Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
413/19.4GCSTR.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CID GERALDO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DUPLA CONFORME
IRRECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - Nos termos dos art. 432.º, n.º 1, al. c), e 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, apenas são recorríveis para este STJ os acórdãos do tribunal da Relação que, confirmando decisão de 1.ª instância, apliquem pena de prisão superior a 8 anos de prisão.
II - Verificando-se que o acórdão do tribunal da Relação confirmou as condenações do arguido, e fundamentou à exaustão a sua decisão, fixando a matéria de facto dada como provada e decidindo a matéria controvertida quanto à idade da ofendida, daqui resulta que existe dupla conforme, isto é, houve um duplo juízo condenatório quanto à questão de facto que a defesa entendeu colocar no seu recurso.
III - Isto significa, visto o disposto nos art. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1.ª instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), apenas podendo ser apreciado quanto à pena única que lhe foi imposta por ser superior a 8 anos de prisão, mas desde que houvesse recurso nessa parte, o que não aconteceu neste caso, uma vez que o recorrente se limitou a pedir pena inferior à que foi aplicada pelo acórdão recorrido, partindo do pressuposto de que ocorreu um erro de apreciação da prova no tocante à idade da menor ofendida.
IV - ConcluI -se, pois, pela verificação do requisito da dupla conforme exigido pelo disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, impondo-se a irrecorribilidade da decisão do tribunal da Relação, o que constitui um entendimento na linha daquilo que vem sendo a jurisprudência unânime deste STJ.
V - E, não sendo admissível o recurso, igualmente não podem ser analisadas todas as questões relativas à parte da decisão irrecorrível, tais como os vícios da decisão indicados no art. 410.º do CPP, respectivas nulidades (art. 379.º e 425.º, n.º 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relativas à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das al. e) e f) do art. 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no art. 72.º do CP, bem como de questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito.
Decisão Texto Integral:

Proc.º nº 413/19.4GCSTR.E1.S1  

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.

I. RELATÓRIO  

I.1. Por acórdão proferido no Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 413/19.4GCSTR, do Juízo Central Criminal de Santarém (Juiz 4), após audiência de discussão e julgamento, foi o arguido AA, condenado:

- pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 170.º e 171.º, n.º 3, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão;

- pela prática de 20 (vinte) crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, desde o Verão de 2018 a setembro de 2019, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão por cada um dos crimes;

- pela prática de 1 (um) crime de ato sexual com adolescentes, p. e p. pelo artigo 173.º do CP., factos ocorridos em dezembro de 2019, na pena de 2 anos de prisão.

- Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 12 (doze) anos de prisão e na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, em conformidade com o preceituado nos artigos 69º-B, nº 2, e 69º-C, nº 2, do Código Penal, pelo período de 15 (quinze) anos.

- Foi ainda julgado totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante cível BB, em representação da sua filha menor CC, e, em consequência, condenado o arguido/demandado a pagar-lhe a quantia de € 35.000 (trinta e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais.

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Não se conformando com o Acórdão condenatório proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, o arguido AA, dele interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, por douto acórdão proferido em 23 de novembro de 2021, negou provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, o acórdão recorrido.

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I.2. Desse acórdão interpôs recurso para o STJ o arguido AA.  

Da motivação do recurso, retira o recorrente as seguintes conclusões:

A. O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso interposto pelo, aqui, Recorrente, mantendo a condenação deste, pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de criança, 20 (vinte) crimes de abuso sexual de criança e 1 (um) crime de ato sexual com adolescente, p. e p. pelos artigos 170.º, 171.º, n.º 3, alínea a), 171.º, n.ºs 1 e 2 e 173.º, todos do CP, em cúmulo jurídico, na pena única de 12 (doze) anos de prisão efetiva;

B. Permanecendo, assim, uma dúvida insanável, quanto à idade exata da Ofendida;

C. Porquanto considera que, por um lado, o Tribunal a quo baseou a sua decisão num documento sem qualquer validade no nosso ordenamento jurídico, como explicaremos infra, e, por outro, desconsiderou, de modo infundado, a prova pericial produzida em julgamento, para aferir da idade exata da Ofendida.

D. Ao determinar a idade da Ofendida entre os 13 (treze) e os 14 (catorze) anos, e contrariamente ao que resulta da perícia médico-legal realizada, sem mais, o Tribunal a quo cometeu manifesto erro de apreciação da prova;

E. O Tribunal a quo, tão pouco, provou o elemento objetivo do crime de abuso sexual de criança (p. e p. pelo artigo 171.º do CP);

F. Ao qualificar os factos nos autos no âmbito do crime p. e p. pelo artigo 171.º do C.P, o Tribunal     a quo, na determinação da medida concreta da pena, ponderou a culpa e a ilicitude, e, bem assim, as medidas de prevenção geral e especial, atendendo a esse tipo legal de crime;

G. Tendo sido produzida prova pelo ora, Recorrente, de que a Ofendida teria entre 14 (catorze) e 15 (quinze) anos de idade à data da prática dos factos, não poderia o Tribunal recorrido deixar de enquadrar os mesmos no âmbito da previsão do artigo 173.º do CP, qualificando-os como ato sexual com adolescente;

H. Como ensina Maria João Antunes, “segundo o artigo 163.º, n.º 1, do CPP, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, o que representa o abandono do entendimento de que o juiz é o perito dos peritos.”;

I. Concluindo, a mesma autora, que essa apreciação ou convicção “terá de ser sempre objetivável, motivável e, por conseguinte, suscetível de controlo”;

J. No caso em apreço, o Tribunal recorrido cingiu-se à sua convicção pessoal e subjetiva e não a uma convicção racionalmente motivada, objetiva e formada por referência às regras técnico-científicas;

K. E, não sendo o princípio da livre apreciação da prova um princípio absoluto, deve ser limitado pela observância e respeito pelo princípio da presunção da inocência e da salvaguarda do princípio in dubio pro reo;

L. Por isso, o Tribunal a quo foi além dos limites da livre apreciação da prova, quando desconsiderou as conclusões constantes do relatório pericial, devidamente certificado pela comunidade científica, que aponta para a idade mínima de 17 (dezassete) anos, sem sequer se fazer valer de outro meio probatório de valor científico igual ou superior;

M. Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação ..., de 23-01-2018, proferido no âmbito do processo n.º 111/13.... que, “quando resulta claramente do relatório pericial que este consubstancia inequivocamente prova pericial, pois contém um juízo técnico e não uma mera opinião pessoal e, para além do mais, se as conclusões se encontram devidamente fundamentadas e alicerçadas numa análise técnica, cuidada e exaustiva, trata-se de prova pericial válida”;

N. Por seu turno, também o Tribunal da Relação ..., no Acórdão de 18-03-2015, proferido no âmbito do processo n.º 344/12.... refere que, “tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca pela análise de uma testemunha, ou nas declarações do arguido.”;

O. Suscitando-se a dúvida razoável sobre a idade da Ofendida, e tendo em consideração os resultados obtidos com a perícia médico-legal,   que indicam que a mesma teria, quase inquestionavelmente, 17 (dezassete) anos de idade, tal facto deverá ser valorado a favor do Arguido, ora, Recorrente;

P. Conforme refere, a esse propósito, Figueiredo Dias, “se, por outro lado, aquele mesmo princípio (da investigação) obriga em último termo o Tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um «non liquet» na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão – tem de ser sempre valorado a favor do arguido.”;

Q. Maria João Antunes também sustenta que, tendo por referência o princípio in dubio pro reo “o tribunal deve dar como provados os factos favoráveis ao arguido, quando fica aquém da dúvida razoável, apesar da prova produzida”;

R. Assim, deveria o Tribunal a quo ter enquadrado os factos no tipo legal de crime de ato sexual com adolescentes, p. e p. pelo artigo 173.º do CP, o que se reconduziria a uma decisão mais favorável ao Arguido, por a moldura penal abstrata prevista para esse tipo de crime, ser inferior à que é aplicada ao crime de abuso sexual de criança (p. e p. pelo artigo 171.º do CP);

S. Pelo que, face ao exposto, o douto Acórdão recorrido violou o artigo 127.º e o artigo 163.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, o artigo 71.º do CP e o artigo 32.º, n.º 2, da CRP.

Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso merecer provimento por parte desse Venerando Tribunal, sendo revogada a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que, nos termos legais e face à prova produzida pelo, ora, Recorrente em sede de julgamento, enquadre os factos em apreço nos presentes autos no âmbito do disposto no artigo 173.º do Código Penal e, como tal, determine uma medida concreta da pena inferior à que foi aplicada pelo douto Acórdão recorrido, assim se fazendo INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!

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I.3. A Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação respondeu ao recurso interposto, concluindo:

1. O Supremo Tribunal de Justiça conhece essencialmente de Direito, salvo as exceções legais;

2. A questão do erro notório da prova, embora seja vício de conhecimento oficioso, já foi antes objeto do recurso interposto do acórdão condenatório para o Tribunal da Relação que confirmou o acórdão de primeira instância.

3. O presente recurso do acórdão da relação para o STJ só é possível atenta a pena aplicada ser superior a 8 anos.

4. O recorrente vem suscitar para o STJ questão de fato já apreciada pelo tribunal da relação; ao admitir-se apreciação de novo desta questão de fato haverá uma dupla apreciação, tornando-se então inútil nestes casos a obrigatoriedade do recurso prévio para a Relação…

5. Assim não se entendendo, não existe erro na apreciação da prova ou vício de que se deva conhecer.

6. A perícia apresentada baseia-se em critérios probabilísticos e não em certeza científica, fundamentando o tribunal sua discordância, sem qualquer dúvida com base noutros elementos.

7. Os princípios do in dúbio pro reo e da interpretação mais favorável são aplicáveis no caso da dúvida insanável e não quando o tribunal dispõe de outros fatos que lhe permitem retirar uma conclusão.

Termos em que em nosso entender o recurso interposto pelo arguido não merece provimento, sendo de V.Exas a melhor Justiça.

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I.4. Neste Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer, no sentido de que o recurso será de improceder, mantendo-se o Acórdão recorrido nos seus precisos termos.

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I.12. Notificado do Parecer do Ministério Público, O arguido AA veio, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, apresentar a sua resposta, concluindo:

Não existindo qualquer documento que assegure, com toda a certeza, e sem qualquer margem para dúvidas, a idade exata da Ofendida – pois, como se referiu, não se pode considerar válida, à luz do ordenamento jurídico nacional, a certidão de nascimento junta aos autos –, mostrou-se premente a realização da perícia em causa,

E, considerando que o relatório pericial – e respetivo esclarecimento – é o único documento com força probatória bastante para determinar a idade da Ofendida,

Deverá concluir-se que, à data da realização da referida perícia, a Ofendida teria 17 (dezassete) anos, e não 15 (quinze) anos de idade,

E que, consequentemente, à data da prática dos factos, a Ofendida teria entre 14 (catorze) e 15 (quinze) anos de idade.

Assim, ao determinar a idade da Ofendida entre os 13 (treze) e os 14 (catorze) anos, e contrariamente ao que resulta da perícia médico-legal realizada, sem mais, o Tribunal a quo cometeu manifesto erro de apreciação da prova.

