Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4096/18.0T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
LEI PROCESSUAL
VIOLAÇÃO DE LEI
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Data do Acordão: 11/03/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Fundando-se o recurso de revista na averiguação das regras inerentes ao exercício dos poderes-deveres previstos no art. 662.º, n.os 1 e 2, do CPC, quanto à reapreciação pela Relação da matéria de facto, sindicável nos termos do art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC, pode ser sindicada a aplicação da lei adjectiva pela Relação em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada – não uso ou uso deficiente ou patológico dos poderes-deveres em segundo grau, controlando o respectivo modo de exercício em face do enquadramento e limites da lei para esse exercício –, que, no essencial e no que respeita ao n.º 1 do art. 662.º, resultam da remissão do art. 663.º, n.º 2, para o art. 607.º, n.os 4 e 5, do CPC (o n.º 2 já é reforço dos poderes em segundo grau), com a restrição constante do art. 662.º, n.º 4, do CPC («Das decisões da Relação previstas nos n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»).
II - Assumindo-se a 2.a instância como um verdadeiro e próprio segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto, com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados peias partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo, sempre que essa reapreciação se move no domínio da livre apreciação da prova e sem se vislumbrar que se tenha desrespeitado a força plena de qualquer meio de prova, imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório, essa actuação regida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC é insindicável em sede de revista, nos termos conjugados dos arts. 662.º, n.º 4, e 674.º, n.º 3, 1.a parte, do CPC.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 4096/18.0T8VFR.P1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, 5.ª Secção

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. AA propôs acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB e CC, pedindo que os Réus sejam condenados a: “a) Reconhecerem que a A. é a única dona e senhora da quantia de € 68.407,51 (sessenta e oito mil quatrocentos e sete euros e cinquenta e um cêntimos); b) A restituírem à A. tal quantia, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar desde a data da citação até total e efectivo pagamento.” Invocou que é a única titular da quantia de € 68.407,51 que os RR fizeram seus contra sua vontade, pelo que devem os Réus ser condenados a restituir-lhe tal montante, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até total e efectivo pagamento, alegando: na sequência do falecimento de seu irmão, de quem foi universal herdeira, passou a ser exclusiva proprietária da quantia de € 68.407,51, a qual tinha sido depositada em 11/1/2012 em conta bancária da Caixa Geral de Depósitos, co-titulada por si e por aquele seu irmão; tal quantia foi depois transferida de tal conta, na sequência de liquidação da mesma, para uma outra conta bancária também da Caixa Geral de Depósitos, em 2/2/2012, com o n.º … 3200; em Julho de 2015 foi aberta conta, também na Caixa Geral de Depósitos, co-titulada por si e pelos Réus, a qual só pode ser movimentada com a assinatura de dois titulares, o que a impedia e impede de a movimentar sem a assinatura de pelo menos um dos Réus; nessa conta n.º … 4500 foram creditadas por transferência as quantias de 749,73 euros, no dia da sua abertura, e de € 55.220,15 euros, no dia 3/8/2015, num total de € 55.969,88 euros, quantia esta que era de sua exclusiva propriedade; no dia 6/12/2017, os Réus, por débito daquela conta n.º… 4500, transferiram para conta bancária que identifica (n.º …. 4230) a quantia de € 55.000,00, retirando-a da sua disponibilidade directa, o que fizeram contra a sua vontade; sem a assinatura de um dos Réus não consegue movimentar a quantia remanescente daquela conta n.º … 4500 (€ 969,88 euros); na sequência da transferência da quantia global de € 55.969,88 euros para a conta n.º … 4500, remanesce na conta n.º … 3200 a quantia de € 12.437,63, que os Réus detêm e da qual é exclusiva proprietária.

Os Réus apresentaram Contestação, na qual alegam que a quantia reivindicada lhes pertence na totalidade, uma vez que a Autora lhes doou tal montante em 2012, tendo para tanto efectuado a criação de uma conta na CGD, a referida com o n.º … 3200, da qual os Réus ficaram como únicos titulares, e ordenado a transferência da importância para aquela conta. Mais disseram que tal atitude da Autora, da qual são sobrinhos, se deveu ao facto de, ao longo de anos, terem sido o sustentáculo no apoio que a ela deram, tal como ao seu irmão DD, nas situações de doença porque cada um passou; dessa conta foram levantadas importâncias relativas a cheques para pagamento das despesas de reparação da casa da Autora, no montante global de € 10.660,00; referem que em 2015, uma vez que a Autora começou a questionar tal dinheiro, em função da evolução da sua doença, decidiram abrir a nova conta n.º … 4500 em que, para além dos Réus, também a Autora passou a figurar como titular, no intuito de a sossegar, mas esclarecendo que o dinheiro pertencia na totalidade aos Réus atenta a doação que a Autora lhes fez em 2012; em 6/12/2017 transferiram a quantia de 55.000,00 euros (da conta n.º … 4500) para uma conta que lhes pertence existente na CGD, mas que ao fazê-lo estavam a movimentar dinheiro que lhes pertencia, em virtude da doação da Autora. Concluíram pela improcedência da acção.

2. Tramitada a instância e realizada a audiência de discussão e julgamento, a Juiz … do Juízo Central Cível ... (Tribunal Judicial da Comarca ...) proferiu sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência condena, os Réus a “reconhecerem que a A. é dona e proprietária de 1/3 da quantia de 55.968,88 (cinquenta e cinco mil novecentos e sessenta e oito euros e oitenta e oito cêntimos), devendo os RR restituir tal quantia (1/3 de 55.968,88 (cinquenta e cinco mil novecentos e sessenta e oito euros e oitenta e oito cêntimos)) à A., quantia a que devem acrescer os juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e total pagamento, absolvendo os RR.. dos demais pedidos contra si deduzidos.

