaram sobre o aqui recorrente.

10. Os embargantes ora recorridos, ao aceitarem e aprovarem a dívida constante da verba nº1 não estavam a aceitar e aprovar um crédito ilíquido, uma vez que, à data da realização da aludida conferência de interessados (12/10/2010), já havia sido proferida sentença no Proc.nº12847/06...., do ... Juízo, ... Secção, dos Juízos de Execução do Porto, em 30/01/2009, tendo, ambos os aqui recorridos, em sede de conferência de interessados, aceitado e aprovado a dívida em apreço, consubstanciada no valor líquido da mesma constante.

11. A expressão constante da ata adrede elaborada da conferência de interessados em apreço nos termos “tal como está relacionada” é uma expressão comummente utilizada em quaisquer atas de conferências de interessados aquando da aceitação e aprovação de qualquer dívida ou crédito no âmbito de um qualquer processo de inventário.

12. O valor da dívida aceite e aprovada pelos ora recorridos a favor do aqui recorrente encontra-se devidamente liquidada e consta do mapa informativo e do mapa de partilha constantes dos autos de inventário e foi tomado em conta para efeitos de cálculo e pagamentos das tornas efetivamente liquidadas entre os interessados diretos na partilha, os aqui embargantes/recorridos.

13. Os ora recorridos, no processo de inventário, conformaram-se com a sentença homologatória da partilha da qual consta                a condenação dos  aqui embargantes/recorridos no pagamento do passivo acordado, uma vez que da mesma não reclamaram, nem interpuseram o competente recurso.

14. Os ora recorridos também se conformaram, porque da mesma não interpuseram recurso, com a sentença que extinguiu a instância, por inutilidade da lide, proferida no incidente de liquidação, em execução de sentença, nos autos de Ação Ordinária nº 7906/00...., Juízo Central Cível ... – Juiz ... (anterior Proc.nº9..., ... Secção, 1ª Vara Cível do ...), deduzido por iniciativa processual do aqui recorrido, precisamente pelo facto de a questão já ter sido decidida nos autos de inventário.

15. As decisões judiciais proferidas no processo de   inventário (Proc. nº 158/04...., do ...) e no incidente de liquidação (Proc. nº 7906/00...., do Juízo Central Cível do Porto, J... – anterior Proc. nº9..., ... Secção, 1ª Vara Cível do Porto) vinculam os recorridos e o recorrente uma vez que no processo de inventário figuram como interessados diretos na partilha os recorridos e o recorrente como credor citado para os termos do mesmo e na ação declarativa figuram como partes.

16. Dos termos da relacionação da dívida em apreço e dos termos da sua posterior aceitação e aprovação por banda dos aqui embargantes/recorridos, decorre o reconhecimento do crédito do embargado/recorrente por aquele montante, ali considerado liquidado, de € 62.677,96, como bem se decidiu em primeira instância - e, em momento anterior, na própria decisão proferida em 26/11/2019 na ação declarativa nº 7906/00...., Juízo Central Cível do Porto – Juiz ... (anterior Proc. nº9..., ... Secção, 1ª Vara Cível do Porto), que julgou inútil o prosseguimento da lide quanto à liquidação do crédito do ali autor (aqui recorrente) ali em curso.

17. A obrigação exequenda é certa, líquida e exigível, tendo o iter procedimental, que culminou na prolação da sentença homologatória da partilha da qual consta a condenação dos aqui embargantes/recorridos no pagamento do passivo acordado – que constitui o título dado à execução - sido escrutinado por todos, nomeadamente pelos aqui embargantes/recorridos, nas sucessivas fases dos autos de inventário para partilha dos bens comuns do casal outrora composto pelos embargantes/recorridos.

18. O Acórdão recorrido constitui uma violação do caso julgado, assente na violação da sentença homologatória da partilha proferida nos autos de inventário (Proc. nº 158/04...., do ...), do Acórdão proferido pela Relação do Porto nos mesmos autos (Proc. nº 158/04.... – ... Secção) e da sentença proferida no incidente de liquidação (Proc. nº 7906/00...., do Juízo Central Cível do Porto, J... - anterior Proc. nº9..., ... Secção, 1ª Vara Cível do Porto).

19. Devem, assim, os embargos deduzidos pelos embargantes/recorridos ser julgados improcedentes.

20. Face ao exposto, entende o recorrente que ao Acórdão recorrido viola, entre outras normas e princípios jurídicos, o disposto nos artigos 580.º, 581.º, 619.º, n.º1, 703.º, n.º1, al. a) e 728.º, al. a) e e) (à contrário), do C.P.C..

7. Os Embargantes nas suas contra-alegações formularam as seguintes conclusões:

I .O Tribunal da Relação do Porto, no seu Acórdão recorrido, julgou procedente o recurso interposto pelos Embargantes, e em consequência julgou procedentes os embargos, ordenando a extinção da execução, por entender que a obrigação exequenda é ilíquida, e o título executivo inexequível;

II. Por não se conformar com tal acórdão, veio o Embargado/Recorrente do mesmo interpor recurso;

III. Alega o Recorrente que o crédito (dívida passiva) a favor do mesmo relacionado no âmbito do processo de inventário pelo Recorrido, não foi discutido por qualquer um dos interessados diretos na partilha, nem na sua existência, nem no seu valor, tendo sido relacionado como certo e líquido;

IV. Contudo, jamais se pode aceitar tal alegação, pois, como bem sabe o Recorrente, o seu alegado crédito foi relacionado pelo Recorrido nos exatos termos que resultam da decisão proferida, em 30/01/2009, no Processo n.º 12847/06...., do ... Juízo, ... Secção, dos Juízos de Execução do Porto, a qual, aquando da aprovação da verba n.º 1 do passivo, já havia, inclusivamente, transitado em julgado (o que ocorreu em 16/03/2009), tendo todos os interessados na partilha pleno conhecimento do conteúdo de tal decisão judicial;

