Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1141/18.3T8PVZ.P1-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO
DUPLA CONFORME
REVISTA EXCECIONAL
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
SUCUMBÊNCIA
Data do Acordão: 01/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. A verificação da dupla conforme impede a admissão do recurso de revista normal, nos termos do art.º 671.º, n.º 3, do CPC.
II. Não impede a verificação da dupla conforme a arguição de nulidades imputadas ao acórdão recorrido, nem a existência de outros segmentos decisórios que por ela não sejam abrangidos.

III. Na parte não abrangida pela dupla conforme, o valor da sucumbência inferior a metade da alçada do tribunal de que se recorre constitui obstáculo à admissão da mesma revista.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[1]:



I. Relatório


Na acção declarativa de condenação, com processo comum, intentada por AA. contra Varzim - Sol - Turismo, Jogo e Animação, S.A., foi proferida sentença, onde, com fundamento em violação culposa pela ré de “disposição legal destinada a proteger interesses alheios”, como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, se decidiu: “Face ao exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente por provada e, em consequência, condeno a ré a pagar ao autor a quantia de 7.500,00 €, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa legal de juro civil desde a presente data até efectivo e integral pagamento”.

Inconformadas, ambas as partes apelaram, sendo o autor a título principal e a ré subordinadamente, impugnando parte da decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito, invocando erro na apreciação das provas e na aplicação do direito.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 15/6/2020, apreciando as questões suscitadas naqueles recursos, manteve a matéria de facto tal como havia sido decidida pela 1.ª instância, confirmou a inexistência de danos não patrimoniais, com idêntica fundamentação à da sentença com alguns aditamentos, nomeadamente jurisprudenciais e doutrinários, confirmou a existência de danos não patrimoniais, mas, quanto a estes, considerou que era caso de concorrência de culpas do autor e da ré, em igual medida, tudo por unanimidade, concluindo com o seguinte dispositivo:

Tendo em conta tudo quanto ficou exposto, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso principal e parcialmente procedente o recurso subordinado e, em conformidade, mantendo tudo o mais do decidido, reduz-se a quantia fixada a título de compensação pelos danos não patrimoniais, devida pela ré ao autor, para o montante de 3.750,00 € (três mil, setecentos e cinquenta euros)”.


Ainda irresignado, o autor/apelante interpôs recurso de revista, arguindo nulidades do acórdão que subsumiu ao disposto no art.º 615.º, n.º 1, als. c) e d) e com fundamento em erro de julgamento, pugnando pela indemnização pelos danos patrimoniais que pedira (193.730,00€) e pela compensação pelos danos não patrimoniais pedidos (15.000,00 €), ambas acrescidas de juros moratórios, sustentando que não há lugar à aplicação do art.º 570.º do Código Civil, ou, havendo concorrência, pela fixação da responsabilidade da ré em 80%.


Porém, o recurso de revista assim interposto não foi admitido, por despacho do Ex.mo Desembargador Relator, de 12/10/2020, com o seguinte teor:

Tendo em conta o disposto nos artigos 629, n.º 1 e 671, n.º 1 e n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, não se admite o recurso de revista, porquanto o recorrente, na parte do acórdão em que não há dupla conforme, não teve sucumbência bastante para poder recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.

Custas do recurso pelo recorrente.

Notifique.

           

Ainda não conformado com a decisão de não admissão do recurso de revista, o autor/apelante reclamou dela pugnando pela sua admissibilidade, sustentando que não se verifica a dupla conforme e que não há que atender ao valor da sucumbência.

A ré/apelada respondeu defendendo a inadmissibilidade da revista.

A reclamação foi indeferida, por despacho do actual Relator, de 16/11/2020, cujo teor aqui se dá por reproduzido e que adiante se reproduzirá na parte tida como relevante, em suma por verificação do obstáculo da dupla conforme, resultante do art.º 671.º, n.º 3, do CPC relativamente aos danos patrimoniais, e por falta de sucumbência bastante quanto aos danos não patrimoniais.

É desta decisão que vem interposta a presente reclamação para a conferência, insistindo o reclamante pela admissibilidade do recurso, pelos motivos que invoca no seu requerimento, de forma reduzidíssima e que consistem em omissão de pronúncia sobre a questão de direito suscitada “em recurso de apelação para o Tribunal da Relação” e inexistência de dupla conforme “considerando que as questões suscitadas se relacionam com a fixação de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, não se conseguindo calcular o valor da sucumbência”.