3. Inconformados, a Autora e os Réus interpuseram recursos de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que, identificando como questões “apurar se há que proceder à alteração da matéria de facto da sentença recorrida” e “apurar, com base em tal alteração da matéria de facto ou independentemente dela, se a decisão recorrida deve ser revogada ou alterada, sendo aqui de tratar da apreciação da titularidade, em termos de direito de propriedade, do dinheiro que circulou pelas contas bancárias identificadas nos autos e, caso se conclua pela propriedade do mesmo por parte da Autora, qual o montante que lhe deve ser restituído”, proferiu acórdão, no qual, em sede de reapreciação da matéria de facto, eliminou itens do elenco de factos não provados, alterou a matéria dos factos provados correspondente aos itens 26º, 27º, 28º, 29º, 48º, 49º, 50º e 51º, passando a factualidade considerada não provada para o respectivo elenco dos factos não provados, e modificou, em consequência, o conteúdo dos itens correspondentes aos factos provados nos pontos 9º, 10º, 22º, 23º, 25º, 27º, 28º, 51º, 52º, 53º, 54º, 55º e 58º, e, a final, veio conceder procedência parcial ao recurso da Autora e improcedência ao recurso dos Réus (“há que descontar tal quantia de 10.660,00 euros àquela quantia de 68.407,51 euros, devendo os Réus restituir o restante, no montante de 57.747,51 euros.”; “A tal quantia, como peticionado, acrescem juros à taxa legal desde a citação até total pagamento”).

4. Sem mostrarem resignação, os Réus vieram interpor recurso de revista para o STJ, no qual apresentaram as seguintes Conclusões, visando a anulação da decisão de alteração da matéria de facto respeitante à integração dos itens b) a g) como factos não provados, “mantendo-se a decisão de 1 ª instância ou ordenar-se a baixa do processo ao Tribunal ‘a quo’”:

“1 – Sendo certo que os recorrentes não desconhecem a limitações da natureza do recurso de revista, apesar disso entendem os mesmos que tal deverá ser recebido, analisado e julgado segundo as regras do direito processual:

2 – O presente recurso visa a impugnação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, nomeadamente a alteração da matéria de facto – pontos c), d), e), f) e g) – de provada para não provada uma vez que se entende que esse mesmo Tribunal incorreu na violação do direito probatório adjectivo, tendo procedido a uma ilegal fixação dos factos e, por consequência, a uma incorreta determinação de aplicação do Direito.

3 – A alteração das respostas à matéria de facto, ora posta em crise assenta, num critério puramente imperceptível, incongruente e até contraditório, sem qualquer justificação documental ou testemunhal credível – e é a A. quem o afirma pela escrita do seu ilustre mandatário, que “o depoimento das testemunhas da A. poderá dizer-se que é movido por algum interesse por aspirarem vir a ser beneficiados pela tia…”.(sublinhado nosso);

4 – Apesar dessa afirmação que, repete-se,nãose sabe se o M.Desembargador leu – e se leu não lhes deu importância – o mesmo Sr. Desembargador deu credibilidade ao depoimento das testemunhas da A., depoimento esse “movido por aspirarem (as testemunhas da Autora) vir a ser beneficiados pela tia” nada justificando a alteração do julgamento quanto à matéria de facto, nos pontos c), d), e), f) e g).

5 – Isso mesmo se extrai da prescrição contida no 4 do art.º 607º do CPC segundo a qual o juiz na elaboração da sentença (ou dos acórdãos, se for o caso, por remissão dos artigos 663º e 679º do CPC) deve elaborar o elenco factual relevante compatibilizando toda a matéria de facto adquirida em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.

6 – Determinando o desrespeito de tais princípios, que azo à ocorrência de insuficiência, obscuridade ou contradição que inviabilizam a decisão jurídica do pleito”, a anulação do julgamento (artigos 662º, 2, al. c) e 682º, 3, do CPC).

7 – Os pontos dados como não provados, do acórdão ora posto em crise para NÃO PROVADO em oposição ao decidido em lª instância como PROVADO sobre a mesma matéria, concretamente os nos 26º, 27º, 28º, 29º, 48º e 49º da douta sentença, proferida em 1ª instância.


Assim,

8 – Deverá o presente recurso ser recebido, julgado procedente e anulando-se o acórdão proferido, com base no disposto no art. 615º, nº 1, al. b) e c) do Cod. Proc. Civ., concretamente a alteração da decisão sobre a matéria de facto dos pontos c) a g) do acórdão ora posto em crise uma vez que o M. J. Desembargador não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e também há alguma obscuridade que torna a decisão ora impugnada ininteligível ou, pelo menos, incompreensível e até contraditória (vide Ac. Relação do Porto de 12/1/2015 dgsi.NET e Ac. do STJ de 17.07.2014-Proc. nº 626/09, in Sumários 2014, pág. 692).

9 – E porque “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tido como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (nº 1 do art. 662º do Cod.Proc. Civ., o que, conforme se tem sustentado, não é o caso dos autos.

10 – A modificabilidade da decisão de facto efetuada pelo Tribunal da Relação do Porto não obedeceu ao preceituado no artigo 662º do CPC, tendo esse mesmo tribunal actuado ilicitamente, violando os poderes legais que a lei lhe confere plasmados no citado dispositivo legal.”

A Autora apresentou contra-alegações, assim concluídas para se obter a improcedência da revista:

“1º O douto acórdão em crise decidiu alterar de provado para não provado, além dos mais, os factos constantes dos pontos c), d), e), f) e g).

2º Os recorrentes insurgem-se contra a alteração à matéria de facto destes concretos factos, por via do recurso de revista, invocando, para tanto, a violação do direito adjectivo probatório.

3º Está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação damatéria de facto a não ser em casos muito excepcionais, nos termos dos arts 682º, nº e 674º, nº 3 do CPC.