V. Isto é que o crédito do Recorrente, é ilíquido, tendo sido como tal aceite e aprovado;

VI. São as mais elementares regras da experiência comum e do bom senso que ditam que outra interpretação não pode ser dada ao acordo alcançado em sede de conferência de interessados, realizada em 12/10/2010, onde os Recorridos aprovaram a dívida constante da verba n.º 1 “tal como está relacionada”, isto é, como crédito ilíquido, como bem entendeu o Tribunal a quo;

VII. E não queira o Recorrente fundamentar a sua discordância com tal interpretação, fazendo apelo às expressões que normalmente são utilizadas nas conferências de interessados, fazendo alusão à expressão “tal como está relacionada”, pois que sendo verdade que tal é uma expressão comum, bem sabe o Recorrente que a mesma só é utilizada quando se aprova, na integra, o crédito ou dívida tal como está descrita na verba da relação de bens;

VIII. Se os Recorridos pretendessem liquidar tal dívida na conferência de interessados, não poderiam utilizar a expressão “tal como está relacionada”, mas antes, teriam todos os interessados que acordar na liquidação do crédito que os Recorridos detêm sobre o Recorrente, e operada a compensação, liquidar aquela dívida dos Recorridos;

IX. Pelo que também por aqui não se pode acolher a alegação do Recorrente, por ser, mais uma vez, manifestamente contrária às regras da experiência comum e totalmente desajustada a qualquer regra de normalidade, pois diz-nos o óbvio que quem é simultaneamente devedor e credor, podendo, primeiro, compensa o seu crédito de forma a apenas ficar obrigado ao pagamento do remanescente; veja-se, que no caso em apreço, ainda é mais flagrante que o crédito foi aceite e aprovado como ilíquido, dado que a liquidação do crédito do Recorrente, por determinação judicial, encontra-se totalmente dependente da liquidação do crédito dos Recorridos;

X. Também alega o Recorrente que os Recorridos no âmbito do incidente de liquidação por aquele deduzido requereram a suspensão da instância alegando para o efeito que nesse processo poderiam ser decididos e definidos os créditos das partes; também alega que o crédito ativo relacionado por aqueles sobre o Recorrente havia sido remetido para os meios comuns;

XI. Da conduta processual dos Recorridos apenas se pode concluir que quando requereram a suspensão da instância, no incidente de liquidação, os mesmos pretendiam liquidar e aprovar o seu crédito sobre o Recorrente, no montante relacionado de 35.254,32 euros, e assim, permitir, a compensação desse seu crédito com o crédito do Recorrente, liquidando dessa forma também o crédito que o Recorrente detém sobre os mesmos;

XII. Contudo, tal compensação não foi alcançada, o que inviabilizou, imediata e irremediavelmente, a liquidação do crédito do Recorrente no processo de inventário;

XIII. Motivo pelo qual, como bem entendeu o Tribunal da Relação do Porto no douto Acórdão recorrido, “tal liquidação só pode ser feita na ação declarativa em que se conheceu do mesmo, como decorre da conjugação do disposto nos arts. 704 n.º 6 e 716º nºs 4 e 5 do CPC (renovando-se a instância de tal ação declarativa, como previsto no art.º 358 n.º2 do CPC)”;

XIV. Também não pode proceder a alegação do Recorrente de que o valor da dívida foi tomado em conta para efeitos de cálculo e pagamento de tornas entre os interessados diretos na partilha, os aqui Recorridos, até mesmo porque o mapa de partilha destina-se à determinação do património que efetivamente existe para partilhar, subtraindo-lhe o passivo, e assim se efetivar a partilha; veja-se que o mapa de partilha apenas respeita aos interessados diretos na partilha, pois é entre estes que se vão ou não saldar tornas; motivo pelo qual não se compreende a alegação do Recorrente;

XV. Assim, o crédito do Recorrente é um crédito ilíquido enquanto não operar a compensação do crédito dos Recorridos, nos termos do decidido pelo Acórdão da Relação do Porto de 31/03/2004, proferido no âmbito do Processo n.º 7906/00.... (anterior número 9... e que correu termos na ... Secção da 1ª Vara Cível do Porto), não podendo, assim, o crédito do Recorrente ser liquidado, sem que se proceda à compensação com o crédito dos Recorridos, cujo quantum ainda não se encontra determinado;

XVI. Desta forma, não tendo sido efetuada a compensação de créditos no processo de inventário, não logrou o Recorrente liquidar o seu crédito, tendo os Recorridos aprovado tal dívida como ilíquida na conferência de interessados;

XVII. E tal é o que resulta do despacho proferido no processo de inventário, em 26/09/2019, o qual remete para a ata da conferência de interessados de 21/10/2010, e o qual foi dado como título executivo pelo Recorrente, nos autos de execução a que este processo se apensa;

XVIII. De tal despacho e de tal ata resulta que o crédito do Recorrente foi aprovado como ilíquido e, dessa forma, não é passível de ser executado;

XIX. Motivo pelo qual não há qualquer violação do caso julgado da sentença homologatória da partilha proferida nos autos de inventário – Processo n.º 158/04...., ... -, pois, violação do caso julgado existiria da sentença proferida no processo n.º 12847/06...., assim como do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31/03/2004, caso se entendesse que em sede de conferência de interessados os Recorridos tinham aprovado a dívida ao Recorrente como líquida;

XX. Também não se verifica a violação do caso julgado da sentença proferida no incidente de liquidação – Processo n.º 7906/00...., do Juízo Central Cível do Porto, Juiz ... (anterior Processo n.º ...0, ... Secção, 1ª Vara Cível do Porto), pois tal sentença apenas julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nada tendo decidido sobre o mérito da causa, e por isso, não tem aptidão para produzir efeitos de caso julgado material, seja na vertente de exceção de caso julgado seja na vertente de autoridade de caso julgado;

XXI. Face a tudo o exposto, deverá ser julgado improcedente o recurso apresentado, mantendo-se o douto Acórdão recorrido.