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Colhidos os vistos, e uma vez que não foi requerida audiência, o processo foi presente à conferência para decisão.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. As instâncias julgaram os seguintes factos provados e não provados:

“FACTOS PROVADOS

Apreciada a prova produzida em audiência, resultaram como provados os seguintes factos, relevantes para a boa decisão da causa:

1. A ofendida CC, tem nacionalidade ..., nasceu em .../.../2005, e é filha de BB e de pai desconhecido, tendo idade cronológica, em .../.../2021, de 16 anos;

2. BB é casada com DD e, no ano de 2016, veio para Portugal, com a filha CC, tendo passado a viver na localidade de ..., próximo da ....

3. Após, aqueles três (BB, DD e a ofendida CC) passaram a residir na Rua ..., ....

4. A ofendida frequenta o sexto ano de escolaridade na EB1, 2 na ....

5. DD, padrasto da ofendida CC, e AA desenvolveram uma relação de amizade, sendo que as respetivas companheiras são de nacionalidade ... e têm filhas com idades próximas.

6. Na verdade, AA e a companheira EE têm uma filha em comum, com cerca de dez anos de idade, de nome FF, que chegou a frequentar a mesma escola que a ofendida CC, na ....

7. Na sequência desta relação de amizade, CC passou a ser visita de casa de AA, convivendo com a sua família e ali pernoitando.

8. No Verão de 2018, AA, aproveitando-se da relação de proximidade com a ofendida CC e da inexperiência da mesma, decidiu iniciar um relacionamento sexual com ela.

9. Nessa sequência, em data concretamente não apurada desse Verão, na casa de AA, sita na Rua ..., ..., ..., este pegou numa mangueira, molhou a roupa que trazia vestida e, bem assim, a roupa que a ofendida CC envergava.

10. Seguidamente, levou a ofendida para uma arrecadação no exterior da casa e despiu-se aí completamente, a pretexto de ter a roupa molhada.

11. Naquelas circunstâncias, também a ofendida CC tirou toda a sua roupa.

12. Enquanto a roupa secava, AA permaneceu nu na presença da ofendida, expondo-lhe e exibindo-lhe o corpo e os órgãos sexuais.

13. AA disse a CC “para ela não contar aquela situação a ninguém”.

14. Em dia não concretamente apurado, mas após o facto ocorrido em 12., à noite, AA dirigiu-se ao quarto da sua filha, na sua residência, onde também estava a ofendida CC, a pretexto de lhes desejar boa noite.

15. Estando FF em cima da sua cama a falar com AA, este sentou-se no colchão, no chão, onde a ofendida se encontrava.

16. Sendo que, enquanto AA falava com a filha, aproveitando o facto de estar sentado no colchão e entre as duas menores, obstruindo a linha de visão de FF para a ofendida, começou a tocar na zona vulvar da ofendida, por cima da roupa dela.

17. AA passou, assim, uma das mãos para trás das costas dele, de modo a tocar na zona vulvar da ofendida, por cima da roupa e colocou a mão por dentro das suas cuecas, tendo-lhe começado a tocar e a massajar a zona vulvar.

18. Posteriormente, em data não concretamente apurada outrossim do Verão de 2018, a ofendida voltou a pernoitar na casa de AA.

19. Aproveitando o facto de a ofendida CC estar a dormir, AA foi ter com ela e começou a tocar-lhe com a mão, na zona vulvar, por dentro da roupa.

20. Nesta sequência, a ofendida acordou e AA disse-lhe “para estar calada e para não acordar a FF”.

21. Depois, AA pediu à ofendida que o acompanhasse, tendo-o seguido até ao seu quarto, e fechou a porta do quarto da filha e a do seu próprio quarto (quarto do casal).

22. Convencida que ia dormir, a ofendida deitou-se na cama de AA.

23. Ato contínuo, AA deitou-se a seu lado, começou a tocar-lhe em todo o corpo e despiu-a integralmente.

24. Finalmente, AA mandou a ofendida vestir-se e disse-lhe “para voltar para o quarto de FF, deitar-se no seu colchão e não dizer nada”.

25. Algum tempo volvido, mas ainda no Verão de 2018, AA acordou a ofendida para que esta o acompanhasse até ao seu quarto.

26. Ali, repetiu a conduta supra descrita, despiu a ofendida, tocou-lhe na zona vulvar.

27. Depois, introduziu o pénis ereto na vagina de CC, penetrando-a e mantendo com ela relações sexuais de cópula completa.

28. Após esta situação, em datas concretamente não apuradas, AA repetiu a descrita conduta para com a ofendida, na sua residência, pelo menos uma vez por mês, quer durante o período de férias escolares, quer durante o período escolar, pelo menos até setembro de 2019.

29. Também após aquela situação, AA passou a manter com a ofendida relações sexuais de coito anal e de cópula (vaginal) e de coito oral com a ofendida.

30. Na verdade, em novembro de 2018, por ocasião da Feira ..., na ..., AA passou a praticar relações sexuais de coito anal e cópula (vaginal) com a ofendida, na sua residência, aproveitando as ocasiões em que a sua companheira não se encontrava em casa, situações que ocorreram em datas concretamente não apuradas, pelo menos vinte vezes.

31. Os referidos atos de natureza sexual entre a ofendida e AA ocorriam maioritariamente no quarto de casal, na casa deste, assim como no sofá da sala de estar, onde ocorreram em número concretamente apurado, e bem assim no banco de trás da viatura de AA de marca e modelo ..., de cor ..., com a matrícula ...-...-ZA.

32. Nestas situações, AA dirigia-se à ofendida e dizia-lhe “para ela não contar a ninguém".

33. Em data não apurada do ano de 2019, AA passou a ir buscar a ofendida à escola para se encontrarem, em locais ermos, e aí manterem relações sexuais no interior do mencionado veículo automóvel.

34. Nas relações sexuais que manteve com a ofendida, AA usou preservativo.

35. No dia 3 de dezembro de 2019, AA foi buscar a ofendida à ..., cerca das 13 horas, e levou-a para sua casa.

36. Ali chegados, aproveitando o facto de a companheira estar a trabalhar e de a filha estar na escola, AA ordenou à ofendida que se despisse, o que a mesma fez.

37. Depois, disse-lhe para se deitar no chão, pedido a que acedeu, ficando em decúbito dorsal.

38. Em seguida, AA utilizou uma lâmina de barbear e depilou a zona púbica da ofendida.

39. Depois, a ofendida foi para o quarto de casal com AA, deitou-se na cama de barriga para cima, toda nua, e AA debruçou-se sobre si, com o pénis ereto e com uso de um preservativo, penetrou a ofendida na vagina.

40. Durante o ato sexual e a penetração vaginal, o preservativo rompeu-se, tendo AA ordenado à ofendida que se levantasse e que se fosse lavar, o que a mesma fez.

41. Seguidamente, AA transportou a ofendida à escola, pelas 14:20 horas, e regressou à ..., onde se dirigiu à Farmácia ..., pelas 14:30 horas, e adquiriu o fármaco “NORLEVO” (pílula do dia seguinte), na F... Lda., na ..., em nome de GG, de forma a evitar que a ofendida engravidasse.

42. Regressou, depois, à ... onde entregou a pílula à menor, que a tomou.

43. Durante a viagem, AA foi dizendo à ofendida “que caso a mesma engravidasse para não dizer que ele era o pai, mas para inventar que tinha sido um namorado qualquer”.

44. Antes do período temporal supra indicado, a ofendida nunca tinha mantido relações sexuais com ninguém.

45. Em todo o circunstancialismo narrado, a ofendida CC aparentava idade coincidente com a idade civil, tendo o arguido conhecimento que a mesma teria 12 e 13 anos de idade até os factos ocorridos em setembro de 2019, conforme transmitido pela própria e pelos pais, facto que nunca duvidou;

46. Sabia o denunciado AA que a ofendida CC era menor, que, no Verão de 2018, tinha treze anos de idade civil (cronológica) e, bem assim, atenta a relação de proximidade com a ofendida e respetiva família, qual a sua data de aniversário.

47. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de praticar atos sexuais de relevo, incluindo atos sexuais de cópula, coito anal e cópula (vaginal) com a ofendida, quando a mesma era menor de treze e catorze anos de idade, bem sabendo que procedendo da forma descrita punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual e limitava a sua liberdade de autodeterminação sexual, não se tendo, mesmo assim, abstido de os levar a cabo.

48. O denunciado aproveitou-se da incapacidade de resistência da menor e de avaliação do sentido do ato sexual para satisfação dos seus instintos libidinosos.

49. O arguido agiu da forma supra descrita com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais e libidinosos, o que representou e conseguiu, e com perfeito conhecimento da idade da ofendida, aquando da prática dos factos, o que não podia ignorar, bem sabendo que a mesma, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a tomar qualquer decisão, livre e pessoal, quanto à prática de qualquer ato de natureza sexual como aqueles que praticou sobre a mesma, e ainda de que, com a sua conduta prejudicava o livre e são desenvolvimento da sua personalidade, aproveitando-se ainda da confiança que mantinha com a menor e bem assim da sua juventude e consequente ingenuidade e fragilidade.

50. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, sendo capaz de a orientar de harmonia com esse conhecimento.

51. Após realização de exame pericial cujo teor de dá por integralmente reproduzido, concluiu-se a idade biológica da ofendida do seguinte modo: “usando o conceito de idade mínima, descrito por Schmeling et al, as idades mínimas são 13,36, 15,4 e 17,6 anos, respetivamente. A maior idade mínima (17 anos) determina a idade mínima do sujeito. De acordo com isso: - Presumimos que o sujeito ainda não atingiu a idade de 18 anos; - A idade mínima avaliada (17 anos) está acima da idade declarada (15 anos), portanto a idade informada não é compatível com os achados; - A idade mais provável da pessoa a ser examinada, de acordo com a idade mediana relevante de ossificação de estágio 2b das clavículas mediais, é 17 anos”.