4º Não basta invocar a expressão legal da violação do direito probatório adjectivo para que tal violação se verifica, importa sim afirmar em concreto o modo e a circunstância de tal violação, sob pena de a mesma se ter por não verificada.

5º Na verdade, parece-nos que, neste caso concreto, os recorrentes pretendem a reapreciação da prova produzida nos autos.

6º Porquanto entendem que o Venerando Tribunal da Relação do Porto fez, e passa-se a citar, uma “interpretação desajustada e completamente desfasada da realidade em concreto que se apresenta nos autos.

7º Nestes casos, nos termos dos arts. 682º e 674º ambos do CPC, está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer, em revista, da prova apreciada livremente pelo Tribunal da Relação (…).

8º Osconcretos meios probatórios postos emcrise pelos recorrentes estãosujeitos ao princípio da livre apreciação, pelo que, com a devida vénia, deverá o presente recurso, nesta parte, ser rejeitado.

9º Referem, ainda os recorrentes nas suas doutas alegações que o douto acórdão recorridoaoalteraras respostasà matériadefacto terá desrespeitadoosprincípios da coerência e da congruência, embora sem referir quais as concretas contradições ou falta de lógica, ou falta de racionalidade ou mesmo de violação das regras de experiência, nas alterações à matéria de facto efectuadas.

10º O douto acórdão explica a razão da sua decisão, especificando os respectivos fundamentos, permitindo saber-se como foi o percurso lógico e as regras de experiência acolhidas para fundar a decisão.

11º O douto acórdão recorrido não viola os princípios da coerência e da congruência, porquanto está sustentado num discurso inteligível, resultando da

fundamentação da decisão de facto claramente uma e só uma interpretação, permitindo saber com certeza o pensamento exposto.

12º Assim, o Venerando Tribunal da Relação, ao alterar as respostas à matéria de facto, dando como não provados os factos constantes das alíneas c), d), e), f) e g), valorou correctamente as provas dos autos, tendo feita correcta interpretação e aplicação do Direito, não merecendo por isso o sempre douto acórdão recorrido qualquer censura, devendo, consequentemente, ser mantido como é de direito.”

Consignados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Objecto do recurso


Vistas as Conclusões delimitadoras do recurso, verifica-se que as questões submetidas ao juízo desta instância são:


(i) a licitude da reapreciação da matéria de facto operada pela Relação tendo em conta os poderes atribuídos pelo art. 662º do CPC (e a possível aplicação do art. 682º, 3, do CPC);
(ii) nulidade do acórdão recorrido (a apreciar por último, tendo em conta a conexão do que será antes resolvido para o teor dos vícios apontados nesta sede).

2. Factualidade

Após a reapreciação da matéria de facto, a Relação considerou assente a seguinte matéria de facto:

2.1. Factos provados
 

1º - No dia 03 de Fevereiro de 2012, no Cartório Notarial do Dr. EE, a autora outorgou procuração a favor dos réus;

2º - Através da procuração referida no artigo anterior, entre outros, a autora conferiu aos Réus os seguintes poderes: (1) «para com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os bens dela outorgante e assim para a representar junto de quaisquer repartições Públicas ou Administrativas e, designadamente, nas repartições de finanças, liquidar impostos ou contribuições, reclamando dos indevidos ou excessivos, recebendo títulos de anulação e as correspondentes importâncias, fazer manifestos, alterá-los ou cancelá-los, requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, apresentar relações de bens, podendo prestar quaisquer declarações complementares; proceder a quaisquer actos de registo predial, provisórios ou definitivos, cancelamentos ou averbamentos» (…) (2) «movimentar as suas contas, quer levantando, quer depositando quaisquer importâncias, que se encontrem à ordem ou a prazo ou qualquer aplicação financeira, junto de quaisquer Bancos, designadamente Caixa Geral de Depósitos, Banco Santander Totta, SA ou qualquer outra Instituição de Crédito e C.T.T»;


3º - No dia 22 de Janeiro de 2012, faleceu DD, no estado de solteiro, maior, filho de FF e GG;

4º - A autora é filha de FF e GG;

5º - A A. é irmã de DD;

6º - Por testamento de 28 de Abril de 1995, DD instituiu a autora como universal herdeira dos seus bens;

7º - No dia 11 de Janeiro de 2012, por débito da conta da Caixa Geral de Depósitos, S.A. com o n.º PT ...5300, pertencente à Autora, creditou-se na conta daquela entidade bancária com o n.º PT ...5560 a quantia de € 68.407,51 (sessenta e oito mil quatrocentos e sete euros e cinquenta e um cêntimos);

8º - A conta com o n.º PT ...5560 onde foi creditada a quantia de € 68.407,51 era co-titulada pela autora e DD, até à morte deste, estando alocada no balcão de ...,


9º - No dia 02 de Fevereiro de 2012, por liquidação da conta co-titulada por aquele e pela autora com o n.º PT ...5560 , foi creditada na conta n.º PT ...3200, também da Caixa Geral de Depósitos, S.A., balcão de ..., aquela quantia de € 68.407,51;


10º - No dia 31 de Julho de 2015, no balcão de ... da Caixa Geral de Depósitos, S.A. foi aberta a conta n.º ...4500, co-titulada pela autora e pelos réus;

11º - A conta referida no ponto anterior só pode ser movimentada com a assinatura de dois titulares.

12º - A A. nasceu em 18/09/…;


13º - Na conta identificada no ponto 10º, no dia da abertura, foi creditado por transferência a quantia de € 749,73 (setecentos e quarenta e nove euros e setenta e três cêntimos);

14º - No dia 03 de Agosto de 2015, por transferência, foi ainda creditado naquela conta a quantia de € 55.220,15 (cinquenta e cinco mil duzentos e vinte euros e quinze cêntimos);


15º - Tendo sido creditado na conta identificada no artigo 10º a quantia global de € 55.969,88 (cinquenta e cinco mil novecentos e sessenta e nove euros e oitenta e oito cêntimos);

16º - Por carta registada com aviso de recepção datada de 03 de Agosto de 2017, por intermédio de advogado, a ré BB foi (1) interpelada pela autora à revogação da procuração identificada nos pontos 1º e 2º, (2) informada que esta pretendia que deixasse de figurar como co-titular da conta aberta na Caixa Geral de Depósitos, S.A. com depósitos exclusivamente seus – conta identificada no anterior ponto 10º - e (3) que não pretendia que a referida conta fosse movimentada pela ré BB;

17º - A carta aludida no ponto anterior foi recebida pela ré BB no dia 09 de Agosto de 2017;

18º - Por carta registada com aviso de recepção datada de 04 de Agosto de 2017, por intermédio de advogado, o réu CC foi (1) interpelado pela autora à revogação da procuração identificada nos pontos 1º e 2º, (2) informado que esta pretendia que deixasse de figurar como co-titular da conta aberta na Caixa Geral de Depósitos, S.A. com depósitos exclusivamente seus – conta identificada no anterior ponto 10º – e (3) que não pretendia que a referida conta fosse movimentada pelo réu CC;


19º - A carta aludida no ponto anterior foi recebida pelo réu no dia 07 de Agosto de 2017;


20º - No seguimento das cartas referidas sob os anteriores pontos 16º e 18º, os réus responderam através do seu ilustre mandatário, por carta datada de 11 de Agosto de 2017, informando:
Liminarmente desde informo o Colega que os m/clientes não estão na disposição de renunciar nem modificar a procuração dado que a mesma foi-lhes conferida no interesse dos mesmos e, nos termos do Cod.Civ., havendo acordo é que poderá haver alterações.
Mas fique a sua constituinte descansada que os m/clientes não farão qualquer operação que contra os bens que são total ou parcialmente da mesma.


21º - No dia 06 de Dezembro de 2017, os réus, por débito da conta nº ...4500 co-titulada por estes e pela autora, transferiram para a conta da CGD n.º ....4230, que lhes pertence, a quantia de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros);

22º - Para tanto, assinaram por seu punho a ordem para o efeito referido no ponto anterior;

23º - Só foi depositada na conta n.º ...4500 a quantia de € 55.969,88 (cinquenta e cinco mil novecentos e sessenta e nove euros e oitenta e oito cêntimos);

24º - Em 2001, foi diagnosticado ao referido DD uma lesão na coluna vertebral, tendo o mesmo sido operado no Hospital ... e tendo as despesas de tal intervenção cirúrgica sido custeados pela irmã da A., GG e seu marido HH, pais dos RR;

25º - Em 2006 ao falecido DD foi-lhe diagnosticada uma doença oncológica no intestino e, por informação do médico, Dr. II, ..., foi o mesmo orientado apara o IPO, …, doença em que foi acompanhado pelo seu sobrinho, Engº, JJ, marido da R. BB;

26º - Naquele estabelecimento hospitalar foi comunicada uma previsão de operação a cerca de dois meses para ser realizada;

27º - Dada a natureza da doença que afectava o aludido DD, a família dos RR., nomeadamente os seus pais, decidiram mudar de estabelecimento hospitalar e contrataram o mesmo cirurgião do IPO para levar a cabo a necessária e urgente intervenção cirúrgica no Hospital …..., no ….;

28º - Todas as despesas com a intervenção cirúrgica e internamento foram pagas pela irmã da A., BB da GG e seu marido, HH;

29º - Depois de operado, o falecido DD, retomou os tratamentos no IPO, sendo sempre acompanhado nas deslocações ao … pelo Engº. JJ, marido da R., cujas despesas foram sempre custeadas pelos pais dos RR., referidos no ponto anterior;


30º - Em 2009, o irmão da A., DD, foi operado à vesícula no Hospital ... e, embora não tivesse havido despesas a pagar como internamento e a intervenção cirúrgica, sempre foi acompanhado pelo sobrinho, referido no ponto anterior;

31º - E sempre foi assim até à morte deste, que ocorreu a 22 de Janeiro de 2012, sendo acompanhado, até à hora da morte, pelos seus familiares, entre os quais os RR. e os pais destes;


32º - E, se assim foi resumidamente, no acompanhamento nas doenças do tio dos RR. DD, o mesmo se passou com tratamentos de doenças da A. concretamente,

33º - Em 2001 foi diagnosticado à A. cancro da mama tendo a mesma sido operada no Hospital de Santa BB, ficando a mesma ali internada em quarto particular, sempre acompanhada pela ora R., BB, dia e noite, tendo sido ela e seus pais que liquidaram todas as despesas e posterior acompanhamento durante os tratamentos de radioterapia e consultas ao longo de onze anos no Hospital de ..., no …, estabelecimento onde o médico operador também prestava serviço;

34º - Em Fevereiro de 2012 teve a A. necessidade de ser intervencionada para lhe ser extraído um gânglio no axilar direito, sendo a A. operada no Hospital ..., ficando a mesma ali internada em quarto particular, sempre acompanhada pela R. BB, dia e noite, tendo esta e seus pais liquidado todas as despesas e posterior acompanhamento no IPO durante anos para vigilância médica,


35º - Até para conseguir tratamento pós-operatório no IPO, foi indicada a morada da A. em casa duma filha da R. BB, na cidade …, enquanto a verdadeira morada da A. era – e foi – em ...;

36º - Regressada a casa da sua irmã, a referida BB da GG, em convalescença, foi decidido pela A. realizar obras de arranjo da casa onde vive, respeitando a vontade do defunto DD que sempre pensou em realizá-las, mas não o fez em vida, tendo a A. residido e pernoitado em casa da sua irmã, durante o todo o período de realização das referidas obras;

37º - Tais obras foram orçadas em €10.660,00;

38º - Para pagamento desta quantia foram passados os cheques abaixo referidos:

a) em 01/03/2012, cheque nº ………..796, no valor de €2.500,00;

b) em 08/03/2012, o cheque nº ……..797, no valor de €1.500.00;

c) em 10/03/2012, o cheque nº ……..799 no valor de €2.200,00;

39º - Para a parte de carpintaria foram passados os seguintes cheques abaixo referidos:

d) em 08/03/2012, cheque nº ……...798, no valor de €2.000,00;

e) em 21/03/2012, cheque nº ………800, no valor de €1.100,00;

f) em 20/03/2012, cheque nº ……….801, no valor de €1.360,00;


40º - Sempre foram os RR., acompanhados por seus pais, irmã GG e marido, HH, que sempre acompanharam a A. nos tratamentos das suas doenças, que sempre auxiliaram quer a A. quer seu defunto irmão nas intervenções cirúrgicas, recorrendo à medicina privada sempre que as circunstâncias e a premência dos tratamentos o exigia;

41º - Sempre a A., após o falecimento do seu irmão, beneficiou de apoio dos RR. e dos seus pais, que a levavam para passar férias, em estabelecimentos hoteleiros, no país e no estrangeiro, sempre convidada para festas da família dos RR. e almoçava semanalmente aos sábados com estes, que custeavam as despesas daí resultantes num espírito de solidariedade e de família que seria sempre de enaltecer;


42º - A A. assinou o documento de liquidação da conta com o nº…5560 e assinou a ordem de transferência de fundos dessa conta para a conta nº…3200, tendo acompanhado os RR. à agência da CGD de ... para assinar a abertura de tal conta nº…3200, da qual os RR. ficaram únicos titulares;


43º - Em 2015 foi aberta a conta nº….4500, onde a A. figurava como titular juntamente com os RR., para onde foi transferida a importância depositada na conta nº… 3200;

44º - Desta conta com o nº…3200 foram levantadas por cheque as importâncias pagas com a reparação da casa, referidas no anterior ponto 37º, no valor de €10.660,00;

45º - Foi aberta uma conta na agência de ... do BIC (conta nº ...001) que já foi cancelada por levantamento total dos fundos existentes;

46º - Até pelo menos início de 2017, nunca a A., e o seu defunto irmão, DD, foram auxiliados nas suas dificuldades por mais quaisquer familiares.

2.2. Factos não provados


a) que a operação material e de facto de abertura da conta nº ...4500 e consequente gestão foi organizada e efectuada pelos réus;

b) que tivesse ocorrido a transferência referida no ponto 43º dos factos provados dado que a autora estava a ficar mentalmente perturbada e começou a perguntar pelo dinheiro;

c) que em Fevereiro de 2012 a A. resolveu dar aos RR. a quantia do saldo da conta PT ...5560, existente na Caixa Geral de Depósitos de ..., no valor de € 68.407,51;

d) que tivesse sido para o efeito referido no ponto anterior que foi aberta a conta em nome dos RR. na Caixa Geral de Depósitos, em ..., com o nº ...3200, e que foi ordenada a transferência da importância depositada na conta de ... para tal conta;

e) que a Autora havia dado tal quantia a ambos os RR. e que essa atitude se deveu ao facto de os RR. terem ao longo de dezenas de anos sido o sustentáculo no apoio à A., tal como ao seu irmão, o também tido dos RR., DD, como agradecimento dos cuidados que tiveram com seu irmão e com ela;

f) que aquando do acompanhamento dos RR. a ... para a abertura da conta nº ...3200, em nome dos RR., a A. lhes tivesse dado o dinheiro por sempre terem tratado dela, ficando tal quantia na plena disponibilidade dos RR., que a podiam movimentar sempre e como quisessem;

g) que a conta nº ...3200 tivesse sido constituída no respeito pela vontade de a A. manifestar gratidão para com os RR. e que aquela tenha assinado a ordem de transferência de fundos para tal conta para os colocar na total disponibilidade dos RR..

3. Direito aplicável

3.1. Sindicação do art. 662º na reapreciação da matéria de facto pela Relação (e aplicação do art. 682º, 3)

3.1.1. Os Réus reagem contra o acórdão proferido pela Relação, pedindo a repristinação do decidido em 1.ª instância, sustentando no essencial que foram violadas as regras sobre a apreciação dos meios de prova previstas no art. 662º, 1 («A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuseram decisão diversa.») e 2, do CPC, sendo esta norma adjectivo-processual susceptível de fundar a revista nos termos do art. 674º, 1, b), do CPC, ainda que sempre limitada pela regra obstativa do art. 662º, 4, do CPC («Das decisões da Relação prevista nos n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»).

Em particular, os Recorrentes sustentam que o acórdão recorrido violou as regras que presidem à modificação operada na matéria de facto, no que toca à consideração como factos não provados dos itens correspondentes às als. c) a g) dos factos elencados em 2.ª instância como matéria de facto não provada[1].  

Quanto ao fundamento, note-se que os Recorrentes não convocam a revista no âmbito de aplicação e preenchimento do art. 674º, 3, 2ª parte, do CPC, a que alude o art. 682º, 2, do CPC – «A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674º.» –, como hipótese residual em face da regra de cognição do STJ prevista pelo art. 682º, 1, do CPC – «Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.» Ou seja, não é alegada a violação de norma legal que exija prova vinculada para a existência do facto ou norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, considerados como vícios de direito em sede de direito probatório material a conhecer no âmbito dos poderes do STJ.

Pois bem.

