Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5151/06.TBAVR.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
RECUSA DE CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 05/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: ANOTAÇÃO DE SERRA, CATARINA, IN: CADERNOS DE DIREITO PRIVADO, Nº 38,P.58-67, ABRIL / JUNHO DE 2012
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Legislação Nacional: CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS, APROVADO PELO DL Nº 43/2004, DE 18 DE MARRO, ARTIGOS 102º, 106º
CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 220º, 413º, 830º, 875º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 447º, 663º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE
-12 DE JULHO DE 2001, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 01B1778
- 29 DE ABRIL DE 2004, WWW.DGSI.PT , PROC. Nº 08A745
Sumário :
1. O administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa para o promitente-comprador.
2. A inscrição no registo, provisório por natureza, da aquisição feita com base no contrato-promessa de compra e venda não permite ultrapassar a falta dos requisitos legalmente exigidos para a atribuição de eficácia real.
3. Não se verificando os requisitos especialmente previstos pelo artigo 106º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, é aplicável o disposto no artigo 102º à recusa de cumprimento de um contrato-promessa de compra e venda, por parte do administrador da insolvência.
4. Sendo legítima a recusa, tem de improceder o pedido de execução específica do contrato-promessa.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Em 21 de Dezembro de 2006, AA propôs contra BB – Construções, Lda, uma acção na qual pediu (a) a execução específica do contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma identificada nos autos, entre ambas celebrado em 2 de Agosto de 2005, “pelo preço de 65.000,00 €”, “preço integralmente pago à data da assinatura do contrato-promessa”.
Pediu ainda: que os efeitos da compra e venda se produzissem desde 29 de Junho de 2006, “data da inscrição no registo da aquisição provisória por natureza com base no contrato-promessa (…), por conversão em definitiva da inscrição”; que (b) fosse “ordenado o cancelamento de toda e qualquer inscrição registral relativa à fracção (…), feita posteriormente” a esta data; que (c) a ré fosse condenada “a destratar qualquer eventual hipoteca ou penhora” que venha a incidir “sobre o prédio objecto da promessa, ou, caso tal não suceda prévia ou coincidentemente à decretação da transmissão”, do “montante correspondente ao débito garantido e relativo à fracção”, com juros de mora; que a ré fosse condenada (d) a indemnizá-la pelos prejuízos causados, “nomeadamente, despesas e honorários de advogados, em quantia” a liquidar e ainda (e) pelos danos não patrimoniais sofridos, no montante de € 750,00.
A ré contestou. Alegou que o contrato invocado nunca correspondeu a qualquer vontade efectiva das partes, “a autora e o representante da ré, seu ex-marido”, que o assinaram apenas “como um documento de ‘garantia’ para a preparação das partilhas do dissolvido casal”; que nunca foi pago qualquer preço; que o acordo subjacente foi substituído por um “novo acordo particular”, “por volta do mês de Julho de 2006”; que não houve nem há “relação ou vínculo jurídico” ente a ré e a autora. Concluiu no sentido de que o contrato-promessa “deve ser declarado nulo e de nenhum efeito”.
A autora replicou e pediu a condenação da ré como litigante de má fé, em multa e indemnização de € 2.500,00.
Entretanto, foi declarada a insolvência da ré, por sentença de 12 de Dezembro de 2007, transitada em 17 de Janeiro de 2008; e, em 20 de Maio de 2009, o administrador da insolvência veio comunicar expressamente que optava pela recusa de cumprimento do contrato-promessa.
Pela sentença de fls. 248, de 4 de Dezembro de 2009, a acção foi julgada parcialmente procedente. A ré foi condenada “a pagar à autora a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença, a título de indemnização dos prejuízos decorrentes de despesas e honorários de advogados, bem como a quantia de 750,00 €, a título de indemnização por danos morais” e absolvida quanto ao mais.
Para o que agora releva, a sentença considerou não haver prova que sustentasse a invalidade do contrato-promessa, nos termos pretendidos pela ré, e que “nada impediria que se lançasse mão” da “possibilidade de execução específica”; mas concluiu que, no caso, a recusa de cumprimento oposta pelo administrador da insolvência a impossibilitava, uma vez que se encontravam preenchidos os respectivos pressupostos, definidos no artigo 102º do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março).
Em particular, a sentença deu como provado que a autora não pagou “qualquer quantia, a título de sinal ou de pagamento do preço” e como não demonstrado, nem a eficácia real do contrato-promessa, nem a tradição do imóvel.
A autora interpôs recurso; mas a sentença foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 327.