52. Das condições socioeconómicas do arguido: “AA nasceu em ..., onde a família de origem, composta pelos pais e duas irmãs, se instalara devido à atividade profissional do pai, funcionário…. No decurso da descolonização, a família regressou a Portugal, ficando a residir em ..., teria na época o arguido cerca de 5 anos de idade. O arguido frequentou o espaço escolar até ao 10º ano de escolaridade que não terminou. O abandono do percurso escolar estará ligado à emigração da mãe para ..., tendo AA ficado sozinho, aos 14 anos, na morada de família. Os pais já estariam separados desde os seus 11 anos; a irmã mais velha iniciara vivência em comum com o namorado e passou a viver em ..., enquanto a irmã do meio, fora para a ... com um familiar. Deste modo, o arguido iniciou o seu percurso laboral, no setor da.…, como empregado num... A mãe enviava dinheiro para o pagamento de algumas despesas, nomeadamente da renda da habitação. Aos 17 anos juntou-se à mãe em ..., exercendo atividades indiferenciadas, como…, … e …. Regressou a Portugal com cerca de 19 anos para ingressar no serviço militar, onde cumpriu 9 meses. Posteriormente voltou a trabalhar no Bar, até que, em 1992, ingressou na PSP. Durante 20 anos exerceu a sua atividade na PSP ..., posteriormente passou para ... para o ...” e mais tarde para a Escola ... em ..., onde se encontrava à data da sua prisão preventiva. A nível relacional releva-se o matrimónio aos 23 anos. Já se encontrava na época a exercer funções na PSP .... Desta união que perdurou por sete anos, tem um filho com 20 anos, estudante a quem paga prestação de alimentos, no valor de 220€ mensais, mas com o qual não mantém vínculo relacional. Segundo afirma a rutura e divórcio ocorreu por conflitos decorrentes da dependência emocional da então cônjuge à família de origem e da interferência daqueles familiares na vida quotidiana do casal. Desde a separação, segundo refere, o filho foi impedido gradualmente de o contactar. No decurso de uma missão em ... conheceu a sua atual companheira de nacionalidade .... Regressados a Portugal, o casal passou a viver em união de facto. Desta união nasceu a única filha, atualmente com 11 anos de idade. Entretanto, o casal passou a viver na ..., onde se integraram de forma normativa, estabelecendo convívio social com vários indivíduos de nacionalidade estrangeira que apoiariam em termos de integração no País. A nível profissional o arguido é reconhecido pelo seu bom desempenho, como pessoa afável e correta, com um bom relacionamento com colegas de trabalho e respeitador das hierarquias e regras inerentes à sua profissão. Ao longo do seu trajeto de vida o arguido investiu, desde muito jovem, na melhoria das suas condições de vida, através de atividade laboral continuada, orgulhando-se e valorizando o que conseguiu conquistar com a sua persistência “aos 47 anos já tinha uma casa paga e dois carros” (sic). O estilo de vida que sempre tentou alcançar, quer em termos socioprofissionais, quer afetivos, serão uma forma de se compensar e de proporcionar ao seu núcleo familiar as condições de que ele próprio não beneficiou no passado. A família mantém-se coesa no apoio a prestar ao arguido, sendo visitado com a regularidade possível pela mãe, companheira e filha, sempre com as condicionantes decorrentes da Covid-19. AA está consciente da gravidade das acusações de que é alvo e das consequências que o presente processo pode determinar, quer para a sua imagem socioprofissional quer para a sua família. No meio vicinal, a imagem positiva, de que era detentor, ainda não parece ter sofrido qualquer alteração, embora exista alguma ambivalência perante os factos de que vem acusado. AA apresenta capacidade de juízo crítico e perceção normativa acerca da ilicitude de atos similares aos que lhe estão imputados, todavia, em sede de entrevista negou a prática dos mesmos. Posicionamento distinto do que terá assumido em entrevistas de acolhimento no EPE. AA menciona que todo o processo “é um pesadelo” (sic), verbaliza sentimentos de revolta por ser alvo de uma manobra de aproveitamento da sua boa fé “nunca mais ajudo ninguém…não sei porque me fazem isto…” (sic). No que concerne aos familiares, nomeadamente a companheira e filha, não acreditam na acusação, estando convictas de que tudo se irá esclarecer em julgamento”.

53. O arguido não tem antecedentes criminais;

54.O arguido confessou parcialmente os factos com reservas.

55. Do pedido cível deduzido pela assistente: Para além das respetivas mulheres terem nacionalidade ..., o arguido/demandado é pai de uma menina de cerca de dez anos de idade, de nome FF, que chegou a frequentar a mesma escola que a ofendida CC, na ...;

56. No seu dia-a-dia e até ao momento em que o arguido iniciou a prática dos factos constantes da acusação (facto 12 em diante), a menor apresentava um comportamento normal para a idade, era uma menina feliz que convivia normalmente com familiares e amigos;

57. Sucede que, por via dos acontecimentos supra descritos, e desde as datas supra descritas, a menor alterou totalmente o seu comportamento;

58. O arguido/demandado, de forma ardilosa, veio premeditadamente a criar um ascendente de superioridade e de confiança sobre a ofendida, que lhe veio a permitir conseguir concretizar os atos supra descritos, pedindo segredo à menor, o que ela cumpriu;

59. Sendo certo que, à medida que tais comportamentos se foram perpetuando, a menor revelava instabilidade, rispidez no seu discurso e, sobretudo, passou a isolar-se da família e dos seus amigos, passando a ser agressiva com familiares e amigos, respondendo de forma ríspida e ofensiva;

60. Os pais percebiam que andava cada vez mais assustada, mais calada, mais reservada e ansiosa;

61. A menor passou, no dia a dia e até hoje, a sofrer de crises de ansiedade, insegurança, isolamento e demais sentimentos de angústia, de culpa, vergonha, de tristeza;

62. Por várias vezes sofreu de crises de choro, de nervosismo e insónias, que levaram a que a menor faltasse às aulas e deixasse de frequentar locais públicos;

63. Após ter sido confrontada com os acontecimentos, a menor alterou o seu comportamento, carecendo de apoio psicológico, por perturbação de stress pós-traumático, tendo vindo a ser assistida em consultas de psicologia na ... e de psiquiatria no H.…;

64. A ofendida e seus pais depositavam uma grande confiança no arguido, como pai da sua amiga FF;

65. A ofendida tornou-se mais introvertida e insegura, tendo inclusive faltado às aulas;

66. Os factos foram divulgados quer nos jornais, quer em reportagens, causando angústia, vergonha, insegurança e tristeza na menor.

67. Em consequência das condutas do arguido, a menor sofreu angústia, depressão, ansiedade, nervosismo e insónias, insegurança e tristeza, das quais até à presente data recupera lentamente;

68. Os factos praticados pelo arguido afetaram e perturbaram a vida da menor e da sua família;

69. A ofendida nunca teve consciência que se tratava mais do que uma amizade, e apenas quando os factos se desenrolaram é que veio progressivamente a tomar consciência da gravidade da situação e, dado o ascendente que o arguido possuía sobre ela, nunca conseguiu opor-se à vontade deste;

70. Em consequência dos factos, a menor passou a ter dificuldades nas relações sociais, nomeadamente com jovens da sua idade, e passou a arranjar inúmeros pretextos para não sair de casa e conseguir enfrentar amigos e colegas;

71. Vive com vergonha do que efetivamente aconteceu, tanto mais que o meio em que se insere é um meio pequeno, em que tudo se comenta.

72. Na perícia à personalidade efetuada ao arguido resultou que o mesmo não é inimputável, que não sofre de nenhuma perturbação mental diagnosticável através dos sistemas DSM-V ou CID-10;

73. Mais consta do relatório que não foi possível identificar alteração de personalidade grave, não tendo surgido indicadores para o diagnóstico de uma perturbação da personalidade, podendo ler-se “importa referir, devido à sua importância, que embora não tenham surgido indicadores psicopatológicos, o mesmo não implica que não tenham ocorrido os alegados abusos sexuais, pois existindo prova sobre os mesmos, isso significa que o alegado abusador teve clara consciência dos seus comportamentos e do dano que estava a infligir à menor (…)”.

FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provou que:

- As circunstâncias referidas em 13. tivessem ocorrido no dia seguinte;

- Nas circunstâncias referidas em 17, de seguida, tenha puxado o elástico das calças do pijama da ofendida, após o que introduziu um dos dedos na vagina daquela;

- Nas circunstâncias referidas em 23., seguidamente, o arguido também se despiu completamente, tocou na zona vulvar e introduziu um dedo na vagina da ofendida;

- No Verão de 2018, mas em datas concretamente não apuradas, AA repetiu a conduta agora descrita com a ofendida, na sua residência, pelo menos mais quatro vezes;

- Nas circunstâncias referidas em 23. introduziu um dedo na sua vagina;

- As relações de coito oral começaram a ocorrer em data posterior a novembro de 2018, em datas concretamente não apuradas, mas também pelo menos quarenta vezes;

- Nas circunstâncias referidas em 23., cerca de três ou quatro vezes;

- Sempre que os atos sexuais ocorriam em casa, AA utilizava uma toalha, que depois colocava a lavar na máquina de lavar;

MOTIVAÇÃO DE FACTO

Os factos atinentes ao conhecimento e vontade com que o arguido atuou, bem como os relativos à sua consciência quanto à ilicitude da sua conduta foram extraídos dos factos objetivos, analisados à luz das regras da lógica e da experiência comum, atentas as circunstâncias do caso.

Os factos relativos aos           seus antecedentes criminais e condições socioeconómicas quedou-se na análise do C.R.C. e relatório social juntos aos autos. O julgamento comportou várias sessões com inquirições demoradas, densas e, por vezes, opacas, procurando descortinar factualidade acessória, irrelevante para a descoberta da verdade (v.g. emprestar o carro ao padrasto da vítima).

O arguido declarou pretender prestar declarações em audiência, assumindo - aparentemente - a prática dos factos. Porém, fê-lo com algumas reservas.

Com efeito, pecando por falta de originalidade, e contrariamente às suas declarações prestadas em sede de 1º interrogatório - essas sim, cruas, espontâneas e desesperadas -, o arguido, em audiência de julgamento, convocou na sua defesa a falsidade da data de nascimento da ofendida, o comportamento tentador da mesma e, finalmente, o seu papel altruísta quanto à mesma e família, que, até à sua intervenção, viviam com privações.

Pelas razões infra, não estando obrigado a dizer a verdade, nenhum valor atribuímos às declarações do arguido em audiência.

Uma audição atenta das mesmas permite revelar, na sua essência, a inexistência de arrependimento, a braços com um paternalismo bacoco. O arguido não raras vezes se refere à ofendida como “a miúda” (“até fiquei a gostar da miúda”), utilizando expressões e relatando fantasiosas perceções da realidade, desprovidas de remorso, assinalando que a ofendida teria “formas de ação”, “dizia que sangrou, mas não sangrou”, ou, pasme-se, “apenas lhe interessava saber se era mais velha”.

No 1º interrogatório, o arguido, notoriamente surpreendido e choroso, foi, ainda assim, muito claro e expressivo nas suas respostas, referindo-se à ofendida como “a menina”, ou confirmando várias vezes que a ofendida tinha 11, 12 anos (“sim, práí!”) e a filha dele, 7, 8 anos.

Explicou que conheceu a ofendida por intermédio de terceiro, pois a sua mulher e a mãe da ofendida são da mesma nacionalidade (...), país sobre o qual, em sede de julgamento, lançou suspeita sobre a idoneidade das instituições quanto à prática de atos formais, como o foi a emissão da certidão extemporânea de nascimento da ofendida.

Curiosamente, no que tange à documentação que obteve para celebrar o seu casamento ou sobre outros atos realizados por si e esposa naquele mesmo país (embora nada relevantes para a prova) reconheceu-lhes validade.

Neste particular, as sombras sobre a genuinidade da certidão e do declarado nela dissiparam-se com a apostilha da própria embaixada daquele país no nosso território.

A acareação entre a esposa do arguido e a mãe da ofendida revelou as mesmas posições assumidas por ambas. A primeira, aderindo à defesa do arguido, referiu que a mãe da ofendida lhe dissera que declarou, para efeitos de registo da filha, uma data de nascimento diferente da real, facto perentoriamente negado pela mãe da ofendida.

Embora este ato probatório tenha gerado a emissão das competentes certidões, o certo é que a esposa do arguido, apesar da memória vívida da aludida conversa, não soube precisar as circunstâncias de tempo e lugar da mesma, para mais quando se tratava de uma confidência desta gravidade.

Não primou pela isenção, mesmo antes da acareação, como infra, oportunamente, iremos abordar em concreto.

Volvendo às declarações do arguido em sede de 1º interrogatório, assinalamos que expressou frases como “sou um bicho, nunca me portei como um bicho, peço desculpa do fundo do coração”, sentimento que não transpareceu, de todo, em audiência de julgamento, aparentando confessar na íntegra os factos imputados.

O arguido, a instâncias da Mmª Juiz de instrução criminal, refere expressamente: “tive várias situações com a menina. Pode não ser tão frontal assim? O grande problema é que comecei…a miúda deixava a porta do quarto aberta, despia-se quando eu passava, roçava-se assim. Perdi o controlo. As coisas foram desenvolvendo”; mas, quando questionado sobre o - nada original - argumento das “insinuações” da ofendida, foi espontâneo: “não é isso!!”.