3.1.2. O excerto pertinente do acórdão recorrido encontra-se na seguinte passagem (depois de se terem eliminados alguns dos pontos da matéria de facto não provada por serem “matéria conclusiva” e “de direito”, ao abrigo do art. 662º, 2, c), do CPC):


“Apuremos agora das alterações defendidas pela Recorrente/Autora aos pontos da matéria de facto provada supra identificados [pontos 26, 27, 28, 29, 48, 49, 50 e 51 dos factos provados em 1.ª instância].
Cumpre referir que, nos termos do art. 607º nº 5 do CPC, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (essa livre apreciação só não abrange as situações referidas na segunda parte de tal preceito), não se podendo esquecer que o tribunal, nos termos do art. 413º do CPC, “deve tomar em consideração todas as provas produzidas”.
Ou seja, a prova deve ser apreciada globalmente, sendo corolário em sede de recurso de tal comando o disposto no art. 662º nº 1 e 2, alíneas a) e b), do CPC, quando dali com evidência se conclui que a Relação “tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (como refere António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, 2018, pág. 287).
Tendo presente estes pressupostos, analisemos os elementos probatórios indicados pela Recorrente/Autora (depoimentos por si indicados e cartas por si enviadas aos Réus e resposta destes a tais cartas) e o seu confronto com outros, nomeadamente os depoimentos referidos pelos, nesta parte, Recorridos.
Como já se disse acima, está em causa saber se, em sede factual, a Autora deu aos Réus o dinheiro que veio a ser depositado na conta bancária da CGD com o nº…3200, só pelos Réus titulada.
(…)
Analisando o teor daqueles variados depoimentos, decorre dos três primeiros que tais testemunhas ouviam a Autora afirmar que o dinheiro que estava na conta bancária da CGD (que foi transferido de uma conta de ... para contas de ...) era dela, que não o tinha dado aos Réus e referiram ainda que a Autora pediu a estes tal dinheiro.
Por outro lado, dos depoimentos das últimas duas testemunhas decorre que estas terão ouvido da Autora que esta tinha dado aquele mesmo dinheiro aos Réus.
A par destes depoimentos, temos o teor da carta acima referida enviada pela Autora aos Réus em que aquela interpela estes sobre três concretos pontos:
- sobre a revogação da procuração e/ou a renúncia dos Réus à mesma;
- sobre a conta bancária da Caixa Geral de Depósitos, em que diz aos Réus que não quer que estes a movimentem a qualquer título e que quer que estes deixem de figurar em tal conta, invocando expressamente ser “única proprietária do dinheiro/valores depositado”;
- sobre a regularização da transmissão a seu favor de fracções habitacionais de prédio que identifica.
A tais pontos de tal carta respondem os Réus, dizendo: quanto à procuração, que não estão na disposição de renunciar nem modificar a mesma; quanto à regularização da transmissão das fracções habitacionais, que desconhecem qualquer direito que baseie tal pretensão da Autora; e quanto ao ponto restante, o relativo à conta bancária em causa, dizendo “Mas fique a sua constituinte descansada que os m/clientes não farão qualquer operação que contra os bens que são total ou parcialmente da mesma”.
Ora, esta resposta dos Réus – a um ponto da carta da Autora em que ela afirmava, além de pretender ser ela em exclusivo a movimentar tal conta bancária, a sua propriedade exclusiva em relação ao dinheiro que nela se encontra depositado –, na medida em que na mesma não se questiona aquela invocação de propriedade exclusiva do dinheiro e até se diz, sobre tal assunto, para a Autora ficar descansada pois não farão qualquer operação que vá contra os bens da mesma, não pode, a nosso ver, deixar de ser interpretável como traduzindo o reconhecimento por parte dos Réus de que o dinheiro em causa era ou, no mínimo, também era, da Autora.
Se assim não fosse, o mais natural seria os Réus porem logo ali os “pontos nos ii” – como o fazem bem claramente quanto à revogação e/ou renúncia da procuração e quanto à regularização da transmissão das fracções habitacionais –, lembrando à Autora que ela lhes tinha anteriormente dado aquele dinheiro e que por isso o mesmo já não seria dela… (aqui acompanhamos o argumento que sob a conclusão 20º do seu recurso apresenta a Recorrente/Autora, quando ali refere que aquela reacção dos Réus, segundo as regras da experiência, é “não consentânea com quem ameaçado um bem que é legitimamente seu porque, quando assim é, o legítimo titular de tal bem esclarece logo a questão e reafirma a sua legítima propriedade”).
Esta resposta dos Réus à carta da Autora que se vem de analisar, digamo-lo ainda, descredibiliza fortemente a versão das duas últimas testemunhas acima referidas (LL e MM, cônjuges dos Réus) quanto à factualidade em análise.
Por outro lado, não pode, a nosso ver, também deixar de ser interpretado naquele sentido (do reconhecimento da pertença de tal dinheiro à Autora), a ocorrência factual dada como provada (e não impugnada em sede de recurso) de os Réus, em Julho de 2015, terem transferido dinheiro da conta por si só titulada, com o nº…3200, onde estava o dinheiro a si alegadamente dado pela Autora em 2012, para uma nova conta bancária, com o nº…4500, já co-titulada por si e pela Autora (factos provados sob o ponto 53º), pois não se provou (e tal matéria factual também não é posta em causa no presente recurso) que tal colocação do dinheiro nesta nova conta, como alegado pelos Réus, só por si foi feita porque a Autora estava a ficar mentalmente perturbada e começou a perguntar pelo dinheiro (5º item dos factos não provados referidos na sentença recorrida).