8. Cumpre apreciar e decidir.

*

II – Enquadramento facto-jurídico

1. da factualidade

O Tribunal da Relação, no Acórdão sob recurso, considerou como provada, a seguinte factualidade:

a) Nos autos de inventário para partilha de bens comuns n.º 158/04.0 TMPRT-A, o aí cabeça-de-casal AA apresentou relação de bens, fazendo constar da mesma, na parte referente às dívidas, sob a verba n.º1, a dívida a CC, por decisão judicial pendente no ... juízo, 3.ª secção, p. 12847/06...., dos juízos de execução do Porto, no valor de € 62.677, 96.

b) Na conferência de interessados que teve lugar nos autos de inventário referidos, realizada em 12.10.2010, consignou-se na ata respetiva, designadamente, o seguinte:

“Aceitam a verba n.º 1 de fls. 45, dívida a CC, tal como está relacionada, aprovando-a.”.

c) No citado processo de inventário foi proferido, no dia 1.7.2019, a seguinte sentença:

“Visto o pagamento das tornas. Nestes autos de inventário para separação de meações na sequência de divórcio, em que é cabeça de casal AA e requerida DD, homologo a partilha constante do mapa de partilha, que foi objeto de decisão transitada em julgado, que o confirmou, art.º 1382.º do C.P.C. Custas em partes iguais, art.º 1383.º do C.P.C. Registe e notifique.”.

d) Nos mesmos autos, a 26.9.2019, proferiu-se o seguinte despacho: “(…) expressamente se consigna, por referência à sentença de 1.7.2019, que se condena os interessados no pagamento do passivo, conforme acordado em sede de conferência de interessados realizada em 12.10.2010.”, o qual não foi objeto de recurso.

e) Na relação de bens referida em a), o cabeça-de-casal fez ainda constar, sob a verba n.º1 dos direitos de crédito, o seguinte: “crédito proveniente de serviços prestados e despesas realizadas pelo cabeça-de-casal ao devedor CC (…) reconhecido por acórdão do Tribunal da Relação do Porto no processo n.º 9.../2..., da 1.ª Vara Cível do Porto, que o cabeça de casal liquida no valor de € 35.254,32.”.

f) Por decisão de 9.10.2009, referente à reclamação contra a relação de bens que a interessada DD apresentou, determinou-se a remessa dos interessados para os meios comuns quanto ao direito de crédito aludido em e).

g) No âmbito da ação de processo ordinário n.º 7906/00...., do Juízo Central Cível do Porto, J... (outrora processo 9.../2..., que CC intentou contra AA e mulher DD, pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de 15.022.617$00 - referente a entregas em dinheiro que efetuou ao demandado para aquisição de um escritório que não chegou a ser efectuada, tendo o dinheiro sido aplicado na aquisição de imóveis, atividade a que o réu se dedica -, vieram os demandados defender-se por exceção – compensação de créditos provenientes de despesas e honorários das deslocações que efetuou – tendo sido proferida em 30.9.2003, decisão, em primeira instância, que julgou a ação parcialmente procedente e condenou os Réus a pagar ao Autor a quantia de 41.758,61 €, referente a capital, acrescida de juros de mora de 11.7.1998 e até efetivo e integral pagamento, julgando improcedente a exceção de compensação invocada.

h) A decisão dita em g) foi objeto de recurso pelos aí Réus, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por decisão de 31.3.2004, na procedência parcial da apelação, decidido a) relegar para execução de sentença o apuramento da remuneração devida ao Réu pelos serviços prestados e despesas realizadas em vista da aquisição do terreno para o Autor; b) declarar compensado este crédito do Réu com o crédito do Autor, na parte correspondente; c) condenar os Réus no pagamento de juros moratórios, a partir de 11 de Julho de 1998, mas apenas relativamente ao crédito do Autor não extinto pela compensação.

i) Por apenso à execução contra si movida por CC, execução que deu origem ao processo nº12847/06...., que correu os seus termos no ... Juízo, ... Secção, dos Juízos de Execução do Porto – tendo por título executivo a sentença proferida em 30 de Setembro de 2003 na Ação de Processo Ordinário n.º 9.../2... das Varas Cíveis do Porto – ... Vara, ... –, veio AA deduzir oposição (à penhora e à execução), a qual em 30.1.2009, foi julgada procedente, declarando-se a instância executiva extinta, por iliquidez da obrigação exequenda.

A decisão acabada de referir contém, inter alia, a seguinte fundamentação:

“(…) Ao contrário do alegado pelo Autor no requerimento executivo, não lhe foi reconhecido o direito a obter dos réus o pagamento da quantia (líquida) de 8.371.850$00; apenas lhe foi reconhecido o direito a obter dos réus o pagamento da quantia que se vier a apurar ter o mesmo direito após a subtração aos referidos 8.371.850$00 do valor referente à remuneração por si devida ao réu pelos serviços prestados e despesas realizadas em vista da aquisição do terreno para o autor, a apurar nos termos do art.º 661.º, n.º2, do CPC, tendo, quanto a nós, para o efeito, o Autor/aqui exequente que lançar mão do competente incidente de liquidação. – apontando neste sentido, embora não sendo essa a questão diretamente abordada, vd. Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 24-04-2007 (n.º convencional JTRP00040275; n.º de documento RP200704240721491), disponível na íntegra na base de dados do ITIJ da internet – http://www.dgsi.pt/.