Ora, se dúvidas existissem (o que não se concebe) sobre o conhecimento do arguido da idade da ofendida nas diversas “situações” ocorridas, o mesmo fez questão de as dissipar - minuto 08:20 (II parte das declarações) -; a título de exemplo, em que, “questionado” sempre soube a idade dela, “não soube?”, responde: “sim! “, e, após pausa, reitera - “eu sei que não estava correto”.

Por outro lado, derrubando os argumentos que aduziu em sede de julgamento para justificar que a ofendida seria “mais velha” à data dos factos, o arguido, quando questionado sobre se a ofendida era “madura para a idade? adequada?” (vide minuto 09:15), responde de forma clara e inequívoca (passamos a transcrever): “havia momentos que agia como adulta, outros como criança. As nacionalidades são diferentes das nossas. ... são mais desenvolvidas que as nossas. Vejo pela minha filha, também a forma como a está a educar, não tem nada a ver com crianças aqui”.

O arguido compara a ofendida em termos educacionais à sua própria filha (“que não merece nada disto”, como salientou), sem com isto crer que a idade da ofendida deferia, mas, outrossim, partilhavam as mesmas orientações, fruto, nas suas palavras, da nacionalidade.

Ora, como é bom de ver, e se extrai na liquidez do discurso do arguido, este nunca duvidou da idade da ofendida, comparando-a inclusive à sua filha, que, à data, teria 7, 8 anos e, alegadamente, o mesmo grau de desenvoltura (segundo a opinião do mesmo, entenda-se). Ademais, mais uma vez por referência à sua filha assumiu a irrelevância de um diálogo e/ou questões sobre “uma menina com 12 anos” insinuar-se a si.

Nesta senda, refira-se que, remetendo-se ao silêncio sobre o número de vezes que teve relações sexuais com a ofendida, foi, diferentemente, mais falador, para explicar que a ofendida, caso este entrasse no quarto, não se tapava mesmo com os seios expostos, apenas em cuecas; ou que qualquer brincadeira se encostaria a si.

Por outro lado, na espontaneidade e justificações sucessivas afirmou: “por isso fui ao psicólogo, sempre certinho e normal. Nunca me senti atraído por uma criança”.

Reconhece que “tinha de acabar porque não era correto. Isto durou um ano e meio. Um período parou, mas ela manda mensagens de outro número e eu…”.

Assumiu ter-se despido em frente da ofendida e, bem assim, ter abordado a mesma quando esta dormia no quarto com a sua filha (FF), tocando na zona vulvar, massajando. Não respondeu se terá introduzido dedo na vagina da ofendida.

A ofendida, em sede de declarações para memória futura, com as limitações decorrentes do pouco domínio da língua portuguesa, foi muito expressiva, descrevendo factos cuja gravidade tem uma intermitência própria da inexperiência emocional/sexual. Confirmou, igualmente, episódios, confirmando apenas um de coito oral (os demais cópula e coito anal), bem como a 1ª e posteriores abordagens do arguido.

Questionada, afirmou sem hesitações e naturalmente a sua data de nascimento e idade civil.

Explicou de forma clara, escorreita (e cândida) como conheceu o arguido e a sua família, bem como a filha deste com quem firmou uma relação muito próxima de amizade pois teriam inclusive ascendentes (mãe) da mesma nacionalidade (...).

Recordou-se que, em 2017, passou as férias de Verão com o arguido e família no ..., mas que “não aconteceu nada”.

Revelou alguma preocupação em salvaguardar o arguido, por quem notória e ilusoriamente nutria afeto, daí que tenha permanecido em silêncio sobre os factos constantes da matéria provada com receio que o desfecho fosse o presente.

Com certeza inabalável, e espontaneamente, confirmou que, no verão de 2018, o arguido terá numa ocasião se despido depois de ambos se molharem com água da mangueira. A filha do arguido não quis participar, ficando dentro de casa e nem mesmo a esposa deste se encontrava na habitação, mas a trabalhar como aconteceu em todos os atos praticados por aquele. Aliás, foi evidente que o arguido apenas solicitava a presença da ofendida para terem relações sexuais na ausência da sua esposa e posteriormente escalou este comportamento para encontros no seu veículo.

Descreveu com constrangimento as circunstâncias de modo da primeira abordagem do arguido, quando no quarto da filha deste lhe tocou “nas partes privadas” enquanto desejava boa noite a si e à filha dele. Não referiu a introdução de um dedo na vagina.

O arguido, posteriormente, persistindo nesta conduta, uns dias depois, acordou-a. Pensou que estaria a sonhar e foi avisada para não acordar a filha enquanto a levava para o quarto dele (e da esposa), não desconfiando o que iria acontecer, mas antes suspeitando que seria para dormir na cama. A ofendida dormia num colchão junto à cama da filha do arguido.

Tal como referido amiúde pela esposa do arguido, esta ausentava-se para o trabalho, na época do veraneio num horário madrugador (5 da manhã), circunstância que proporcionou ao arguido os comportamentos descritos de forma credível pela ofendida.

Na primeira vez que a conduziu para quarto do casal, o arguido despiu-a “tocou na parte de baixo, estiveram deitados, mas quando despiu estava sentada. Acho que beijou...e só usou as mãos. Perguntou se gostei…ficou muito sério”.

O arguido, a partir daquela data, iniciou as relações sexuais, perguntando sempre se a ofendida tinha gostado e que não deveria contar “nada a ninguém”. A ofendida frisou que lhe disse que não iria contar a ninguém, promessa que cumpriu até ao dia em que, por lapso, um email que enviara ao arguido em que se “tocava” ficou em stand by e foi visionado pela sua mãe.

Em 2018, nas férias escolares do Verão esteve em casa do arguido “praticamente todos os dias” e pouco tempo depois da primeira ida ao quarto do casal, o arguido naquele local e, por vezes, na sala de estar, já que a “FF não percebia, estava escuro”. Tinham relações sexuais de cópula completa (vaginal) com preservativo (“camisita”).

Na primeira vez, a ofendida com voz visivelmente envergonhada e trémula, refere que foi despida pelo arguido, deitada por aquele que em “cima de si” introduziu o pénis.

O arguido perguntou (e perguntava) se doía “que ele parava”, ao que a ofendida respondia negativamente, descrevendo o ato com duração de cerca de 10 minutos e “devagarinho”. Naquela altura, “foi só ali”, querendo com isto referir-se à cópula (vaginal), pois a partir das férias de “...” o arguido iniciou relações de coito anal.

Este episódio aconteceu após uma festa em casa do arguido, quando a ofendida ficou a pernoitar sozinha noutro quarto da casa. O arguido “como não tinha camisita introduziu na parte anal. Estava deitada de barriga para cima e em cima de mim”.

Não consegue concretizar quantas vezes, desde 2018, o arguido manteve relações sexuais consigo de cópula completa, mas seria, pelo menos, uma vez por mês, tendo o arguido referido que seria preferível a ofendida mudar para a escola ..., “que era mais fácil” para aquela.

Existiram atos sexuais em que a filha do arguido, FF, estava na sala, e aquele levava a ofendida para “cima”, estando a mulher daquele a trabalhar.

Para além deste envolvimento sexual, trocavam mensagens pelo wathaspp que segundo instruções do arguido eram apagadas de seguida avisando-o quando estaria “com o período” já que “se estivesse com ele fazia relação sexual comigo de uma maneira”.

A última relação sexual ocorreu em dezembro de 2019, julga que uma terça-feira e perto da escola, tendo esta que “se esconder dentro do carro” - cerca de um mês antes da detenção do arguido, conforme resulta do confronto com o auto de inquirição em 1º interrogatório.

Um dia, o preservativo rompeu-se e o arguido ordenou-lhe que se fosse “limpar e levou à escola” mencionando que teria de “ir a um doutor para perguntar pilula seguinte”.

De todo o modo, avisou-a que caso engravidasse dissesse “que não é dele, é de um namorado qualquer que não sei quem é”.

A ofendida respondeu-lhe que não conseguia ir ao médico como sugerido e ao chegar a casa depois da escola enviou-lhe mensagem para confirmar.

Embora não tenha concretizado o dia, dos autos resulta que o arguido se deslocou a uma farmácia para comprar pílula do dia seguinte, cujos fotogramas foram confirmados pelo farmacêutico. Não subsistem dúvidas, nem mesmo quando o recibo apresenta identificação de terceira pessoa, pois segundo o farmacêutico estaria aquela ficha aberta no sistema aquando da compra, potenciando este manifesto lapso. O arguido não solicitou emissão de fatura.

Ainda que referindo-se a factos não constantes da matéria provada, porque investigados em separado no âmbito de outro inquérito - separação de processos -, a ofendida mencionou a existência de vídeos em que esta e o arguido figuravam sozinhos e enviavam um ao outro conforme instruções daquele. Naqueles vídeos a ofendida teria de reproduzir outros vídeos de “meninas a tocar-se próprias”, reencaminhados de vídeos enviados por amigos do arguido. Este também enviava vídeos seus a masturbar-se.

Como supramencionado, o email criado para este visionamento de ficheiros foi descoberto pela mãe da ofendida. Naquele momento, a ofendida não admitiu os factos, mas posteriormente, mesmo assumindo-os, clarificou que o arguido “não a aleijou”.

Questionada sobre os seus sentimentos, a ofendida, pelo menos no momento das declarações, pelas suas palavras referiu: “comecei a gostar dele e não do HH. Ele também pergunta se gosto de alguém e relação sexual com ele. Ele dizia que nunca vou fazer isto com meninos da minha idade e que se eu fizer com eles a minha mãe fica zangada comigo e eu ia destruir meu futuro”.

A simplicidade do discurso da ofendida é demonstrativa da inocência, desgosto, vergonha e das consequências gravíssimas a nível do seu desenvolvimento emocional /sexual ao reconhecer que o arguido “fez mal”, que os pais lhe dizem que “está sempre a defendê-lo”.

O contexto de vida humilde e as debilidades económicas vividas pela ofendida no seu agregado familiar eram diametralmente opostos ao do arguido, como o próprio fez questão de evidenciar durante todo o julgamento, quase como se as suas atitudes “altruístas” para com os pais fossem de molde a diminuir a ilicitude dos seus atos.

A ofendida declarou que o arguido não era seu namorado porque “ele tinha mulher”, percorrendo nas suas declarações uma disfuncional descrição do que deverá ser o normal percurso do desenvolvimento sexual em tenra idade (12 anos, à data, relembre-se!!).

O arguido era pessoa em quem a ofendida confiava, de tal modo que não equacionou nem contrariou os intentos libidinosos e o modo ardiloso, despudorado e repugnante, por não ter maturidade para isso, sendo facilmente manipulável por aquele.

Exemplo disso é o facto de ter referido que o mesmo decidiu depilá-la, mas que terá “cortado um bocadinho só”, para que a mulher dele não se apercebesse quando supervisionava o banho da ofendida e da filha de ambos. Um comportamento cirúrgico e calculado do arguido, em contraposição à fragilidade da ofendida.

Finalmente, quanto ao contexto da relação familiar entre a sua família e a do arguido, a ofendida refere que, quando esta situação foi descoberta, a sua mãe e a mulher do arguido, fruto de uma discussão, já não conviviam, embora o arguido e esta mantivessem os contactos nos termos supra referidos.

É consabido que a factualidade em causa, que é de ordem psicológica - ainda que também normativa -, se afigura de difícil objetivação em termos de racionalidade do processo de apreensão da realidade. Todavia, a convicção alcançada resulta de uma análise global do comportamento do arguido, tendo em conta as regras da normalidade do acontecer.