Note-se ainda que a Autora, não obstante ser uma pessoa ligada mais ao campo e aos animais (depoimento da testemunha MM) e com pouca instrução (depoimentos de MM e NN), é tida como uma pessoa séria (depoimento de OO), qualidade esta que não é minimamente posta em causa em nenhum dos depoimentos prestados em audiência.
Deste modo, face aos pedidos do dinheiro verbalizados pela Autora junto dos Réus, que vieram depois a culminar com a carta que a mesma, através do seu advogado, enviou aos Réus e que foi respondida por estes nos termos que se analisaram, e tendo em conta, pelo meio, a transferência do dinheiro de conta só dos Réus para conta co-titulada por estes e pela Autora, é de concluir – sem prejuízo, em sede de eventuais soluções plausíveis da questão de direito, de eventuais efeitos jurídicos que possam decorrer das aberturas de contas bancárias, titularidade das mesmas e transferências de dinheiro entre elas – que não se mostra feita prova de que a Autora deu aos Réus o dinheiro que veio a ser depositado na conta bancária da CGD com o nº…3200, só pelos Réus titulada, ou, ainda que tal no limite se queira conceder, que há manifesta dúvida sobre a ocorrência de tal factualidade.
Como tal, sempre haverá que dar tal factualidade como não provada – e isto quer pelo raciocínio de não prova da mesma a que se chegou nos termos que explicámos, quer mesmo por aquele raciocínio residual a título de dúvida, pois, como expressamente se prevê no art. 414º do CPC, “a dúvida sobre a realidade de um facto (…) resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (parte esta que, no caso, são inequivocamente os Réus, que o alegaram a seu favor na contestação que deduziram à acção).

Na sequência de tudo o que anteriormente se decidiu, vai alterar-se a matéria de facto da sentença recorrida nos seguintes termos:
- os itens de factos não provados que atrás se identificaram e que se considerou integrarem matéria conclusiva e de direito são dela retirados;
- a matéria dos pontos 26º, 27º, 28º, 29º, 48º, 49º, 50º e 51º integrante de factualidade que se considerou resultar não provada passará para os factos não provados;
- a factualidade que em tais pontos é cindível daquela factualidade não provada permanecerá como provada e será integrada – quando ainda o não esteja – nos pontos dos factos provados a ela atinentes (pois, como da sentença recorrida se vê, há diversos casos de repetição e dispersão de segmentos da mesma factualidade provada por diversos pontos – veja-se, por exemplo, o conteúdo dos pontos 9º, 10º, 22º, 23º, 25º, 27º, 28º, 51º, 52º, 53º, 54º, 55º e 58º).”

Ao STJ permite-se verificar se o uso dos poderes conferidos pelo art. 662º, 1 e 2, do CPC foi exercido dentro da imposição de reapreciar a matéria de facto de acordo com o quadro e os limites configurados pela lei para o exercício de tais poderes(-deveres) – não uso ou uso deficiente ou patológico –, que, no essencial e no que respeita ao n.º 1 do art. 662º, resultam da remissão do art. 663º, 2, para o art. 607º, 4 e 5, do CPC (o n.º 2 já é reforço dos poderes em segundo grau).

Resulta da análise da apreciação da impugnação da matéria de facto que o acórdão recorrido procedeu a uma análise da prova testemunhal e documental (cartas trocadas pelas partes, com mediação de advogado), utilizando um método relacional (para as duas primeiras modalidades de prova), dotado de crítica racional e alinhando o conjunto factual na sua globalidade. Não se demitiu nem se refugiou em critérios imprecisos nessa análise, antes se realiza uma convicção própria, reflectida na forma e nas razões com que se funda a modificação e reconfiguração da matéria de facto provada e não provada. Assim se corporizou e assumiu a 2.ª instância como um verdadeiro e próprio segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise, ainda que sem as virtualidades da 1.ª instância, mas com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo[2]. Regendo-se no domínio da livre apreciação da prova – cfr., para a prova testemunhal, o art. 396º do CPC – e sem se vislumbrar que tenha desrespeitado os limites da força probatória de qualquer meio de prova, muito menos imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório material (no que aqui interessa, para a força probatória de prova documental, cfr. art. 376º do CCiv.) – logo, actuação processualmente lícita (art. 607º, 4, 5, 1ª parte, 663º, 1 e 2, CPC) e insindicável nos termos dos arts. 662º, 4, e 674º, 3, 1.ª parte, do CPC.

Por outro lado, é manifesto que a fundamentação trazida pelo acórdão recorrido não se esvaiu em considerações genéricas ou alusões vagas à tarefa de reapreciação fáctica para concluir sobre o mérito de tal impugnação; antes deu-se cumprimento aos princípios reitores do art. 662º, 1, em ligação com o art. 607º, 4 e 5, do CPC.

Por fim, enfatize-se que o art. 662º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabiliza os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância, proporcionando ao interessado a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância (nomeadamente com o apoio da gravação dos depoimentos prestados, juntamente com os demais elementos probatórios que fundaram a decisão em primeiro grau) para um efectivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito. Por isso a doutrina tem acentuado que, nesse segundo grau de jurisdição, se opera um verdadeiro recurso de reponderação ou de reexame, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base á decisão da matéria de facto em causa (em especial os depoimentos gravados), que conduzirá a uma decisão de substituição, uma vez decidido que o novo julgamento feito modifica ou altera ou adita a decisão recorrida.[3] Sempre – e este é o ponto – com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância (é perfeitamente elucidativa a remissão feita pelo art. 663º, 2, para o art. 607º, que abrange os seus n.os 4 e 5) e, destarte, sem qualquer subalternização – inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento – da 2.ª instância ao decidido pela 1.ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto (provada e/ou não provada), precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialecticamente construída e, acima de tudo, independente da convicção de 1.ª instância[4].

Neste ponto, destaque-se o recurso feito ao art. 414º do CPC como critério de sanação de dúvidas sobre a realidade factual que se reapreciou no segundo grau de jurisdição.


Em suma, verifica-se uma (re)apreciação sem desconformidade legal de força probatória e feita em regime de prova livre e “não tarifada”, se e enquanto tal insindicável de acordo com os arts. 674º, 3, e 662º, 4, do CPC.

Soçobra, por isso, manifestamente, a pretensão dos Recorrentes quanto à ilicitude da modificação supostamente viciada, afectando inexoravelmente as Conclusões pertinentes.