Sendo este o teor da decisão judicial transitada em julgado que foi proferida na Ação Ordinária n.º 928/00, é manifesto que o crédito do Autor em execução, face ao título executivo (sentença judicial revogada parcialmente pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto) é ilíquido – arts. 802.º e art.º 805.º do Cód. Proc. Civil (CPC).

Assim, face ao acima expendido, verifica-se que a obrigação exequenda é ilíquida, o que, nos termos do art.º 814.º, al. e), do CPC, constitui fundamento para dedução de oposição à execução. (…)

Pretende o próprio opoente/executado, em sede de oposição à execução, proceder à liquidação do crédito cujo direito a compensação lhe foi reconhecido na decisão transitada em julgado proferida na Ação Ordinária n.º 928/00.

(…) No caso sub judice, não subsistem, pois, dúvidas de que a liquidação tem que ter lugar como incidente a deduzir no processo declarativo em que foi proferida a condenação genérica – Ação Ordinária n.º 928/00 –, e não no âmbito deste processo executivo, não podendo ser deduzida pelo exequente no requerimento executivo nem – como pretende o opoente/executado – pelo executado em sede de oposição à execução.”

j) Por despacho de 13.10.2010, foi ordenada a suspensão dos autos 9.../2..., pelo facto de a dívida reclamada pelo autor CC estar relacionada nos autos de inventário n.º 158/04.0TMPRT-A, aí se exarando que “(…) pode acontecer que a dívida venha a ser reconhecida e paga, ou não venha a ser reconhecida pelos interessadas, que o juiz considere que não tem elementos para decidir a questão e que relegue os interessados para os meios comuns. (…) Ora, nos meios comuns estão as partes, precisamente com este incidente. Não pode é a mesma questão estar a ser discutida em dois processos.”.

l) Nos auto ditos em j), por decisão de 26.11.2019, proferida também em sede de incidente de liquidação em execução de sentença na sequência do acórdão referido em h), declarou-se a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, uma vez que o fim prosseguido com o dito incidente – intentado por CC – foi alcançado em sede de processo de inventário, no qual, na conferência de interessados, aquele viu o se crédito aprovado, como dívida relacionada pelo cabeça-de-casal.

m) Através de requerimento executivo de 9.12.2019, CC moveu contra AA e BB, execução para pagamento de Quantia Certa, fazendo constar desse requerimento o seguinte:

“Título Executivo: Decisão judicial condenatória

Factos:

1 – Por douta sentença proferida em 01 de julho de 2019, no âmbito do processo que corre seus regulares termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, ..., sob o nº 158/04.0TMPRT-A, transitada em julgado em 20 de setembro de 2019, foi homologada a partilha constante do mapa de partilha.

2 – Por douto despacho datado de 26 de setembro de 2019, por referência à douta sentença supra mencionada, ficou consignado a condenação dos interessados, aqui executados, no pagamento do passivo, conforme acordado em sede de conferência de interessados realizada em 12 de outubro de 2010 (doc.nº1).

3 – Talqualmente resulta da ata adrede elaborada, na conferência de interessados realizada em 12 de outubro de 2010, os ali interessados, aqui executados, aceitaram e aprovaram a verba nº1 de fls.45, dívida a CC, aqui exequente, tal como está relacionada (doc.nº2).

4 – Ora, da relação de bens oportunamente apresentada pelo cabeça de casal, o aqui executado AA e que consta de fls.41 e seguintes dos autos, foi relacionada, a fls.45, sob o título de “Dívidas” e sob a “Verba nº1”, a seguinte dívida:

“Dívida a CC, residente no lugar da Igreja, ..., ..., por decisão judicial, pendente no ... Juízo, ... Secção, Pº 12847/06...., dos Juízos de Execução do Porto, no valor de € 62.677,96” (doc.nº3).

5 – Até à presente data, os ora executados ainda não procederam ao pagamento (total ou parcial) da mencionada quantia de € 62.677,96.

6 – Liquidam-se os juros moratórios, que se venceram após o trânsito em julgado da douta sentença em apreço, até à presente data (09/12/2019), em € 556,37, relegando-se para momento posterior a liquidação dos juros de mora vincendos, à taxa legal, devidos até à data do efetivo e integral pagamento.

7 – Totaliza, assim, a dívida exequenda a quantia de € 63.234,30, acrescida de juros moratórios e compensatórios vincendos.

8 – A douta sentença em apreço é título executivo.

9 – A dívida é certa, líquida e exigível e as partes são legítimas.”.

n) Nos autos de execução ditos em m) foi penhorada a verba nº2 (prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº...04 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...34), constando da respetiva certidão matricial junta aos autos pelo Agente de Execução que o valor patrimonial tributário deste prédio, determinado no ano de 2018 se cifra em € 23.649,50.

o) Nos mesmos autos foi também penhorada a verba nº3 (½ indivisa da fração autónoma designada pelas letras ..., destinada a habitação, tipo ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...06... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...00...), cujo valor patrimonial tributário se cifra em € 85.178,80 (consoante resulta da certidão matricial junta aos autos executivos).

p) A executada BB esteve nos processos declarativos e no inventário acima referidos representada por mandatário judicial, tendo sido notificada das decisões ali tomadas e estado presente nas diligências a que se reportam as atas respetivas ali elaboradas.

q) O embargado CC foi citado, como credor, para os termos do inventário nº158/04...., tendo estado presente por si próprio e também representado por advogado na conferência de interessados que ali teve lugar em 12/10/2010.