Com efeito, atenta a relação de proximidade intercedente entre arguido e ofendida, o primeiro conhecia necessariamente a idade da segunda, tendo noção que uma criança com não mais de doze anos não apresenta maturidade suficiente para levar a cabo atos de natureza sexual, os quais, até porque praticados por uma figura de referência da então menor, não poderão deixar de prejudicar o seu bem-estar em sentido amplo (“valoração paralela na esfera do leigo”).

Por outra banda, não se alcança outro móbil de atuação do arguido que não o que se reconduz à obtenção de satisfação sexual da sua parte. Sabia o arguido que tais condutas lhe estão penalmente vedadas, tanto mais que estamos no domínio do apodado “direito penal de justiça” e este exercia funções como ... de segurança pública, com responsabilidades acrescidas perante a comunidade, contrariando os ensinamentos daquele órgão de ....

Como se verifica pela concatenação dos depoimentos de ambos, principalmente no da ofendida (inexistem dúvidas fundamentadas que apontem para outro sentido que não pela prova dos factos aludidos no douto libelo acusatório, designadamente no que tange à existência dos vários abusos sexuais, a sua gravidade e as suas consequências (acentuadas a um nível psicológico) para a ofendida.

Não existindo quaisquer motivos para que o testemunho de uma criança, só por este facto, seja de menor importância do que o de um adulto, como bem ilustra Catarina Ribeiro no seu estudo, «A Criança na Justiça - Trajetórias e Significados do Processo Judicial de Crianças Vítimas de Abuso Sexual Intrafamiliar», Almedina, maio 2009, onde se escreve que «no que diz respeito às noções de verdade e mentira, todas as crianças enfatizam a importância de dizer a verdade em tribunal. A grande maioria delas acredita que pode ir presa se não disser a verdade no tribunal. Este dado é interessante porque, devido a este medo, tendencialmente a criança terá menos tendência a mentir do que o adulto (Flin et al., 1989). Algumas das crianças do grupo dos 10 anos também reconhece a importância de dizer a verdade para encontrar os verdadeiros culpados ou para ajudar a ... e o Juiz a decidir» (página 98), que «(…) algumas investigações demonstram que as crianças não têm tendência a mentir (a situação em que a mentira é mais frequente nas crianças tem a ver com o evitamento do castigo e não com uma atitude de mentira deliberada) e, mais do que isso, não têm tendência a mentir mais do que os adultos (Melton e Pagliocca, 1992)» (página 115) e que, «contrariamente à ideia amplamente difundida de que a criança revela menos capacidade para testemunhar do que os adultos, os dados da investigação têm vindo a demonstrar que as crianças revelam elevadas competências testemunhais e comunicacionais, bem como uma capacidade de discernimento superior à que frequentemente lhes é atribuída.

Relativamente à questão da capacidade de discernimento entre a verdade e a mentira, os estudos revelam que esta capacidade é adquirida muito precocemente, geralmente a partir dos 4 anos as crianças conseguem perceber esta diferença (Chenevière et al., 1997; Halpérin. 1997)».

Valorizamos e credibilizamos, por isso, as declarações em causa, pela sua segurança, clarividência e espontaneidade, considerando-as como credíveis, por oposição às falaciosas, incoerentes e injustificáveis declarações do arguido, que parcialmente confessou os factos sempre com várias reservas.

O arguido classificou a factualidade constante da acusação como “grande argolada” e manifestou sempre preocupação com o futuro do seu casamento (“eu gosto da minha mulher; enamorei-me pela miúda”) e com a sua filha (“a minha filha não merece isto”).

Aliás, em 1º interrogatório, questionado sobre o estado choroso, respondeu que não chorava porque tinha sido descoberto, mas porque “tinha vergonha”, o que, mais uma vez, mesmo repetindo que “ia parar”, não é consentâneo com “nova dinâmica” de comportamento do mesmo, poucas semanas antes da sua detenção (dezembro de 2019 - envio de vídeos ao arguido com a ofendida a masturbar-se, a pedido e com sugestões daquele -, matéria que está a ser apreciada no âmbito de outro inquérito).

O arguido referiu-se a um acompanhamento psicológico por força do seu comportamento, que inicia uma semana antes de ser detido, após ter conversado com a esposa alertando-a que “isto não estava bem…”.

A esposa, apesar de ter negado em audiência, foi informada pelo arguido da existência de contactos entre este e a ofendida, “mas não diretamente” (palavras do próprio), pois contou que “andavam a enviar mensagens um ao outro. Ela reagiu mal. Eu não disse mais nada”.

No que tange à idade da ofendida - reiterando de sobremaneira a confissão do arguido em sede de 1º interrogatório -, o relatório pericial veio a concluir: “usando o conceito de idade mínima, descrito por Schmeling et al, as idades mínimas são 13,36, 15,4 e 17,6 anos, respetivamente. A maior idade mínima (17 anos) determina a idade mínima do sujeito. De acordo com isso: presumimos que o sujeito ainda não atingiu a idade de 18 anos; - A idade mínima avaliada (17 anos) está acima da idade declarada (15 anos), portanto a idade informada não é compatível com os achados; - A idade mais provável da pessoa a ser examinada, de acordo com a idade mediana relevante de ossificação de estágio 2b das clavículas mediais, é 17 anos”.

Uma leitura menos atenta permite gerar equívocos, pois, tendo como data orientadora aquela constante da certidão de nascimento - 07.10.2005 -, a ofendida, no presente ano, terá 16 anos (4 meses distam entre a celebração e o resultado do relatório) ou 17, considerando o teor do relatório.

O arguido - frise-se - sempre reconheceu a idade declarada (!).

De todo modo, nos termos do artigo 163º do CPP, embora se presuma que o seu teor afasta a livre apreciação do julgador, não podemos deixar de tecer alguns reparos à perícia (nº 2).

Com efeito, o cálculo da idade reflete operação matemática com singelas três variáveis, a saber, exame radiográfico da mão esquerda, exame odontológico e exame tomográfico clavícula.

Esta operação atribui “idades” a determinadas partes do corpo, sendo, in casu, a clavícula que apresentou classificação de 17,6, a mão esquerda, por exemplo, reflete em termos radiográficos estrutura óssea compatível com idade muito inferior aos 16 anos: 13,36 anos.

A conclusão refere que a idade informada não é compatível com os achados, mas, efetivamente, tão só o exame tomográfico da clavícula não o é!!

Com todo o respeito pelo INML - que é MUITO -, a conclusão gera consistentes hesitações em valorar o resultado.

Se pesquisarmos algumas teses sobre metodologia de estimativa de idade, verificamos, por exemplo, que se entende por mais segura a idade resultante da análise dentária: “para os indivíduos não adultos o processo de desenvolvimento dentário é o que apresenta melhor correlação com a idade (Ubelaker, 1990)” – infra.

Veja-se que, no exame odontológico, a idade indicada é 15,6.

Transcrevendo o citado Schmeling et al (2007) - conceito de idade mínima - , “Método” será “a transformação das descobertas de um processo ontogénico para uma escala cronológica” – vide Metodologia da estimativa da idade à morte por Clavicula, Uma abordagem Bayesiana - Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra para obtenção do grau de Mestre em Medicina Legal e Ciências Forenses por Ricardo Filipe Mendes Belo Vicente, Tese de Mestrado em Medicina Legal e Ciências Forenses, Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Setembro de 2012.

https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31997/1/Tese%20-%20Ricardo%20Vicente.pdf

Nesta descoberta, de forma a fundamentar a convicção deste Coletivo, importa fixar um aspeto muito importante, que passamos a transcrever: “existe um tipo de erro que será certamente muito mais difícil (se possível) de corrigir e que está inerente ao próprio indivíduo. Este erro é a diferença entre a idade cronológica e a idade biológica. De facto, esta diferença é crucial para a correta compreensão desta temática. Por idade cronológica compreende-se o tempo decorrido desde o nascimento do indivíduo até um determinado dia; por sua vez, a idade biológica é uma idade estimada através de um conjunto de indicadores ósseos e/ou dentários que se alteram ao longo do tempo e têm por isso uma maior ou menor correlação (dependendo do indicador) com a idade cronológica. No entanto, esta relação não é simples, uma vez que os indicadores de idade refletem sempre uma adaptação contínua dos ossos a stresses biomecânicos, metabolismo, crescimento, remodelações e a doença (Nawrocki, 2010). A ideia geral de que constrições biomecânicas influenciam a estrutura óssea é comummente referida como “Lei de Wolff” (Ruff, 2008). É por isto de esperar que, dois indivíduos com uma idade cronológica precisamente igual tenham uma idade biológica diferente, basta para isso que tenham estado sujeitos durante as suas vidas a pressões biomecânicas e/ou a contextos socioeconómicos e/ou culturais distintos, o que é praticamente inevitável que aconteça, mesmo em ambientes muito semelhantes. Isto acontece porque à medida que o tempo passa alterações biomecânicas e fisiológicas vão sendo acumuladas de uma forma que não é regular ao longo da vida e que está dependente de inúmeras variáveis. Uma simples analogia com o que acontece com um lápis ao longo do tempo consegue clarificar esta relação entre alterações nos indicadores ósseos e/ou dentários e idade cronológica. Sendo que o lápis, desde o início da sua utilização, vai diminuindo de tamanho com o tempo, pode dizer-se que o tempo “causa” uma diminuição do tamanho do lápis. O problema com este raciocínio é que se comprarmos o lápis e não o utilizarmos durante um ano, este vai ficar precisamente do mesmo tamanho, apesar do tempo passar. Neste caso, o tempo é irrelevante para a diminuição do tamanho quando comparado com os reais fatores que fazem com que o lápis se gaste, como a pressão exercida na sua utilização, a textura das superfícies em que é utilizado, etc. O que acontece é que estes fatores são claramente mais difíceis de medir e quantificar do que o passar do tempo (a idade cronológica do lápis) e, neste sentido, a idade torna-se num substituto mais simples (uma variável proxy) dos complexos fatores que na realidade provocam alterações e cujos efeitos se acumulam apenas de forma secundária com o passar do tempo. (…) Uma maior variabilidade no processo biológico de envelhecimento produz efeitos na estimativa da idade (…) (Baccino & Schmitt, 2006), fazendo com que a diferença entre a idade cronológica - que se pretende estimar - e a idade biológica - a estimada - seja maior, ou seja, o erro na estimativa vai ser maior”.

Os esclarecimentos céleres e objetivos do IML referem expressamente, e passamos a citar:

“Em jeito de conclusão e abordando as conclusões vertidas no anterior relatório, importa referir que o conceito de idade mínima é probabilístico, significando que a idade mínima mais provável da examinanda, à luz dos estudos utilizados, é 17 anos [acima da idade referida pela examinanda]. Esta maior probabilidade não significa, porém, a impossibilidade de a examinanda poder ter 15 anos, como refere.

Ora, como é bom de ver, a perícia ressalta o intervalo probabilístico, operando um cálculo de média de idade, considerando que “(…) a ossificação da clavícula corresponde a um processo que se desenrola ao longo do tempo, sendo possível através de métodos como o de Kellinghaus et al estabelecer intervalos a partir dos 10 anos de idade. Neste caso, considerou-se que a idade óssea clavicular correspondia a um intervalo etário entre os 15,4 e os 19,3 anos de idade, com uma mediana de 17,8 anos”.

A característica mais valiosa de um juiz concretiza-se, sobretudo, na sensatez judicial; com efeito, é, principalmente, nesse reduto, da sindérese e da judiciosidade, que um juiz se distingue - por tal razão, tal atributo deve conformar, imperativamente, a sua atividade.

Encerramos, neste particular, a motivação de facto quanto à convicção positiva sobre a idade da ofendida, especificando, na matéria provada, esta dicotomia, que de sobremaneira nos parece consentânea com os dados científicos acima descritos e o relatório.

BB, mãe da ofendida prestou um testemunho de forma escorreita, singela, revelando o seu percurso de vida desde o nascimento da filha, marcado pelos parcos rendimentos e condição humilde. O pai da sua filha nunca a reconheceu, porque a mesma não nasceu no âmbito de um matrimónio, e apenas fez o registo de nascimento daquela tardiamente, na presença da parteira. Esta circunstância, embora cause estranheza num universo europeu, é comum no país de onde são oriundas (...), bastando tal convicção positiva pela consulta do site oficial para o efeito disponibilizado pela Embaixada em Portugal.

Diga-se, neste particular, que a Embaixada obstaculizou pedidos do Tribunal, órgão de soberania, fazendo tábua rasa de um pedido oficial com caracter de urgência. Situação lamentável, que só não inviabilizou a obtenção de certidão de nascimento como requerido pelo arguido porque foi novamente solicitada por esta testemunha, já que, segundo a Embaixada, os Tribunais Portugueses não têm legitimidade (!).

Subtraída esta questão, volvendo ao testemunho da mãe da ofendida, foi este importante para perceber a forma como a família da mesma conheceu o arguido, por intermédio de 3ª pessoa, amigo do arguido que tomou conhecimento da nacionalidade comum da mulher deste e da testemunha.

Confirmou o facto de o arguido ter sido figura importante na vida do seu agregado familiar, pois não só a ajudou a encontrar emprego como lhe entregou “coisas para casa”, sorrindo ao explicar que a sua filha e a filha do arguido se tornaram grandes amigas.

Neste contexto de profunda amizade, a filha começou por passar férias com o arguido e restante família para, posteriormente, pernoitar muitas vezes em casa daquele, ao ponto de, em 2018, por notar que a filha estaria mais respondona e malcriada, a ter proibido de a frequentar. Nesse contexto, isolava-se dos amigos e família, frequentando em exclusivo a casa do arguido.

Refere que a filha foi matriculada na escola quando se fixaram em Portugal e que, em 2019, transitou para a escola ..., nunca tendo suspeitado, até 20 de dezembro de 2019, que a filha mantinha relações sexuais com o arguido. Antes desta data, esta testemunha e marido (DD) tinham já terminado a relação de proximidade com arguido e esposa.

Emocionada, relatou o dia em que tomou conhecimento do vídeo onde figurava a sua filha e que se destinava ao arguido e, mesmo tendo-lhe retirado o telemóvel, o arguido continuava a enviar sms´s à sua filha.

Foi o seu marido, padrasto da ofendida e interlocutor por excelência com o arguido (a ofendida refere-se ao mesmo como pai nas suas declarações), que enviou sms´s àquele, após a fatídica descoberta, tendo inclusive respondido às sucessivas mensagens com “sou a mãe da CC”. O arguido respondeu com “ok. Já não vou incomodar a vossa filha”.

DD é padrasto da ofendida.

Descreveu a forma como conheceu o arguido, em 2017, tendo a sua mulher, BB, estabelecido laços de amizade com a mulher daquele. Tinham um amigo em comum que os apresentou.

Viviam em ... e progressivamente foram conquistando melhores condições de vida daquelas que usufruíam nas .... O arguido ajudou-os a encontrar alternativas e na obtenção de atestado de residência para obter NIF e apresentar junto da “delegação” (SEF).

Esta testemunha e sua mulher, mãe da ofendida, são trabalhadores e começaram “do zero” quando o patrão daquela lhes disse que caso recuperassem uma casa que incendiou em 2003 lá poderiam ficar a viver, o que aconteceu. O patrão da sua mulher é amigo do arguido.

Desgostou ser alvo de questões sobre outras ajudas (v.g. alimentares) por parte do arguido e família, afirmando que nunca precisou de caridade e nunca o arguido lhe emprestou um carro, factos que o arguido se debateu com algum pormenor em sede de audiência. Como mencionámos, é totalmente irrelevante. Esta testemunha explicou que, ao invés, retirou de um carro seu um motor para instalar num carro do arguido.

A sua filha começou a pernoitar em casa do arguido e, em 2018, o arguido convidou-a para os acompanhar numas férias ao ..., o que acederam.

Explicou que tomou conhecimento do que se veio a desenrolar neste processo através de uma mensagem enviada pela sua enteada, a ofendida (sempre a designou como filha em audiência), que foi inadvertidamente recebida pela sua mulher.

Recorda-se de ter sido em 11 de dezembro de 2019, e admite que tenha sido o arguido quem pediu à ofendida para enviar o aludido vídeo, identificando o email.

Quando confrontou a ofendida, esta “começou a chorar”, tendo, na altura, dito que o arguido “não tinha feito mal”, ficando profundamente envergonhada e chocada.

Por causa do sucedido enviou sms ao arguido alertando que estaria “tudo revelado. Nós já sabemos o que aconteceu”, sugerindo que este falasse com a sua mulher.

O arguido respondeu-lhe com uma questão: “você sabe o que fez?”. Mostrou-se revoltado, pois o arguido era ... e devia “cumprir a lei e não violá-la”.

Com a distância temporal devida, entende agora por que razão a sua “filha”, a partir de uma determinada altura, mudou o seu comportamento para pior, nomeadamente com agressividade nas palavras. A filha dizia que o arguido era “mais divertido” do que ele.

Pesquisou inclusive no Google esta situação, embora associando à sua adolescência, jamais suspeitando que estivesse relacionado com os factos praticados pelo arguido.

Aliás, reconhece que o arguido o contactou em junho de 2019. Aproveitou para perceber porque aquele enviava sms’s e telefonava diretamente à sua “filha”, “sem passar pelos pais”, comportamento inadequado “para um homem de 49 anos”. Alertou-o que a filha tinha 13 anos. O arguido respondeu-lhe “como te atreves a acusar-me de abusar da tua filha?”.

Esta testemunha refere nunca o ter acusado de abuso e o arguido manteve os mesmos propósitos ao convidar para jantar e para brincar com a filha daquele. Apesar deste reparo, nunca percecionaram nada de “errado”, não desconfiando de quem consideravam “amigo” e em quem depositavam “100% de confiança”, já que era ... e a sua mulher também oriunda das ... (país de origem da sua mulher e “filha”).

De tal forma que, quando o arguido se ofereceu para ir buscar a “filha” à escola, acedeu sem hesitações. O arguido auxiliou-os quando precisaram de mudar a filha para a escola .... Também ajudou o arguido realizando pequenas obras na casa deste, sem lhe cobrar.

A mesma andava infeliz, porque na escola ... (a anterior matrícula) tinha os seus amigos e a professora de quem gostava muito, tendo regressado em setembro de 2019.

Após conhecimento do vídeo nunca mais permitiram que a filha contactasse o arguido (“este homem”), porque “a mantiveram em casa”.

A sua filha chorava constantemente com medo de que os amigos descobrissem o que tinha acontecido.

Refere que a filha está a ser acompanhada em psiquiatria, retomando aos poucos “a ser a pessoa que era”, mais próxima de si e da mãe. Às vezes faz referência assustada que sonha que o arguido se cruza com ela na rua.

Foi uma testemunha credível, clara e concisa, importante para cimentar o contexto de vida em que ocorreram os factos e as consequências na esfera pessoal e emocional da ofendida.

II, declarou ser amigo do arguido desde a infância, embora com menos proximidade na atualidade.

Relatou que os seus filhos sempre brincaram juntos, tendo oportunidade de conhecer a ofendida e o seu padrasto em 2018, estando juntos no ... e na ....

No ..., “circulavam entre casas”, recordando-se da ofendida com 13 anos, “precisamente igual à filha deste”, comunicando ambas em inglês, língua que a ofendida e sua filha dominavam.

Não notou qualquer diferença de comportamento na ofendida que fizesse crer ter idade superior a 13 anos, contrariamente à sua filha, com compleição física muito superior, pois é descendente de mãe holandesa.

A ofendida contactava os pais, pedindo autorização para se deslocar, se “iam para os cavalos”, fazendo referência aos dias na ....

Algumas vezes cruzou-se com a ofendida na localidade, acompanhada dos pais, após 2018, percebendo, sem conhecer a razão, que esta nem sequer respondia a um simples “bom dia” ou “boa tarde”, mostrando-se muito reservada e pouco sociável.

Quanto aos factos refere que, efetivamente, são muito comentados na localidade, na sua maioria mencionando o arguido: “agora sou amigo do pedófilo”, “é um inferno, isto não é um filme bonito”.

Finalmente, sempre de forma escorreita, espontânea e credível, descreveu a ofendida como “um rapazola pequenito”, evidenciando a sua figura pouco feminina, de reduzida estatura e franzina.

JJ é funcionário na farmácia onde o arguido se dirigiu para adquirir a pilula do dia seguinte. Confirmou as circunstâncias de tempo e lugar, não se recordando em pormenor do diálogo encetado, mas reconhecendo o arguido pois “é…”. Os pais do arguido são clientes daquela farmácia, sendo a primeira vez, em três anos, que aquele ali se desloca.

Como o arguido não pediu recibo, o registo da compra ficou em nome de terceira pessoa cuja ficha estaria aberta naquele momento.

Foi claro e credível.

KK é farmacêutica e, no essencial, embora sem ter contactado com o arguido nas circunstâncias de tempo e lugar do vídeo de vigilância da farmácia (junto aos autos), confirmou o recibo emitido por força de relacionar a hora e dia da aquisição da pílula do dia seguinte, em nome de GG.

O seu testemunho tem pouco relevo, uma vez que o farmacêutico que atendeu o arguido e vendeu a aludida pílula do dia seguinte confirmou sem reticências o ocorrido.

LL é entidade empregadora da mãe da ofendida, BB.

Referiu que o arguido, na qualidade de seu amigo, sugeriu a contratação da mãe da ofendida, o que anuiu após entrevista com “administrativo”, e desde Verão de 2018 esta trabalha no seu restaurante.

Recorda-se que o padrasto da ofendida estava indignado porque o arguido enviava mensagens e telefonava diretamente àquela, circunstanciando este desabafo nos finais de 2019. Nessa altura proibira de frequentar a casa daquele.

Acrescentou que, no dia em que o padrasto descobriu o vídeo (21.12.2019), o mesmo foi ter consigo a tremer e mostrou-lhe. Aconselhou-o a fazer queixa na ....

No vídeo era visível a ofendida, deitada na cama, a masturbar-se remetido para um email com dizeres ....

Depois do sucedido, nota a família destroçada e a “miúda com algum desequilíbrio”, revoltada, triste, tendo sido inclusive vítima de bullyng na escola por força do que aconteceu. Os pais procuraram apoio psicológico e psiquiátrico.

Descreve a ofendida como tendo um comportamento “infantil”, mais “infantil do que tinha”, e a família da mesma como “gente de bem, trabalhadora”.

Apesar de nem sempre estar na ..., esta família vive perto de sua casa e com eles contacta quando ali se desloca, até pela relação profissional que o une à mãe da ofendida.

Quanto aos rendimentos do agregado apenas confirma o vencimento da mãe da ofendida que corresponde ao ordenado mínimo nacional.

Foi uma testemunha credível, clara e espontânea, com testemunho inabalável quanto aos factos que relevam para a nossa convicção positiva sobre o estado da ofendida, não existindo interesse, como pretendido pelo arguido, em aferir as condições de eventual contrato de arrendamento entre esta testemunha e a mãe da ofendida.

MM conhece os pais da ofendida e a mesma, com especial incidência para o padrasto daquela (há 22 anos, segundo declarou).

O seu primeiro contacto com o padrasto da ofendida esteve relacionado com prestação de serviços por parte daquele e, desde então, ficaram amigos.

Em 2016 ausentou-se e regressou “com esta família, muito orgulhoso, apresentou a família”, ficando surpreendida com a sua atitude.

“Achou graça à miúda” quando a conheceu nos almoços, a que estes compareciam na casa desta testemunha, referindo-se à ofendida a quem chamam de “iéié”.

Nunca teve qualquer proximidade ou relacionamento com o arguido, transmitindo as preocupações da mãe da ofendida, em 2018, já que constatava que a filha estava sempre “no telemóvel e em casa de uma amiga”.

Confidenciava-lhe que a filha estava agressiva, tendo esta testemunha relativizado e tranquilizado a mãe daquela com a hipótese de ter “um namorado na escola”.

Constatou as mudanças assinaladas pela mãe da ofendida: a ofendida estava “a querer ser o que não era”, chegando mesmo a alertar a mãe para lhe dar mais atenção, o que, no seu entender, não estaria a acontecer.

A ofendida era mal-educada com os pais e, face à descoberta dos factos constantes da acusação, levou estes a pedirem intervenção desta testemunha.

A ofendida revelou muita confusão emocional e medo de que a escola e a comunidade soubessem do sucedido. Estava pouco alegre, embora com consciência da gravidade.

Quanto à situação económica do agregado, tem conhecimento que o padrasto da ofendida recebe uma reforma e, mesmo não dispondo de muitos rendimentos, nunca aceita ofertas, “quer sempre pagar”.

 Esta testemunha não aceita porque “ele faz biscastes, coisas, e nunca quer que lhe pague”, confirmando, como o próprio o fez, o seu comportamento altruísta em ajudar os amigos.

O seu testemunho incidiu com mais precisão no carácter do padrasto, que reputa como pessoa trabalhadora e responsável, que “tomou esta miúda e a mãe mesmo a sério. Tem genuína preocupação com a miúda”.

Terminou enfatizando que a ofendida, por força destes factos, se sente confusa, diminuída e envergonhada, como, aliás, decorre das suas declarações para memória futura.

EE é mulher do arguido.

Notoriamente com um aspeto físico e indumentária diametralmente opostos da mãe da ofendida (humilde, sofrida e modestamente vestida), prestou um testemunho pouco isento.

Relativamente aos factos imputados ao arguido, manifestou uma surpreendente aflição, não com os alegados abusos na pessoa da ofendida, mas na eventualidade de o arguido ter praticado idênticos atos com a filha de ambos.

Esclarecidas as suas dúvidas, manifestou profundo desprezo para com a ofendida e respetiva família, descrevendo a forma como o arguido sempre os apoiou e ajudou.

Refere que a ofendida não recebia cuidados suficientes por parte dos pais, porque estavam sempre a trabalhar e “deixavam-na no café todo o dia por causa da internet”. Esta aparente compaixão pela ofendida era partilhada pelo seu marido, porque “viviam na pobreza, sem ter nada”, o que, contrariamente ao pretendido por esta testemunha, só agrava o comportamento do arguido.

Confirma que, no Verão de 2017, esteve dois meses a viver “lá em casa”, tendo a convicção (que não justificou!) que, neste ano de 2021, fará 18 anos.

Uma afirmação conveniente e ensaiada, como foi em relação à alteração da certidão de nascimento da ofendida por parte da mãe desta, facto que nunca contou ao arguido ou rigorosamente a mais ninguém, a não ser quando o mesmo é acusado da prática de abuso sexual na pessoa da então melhor amiga da sua filha.

Com efeito, como se referiu, em sede do testemunho de BB, a postura desta testemunha foi sempre consentânea com os interesses da defesa do arguido, fazendo tábua rasa da gravidade dos atos do seu marido, certamente pelo afeto que nutre por este.

O seu testemunho foi direcionado no sentido de a ofendida ter idade superior àquela que os pais e a própria lhe transmitiram, facto que não negou nem nunca questionou até à detenção do arguido.

Pouco credível, foi relevante, porém, para motivar a nossa convicção positiva sobre a ascendência, proximidade e confiança que a ofendida depositava no arguido e seu agregado.

NN, conhece o arguido por força dos laços de amizade que a unem à mulher daquele.

Na esteira do referido pelo arguido e pela esposa daquele, teceu considerações sobre a emissão de certidões e/ou registos no país de origem - ..., apelando à necessidade de apostilha para validar o seu teor.

Não sendo entidade competente para esclarecer este facto e estando a certidão de nascimento junta aos autos, apostilhada pela Embaixada, neste particular não mereceu relevância.

Desconhecia a idade da ofendida quando a conheceu, em 2017/2018, descrevendo o arguido como pessoa simpática, boa pessoa, que “ajuda sempre”, características que não foram postas em causa nem mesmo pelos pais da ofendida.

O seu testemunho não foi relevante, até porque apenas privou com a ofendida duas vezes em casa do arguido e num contexto de reunião de amigos.

OO conhece o arguido há 4 anos e descreve-o como bom profissional, bom colega, que “se dava bem com todas as pessoas, sempre sorridente e bem-disposto”.

Esta situação “surpreendeu-nos”, como afirmou, mas não deixou de manter relacionamento com o arguido, nem deixará seja qual for o resultado.

O seu testemunho confirma a integração social, como aliás resulta do relatório social.

PP é amiga de infância do arguido e relatou conversas entre ambos, referindo que este lhe terá dito que “tinha feito um grande disparate”.

O “disparate” foi censurado por esta, que até lhe desferiu uma bofetada. Refere que frequentava a casa do arguido em 2017, 2018, com alguma frequência, também com seus filhos de 11 e 17 anos.

Descreve a ofendida como “mais desenvolvida”, contrariamente a todas as testemunhas anteriormente ouvidas e, bem assim, ao que se pode ler no relatório sobre a sua estatura (1,56m e 43 kgs).

A ofendida seria “mais desenvolvida” porque “fazia poses diferentes nas fotografias” e “queria ficar no sofá com telemóveis”, “quando não estava a brincar com outras crianças”.

Uma justificação pouco plausível.

Acrescentou que a ofendida era “depositada em casa do arguido”, principalmente no Verão: “os pais não ligavam”.

Ora, se é certo que pretendeu criticar o comportamento dos pais da ofendida, também foi notório que aquela ficava à responsabilidade e cuidados do arguido e mulher por largos períodos, assumindo estes um papel muito semelhante aos seus pais.

QQ conhece o arguido e mulher desde 2016 e costumava frequentar a casa deste.

De todas as testemunhas indicadas pelo arguido foi a única que testemunhou de forma credível.

Evidenciou factos não só sobre o comportamento da ofendida, já que para si “estaria a ficar uma mulherzinha”, alertando a mãe daquela para “estar atenta”, como mencionou, espontaneamente, que a ofendida nem parecia ter 10 anos, de tão franzina e pequena (usou a expressão em inglês, cuja tradução livre - “tiny little girl” - nos propusemos nesta motivação).

Foi credível, clara e espontânea.

RR é amigo de infância do arguido.

Descreveu o arguido como pessoa amiga, confiável, cuja filha brincava com as suas filhas.

SS é irmã do arguido.

Referiu que “as conversas” da ofendida - iéié, como era conhecida - “não eram infantis”, imputando a responsabilidade do ocorrido à mesma, pois, nas suas palavras, com bastante animosidade, refere: “era mais velha 4 anos, caramba! …fazer o que ela fez?”.

Estas considerações foram tecidas mencionando que a ofendida pernoitava muitas vezes em casa do arguido, sendo que, porém, pouca credibilidade foi concedida, já que reside no estrangeiro e desloca-se uma vez por ano a Portugal.

Um testemunho pouco isento e desculpabilizando o comportamento do arguido, seu irmão, “vítima” da ofendida.

No mais, a nossa convicção fundou-se nos seguintes documentos: para além da certidão de nascimento com apostilha da Embaixada; comunicação de notícia de crime de fls. 52 e seguintes; auto de notícia de fls. 48 e seguintes; relatório de Diligências iniciais de fls. 54 e seguintes; ficha de registo automóvel de fls. 71; auto de diligência de fls. 85 e seguintes; auto de apreensão de fls. 97; fatura de fls. 98; auto de apreensão de fls. 99;auto de gravação de fls. 106; auto de visionamento de vídeo de fls. 108 a 125;informação de fls. 209; autos de diligência de fls. 210 e seguintes e 227 e seguintes; relatório de Inspeção Judiciária de fls. 232 e seguintes; auto de apreensão de veículo de fls. 243; relatório de Inspeção Judiciária de fls. 410 e seguintes; auto de apreensão de fls. 425.

Nos factos respeitantes aos resultados das perícias escudamo-nos na leitura do relatório e esclarecimento, conforme aventado supra.

A matéria respeitante ao pedido cível decorre inequivocamente dos testemunhos supramencionados, que, não tendo conhecimento direto dos factos como a própria ofendida, descreveram o impacto daqueles no comportamento da mesma”.

 

*

II. 2. Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; Ac. STJ de 11-09-2019, Proc. n.º 96/18.9GELLE.E1.S1, Relator: Raúl Borges).

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Entende o ora recorrente que o Acórdão recorrido carece de fundamentação bastante, no que concerne à determinação da idade da ofendida, o que revela um manifesto erro na apreciação da prova – neste caso, da prova pericial produzida – impondo, do seu ponto de vista, uma diferente qualificação jurídica dos factos e, em consequência, uma medida concreta da pena inferior àquela que foi determinada pelo Tribunal a quo.

Para tanto alega que a idade da ofendida, à data da prática dos factos, situava-se entre os 14 e os 15 anos, e não entre os 13 e os 14 anos, pelo que não se mostra provado um dos elementos objetivos do tipo legal de crime de “abuso sexual de crianças” (p. e p. pelo artigo 171º do Código de Penal) - prática de ato sexual de relevo com menor de 14 anos -, caindo as condutas do arguido para o cometimento do tipo legal de crime previsto no artigo 173º do mesmo diploma legal (“atos sexuais com adolescentes”), e, consequentemente, sendo a moldura penal abstrata prevista para este crime inferior à prevista para o crime de “abuso sexual de crianças”, tal implica, necessariamente, a aplicação de uma pena única muito inferior à que foi fixada (12 anos de prisão). Conclui que o acórdão recorrido ao decidir da forma como decidiu, incorreu perante um erro na apreciação da prova.