3.2.2. Em acrescento, e por último, os Recorrentes ensaiam ainda a aplicação ao caso do art. 682º, 3, 2ª parte, do CPC: devolução do processo à 2.ª instância por alegadamente terem ocorrido «contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito».

Ora, não julgamos que a reapreciação da matéria de facto consistente na migração de factos provados na 1.ª instância para o elenco de factos não provados tenha afectado a congruência factual subjacente ao litígio e, com isso, tenha inviabilizado a correcta aplicação do direito – o que poderia, numa última frente de excepcionalidade de tratamento da matéria de facto fixada pelo acórdão da Relação impugnado, atribuir o exercício da competência do art. 682º, 3, do CPC.

Com efeito, não se vê dissonância, na perspectiva da análise crítica feita pela Relação da prova pertinente, na conjugação dos factos considerados não provados c) a g) com os factos provados com pertinência para averiguação jurídica da titularidade-propriedade das quantias em dinheiro depositadas e transferidas pelas contas bancárias assinaladas nos autos – em particular, os factos provados 7.º a 11º, 13º a 15º, 21º a 23º e 42º a 45º. 

             

Improcede, por isso, também por esta perspectiva, a Conclusão 6.ª dos Recorrentes.

3.2. Nulidade do acórdão recorrido

Os Recorrentes, no final do seu argumentário recursivo, apontam ao acórdão recorrido os vícios das als. b) e c) do art. 615º, aplicáveis por força do art. 666º, 1, do CPC.

Quanto à al. b), a lei censura, em rigor, a ausência de qualquer fundamentação e não a fundamentação insuficiente ou deficiente, que, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível, é diferente de uma “falta absoluta de motivação”[5].
No que toca à al. c), no fundamento alegado, a lei prevê a contradição intrínseca da decisão judicial, pela circunstância de “os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem logicamente a uma conclusão oposta ou, pelo menos, diferente daquela que consta da decisão”[6].

           

Ora, pelo que foi dito e desenvolvido para o ponto 3.1.2.:

— não se vislumbra que haja falta de fundamentação, muito menos na vertente de ausência total (censurada pela lei), bem pelo contrário, considerando a fundamentação crítica e relacional para a visada modificação dos factos relativos à matéria provada e não provada;
— não se regista que haja qualquer incompatibilidade entre os fundamentos usados e a decisão tomada, a título próprio e legítimo (e, como vimos, lícito), quanto à decisão fáctica, nomeadamente porque o sentido apontado por tais fundamentos não contradizem de todo o  resultado decisório (independentemente do acerto da decisão, que não se discute por esta via) – como, aliás, se concluiu: não se mostra feita prova de que a Autora deu aos Réus o dinheiro que veio a ser depositado na conta bancária da CGD com o nº…3200, só pelos Réus titulada, ou, ainda que tal no limite se queira conceder, que há manifesta dúvida sobre a ocorrência de tal factualidade. Como tal, sempre haverá que dar tal factualidade como não provada – e isto quer pelo raciocínio de não prova da mesma a que se chegou nos termos que explicámos, quer mesmo por aquele raciocínio residual a título de dúvida, pois, como expressamente se prevê no art. 414º do CPC, “a dúvida sobre a realidade de um facto (…) resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (parte esta que, no caso, são inequivocamente os Réus, que o alegaram a seu favor na contestação que deduziram à acção).”
           
Destarte, improcede por fim a Conclusão 8.ª apresentada pelos Recorrentes em favor do seu intento recursivo.

III) DECISÃO

Em conformidade, julga-se improcedente a revista.

Custas pelos Recorrentes.

STJ/Lisboa, 3 de Novembro de 2021

Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

__________________________________________________


[1] A saber, reiterando nesta oportunidade:
“c) que em Fevereiro de 2012 a A. resolveu dar aos RR. a quantia do saldo da conta PT ….5560, existente na Caixa Geral de Depósitos de ..., no valor de € 68.407,51;
d) que tivesse sido para o efeito referido no ponto anterior que foi aberta a conta em nome dos RR. na Caixa Geral de Depósitos, em ..., com o …3200, e que foi ordenada a transferência da importância depositada na conta de ... para tal conta;
e) que a Autora havia dado tal quantia a ambos os RR. e que essa atitude se deveu ao facto de os RR. terem ao longo de dezenas de anos sido o sustentáculo no apoio à A., tal como ao seu irmão, o também tido dos RR., DD, como agradecimento dos cuidados que tiveram com seu irmão e com ela;
f) que aquando do acompanhamento dos RR. a ... para a abertura da conta nº ….3200, em nome dos RR., a A. lhes tivesse dado o dinheiro por sempre terem tratado dela, ficando tal quantia na plena disponibilidade dos RR., que a podiam movimentar sempre e como quisessem;
g) que a conta nº ….3200 tivesse sido constituída no respeito pela vontade de a A. manifestar gratidão para com os RR. e que aquela tenha assinado a ordem de transferência de fundos para tal conta para os colocar na total disponibilidade dos RR.”.
[2] V. por todos ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 662º, págs. 284 e ss, 290.
[3] V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A impugnação das decisões judiciais”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 395-396, 399-400, 400, 402-403. 
[4] V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia”, CDP n.º 44, 2013, págs. 33-34, 36; na jurisprudência, v., exemplificativamente, os Acs. do STJ de 10/7/2012, processo n.º 3817/05.6TBGDM-B.P1.S1, Rel. FERNANDES DO VALE, e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, Rel. AZEVEDO RAMOS, in www.dgsi.pt
[5] Em conjunto: ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, Código de Processo Civil anotado, Volume V, 3.ª ed. (reimp. 2012), Coimbra Editora, Coimbra, sub art. 668º, págs. 139-140, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Composição da acção”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1999, págs. 221-222.
[6] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Composição da acção”, loc. cit., pág. 224.