2. do direito

No necessário atendimento das conclusões formuladas pelo Recorrente/Embargado, a questão essencial a apreciar prende-se em saber se a obrigação exequenda constante do título executivo oferecido à execução é líquida, tendo em conta o caminho processual que culminou na sentença de homologação da partilha proferida no referenciado inventário, consubstanciando o Acórdão recorrido uma violação do caso julgado, decorrente da mencionada sentença homologatória de partilha, mas também da proferida nos autos de incidente de liquidação indicados.

2.1. Como é sabido, e em termos breves, resulta do art.º 10, n.º 5 e 6, do Código de Processo Civil[3], que é pelo título executivo que se conhece, com precisão, o conteúdo da obrigação do devedor, qual o montante que deve ser pago, qual a coisa que tem de ser entregue - determinada individualmente, ou contida dentro de certo género, quantidade e qualidade - qual a natureza, características e espécie do facto a prestar, título esse que não se confunde com a causa de pedir da ação executiva, já que esta se traduz na obrigação exequenda, que deverá constar do título oferecido à execução.

Por sua vez, diz-nos o art.º 703, quais as espécies de título executivo que podem servir de base à execução, caso das sentenças condenatórias, alínea a), consideradas como tal as sentenças homologatórias de partilha, em sede de inventário, sem prejuízo de os atos dispositivos das partes que as determinam estarem, como negócios jurídicos, sujeitos a um regime especial[4], como nos interessa para o caso sob análise.

Sem esquecer os requisitos específicos de exequibilidade da sentença, conforme o art.º 704, prendendo-se essencialmente com o respetivo trânsito em julgado, diz-nos o n.º 6 da mesma disposição legal, que havendo condenação genérica, nos termos do n.º 2, do artigo 609, isto é, se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier ser liquidado, e não dependendo a liquidação de simples cálculo aritmético, a sentença só constitui título executivo após a liquidação no processo declarativo, renovando-se se for caso disso a instância, n.º 2 do art.º 358.

Tal exigência vem ao encontro dos requisitos que condicionam a admissibilidade da ação executiva, a saber, a obrigação deve ser certa, exigível e líquida face ao título executivo, art.º 713, pelo que para o que agora releva, uma obrigação é liquida quando tem por objeto uma prestação cujo quantitativo está apurado.

Diga-se, em nota, no que concerne à liquidação prevista no art.º 716, a mesma reporta-se a situações de simples cálculo aritmético, considerando os factos “abrangidos pela segurança do título executivo”[5], mas também aos casos que embora não dependam de simples calculo aritmético estão excluídos do âmbito do aludido n.º 2, do art.º 609, observando-se o determinado no n.º 4, ex vi do n.º 5, do referenciado art.º 716.

2.2. Quanto ao incidente de liquidação pós-sentença art.º 358, n.º2, saliente-se que o mesmo só visa concretizar o objeto da ação declarativa, funcionando como um complemento da anterior sentença, esta sim condenatória, estando o resultado daquele delimitado pelos termos do pedido formulado na ação declarativa, no preciso teor em que esse pedido mereceu acolhimento, não podendo alterar o decidido na sentença condenatória, por unicamente se mostrar incerta a quantidade abrangida pela condenação, pelo que destinando-se, tão só, à concretização do objeto da condenação, com o respeito pelo caso julgado, não é possível às partes tomar uma posição diferente ou mais favorável do que a já assumida na ação declarativa[6].

2.3. Devendo a liquidação respeitar o caso julgado diga-se             sumariamente, que a decisão forma caso julgado quando o nela contido se torna imodificável ou imutável, consignando o art.º 628, que transita em julgado, logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação, isto é, no primeiro caso, recurso ordinário, por as partes terem deixado decorrer o prazo para interposição do recurso, art.º 638, n.º1, por terem renunciado ao recurso ou dele terem desistido,  art.º 632, ou no caso do valor da causa ou sucumbência não comportar a interposição do recurso, art.º 629. Já quanto ao segundo, reclamação, quando as partes deixam decorrer o prazo geral de dez dias para arguição de nulidades ou reforma do despacho, conforme decorre dos artigos 149, n.º1, 615, n.º4 e 616.

Compreensivelmente o caso julgado consubstancia-se na expressão dos valores da segurança e da certeza precisos em qualquer ordenamento jurídico, numa exigência de boa administração da Justiça, com o correto funcionamento dos tribunais, obstando que sobre a mesma situação recaiam decisões contraditórias, assegurando assim a sempre pretendida paz social.

Sabido é também que o caso julgado material reporta-se a decisão que se prende com o mérito da causa, no concerne à relação material controvertida, com força obrigatória dentro e fora do processo, obstando que o mesmo ou outro tribunal possa definir de modo diverso o direito concreto aplicável à relação material em litígio, art.º 619 n.º 1, o designado efeito negativo, com a vinculação do mesmo tribunal e eventualmente outros à decisão proferida, efeito positivo.

A função negativa do caso julgado é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, cuja finalidade é evitar a repetição das causas, art.º 580, implicando a tríplice identidade, de sujeitos, pedido e causa de pedir, enquanto a autoridade de caso julgado, por via da qual é exercida a função positiva, pode funcionar independentemente da indicada tríplice identidade, pressupondo, contudo, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida[7].

Saliente-se, com relevância, em termos do alcance do caso julgado sobretudo material, mas com interesse para o caso julgado formal, que apesar da discussão quanto a tal âmbito, é prevalecente o entendimento que o caso julgado abrange a parte decisória do despacho/sentença, mas sendo a decisão a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado incide sobre tal silogismo no seu todo, isto é, o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão, como conclusão de certos fundamentos, no reconhecimento de autoridade de caso julgado a todos os motivos objetivos, enquanto questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado[8].

Doutro modo, pode dizer-se, que embora o dispositivo da decisão constitua caso julgado, frequentemente há que relacioná-lo com os seus fundamentos para se determinar o verdadeiro alcance da decisão[9], pelo que a formação do caso julgado, para além da parte dispositiva do decidido, alarga-se à resolução das questões que a sentença tenha a necessidade de resolver como premissa da conclusão formada[10].

Importa, contudo, sublinhar no que concerne à decisão[11], que esta pressupõe uma decisão de mérito, enquanto causa da extinção da instância pelo julgamento, diversamente do que acontece com o despacho que determina a inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.º 277, e), isto é, quando se verifica que a pretensão deduzida em juízo deixa de ter interesse, maxime, por o efeito pretendido ter sido obtido por via distinta, declarando o tribunal extinta a relação jurídica processual, sem apreciar o mérito da causa, assumindo essa decisão uma natureza tão só declarativa[12], não se formando assim caso julgado material[13], no atendimento, até, do disposto no art.º 620, n.º1.

2.4. Constituindo a sentença caso julgado nos precisos termos em que julga[14], o respetivo alcance depende da interpretação das decisões judiciais, merecendo consenso o entendimento que se consubstanciam num ato jurídico, a que se aplicam, por analogia, as regras reguladoras dos negócios jurídicos, art.º 295 do Código Civil, e desse modo os princípios e regras gerais dos negócios jurídicos, conforme o que decorre do art.º 236, mas também do vertido no art.º 238, ambos do Código Civil, quanto aos negócios formais.

Assim, desde logo não pode valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, por compreensíveis razões de certeza e segurança jurídica a atender para a fixação do sentido do comando jurídico, em concreto, constante da decisão judicial[15].

De igual modo, importa ter em consideração no que concerne ao disposto no n.º1, do aludido art.º 236, do Código Civil, que acolheu a denominada “teoria da impressão do destinatário”, que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, tido por alguém medianamente sagaz, diligente e prudente[16], colocado na posição do real declaratário[17] pode deduzir do comportamento, a não ser que não seja razoável imputar ao declarante aquele sentido, ou o declaratário conheça a vontade real do declarante, n.º 2 da mesma disposição legal[18].

Deste modo, na atividade interpretativa da decisão judicial, configura-se como necessário atender não só ao que expressamente consta do seu dispositivo, mas também ao pedido e a causa de pedir, na sua devida articulação, e ao que da mesma dimana no decidido, com recurso, se necessário aos tramites processuais desenvolvidos, enquanto antecedentes lógicos que permitiram a formulação achada, na procura da sua total inteligibilidade[19].

Diga-se, ainda, que correspondendo a decisão judicial ao resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objetivo a essa situação, não deverá ser esquecido, na procura do sentido objetivo do caso julgado material, quando controvertida a consideração autónoma da sua extensão a outros litígios entre as mesmas parte, o atendimento das questões preliminares, enquanto seus antecedentes lógicos, conforme o já aludido[20].

3. Da subsunção

No caso sob análise, tendo em conta o factualismo atendível, decorrente das várias peças processuais relativas aos litígios que têm envolvido as partes, foi entendido que o crédito que o Embargado/Recorrente pretende fazer valer na ação executiva é ilíquido, não dependendo a sua liquidação de simples cálculo aritmético, porquanto na ação declarativa, conforme o decidido pelo Acórdão da Relação do Porto, era pressuposto o apuramento dos serviços prestados pelo Embargante, réu naquela ação, e as despesas pelo mesmo realizadas, traduzindo o seu crédito, cuja compensação foi reconhecida, judicialmente, pelo que devendo a liquidação ser feita na aludida ação declarativa, verificava-se a inexequibilidade do título executivo, com a decorrente procedência dos embargos e a extinção da execução, art.º 729, a) e e).

No Acórdão sob recurso considerou-se, também, que não obstava a tal entendimento a existência do incidente de liquidação, e o despacho no mesmo proferido que lhe pôs fim.

A discordância do Recorrente, como inicialmente se mencionou, prende-se com a liquidez da obrigação exequenda, com especial incidência sobre o processo de inventário, certamente por ter sido dado como título executivo a sentença homologatória de partilha ali proferida e demais que teve por relevante daqueles autos, sendo certo que para o cabal esclarecimento da questão posta, mas também da invocada violação do caso julgado, relativamente àquela sentença, e à decisão proferido nos autos de incidente de liquidação, importa analisar de forma cronológica e harmónica as ocorrências processuais relatadas nos autos, ao encontro, aliás, do realizado no Acórdão recorrido.

Com efeito, estribando-se a execução na mencionada sentença homologatória, necessariamente releva salientar o que nos autos de inventário foi consignado na relação de bens como “dívida”, com reporte a decisão judicial pendente, processo n.º 12847/06...., execução essa tendo por título executivo a sentença proferida em 30.09.2003, processo 9.../2..., e assim deslindar uma situação processual, para a devida perceção da pretendida obrigação (i)liquida, conforme o normativamente delineado, utilizando os instrumentos interpretativos apontados, bem como aferir da existência da violação de caso julgado material formado.

Vejamos.

No âmbito da ação ordinária n.º 9.../2..., posteriormente processo n.º 7906/00...., do Juízo Central Cível ..., o ora Recorrente, CC que intentou contra os aqui Recorridos, AA e mulher DD, pediu a sua condenação no pagamento da quantia de 15.022.617$00, reportada a entregas em dinheiro que efetuara ao ali Réu, para aquisição de um escritório que não chegou a ser realizada, sendo o dinheiro aplicado na aquisição de imóveis, atividade a que o Réu se dedicava, tendo os Réus invocado a compensação de créditos, por despesas, sendo proferida sentença em 30.9.2003, que julgando a ação parcialmente procedente, condenou os Réus a pagar ao ali Autor, ora Recorrente, a quantia de 41.758,61€, acrescida de juros de mora desde 11.7.1998, e improcedente a compensação invocada.

Não se conformando com o decidido, os então Réus interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que proferindo Acórdão em 31.3.2004,  relegou para execução de sentença o apuramento da remuneração devida ao Réu pelos serviços prestados e despesas realizadas em vista da aquisição do terreno para o Autor, declarou  compensado este crédito do Réu com o crédito do Autor, na parte correspondente e quanto aos juros moratórios, condenou os Réus no seu pagamento, tão só quanto ao crédito do Autor não extinto pela compensação, desde 11.7.1998.

Esta decisão, constituiu o título dada à execução movida pelo aqui Recorrente, contra aos Recorridos, processo n.º nº12847/06...., a qual foi julgada extinta por iliquidez da obrigação exequenda, conforme o decidido em 30.01.2009, salientando-se num excerto da fundamentação proferida, “(…)  Ao contrário do alegado pelo Autor no requerimento executivo, não lhe foi reconhecido o direito a obter dos Réus o pagamento da quantia (líquida) de 8.371.850$00; apenas lhe foi reconhecido o direito a obter dos Réus o pagamento da quantia que se vier a apurar ter o mesmo direito após a subtração aos referidos 8.371.850$00 do valor referente à remuneração por si devida ao Réu pelos serviços prestados e despesas realizadas em vista da aquisição do terreno para o autor, a apurar nos termos do art.º 661.º, n.º2, do CPC, tendo, quanto a nós, para o efeito, o Autor/aqui exequente que lançar mão do competente incidente de liquidação (…)” (…) No caso sub judice, não subsistem, pois, dúvidas de que a liquidação tem que ter lugar como incidente a deduzir no processo declarativo em que foi proferida a condenação genérica – Ação Ordinária n.º 928/00 (…)”.

Dada, claramente, como ilíquida, a obrigação exequenda, o ali exequente, aqui Recorrente, não reagiu ao decidido, com ele se conformando, vindo, aliás, deduzir incidente de liquidação junto dos autos 7906/00.....

Já antes, todavia, fora instaurado o inventário, processo n.º 158/04...., para partilha de bens comuns[21], no qual o aí cabeça-de-casal, ora Recorrido,  apresentara a relação de bens, em 5.08.2008[22], fazendo constar da mesma, na parte referente às dívidas, sob a “verba n.º1, a dívida a CC, por decisão judicial pendente no ... juízo, 3.ª secção, p. 12847/06...., dos juízos de execução ..., no valor de € 62.677, 96”, estando tais autos ainda pendentes como acima se viu.

Na mesma relação de bens o cabeça-de-casal fez ainda constar, sob a verba n.º1 dos direitos de crédito, o seguinte: “crédito proveniente de serviços prestados e despesas realizadas pelo cabeça-de-casal ao devedor CC (…) reconhecido por Acórdão do Tribunal da Relação ... no 9.../2..., da 1.ª Vara Cível do ..., que o cabeça de casal liquida no valor de € 35.254,32. Contudo, por decisão de 9.10.2009, referente à reclamação contra a relação de bens que a aqui Recorrida apresentou, determinou-se a remessa dos interessados para os meios comuns quanto a tal direito de crédito.

O Recorrente/embargado foi citado, como credor, para os termos do inventário tendo estado presente por si próprio e também representado por advogado na conferência de interessados que ali teve lugar em 12.10.2010, consignando-se na respetiva ata, “:

Aceitam a verba n.º 1 de fls. 45, dívida a CC, tal como está relacionada, aprovando-a.”

Ora, pelo caminho percorrido resulta diversamente do que pretende o Recorrente, que no âmbito das ocorrências processuais dos autos de inventário tenha sido operada a liquidação da quantia exequenda, na apontada dívida, que conforme o enunciado se mantinha ilíquida, não só por referência ao processo executivo, no qual fora proferida anterior decisão transitada em julgado afastando a invocada liquidez o que determinou a extinção da execução, mas também nos próprios termos em que foi formulado o relacionamento da dívida na contraposição dum direito de crédito, cujo apreciação foi remetida para os meios comuns, afastando a devida compensação, tal como fora determinada no Acórdão proferido nos autos n.º 9.../2..., posteriormente processo n.º 7906/00...., e que baliza em termos definitivos, e com a autoridade de caso julgado, o crédito reclamado pelo Recorrente, pois o mesmo não tem origem diversa, nem, aliás, tal foi invocado pelo Embargado, enquanto seu titular.

Importa pois ter presente, que a questão que se coloca prende-se, tão só, com o apuramento do quantitativo devido,  tendo em conta as premissas definidas na decisão proferida no aludido Acórdão, e que não se compadece com fórmulas, em si não clarificadoras, e não observadoras do já determinado naquela decisão.

Adiante-se, que as demais ocorrências processuais, também não produziram a invocada liquidação da obrigação exequenda.

Com efeito e voltando ao incidente de liquidação pendente, por despacho de 13.10.2010, foi ordenada a respetiva suspensão, por a dívida do Recorrente ter sido relacionada nos autos de inventário, apontando possibilidades, nomeadamente a remessa para os meios comuns, nos quais as partes estavam, não podendo a questão ser discutida nos dois processos, e em 26.11.2019 declarada a extinção da instância, por inutilidade superveniente, no entendimento que o fim pretendido fora alcançado no processo de inventário, não se verificando assim uma decisão sobre o mérito do requerido, e consequentemente, irrelevante, no que concerne à liquidação da obrigação.

Por sua vez, no que concerne ao processo de inventário, o mesmo prosseguiu os seus termos, com a prolação da sentença em 1.07.2019, homologando a partilha, que transitou em julgado, assim como o despacho de 26.0.2019, que condenou os interessados no pagamento do passivo, conforme o acordado, que não a liquidação do crédito do Recorrente, em sede de conferência de interessados, como se aludiu, realizada no indicado dia 12.10.2019.

Não tendo sido liquidada, como vimos, a quantia exequenda, maxime em sede de conferência de interessados, o assentimento dos Recorridos enquanto interessados deram na mesma, e a decorrente tramitação que os afetou, em termos de partilha e tornas devidas, bem como a condenação na satisfação do passivo, apenas aos mesmos se reporta e não produz o efeito pretendido pelo Recorrente, no que concerne à liquidação do seu direito, enquanto credor, não constituindo um pressuposto lógico ou essencial à solução achada e consignada na partilha dos bens comuns dos Recorridos, enquanto ex-casal, e homologada na sentença proferida.

Desta forma, manifesto se torna que o decidido no Acórdão recorrido quanto à iliquidez da obrigação exequenda, não suprida, nem suprível na execução, não afronta o caso julgado material constituído no concerne ao mapa de partilha dos bens comuns dos Recorridos, sendo que quanto à decisão que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, não se formou tal caso julgado, pois a mesma limitou-se a extinguir a relação jurídica processual.

Improcedem, assim, as conclusões formuladas pelo Recorrente no recurso apresentado.

*

III – DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar a revista, mantendo o decidido no Acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Lisboa,  21 de junho de 2022

Ana Resende (Relatora)

Ana Paula Boularot

José Rainho

Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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[1] Por incorporação/apensação (19.11.2020) do Apenso H, oposição mediante embargos de executado, ao Apenso G, ora sob análise, (despacho de 18.11.2020) numa prévia indicação de desconhecimento do dissídio, e após convergindo nos fundamentos invocados neste último apenso.
[2] Veja-se nota anterior.
[3] Diploma a que se fará referência se nada mais for dito.
[4] HH, II e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 3.ª edição, pag. 337.
[5] HH, e outros, obra citada, fls. 386, com referência doutrinária e jurisprudencial.
[6] Cf. Ac. STJ, de 18.01.2022, processo n.º 3396/14....., in www.dgsi.pt.
[7] Cf. Ac. STJ de 17.12.2019, processo n.º 1181707.8..., in www.dgsi.pt
[8] Cf. Ac. STJ de 8.03.2018, processo, n.º 1306/14...., com ampla referência doutrinária, in www.dgsi.pt,
[9] Cf. Ac. STJ de 17.02.2022, processo n.º 1347/21...., referenciando, para além de avultada jurisprudência, a síntese feliz, de ..., a sentença não é “nem dispositivo, sem motivos, nem motivos sem dispositivo, mas a fusão deste com aqueles”, in www.dgsi.pt.
[10] Cf. Ac. STJ de 16.02.2016, processo n.º 199/12.....
[11] Desde logo, e como já se referenciou, no âmbito da autoridade do caso julgado material, enquanto decisão de mérito transitada, cujo objeto se consubstancia em pressuposto indiscutível, em objeto de outra  ação, ainda que não integralmente idêntico, obstando que nesta última a relação jurídica da mesma constante venha a ser atendida, de novo, de modo diferente.
[12] Cf. Ac. STJ de 19.01.2016, processo n.º 126/12...., in www.dgsi.pt.
[13] Veja-se o Ac. STJ de 11.05.2006, processo n.º 06..., in www.dgsi.pt, na referência que o despacho que decreta a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide forma, tão só, caso julgado formal.
[14] Cf. Ac. STJ de 27.11.2019, processo n.º 186/14...., in www.dgsi.pt.
[15] Cf. Ac. STJ de 10.09.2020, processo n.º 5129/05...., com referencias jurisprudenciais, in www.dgsi.pt.
[16] Cf. JJ e KK, Código Civil Anotado, I, vol. 222 e segs, LL, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pag. 348.
[17] No sentido de não só em face aos próprios termos da declaração, mas também na consideração das circunstâncias concomitantes, anteriores e posteriores relacionadas, e ainda perante os interesses em jogo, o seu razoável tratamento, as finalidades prosseguidas pelo declarante, usos, práticas e normativos aplicáveis, cf. Ac. STJ de 5.7.2012, processo n.º 1028/09..... in www.dgsi.pt.
[18] Sem prejuízo de nos casos duvidosos, em que a interpretação com base nos critérios previstos no art.º 236 comporta dois ou mais sentidos com razões de igual força, serem atendidos os critérios constantes do art.º 237, ambos do Código Civil.
[19] Cf. Ac. STJ de 24.11.2020, processo n.º 22741/12...., in www.dgsi.pt.
[20] Cf. Ac. STJ 19.05.2020, processo n.º 6673/10.....
[21] Na sequência do divórcio dos aqui Recorridos, conforme resulta da consulta via Citius.
[22] Conforme documento junto com o requerimento inicial nos presentes autos.