2. A autora recorreu novamente, agora para o Supremo Tribunal da Justiça. O recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito devolutivo.
Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da decisão que considerou improcedentes os pedidos formulados pela A./Recorrente sob as alíneas a), b) e c) do respectivo petitório inicial; tudo por força do entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo no sentido de que era lícito ao Sr. Administrador de Insolvência optar pela recusa do contrato, como optou, inviabilizando, desse modo o pedido principal formulado, ou seja, a execução específica do contrato.
2. O objecto do Recurso consiste pois, em saber, se no caso concreto era ou não admissível pelo Administrador de Insolvência, a recusa de cumprimento do contrato- promessa, em virtude de a promitente vendedora ter sido declarada insolvente após a inscrição no registo da aquisição do imóvel e subsequente propositura da acção a pedir a execução específica com efeitos retroactivos à data daquela inscrição.
(…) 6. Contrariamente ao perfilhado na decisão ora posta em crise, consideramos não estarem reunidos os pressupostos de aplicação do art. 102° do C.I.R.E., (…).
7. Em primeiro lugar, não resulta da matéria provada o não cumprimento total de ambas as partes; resultando apenas dos pontos 1, 4, 5, 6 e 7 que a Ré não cumpriu e dos pontos 9 e 10; que na data de outorga do contrato promessa, a Autora não entregou à Ré, a título de sinal e principio de pagamento ou de pagamento do preço constante da referida cláusula quarta de tal "Contrato" nenhuma quantia (I); tal como não entregou, a qualquer título, nenhuma quantia quer ao seu ex-marido, representante da Ré, quer à sua filha CC, sócia da Ré à data desse contrato ( J)
8. Não resultou provado que a A. não tivesse cumprido as suas obrigações perante a Ré; mas apenas que o que consta dos aludidos pontos 9 e 10.
9. Também o 3° requisito mencionado (inexistência de regime diferente para os negócios especialmente regulados nos artigos seguintes) não se encontra verificado, uma vez que existe e deve, por isso, prevalecer a disciplina contida no art. 106° do C.I.R.E.
10. O mencionado dispositivo regula a matéria relativa ao contrato-­promessa com eficácia real; sendo que o n.º1 respeita ao caso de o insolvente ser o promitente vendedor; (…).
(…) 14. O Tribunal a quo entendeu "não resultar do contrato a atribuição a esta promessa de eficácia real (v. artigo 413º do CC)", razão pela qual, entre o mais, podia o Sr. Administrador de Insolvência optar, como optou, pela recusa do cumprimento do contrato.
15. A matéria dada como assente no ponto 5, a saber, a de que a aquisição feita com base no contrato promessa foi inscrita no registo em 29.06.2006, contraria o precedente entendimento, uma vez que tal inscrição registral atribui à aquisição eficácia contra terceiros, isto é, atribui à promessa eficácia Real;
16. Contra a invocada falta do requisito relativo à posse da coisa, por forma a obstar à aplicação de tal norma, o entendimento preconizado por Luís M.T. Menezes Leitão in "Código da Insolvência", pág. 122, quanto à difícil justificação de tal requisito; entendimento, aliás, subrogado por Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in "Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado", página 400, anotação 4; para o qual se remete expressamente.
17.Face ao exposto, resulta evidente que a atribuição de eficácia real determina a aplicação do preceituado no art. 106° do C.I.R.E., o que significa que a opção de não cumprimento do contrato, manifestada pelo Sr. Administrador de Insolvência (facto provado nº16) é inócua.
18.Em consequência, deve a decisão proferida ser revogada e substituída por outra que, considerando procedentes os pedidos formulados pela A. sob as alíneas a), b) e c), que produza os efeitos da declaração negocial da faltosa, Ré, isto é, que se declare que a Ré vende à A. a fracção autónoma identificada pela letra" S" do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, inscrito no seu todo na matriz sob o art. 926° da freguesia de Glória, concelho de Aveiro, descrito na C. R. Predial de Aveiro sob o n° 0000 da dita freguesia, com o alvará de licença de utilização nº0000, emitido pela C.M. Aveiro em 08.03.2004, pelo preço de 65.000,00 €; retroagindo tais efeitos a 29.06.2006, data da inscrição no registo da aquisição provisória com base no contrato promessa de compra e venda junto aos autos, por conversão em definitiva da inscrição 0000 de 29.06.2006; Ser ordenado o cancelamento de toda e qualquer inscrição registral relativa à fracção em questão, feita posteriormente aquela data de 29/06/2006, por força da sua ineficácia perante a A.;Ser a R. condenada a destratar qualquer eventual hipoteca ou penhora que se venham a verificar impenderem sobre o prédio objecto da promessa, ou, caso tal não suceda prévia ou coincidentemente à decretação da transmissão, ser a R. condenada a pagar à A. o montante correspondente ao débito garantido e relativo à fracção em causa nos autos, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral e efectivo pagamento.
19. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou as disposições contidas nos arts. 413° e 830° do CC e arts. 102° e 106º nº1 do ClRE.”

A ré contra-alegou, concluindo nestes termos:

1. O contrato promessa dos autos embora verse sobre a transmissão de um imóvel foi outorgado num documento particular (item n° 1 dos factos provados do douto acórdão),
2. Pelo que, de acordo com o disposto no referido artigo 413° do Código Civil, não goza de eficácia real, tendo apenas eficácia meramente obrigacional inter-partes;
3. E o seu registo provisório por natureza em nada pode alterar esse efeito obrigacional, que esgota toda a sua eficácia no plano das relações entre credor e devedor (como é próprio dos direitos creditórios);
(…) 8. Ficou provado nos presentes autos (item nº 16 dos factos provados do douto acórdão), que a Recorrida optou pela recusa do cumprimento do contrato promessa outorgado, nos termos do disposto no artigo 102° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
9. Essa recusa do cumprimento é legal por se encontrarem preenchidos todos os requisitos exigidos pelo artigo 102° do CIRE e não se configurar a aplicação do artigo 106° do CIRE, por o contrato promessa dos autos ser bilateral (item n° 1 dos factos provados do douto acórdão), não ter eficácia real (item nº 1 factos provados do douto acórdão), não se encontrar cumprido pelas contraentes (itens nºs 9 e l0 dos factos provados do douto acórdão) e não ter ficado provada a tradição do imóvel a favor da Recorrente, promitente compradora;
10. A opção pela recusa do cumprimento do contrato promessa inviabiliza irremediavelmente a execução específica peticionada pela Recorrente nos autos, por se verificar uma situação específica de impossibilidade superveniente de cumprimento da obrigação por parte da ora Recorrida;
11. A Recorrente após aquela opção da Recorrida só tem o direito de exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação da Recorrida, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação que a Recorrente ainda não realizou, e indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento calculada nos parâmetros previstos na alínea d) do nº 3 do artigo 102° do CIRE;
12. Ora, como a Recorrente não pagou à Recorrida o preço que declarou ter pago no contra promessa (itens nºs 9 e 10 dos factos provados do douto acórdão) só terá direito a uma indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento, calculada de acordo com os parâmetros da alínea d) do n° 3 do artigo 102° do CIRE, tal como foi decidido na douta sentença e confirmado pelo douto acórdão ora recorrido, que interpretou e aplicou devidamente o direito aos factos considerados assentes, não tendo violado nenhuma disposição legal, designadamente as disposições invocadas pela Recorrente (artigos 413° e 830° do C.P.C e artigos 102° e 106°, nº 1 do CIRE).

3. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

1. Por documento particular, que os outorgantes denominaram de «Contrato – Promessa de Compra e Venda», cuja assinatura do legal representante da primeira, DD, foi reconhecida presencialmente em 02 de Agosto de 2005, a ora R., aí primeira outorgante, declarou prometer vender à ora A., aí segunda outorgante, livre de quaisquer ónus ou encargos, que, por seu turno, prometeu comprar, a fracção autónoma identificada pela letra “S” do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, inscrito no seu todo na matriz sob o artigo 926 da freguesia da Glória e descrito na C. R. Predial de Aveiro sob o n° 2.114 da dita freguesia, com o alvará de licença de utilização n° 60/04 emitido pela C. M. de Aveiro em 08/03/04 (documento fls. 10 a 13, aqui dado por reproduzido). (A)
2. À data da assinatura do aludido documento, encontravam-se registadas sobre o prédio de que faz parte a aludida fracção, através das inscrições C1, C2 e C3, hipotecas voluntárias a favor da Caixa Económica Montepio Geral, como garantia de empréstimos, respectivamente, até ao limite máximo de €1.922.865,89; €320.477,72 e €807.812,50 (doc. fls. 17 a 26, aqui dado por reproduzido). (B)
3. Fez-se constar desse documento que o preço da respectiva venda é de €65.000,00 já pagos e de que a primeira outorgante dá quitação (cláusula 4ª do Contrato). (C)
4. No mesmo documento fez-se constar que «a escritura de compra e venda será realizada no prazo de 365 dias a contar da assinatura deste contrato».
“A marcação da escritura deverá ser feita pela segunda outorgante, devendo tal comunicação ser feita por escrito, contendo a informação sobre o local, a data e hora da realização da mesma, com a antecedência mínima de 8 dias” (cláusulas 5° e 6ª do contrato). (D)
5. Em 29/06/2006, a ora A. registou a aquisição provisoriamente a seu favor, com base nesse contrato, na C. R. Predial competente, através da Ap. 22 (doc. fls. 18 e 19, aqui dado por reproduzido). (E)
6. Com data de 31 de Agosto de 2006, a A. enviou à R. a carta registada, com a/r, junta aos autos, comunicando-lhe que a escritura pública se encontrava marcada para o dia 18 de Setembro de 2006, pelas 17.00 horas, no Cartório Notarial da Dr. DD, no Edifício ........., em Aveiro, a qual foi recebida (docs. fls. 27 a 29, aqui dados por reproduzidos). (F)
7. No dia, hora e local designados nessa carta esteve presente a A. e não compareceu ninguém em representação da R. (doc. fls. 30, aqui dado por reproduzido). (G)
8. A A. foi casada com o referido FF, Representante da R., cujo património do dissolvido casal ainda se encontra por partilhar. (H)
9. Aquando da outorga do mesmo, a A. não entregou à R., a título de sinal e princípio de pagamento ou de pagamento do preço constante da referida cláusula quarta de tal «Contrato» nenhuma quantia. (I)
10. Tal como não entregou, a qualquer título, nenhuma quantia quer ao seu ex-marido, representante da R., quer à sua filha CC, sócia da R. à data desse contrato. (J)
11. Apesar das interpelações da A., a R. continuava indisponível para outorgar a escritura nas condições constantes do «contrato-promessa». (5º)
12. O referido no quesito anterior fez com que a A. se visse obrigada a suportar encargos, nomeadamente com honorários e despesas com Advogado. (6º)
13. Por força da recusa da R. em comparecer à escritura de Compra e Venda, a ora A. sentiu-se incomodada e apoquentada. (7º)
14. As partilhas não chegaram a concretizar-se. (12º)
(…)
15. Por sentença transitada em julgado, datada de 12.12.2007, proferida no processo n.º 4234/07.9TBAVR, foi a ré declarada insolvente, tendo sido nomeado administrador da insolvência o Exmo. Sr. Dr. GG (certidão de fls. 143 a 146).
16. Em 20.05.2009, veio a massa insolvente da ré, através do administrador de insolvência, expressamente comunicar aos autos que opta pela recusa do cumprimento do contrato promessa em discussão nos presentes autos (requerimento de fls. 210).

4. Está pois em causa neste recurso, em primeiro lugar, “saber, se no caso concreto era ou não admissível pelo Administrador de Insolvência, a recusa de cumprimento do contrato-promessa” (conclusão 2ª).
Em segundo lugar, e se a resposta for no sentido da inadmissibilidade, determinar se estão ou não reunidos os pressupostos para a procedência do pedido de execução específica, bem como dos demais pedidos desatendidos.

5. A recorrente considera que não se verificam as condições necessárias para que o administrador da insolvência, recorrendo ao disposto no artigo 102º do CIRE, possa optar pela recusa de cumprimento do contrato-promessa, porque “não resulta da matéria provada o não cumprimento total de ambas as partes” e porque existe um regime específico para o contrato-promessa, constante do artigo 106º do CIRE, que deve prevalecer. Ora, tratando-se de um contrato-promessa com eficácia real e não se devendo exigir a posse da coisa, “a opção de não cumprimento do contrato, manifestada pelo Sr. Administrador de Insolvência (…) é inócua”.

6. Tratando-se de uma acção de execução específica de um contrato-promessa de compra e venda, e de uma situação de insolvência do promitente-vendedor, cumpre efectivamente começar por avaliar os efeitos da declaração de insolvência à luz do regime especialmente desenhado pelo artigo 106º do CIRE.
Resulta deste preceito que, se o contrato-promessa for dotado de eficácia real e “tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento respectivo.
Ora, contrariamente ao que a recorrente sustenta, não se verifica, no caso, nenhuma destas hipóteses.
Desde logo, nem foi atribuída expressamente eficácia real ao contrato-promessa, nem foi adoptada a forma legalmente exigida para o efeito (escritura pública, nos termos do disposto nos artigos 413º e 875º do Código Civil, na redacção vigente à data da celebração do contrato-promessa). A inscrição no registo da “aquisição feita com base no contrato-promessa” (conclusão 15) não permite ultrapassar a exigência dos três requisitos assim enumerados por Calvão da Silva (Sinal e Contrato Promessa, 12ª ed, Coimbra, 2007, pág. 20: “I) Declaração expressa; 2) forma; 3) registo” da promessa: “a promessa deve ser inscrita no registo respectivo” (pág. 21).
A inscrição no registo (provisório por natureza) da aquisição por força do contrato-promessa, a que a autora se refere, não pode ter a virtualidade de se substituir a uma eficácia que a lei exige que decorra de um acordo expresso e formal. Caso contrário, um acto unilateral de uma das partes (da promitente-compradora, no caso) seria suficiente para alterar os efeitos do contrato (de obrigacionais para reais) e para ultrapassar exigências de forma que são imperativas (cfr. nº 1 do artigo 364º e artigo 220º do Código Civil).
Para além disso, não houve tradição. Diferentemente do regime anterior, constante do nº 2 do artigo 164º-A do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (nele aditado pelo Decreto-Lei nº 315/98, de 20 de Outubro), a lei vigente passou a exigir expressamente a tradição da coisa de cuja promessa de venda se trata, para que não seja possível recusar a celebração do contrato definitivo.
Explica Oliveira Ascensão que a lei atendeu à circunstância de se ter “constituído uma situação de natureza (…) possessória” (Insolvência: efeitos sobre os negócios em curso, in Themis, edição especial (2005), Novo Direito da Insolvência, pág. 105 e segs., pág. 124). Não interessa agora saber se, sempre e em qualquer caso, se deverá falar de posse ou, antes, de detenção (cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 12 de Julho de 2001, www.dgsi.pt, proc. nº 01B1778, ou de 29 de Abril de 2004, www.dgsi.pt , proc. nº 08A745 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., 1984, págs. 6-7); releva apenas observar que, por esta via, a lei pretendeu tutelar a situação de facto criada com a entrega da coisa ao promitente-comprador.
Pode discordar-se desta opção; neste sentido, e para citar os autores invocados pela recorrente, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, Lisboa, 2005, pág. 405, ou Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 4ª ed., Coimbra, 2008, pág. 145. Mas, nem tem fundamento a proposta de interpretação correctiva apresentada por este último autor, como aliás resulta da “perfeita harmonia com o equivalente estatuído no nº 1 do artº 104º” do CIRE para o caso da recusa de cumprimento de um contrato de compra e venda com reserva de propriedade em caso de insolvência do vendedor (apontada, a pág. 405, pelos autores primeiramente citados), nem a expressa e manifesta alteração legislativa a suporta.
No confronto entre os interesses da massa insolvente e do promitente comprador, a lei manteve a exigência da eficácia real da promessa (cognoscível pelos demais credores do insolvente, tendo em conta o registo respectivo), mas restringiu a prevalência da posição do último à hipótese de já ter ocorrido a tradição da coisa. A mesma lógica de protecção do promitente-adquirente a quem a coisa já foi entregue explica, por exemplo, a atribuição de direito de retenção como garantia de satisfação do “crédito resultante do não cumprimento imputável” ao promitente-vendedor (al. f) do nº 1 do artigo 755º do Código Civil) ou a própria medida da indemnização (nº 2 do artigo 442º do Código Civil).

Não pode pois a recorrente invocar o nº 1 do artigo 106º do CIRE para sustentar a impossibilidade de recusa de cumprimento do contrato-promessa dos autos.

7. Não estando verificada a previsão deste nº 1 do artigo 106º, cabe recorrer ao “princípio geral quanto a negócios ainda não cumpridos” desenvolvido no artigo 102º, sempre com o objectivo de determinar se a opção manifestada pelo administrador de insolvência tem ou não fundamento legal.
Como se viu, a recorrente sustenta que não está provado que não tenha havido “total cumprimento” de ambas as partes.
No entanto, cabe recordar que a recorrente alegou na petição inicial e reafirmou na réplica que, à data da celebração do contrato-promessa, e conforme reconhecimento da ré no correspondente documento, o preço estava integralmente pago.
Ficou provado que, apesar do texto desse documento (cfr. ponto 3.dos factos provados), quando o mesmo foi outorgado “a A. não entregou à R., a título de sinal e princípio de pagamento ou de pagamento do preço constante da (…) cláusula quarta de tal «contrato» nenhuma quantia” (ponto 9) e que a autora também “não entregou, a qualquer título, nenhuma quantia quer ao seu ex-marido, representante da R., quer à sua filha CC, sócia da R. à data desse contrato” (ponto 10).
As instâncias interpretaram este julgamento no sentido de que a autora não pagou o preço; e nenhuma censura merece tal interpretação, nomeadamente se tivermos em conta a justificação do julgamento de facto, de fls. 244-245, e a afirmação da autora de que “o preço da fracção autónoma prometida vender encontrava-se, à data da respectiva assinatura do contrato-promessa de compra e venda, integralmente pago” (réplica).
No contexto do contrato-promessa dos autos, não se vê qual será o alcance da alegação de que não está provado “que a A. não tivesse cumprido as suas obrigações perante a Ré; mas apenas o que consta dos aludidos pontos 9 e 10”.
Tanto basta para afastar a posição manifestada pela recorrente, por estar assente o não cumprimento total de ambas as partes, exigido pelo nº 1 do artigo 102º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
A terminar, observa-se que não interessa, no caso, saber se a alteração introduzida no texto desse nº 1 pelo Decreto-Lei nº 200/2004, de 18 de Agosto, foi “um acerto meramente formal” em relação à redacção anterior, como sustentam Carvalho Fernandes e João Labareda a pág. 392 de op.cit., ou uma modificação de regime (Oliveira Ascensão, op. cit., loc. cit, pág. 112).

8. É pois legítima a recusa de cumprimento, porque baseada no nº 1 do artigo 102º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas; o que implica a necessária improcedência do pedido de execução específica e dos outros pedidos negados pelas instâncias.
Nada mais cabendo apreciar neste recurso, resta negar-lhe provimento.

Assim, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela ré (artigos 663º, nº 3 e 447º do Código de Processo Civil, na redacção aplicável).


Lisboa, 12 de Maio de 2011

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lopes do Rego
Orlando Afonso