*

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente arguido AA, as questões a decidir dizem respeito:

A - Impugnação da matéria de facto, quando alega que, ao determinar a idade da ofendida entre os 13 (treze) e os 14 (catorze) anos, e contrariamente ao que resulta da perícia médico-legal realizada, sem mais, o Tribunal a quo cometeu manifesto erro de apreciação da prova;

B - Errada qualificação jurídica dos factos, como consequência do invocado erro de apreciação da prova, uma vez que, do seu ponto de vista, tendo sido produzida prova de que a ofendida teria entre 14 (catorze) e 15 (quinze) anos de idade à data da prática dos factos, não poderia o Tribunal recorrido deixar de enquadrar os mesmos no âmbito da previsão do artigo 173.º do C.P, qualificando-os como ato sexual com adolescente;

*

II.3. Compulsado o recurso apresentado, verificamos que o arguido fundamenta-o no entendimento de que a idade da ofendida, à data da prática dos factos, situava-se entre os 14 e os 15 anos, e não entre os 13 e os 14 anos. Nestes termos, não se mostra provado um dos elementos objetivos do tipo legal de crime de “abuso sexual de crianças” (p. e p. pelo artigo 171º do Código de Penal) - prática de ato sexual de relevo com menor de 14 anos -, caindo as condutas do arguido para o cometimento do tipo legal de crime previsto no artigo 173º do mesmo diploma legal (“atos sexuais com adolescentes”), e, consequentemente, sendo a moldura penal abstrata prevista para este crime inferior à prevista para o crime de “abuso sexual de crianças”, tal implica, necessariamente, a aplicação de uma pena única muito inferior à que foi fixada (12 anos de prisão). Concluindo que ao decidir da forma como decidiu, estamos perante um erro na apreciação da prova.

*

II.4. No recurso que o mesmo arguido apresentou da decisão da 1ª instância para o Tribunal da Relação, formulou a mesma questão, suscitando dúvidas sobre a idade da ofendida, com alegação de que não foi produzida qualquer prova pelo Tribunal a quo, que determinasse que à data da prática dos factos a ofendida tivesse entre 14 (catorze) e 15 (quinze) anos, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

A. O douto Acórdão ora recorrido, veio dar como provada a prática pelo arguido de 1 (um) crime de abuso sexual de criança, 20 (vinte) crimes de abuso sexual de criança, e 1 (um) crime de ato sexual com adolescente (p. e p. pelos artigos 170.º, 171.º n.º 3 alínea a), 171.º n.ºs 1 e 2 e n.ºs 1 e 2 do art.º 173.º, todos do Código Penal);

B. Perante as dúvidas sobre a idade da ofendida, não foi produzida qualquer prova pelo Tribunal a quo, que determinasse que à data da prática dos factos a ofendida tivesse entre 14 (catorze) e 15 (quinze) anos - o que lhe competia fazer;

C. Foi, unicamente, apresentado pela ofendida documento elaborado por notário nas ..., anos após o nascimento da ofendida, rasurado e sem aposição da apostilha de Haia - pelo que este documento não tem qualquer validade na ordem jurídica nacional;

D. No entanto, e contrariamente à necessária desconsideração que este documento lhe merecia, o tribunal a quo afirma no douto Acórdão ora recorrido que baseou a sua decisão, também, nessa suposta “(…) certidão de nascimento com apostilha da embaixada”;

E. A requerimento do ora recorrente foi realizado exame pericial por especialista de inquestionada competência e experiência, que produziu relatório certificado pela comunidade científica, que determinava a idade mínima média da ofendida em 17 anos;

F. Assim, contrariamente ao douto Acórdão recorrido, a idade da ofendida à data da prática dos factos situava-se entre os 14 (catorze) e 15 (quinze) anos e não entre 13 (treze) e 14 (catorze) anos;

G. Tendo divergido da perícia realizada, o douto acórdão recorrido não fundamenta devidamente a sua posição, o que legalmente lhe competia;

H. Ao ter determinado exame pericial o tribunal a quo deveria ter ficado vinculado ao seu resultado, o que não fez;

I. Ao determinar a idade da ofendida entre os 13 (treze) e 14 (catorze) anos, contrariamente ao resultado do exame pericial efetuado e sem que fosse contraposto outro exame de valor científico idêntico que fundamentasse a sua posição contrária, o tribunal a quo cometeu manifesto erro de apreciação da prova;

J. Tendo sido requerido pelo ora recorrente a presença do perito que realizou os exames periciais em apreço, no sentido de esclarecer o tribunal, tal foi indeferido pelo tribunal a quo;

K. O tribunal a quo não provou o elemento objetivo do tipo do crime de abuso sexual de criança (p. e p. pelo art.º 171.º do Código de Penal);

L. Ao qualificar os factos em apreço nos autos no âmbito do art.º 171.º do Código Penal - abuso sexual de criança - o Tribunal a quo, na determinação da medida efetiva da pena, ponderou a culpa e ilicitude, bem como as medidas de prevenção geral e especial sempre dentro desta tipologia criminal - ou seja, no âmbito do crime de abuso sexual de criança;

M. O que determinou a aplicação de uma pena única, em cúmulo jurídico, de 12 (doze) anos de prisão e na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e proibição de assumir confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores em conformidade com o preceituado nos artigos 69.º B n.º 2 e 69.º-C n.º 2 ambos do Código Penal;

N. Tendo sido produzida prova pelo recorrente de que a ofendida teria entre 14 (catorze) e 15 (quinze) anos de idade à data dos factos, não poderia o tribunal a quo deixar de enquadrar os mesmos no âmbito da previsão do art.º 173.º do CP, qualificando-os como ato sexual com adolescente;

O. O tribunal a quo, na apreciação da prova efetuada, nomeadamente quanto à desconsideração da prova pericial produzia, em detrimento de documento sem qualquer validade no ordenamento jurídico nacional, baseou-se, unicamente, na sua íntima convicção, e não numa convicção formada por regras de natureza científica;

P. Foi, assim, o Tribunal a quo para além dos limites da livre apreciação da prova, ao invés de ter atendido a critérios de natureza científica e parâmetros de lógica;

Q. Ora, sendo a moldura penal prevista para este crime inferior à que é aplicada ao abuso sexual de criança, naturalmente que a ponderação da culpa e da ilicitude, bem como as medidas de prevenção geral e especial desta tipologia criminal determinariam, consequentemente, uma medida da pena inferior à que foi aplicada ao ora recorrente;

R. Face ao supra exposto o douto Acórdão recorrido violou as seguintes normas do ordenamento jurídico nacional: art.º 127.º e art.º 163.º, n.º 2, do Código de Processo Penal; art.º 71.º do Código Penal; bem como os n.ºs 1 e 2 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa.

*

II.5. Importa referir que o recurso em apreciação é uma repetição do recurso apresentado do Acórdão proferido em primeira instância.

Nos termos do artigo 434.º do CPP, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º (nova redação da Lei n.º 94/2021 de 21 de dezembro - artigo 11.º - que procede à alteração ao Código de Processo Penal). Sendo assim, qualquer alegação relativa à matéria de facto não se enquadra dentro dos poderes de cognição deste Tribunal, pelo que não será conhecida.

Por sua vez, estipula o artº 432º, nº 1 do CPP [com a nova redação às alíneas a) e c) da Lei n.º 94/2021 de 21 de dezembro - artigo 11.º - que procede à alteração ao Código de Processo Penal].

1. Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

Assim, nos termos dos arts. 432.º, n.º 1, al. c), e 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, apenas são recorríveis para este Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos do Tribunal da Relação que, confirmando decisão de 1.ª instância, apliquem pena de prisão superior a 8 anos de prisão.

No presente caso, verifica-se que o acórdão do Tribunal da Relação de Évora confirmou as condenações do arguido, e fundamentou à exaustão a sua decisão, fixou a matéria de facto dada como provada e decidiu a matéria controvertida quanto à idade da ofendida. Na verdade, o Tribunal da Relação analisou e decidiu a questão essencial acima referida colocada pelo recorrente no recurso para o STJ, sendo integralmente confirmado o acórdão da 1ª instância, declarando-se definitivamente fixada a factualidade dada por assente em primeira instância e, em consequência, mantendo-se inalterada a idade da ofendida à data da prática dos factos delitivos em apreço.

Portanto, resulta do acórdão do Tribunal da Relação de Évora sob recurso que existe dupla conforme, isto é, houve um duplo juízo condenatório quanto à questão de facto que a defesa entendeu colocar no seu recurso, o que significa (como sucede neste caso) que a decisão da Relação confirma o acórdão da 1ª instância, não tendo procedido a qualquer alteração da matéria de facto.

Esse juízo confirmativo garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32.º, n.º 1 da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (arts. 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP).

Isto significa, visto o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), apenas podendo ser apreciado quanto à pena única que lhe foi imposta por ser superior a 8 anos de prisão, mas desde que houvesse recurso nessa parte, o que não aconteceu neste caso, uma vez que o recorrente se limitou a pedir pena inferior à que foi aplicada pelo acórdão recorrido, partindo do pressuposto de que ocorreu um erro de apreciação da prova no tocante à idade da menor ofendida, pelo que, sendo tal erro corrigido, as condutas do recorrente seriam enquadradas no âmbito do artigo 173º do Código Penal (“atos sexuais com adolescentes”) e, consequentemente, sendo a moldura penal abstrata prevista para este crime inferior à prevista para o crime de “abuso sexual de crianças”, tal implicaria, necessariamente, a aplicação de uma pena única muito inferior à que foi fixada (12 anos de prisão).

Estamos, assim, limitados no nosso poder de cognição uma vez que este é delimitado pelo âmbito do recurso interposto.

Conclui-se, pois, pela verificação do requisito da dupla conforme exigido pelo disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, impondo-se a irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação, o que constitui um entendimento na linha daquilo que vem sendo a jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal.

E, não sendo admissível o recurso, igualmente não podem ser analisadas todas as questões relativas à parte da decisão irrecorrível — “Como tem sido afirmado na jurisprudência do STJ, estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relativas à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como de questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito.” (ac. do STJ de 14.03.2020, proc. nº 22/08.3JALRA.E1.S1, relator: Cons. Lopes da Mota).

Como se disse, a única questão que podia ver reapreciada no recurso para o STJ era a relativa à medida da pena única que lhe foi imposta, por ser superior a 8 anos de prisão, mas a mesma apenas foi colocada no pressuposto que se procedesse à alteração da matéria de facto, no sentido pretendido pelo recorrente, de que a idade da ofendida, à data da prática dos factos, situava-se entre os 14 e os 15 anos, e não entre os 13 e os 14 anos, o que faria cair as condutas do arguido para o cometimento do tipo legal de crime previsto no artigo 173º do Código penal (“atos sexuais com adolescentes”), e, consequentemente, sendo a moldura penal abstrata prevista para este crime inferior à prevista para o crime de “abuso sexual de crianças”, tal implicaria, necessariamente, a aplicação de uma pena única inferior à que foi fixada (12 anos de prisão).

Não se tendo procedido à alteração da matéria de facto, ou seja, mantendo-se inalterada a idade da ofendida à data da prática dos factos delitivos em apreço, prejudicado fica, por preclusão, o conhecimento da questão da fixação de uma pena de prisão em medida inferior à que foi determinada no acórdão revidendo, apenas podendo ser apreciado o recurso quanto à pena única que lhe foi imposta por ser superior a 8 anos de prisão, desde que houvesse recurso nessa parte, o que não aconteceu neste caso, uma vez que conforme resulta das conclusões que delimitam o objecto do recurso, o recorrente não impugnou a pena única.

Face a tal opção, não pode o Supremo Tribunal de Justiça suprir a omissão, nem há lugar a convite nos termos do artigo 417.º, n.º 3, do CPP, que prevê mecanismo de aperfeiçoamento aplicável apenas às conclusões.

 

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal, face ao disposto nos arts. 420.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.º 2, 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f), todos do CPP.

Custas pelo recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC`s.

Lisboa, 23 de Junho de 2022

Cid Geraldo (Relator)

Leonor Furtado

Eduardo Loureiro (Presidente)