A parte contrária não respondeu.           

Cumpre, pois, apreciar do acerto da decisão do relator sobre o indeferimento da reclamação de rejeição do recurso de revista.


II. Fundamentação


No despacho reclamado pode ler-se a seguinte fundamentação:

«… Como é sabido, pese embora as decisões judiciais sejam impugnáveis por meio de recurso (art.º 627.º, n.º 1, do CPC), a admissibilidade deste está condicionada, através de limites objectivos fixados na lei (cfr. Carlos Lopes do Rego, Acesso ao direito e aos tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, pág. 83).

Um dos limites ao recurso são os valores da causa e da sucumbência, nos termos do n.º 1 do art.º 629.º do CPC.

Outro limite ou obstáculo é a verificação da dupla conforme, o qual está previsto no art.º 671.º, n.º 3, do CPC, que dispõe:

Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

O artigo seguinte reporta-se à revista excepcional, pelo que é irrelevante para a admissão da revista normal, única interposta.

E os casos em que o recurso é sempre admissível estão previstos no art.º 629.º, n.º 2, do CPC.

Não se trata de nenhum dos casos previstos nas alíneas a), b), c) ou d) desse número, nem o recorrente invoca alguma delas.

No presente caso, verifica-se o obstáculo da dupla conforme, resultante do citado art.º 671.º, n.º 3, relativamente aos danos patrimoniais, os quais foram postos em causa no recurso principal de apelação, mas que foi julgado totalmente improcedente.

Com efeito, o acórdão impugnado confirmou a sentença, quanto a tais danos, sem voto de vencido e “sem fundamentação essencialmente diferente”, não afastando este requisito o aditamento das considerações doutrinárias e jurisprudenciais acerca da construção dogmática feita na sentença com a qual concordou.

Tem sido este o entendimento do STJ que tem afirmado, repetidamente, que só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radical ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância (Cf., neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 28-04-2014, Revista n.º 473/10.3TBVRL.P1-A.S1 – 2.ª Secção; de 18-09-2014, revista n.º 630/11.5TBCBR.C1.S1 – 7.ª Secção; de 19-02-2015, revista n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S – 7.ª Secção; de 27-04-2017, revista n.º 273/14.1TBSCR.L1.S1 – 2.ª Secção; de 29-06-2017, revista n.º 398/12.8TVLSB.L1.S1 – 7.ª Secção; de 30-11-2017, revista n.º 579/11.1TBVCD-E.P1.S1 – 7.ª Secção; de 15-02-2018, revista n.º 28/16.9T8MGD.G1.S2 – 2.ª Secção; de 12-04-2018, revista n.º 1563/11.0TVLSB.L1.S2-A – 7.ª Secção; todos disponíveis em www.dgsi.pt).

São, portanto, de desconsiderar, para este efeito, as discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não revelam um enquadramento jurídico alternativo, os casos em que a diversidade de fundamentação se traduza apenas na não-aceitação, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido ou ainda no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância.

Relativamente aos danos não patrimoniais, únicos que não foram confirmados na sequência do provimento parcial do recurso subordinado da ré, embora não se verifique o obstáculo da dupla conforme, verifica-se o limite objectivo do citado art.º 629.º, n.º 1, do CPC, uma vez que o autor apenas decaiu em 11.250,00 € (=15.000,00 – 3.750,00 €).

Ora, sendo o valor desta sucumbência inferior a metade da alçada do Tribunal da Relação que se encontra, neste momento e desde há algum tempo, fixada em 30.000,00 € (cfr. art.º 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), é evidente que não é admissível revista nos termos gerais.

A invocação das nulidades do acórdão é irrelevante, para este efeito, visto que ela não prejudica a existência de dupla conformidade (cfr., neste sentido, Conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, pág. 369).»

Os Juízes Conselheiros que compõem este colectivo concordam, inteiramente, com a fundamentação acabada de transcrever, por estar em conformidade com a lei, a melhor doutrina e a jurisprudência que vem sendo seguida por este Supremo Tribunal, como consta do despacho reclamado.

 Contrariamente ao que parece sustentar o reclamante, e com o devido respeito, as nulidades do acórdão, apesar de constituírem fundamento de revista, nos termos do art.º 674.º, n.º 1, al. c), do CPC, não são elas próprias definidoras  da admissibilidade desse recurso, a qual está prevista no art.º 671.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Código, ficando a sua arguição dependente da sua admissibilidade, como facilmente se depreende do art.º 615.º, n.º 4, do mesmo diploma (cfr. neste sentido, Conselheiro Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 405 e jurisprudência citada na nota de rodapé n.º 588). E a sua arguição não prejudica a existência da dupla conformidade, como bem se afirmou no despacho objecto da reclamação. O Supremo só poderia conhecer da existência, ou não, das nulidades se a revista fosse admissível e, como ali bem se disse, não é.

Reafirma-se que estamos perante uma situação de dupla conformidade, relativamente aos danos patrimoniais, já que o acórdão foi proferido por unanimidade e “sem fundamentação essencialmente diferente” da sentença. Apesar de terem sido postos em causa no recurso principal de apelação, esta foi julgada totalmente improcedente com os mesmos fundamentos, aos quais foram aditadas considerações doutrinárias e jurisprudenciais acerca da construção dogmática, mas que em nada alteraram a sentença, com a qual concordou e que confirmou, nessa parte.

Quanto aos danos não patrimoniais, únicos que não foram confirmados na sequência do provimento parcial do recurso subordinado, interposto pela ré, embora não se verifique o obstáculo da dupla conforme, verifica-se o limite objectivo do art.º 629.º, n.º 1, do CPC, uma vez que o autor apenas decaiu em 11.250,00 € (=15.000,00 – 3.750,00 €).

E, sendo o valor desta sucumbência inferior a metade da alçada do Tribunal da Relação que se encontra fixada em 30.000,00 € (cfr. art.º 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 - Lei da Organização do Sistema Judiciário), é evidente que não é admissível revista nos termos gerais.

O reclamante insiste na impossibilidade de calcular o valor da sucumbência.

No entanto, sem qualquer razão. Esta é fácil de calcular, bastando subtrair ao valor pedido (15.000,00 €) o valor que lhe foi fixado pela Relação (3.750,00 €), o que dá a quantia de 11.250,00 €, operação que é indicada - e bem - no despacho reclamado.

Sustenta o reclamante que tal impossibilidade decorreria do facto de ter questionado a fixação da indemnização também por danos patrimoniais.

Mais uma vez, sem razão.

A questão da fixação da indemnização por danos patrimoniais é impossível voltar a apreciá-la, dada a verificação da dupla conforme, nessa parte, como se deixou dito, e visto que não foi interposta revista excepcional, nos termos do art.º 672.º do CPC.

Como tal, não conta para efeitos do decaimento, nem para o afastamento da dupla conformidade.

Com efeito, sendo diversos os segmentos decisórios, verificando-se a “plena confirmação do resultado declarado na 1.ª instância, sem qualquer voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica”, como se verifica quanto aos danos patrimoniais, “fica eliminada, nessa parte, a interposição de recurso “normal” de revista” (cfr. Conselheiro Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 370 e acórdãos do STJ aí citados na nota 533).

Destarte, o recurso de revista não pode ser admitido.


A reclamação tem, necessariamente, que improceder, havendo que confirmar o despacho reclamado.


Sumário:

1. A verificação da dupla conforme impede a admissão do recurso de revista normal, nos termos do art.º 671.º, n.º 3, do CPC.

2. Não impede a verificação da dupla conforme a arguição de nulidades imputadas ao acórdão recorrido, nem a existência de outros segmentos decisórios que por ela não sejam abrangidos.

3. Na parte não abrangida pela dupla conforme, o valor da sucumbência inferior a metade da alçada do tribunal de que se recorre constitui obstáculo à admissão da mesma revista.


III. Decisão

 Pelo exposto, indefere-se a reclamação e confirma-se inteiramente o despacho reclamado.


*           


Custas da reclamação pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.

*



Lisboa, 12 de Janeiro de 2021


Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que não podem assinar.


Fernando Augusto Samões (Relator, que assina digitalmente)

 Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António Magalhães (2.º Adjunto)

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[1] Relator: Fernando Samões

1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé

2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães