Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
658/13.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7º SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
GABINETE PORTUGUÊS DA CARTA VERDE
REEMBOLSO
SEGURO AUTOMÓVEL
ÓNUS DA PROVA
CULPA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 05/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL ( EXTRACONTRATUAL ) / RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL.
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL / FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL / REEMBOLSO.
Legislação Nacional:
ACORDO MULTILATERAL DE GARANTIA (AJUSTADO ENTRE OS GABINETES NACIONAIS, ENTRE OS QUAIS GABINETE PORTUGUÊS DE CARTA VERDE, QUE ESTÁ EM VIGOR DESDE 01-08-2003 E QUE SUBSTITUIU A CONVENÇÃO COMPLEMENTAR ENTRE GABINETES NACIONAIS, ALUDIDA NO N.º 1 DO ART. 26.º DO DL N.º 522/85, DE 31-10): - ARTIGOS 2.º, AL. G), 3.º, AL. D), 5.º, CORPO DO ARTIGO E AL. I).
D.L. N.º 522/85, DE 31-10: - ARTIGOS 1.º, 26.º, N.ºS 1, 2 E 5, 25.º.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA 72/166/CEE DE 24 DE ABRIL DE 1972 (1.ª DIRECTIVA): - ARTIGO 2.º.
DIRECTIVA 84/5/CEE DE 30 DE DEZEMBRO DE 1983 (2.ª DIRECTIVA): - ARTIGO 1.º, N.º4.
Sumário :
I - O DL n.º 522/85, de 31-10 (aplicável ao caso) visou harmonizar o regime jurídico nacional com os objectivos traçados pela 1.ª e 2.ª Directivas Automóvel (Directiva n.º 72/166/CE, de 24-04-1972 e Directiva n.º 84/5/CEE, de 30-12-1983), tendo estabelecido um esquema de reembolso pelo FGA ao Gabinete Português de Carta Verde em consequência das indemnizações devidas por acidente causados no estrangeiro por veículos matriculados em Portugal e cujo responsável não fosse titular de seguro (art. 26.º).

II - O Gabinete Português de Carta Verde é uma associação sem fins lucrativos que desempenha em Portugal as funções de Gabinete Nacional de Seguros, actuando como Gabinete Emissor (responsabilizando-se pelo pagamento de indemnizações por acidentes causados por veículos estrangeiros em território nacional) e como Gabinete Gestor, no âmbito do qual lhe compete assegurar o pagamento das indemnizações mencionadas em I.

III - A responsabilidade por acidentes ocorridos no estrangeiro com veículos de matrícula portuguesa desdobra-se em três graus: o primeiro é entre o Gabinete Emissor do Estado da União Europeia onde ocorreu o acidente e Gabinete Português de Carta Verde, o segundo é entre este e o FGA e o terceiro é entre o FGA e o responsável civil que não segurou o veículo como legalmente lhe era imposto.

IV - Nos termos conjugados da al. d) do art. 3.º e da al. i) e corpo do art. 5.º do Acordo Multilateral de Garantia (ajustado entre os Gabinetes Nacionais, entre os quais Gabinete Português de Carta Verde, que está em vigor desde 01-08-2003 e que substituiu a Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais, aludida no n.º 1 do art. 26.º do DL n.º 522/85, de 31-10), o Gabinete Gestor actua no interesse do Gabinete Emissor mas não é um mero representante deste, detendo poderes de gestão do sinistro, não dependendo o exercício do direito ao reembolso do que pagou da demonstração dos factos atinentes à ocorrência do acidente mas apenas da apresentação dos comprovativos do pagamento destinados à regularização do sinistro.

V - Seria contraditório como o exposto em IV interpretar o n.º 2 do art. 26.º do DL 522/85, de 31-12 no sentido de se exigir ao Gabinete Português da Carta Verde, enquanto Gabinete Emissor, a demonstração da culpa do condutor do veículo de matrícula nacional na produção de acidente de viação noutro Estado da União Europeia, tanto mais que o FGA também responde (sempre como garante da indemnização) perante aquele em casos de responsabilidade objectiva ou pelo risco.

VI - Dado que o Acordo Multilateral referido em IV faz também referência a “acidente provocado por veículo” e estabelece um regime simplificado de reembolso, não se pode extrair da expressão “acidentes causados por veículos” constante do n.º 1 do art. 26.º do DL 522/85, de 31-12 qualquer relevância interpretativa, sendo que a transmissão aludida no n.º 2 desse preceito se refere aos elementos necessários à cabal identificação do acidente (e não à sua dinâmica).

VII - A procedência da acção de reembolso intentada pelo Gabinete Português de Carta Verde contra o FGA depende apenas da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: i) a ocorrência de acidente automóvel num Estado-membro da União Europeia; (ii) a sua causação por veículo matriculado em Portugal e sujeito a seguro obrigatório previsto na legislação portuguesa; (iii) a inexistência, relativamente ao mesmo, de contrato de seguro válido e eficaz: (iv) o pagamento, enquanto Gabinete Emissor, da indemnização satisfeita ao lesado pelo Gabinete Gestor daquele Estado Membro.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório:

O Gabinete Português da Carta Verde instaurou, em 05/04/2013, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo que fosse condenado a pagar-lhe a quantia de 113.743,64 €, acrescida dos juros legais vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que, em 09/07/2000, ocorreu um acidente de viação em Espanha, no qual foi interveniente o veículo de matrícula portuguesa QH-...-..., veículo que estaria seguro na companhia de seguros AGF, em razão do que a seguradora AA passou a gerir o sinistro e, no âmbito dessa gestão, efectuou transacção judicial com os lesados ocupantes do veículo de matrícula portuguesa e prosseguiu negociações com o proprietário da viatura espanhola. Tendo sido, entretanto, informada pela sua representada AGF de que o veículo QH-...-... não tinha seguro e de que, por tal razão, não assumiria o sinistro, a AA reclamou junto do organismo espanhol congénere, BB, com base na Convenção Multilateral de Garantia. O Gabinete Português da Carta Verde assumiu o sinistro e autorizou a BB a prosseguir com a gestão do processo, do que deu conhecimento ao Réu Fundo de Garantia Automóvel

Em 12/01/2004, Gabinete Português da Carta Verde recebeu o pedido de reembolso da BB, que satisfez pelo montante de 113.743,64 €, recusando-se o Fundo de Garantia Automóvel a reembolsá-lo, por sua vez, dessa quantia.

O réu contestou.

No que agora releva, alegou que, nos termos do artigo 55º do DL 291/2007, de 21/08, o Fundo de Garantia Automóvel reembolsa o Gabinete Português da Carta Verde desde que este demonstre que o acidente ocorreu por responsabilidade do condutor da viatura matriculada ou habitualmente estacionada em Portugal, requisito que se não verifica.

Realizada audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou o réu Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao autor Gabinete Português da Carta Verde a quantia de 113.743,64 €, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, contados desde 10/04/2014 até integral e efectivo pagamento.

O réu Fundo de Garantia Automóvel apelou, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa julgado, por unanimidade, a apelação improcedente e confirmado a decisão recorrida.

De novo inconformado, veio o réu interpor recurso de revista excepcional com fundamento no disposto no artigo 672º nº 1 al. a) do Código de Processo Civil, recurso que foi admitido pela formação prevista no nº 3 daquele artigo.

Na alegação de recurso aduziu a seguinte síntese conclusiva:

«A) O Tribunal recorrido negou provimento à apelação, confirmando a decisão de la Instância, tendo o ora Rec.te supra fundamentado a excepcionalidade da presente revista;

B) A decisão de 1ª Instância restringiu os temas da prova e o objecto do litígio á mera comprovação da existência de um acidente de viação ocorrido em Espanha em que foi interveniente um veículo Português que não beneficiava de seguro válido e eficaz;

C) Quando deveria ter entendido que a causa de pedir se destina à efectivação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, devendo para tanto, o Autor efectuar a respectiva prova sobre as circunstâncias do acidente e fundamentar os seus pagamentos, nos termos do disposto no art.º 55° do DL 291/2007 de 21.08.

D) Pois não basta que um veículo circule, sem seguro de responsabilidade civil automóvel válido ou eficaz, para que se lhe possa atribuir a responsabilidade pelo acidente, nem sequer presumi-la, devendo para tanto, ficar demonstrada sua culpa na produção do mesmo, para que possa, no caso em concreto o GPCV reembolsar o Gabinete gestor e consequentemente, ser reembolsado pelo FGA.

E) A douta sentença recorrida violou, assim, os art°s 54°, 55° e 62° nº 1, todos do DL 291/2007 de 21.08».

Finalizou, pedindo a revogação do acórdão recorrido, no âmbito delimitado pelo objecto do presente recurso.

Não houve contra-alegação.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Fundamentos:

De facto:

Vêm provados os seguintes factos:

1) No dia 9 de Julho de 2000, em Espanha, o veículo automóvel de matrícula portuguesa QH-...-... embateu num veículo automóvel de matrícula espanhola.

2) Em Novembro de 2000, a seguradora belga “CC” confirmou à seguradora espanhola “AA” a existência de uma carta verde por si emitida que cobria a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo QH-...-....

3) Nesta sequência, a seguradora espanhola “AA” assumiu a gestão do sinistro automóvel enquanto correspondente da seguradora belga.

4) A seguradora espanhola celebrou transacção judicial com os lesados ocupantes do veículo QH-...-... enquanto correspondente da seguradora belga.

5) Em Março de 2001, a seguradora belga comunicou à seguradora espanhola que a carta verde era falsa e recusou assumir a responsabilidade pelo sinistro.

6) À data referida em 5) a seguradora espanhola já tinha despendido determinado montante, a título de indemnização, com a regularização do sinistro.

7) Em virtude deste facto, a seguradora espanhola solicitou a intervenção do organismo congénere do autor, Oficina Española de Aseguradores de Automóviles, expondo-lhe os factos acima referidos.

8) Este organismo pagou à seguradora espanhola o montante indemnizatório suportado por esta, com o que despendeu, incluindo os encargos de gestão do sinistro, a quantia de €113.743,64.

9) O autor reembolsou, a 5 de Maio de 2008, o organismo congénere espanhol, a pedido deste, da importância referida em 8).

10) A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo QH-...-... não se encontrava transferida, à data do sinistro, para qualquer companhia de seguros, através de contrato de seguro, válido e eficaz.

De direito:

O objecto do presente recurso, tal como está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, está centrado na questão de saber se para a procedência do pedido de reembolso deduzido pelo Gabinete Português de Carta Verde (GPCV) contra o Fundo de Garantia Automóvel (FGA) é exigível também a alegação e prova pelo primeiro de que o acidente ocorreu por culpa do condutor do veículo matriculado em Portugal.

As Instâncias responderam a esta questão, decidindo que na acção instaurada pelo Gabinete Português da Carta Verde para exercício do direito ao reembolso contra o Fundo de Garantia Automóvel não têm de ser também demonstradas as circunstâncias concretas do acidente e, portanto, a culpa do condutor do veículo matriculado em Portugal na produção do mesmo, julgando a acção procedente.

Sobre esta matéria não se conhece qualquer decisão deste Supremo Tribunal de Justiça e daí a sua particular relevância, reconhecida, aliás, na decisão de admissão do presente recurso de revista excepcional.

Com o objectivo de, por um lado, assegurar a livre circulação dos veículos com estacionamento habitual no território do espaço europeu e das pessoas neles transportadas e, por outro, garantir que as vítimas de acidentes causados por esses veículos beneficiem de tratamento idêntico, independentemente do local em que o acidente tenha ocorrido, surgiram cinco directivas comunitárias (posteriormente codificadas numa única: a Directiva 2009/103/CE de 16 de Setembro de 2009), a saber:

- Directiva 72/166/CEE de 24 de Abril de 1972 (1.ª Directiva);

- Directiva 84/5/CEE de 30 de Dezembro de 1983 (2.ª Directiva);

- Directiva 90/232/CEE de 14 de Maio de 1990 (3.ª Directiva);

- Directiva 2000/26/CE de 16 de Maio de 2000 (4.ª Directiva);

- Directiva 2005/14/CE de 11 de Maio de 2005 (5.ª Directiva).

Considerando a data em que ocorreu o acidente de viação a que se reportam os autos – 9 de Julho de 2000 –, apenas as três primeiras interessam, já que as restantes não se encontravam ainda em vigor nessa data.

No que releva para a questão em análise, a 1.ª Directiva Automóvel veio dispor sobre a celebração pelos Gabinetes Nacionais de Seguros de um acordo que responsabilizasse cada Gabinete pela regularização, nas condições fixadas pela legislação nacional do seguro obrigatório, dos sinistros ocorridos no seu território e provocados por veículos com o seu estacionamento habitual no território de outro Estado-membro, quer estivessem ou não seguros (artigo 2.º).

Tal acordo veio, efectivamente, a ser celebrado através da denominada Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais, à qual o Gabinete Português de Carta Verde aderiu em 1986, posteriormente, substituída por um acordo conhecido como Acordo Multilateral de Garantia entre Serviços Nacionais de Seguros, este, por sua vez, substituído pelo Regulamento Geral, que incorporou todas as disposições do Acordo-tipo entre serviços nacionais e do Acordo Multilateral de Garantia num documento único, em vigor desde 1 de Agosto de 2003.

Por sua vez, a 2ª Directiva Automóvel previu a necessidade de criar um organismo (que, entre nós, é o Fundo de Garantia Automóvel) com a finalidade de garantir que a vítima não ficará sem indemnização no caso de o veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado, organismo a quem aquela poderá dirigir-se, directa e prioritariamente, sem prejuízo das disposições aplicadas pelos Estados-membros relativamente à natureza, subsidiária ou não, da intervenção do mesmo e, bem assim, das normas aplicáveis em matéria de sub-rogação (artigo 1º n.º 4).

Com o propósito de harmonizar a legislação portuguesa com os objectivos traçados pelas 1.ª e 2.ª Directivas surgiu o regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel aprovado pelo DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro.

Este diploma, em vigor à data em que ocorreu o sinistro automóvel e, por isso, aqui aplicável, resultou, além do mais, da necessidade de dar cumprimento aos princípios comunitários que visavam a aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel e a abolição da fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar essa responsabilidade com vista a garantir a livre circulação de pessoas e mercadorias.

Nele se estabeleceu, além do mais, um esquema de reembolso pelo Fundo de Garantia Automóvel ao Gabinete Português de Seguros dos montantes por este despendidos ao abrigo da supra referida Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais, em consequência das indemnizações devidas por acidentes causados no estrangeiro por veículos matriculados em Portugal e relativamente aos quais o respectivo responsável não fosse titular de seguro.

Já a 3.ª Directiva Automóvel veio estabelecer que, havendo conflito entre o FGA e o segurador de responsabilidade civil quanto à questão de saber sobre qual deles recai a obrigação de indemnizar a vítima, os Estados-membros devem, para evitar atrasos no pagamento da indemnização, designar a parte que, numa primeira fase, indemnizará aquela, sem prejuízo do reembolso a que houver lugar, princípio este adoptado através do DL n.º 130/94, de 19 de Maio, que alterou o DL n.º 522/85 (artigo 1º).

Resulta, por conseguinte, do que precede que o legislador da União visou, com a criação do referido organismo de indemnização, a protecção das vítimas, tendo deixado para os Estados-membros a possibilidade de darem à intervenção daquele um carácter subsidiário e de regulamentarem os recursos entre esse organismo e os responsáveis do sinistro, bem como as relações com outros seguradores ou organismos da segurança social obrigados a indemnizar a vítima pelo mesmo sinistro.

O Gabinete Português da Carta Verde, doravante designado por Gabinete, é uma Associação constituída por escritura pública em 09 de Outubro de 1986 (D.R. III Série de 21.11.86), sem intuitos lucrativos e de duração indeterminada que tem por objectivo fundamental desempenhar as funções de Gabinete Nacional de Seguros, actuando como Gabinete Emissor e como Gabinete Gestor.

Como Gabinete Gestor é responsável pela indemnização das vítimas de acidentes de viação ocorridos em Portugal e causados por veículos estrangeiros e como Gabinete Emissor assegura o reembolso das indemnizações pagas às vítimas de acidentes de viação no estrangeiro resultantes de sinistros ocorridos no estrangeiro causados por veículos matriculados em Portugal.

Sob a epígrafe «Reembolso do Fundo ao Gabinete Português de Carta Verde e outros reembolsos entre Fundos de Garantia», estabelece o artigo 26º do referido DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro, (na redacção dada pelo DL n.º 368/97, de 23/12) que:

«1 - O Fundo de Garantia Automóvel reembolsa o Gabinete Português de Certificado Internacional de Seguro pelo montante despendido por este, ao abrigo da Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais, em consequência das indemnizações devidas por acidentes causados por veículos matriculados em Portugal e sujeitos ao seguro obrigatório previsto neste diploma, desde que:

a) O acidente ocorra num outro Estado membro da Comunidade Económica Europeia ou num país terceiro, cujo gabinete nacional de seguros tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais ou ainda no trajecto que ligue directamente dois Estados membros, quando nesse território não exista gabinete nacional de seguros;

b) O responsável não seja titular de um seguro de responsabilidade civil automóvel;

c) As indemnizações tenham sido atribuídas nas condições previstas para o seguro de responsabilidade civil automóvel na legislação nacional do país onde ocorreu o acidente, ou nos termos da alínea c) do artigo 5.º, quando o acidente ocorreu no trajecto que liga dois Estados membros.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, o Gabinete Português de Certificado Internacional de Seguro deve transmitir ao Fundo todas as indicações relativas à identificação do acidente, do responsável, do veículo e das vítimas, para além de dever justificar o pagamento efectuado ao gabinete nacional de seguros do país onde ocorreu o acidente».

3 – (…).

4 - Satisfeito o reembolso, o Fundo fica sub-rogado nos termos do artigo 25.º». 

A controvérsia neste recurso radica, essencialmente, em torno da interpretação do nº 2 do preceito agora transcrito, mais concretamente, em dilucidar qual o sentido do segmento normativo «deve transmitir ao Fundo todas as indicações relativas à identificação do acidente, do responsável, do veículo e das vítimas» (nº 2).

Se, como defende o Fundo, à luz deste normativo o Gabinete está onerado com a alegação e prova da dinâmica do acidente, em sentido naturalístico, e, por conseguinte, com a demonstração da culpa do condutor do veículo matriculado em Portugal para obter procedência na acção e ser reembolsado das indemnizações devidas e pagas ao Gabinete Gestor.

Em situações como a dos presentes autos, relativas a acidentes ocorridos em país da União Europeia que envolvem veículos com estacionamento habitual em Portugal, ou seja veículos com matrícula portuguesa, configura-se uma responsabilidade em três graus. Uma responsabilidade de primeiro grau entre o Gabinete Gestor e o Gabinete Emissor (no caso o Gabinete Português da Carta Verde), de segundo grau entre este Gabinete e o Fundo de Garantia Automóvel e de terceiro grau entre o Fundo e o responsável civil, que não cumpriu a imposição de seguro obrigatório contida no artigo 2º do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro.

O Acordo Multilateral de Garantia define «serviço gestor» como “o serviço (…) com competência, no respectivo território, para a gestão e regularização dos sinistros, de acordo com as disposições do presente acordo e da sua legislação nacional, resultantes de um acidente provocado por um veículo automóvel com estacionamento habitual no território de um outro serviço signatário

E define «serviço emissor» como “o serviço (…) do território no qual tem o seu estacionamento habitual o veículo envolvido no acidente num outro território, a quem incumbe cumprir as obrigações perante o serviço gestor, nos termos do disposto no presente acordo” (artigo 2º al. g)). 

O Gabinete Gestor (serviço gestor) deverá actuar no interesse do Gabinete Emissor (serviço emissor), mas é dotado “de competência exclusiva em todas as questões relativas à interpretação da legislação nacional e à regularização do sinistro” (artigo 3º al. d) do Acordo Multilateral).

Se tal lhe for pedido, poderá consultar o serviço emissor antes de tomar uma decisão definitiva. Deverá fazê-lo e obter o acordo do serviço emissor relativamente à parte do sinistro que exceda as condições ou limites das disposições relativas a terceiros na legislação respeitante ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em vigor no território do serviço emissor, caso a responsabilidade esteja abrangida pela apólice de seguro e não exista disposição em contrário naquela legislação (citado artigo 3º al. d) do Acordo Multilateral).

O que significa que o Gabinete Gestor não actua como mero representante do Gabinete Emissor. Tem poderes efectivos de gestão do sinistro e competências próprias, não dependendo o reembolso do que pagou pelo Gabinete Emissor da demonstração dos factos atinentes à ocorrência do acidente.

Efectivamente, regularizado o sinistro pelo Gabinete Gestor, assiste-lhe o direito de reclamar perante o Gabinete Emissor, além do mais, o reembolso “do total da importância paga a título de indemnização pelos danos causados e dos custos e encargos a que o sinistrado tem direito ao abrigo de sentença judicial, ou, em caso de acordo com o sinistrado, a quantia total da referida regularização, incluindo os custos e encargos acordados” (artigo 5º- i) do Acordo Multilateral).

Donde se extrai que cabe na esfera de competência própria do Gabinete Gestor regularizar o sinistro quer em virtude de sentença judicial, quer de acordo firmado com o sinistrado, exigindo-se apenas a apresentação dos comprovativos de pagamento para operar o seu reembolso (corpo do citado artigo 5º).

Neste contexto legal desenhado pelo Acordo Multilateral, não é razoável interpretar o artigo 26º nº 2 do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, com um sentido divergente e exigir ao Gabinete, enquanto Gabinete Emissor ou serviço emissor, a alegação e prova de facticidade integradora da culpa do condutor de veículo de matrícula nacional em caso de acidente em território de outro país da União Europeia para obter o reembolso do Fundo.

Aliás, este não responde perante o Gabinete apenas quando se configura responsabilidade extracontratual fundada na culpa, respondendo também nos casos de responsabilidade objectiva ou pelo risco.

O Fundo de Garantia Automóvel responde perante o Gabinete Português Carta Verde como garante, em posição similar à de uma seguradora, estando a sua obrigação de reembolso do Gabinete, enquanto serviço emissor, dependente apenas da demonstração do cumprimento face ao Gabinete Gestor e não de qualquer outro ónus probatório, designadamente a prova da culpa do obrigado civil.

Contudo, não actua na veste institucional de seguradora, mas de organismo que tem por missão essencial a protecção de vítimas de acidente de viação. Com efeito, no nosso ordenamento jurídico o Fundo de Garantia Automóvel assume um cariz eminentemente social.

Interpretar literalmente o texto do artigo 26º do mencionado DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, seria redutor. O facto de o seu nº 1 se fazer referência a «indemnizações devidas por acidentes causados por veículos matriculados em Portugal», não assume aqui relevância interpretativa, porquanto também o Acordo Multilateral faz referência a sinistros «resultantes de um acidente provocado por um veículo automóvel» e, não obstante, consagra um regime de reembolso simplificado dependente, unicamente, dos comprovativos dos pagamentos efectuados.

A exigência de transmissão pelo Gabinete ao Fundo de todas as indicações relativas «à identificação e circunstâncias do acidente» contida no nº 2 do aludido artigo 26º do DL 522/85 só estaria em contradição com o que consta do Acordo Multilateral se interpretado com o sentido normativo que o recorrente pretende atribuir-lhe.

A transmissão de que se fala tem a ver com os elementos necessários à perfeita identificação do acidente em causa, não envolvendo os respeitantes à sua dinâmica susceptíveis configurar a culpa do lesante.

Para o exercício da sub-rogação legal prevista nos artigos 26º nº 5 e 25º do DL nº 522/85, que permite ao Fundo ressarcir-se do que pagou junto do obrigado civil, este organismo poderá socorrer-se de todas as entidades de cujo concurso careça com vista à cobrança do reembolso que satisfez, sobre estas recaindo um dever de colaboração.

Em síntese conclusiva, que se acolhe, afirmou-se na sentença da 1ª instância, no que releva para o caso vertente, que a procedência da acção de reembolso movida pelo autor Gabinete Português da Carta Verde contra o Fundo de Garantia Automóvel depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) que tenha ocorrido um acidente automóvel num Estado-membro da União Europeia; (ii) que o acidente tenha sido causado por veículo matriculado em Portugal e sujeito ao seguro obrigatório previsto na legislação portuguesa; (iii) que inexista contrato de seguro válido e eficaz; (iv) que o autor tenha pago, enquanto Gabinete Emissor, a indemnização satisfeita ao lesado pelo Gabinete Gestor do Estado-membro onde o acidente ocorreu.

E esses pressupostos estão, in casu, presentes, como o evidencia a facticidade provada.  

Na realidade, actuando como Gabinete Emissor relativamente ao acidente de viação ocorrido no dia 9 de Julho de 2000, em Espanha, sinistro em que interveio o veículo de matrícula portuguesa QH-...-..., que não dispunha de seguro válido e eficaz, e uma viatura de matrícula espanhola, que foi embatida por aquele, o Gabinete Português Carta Verde liquidou ao seu congénere espanhol, Oficina Española de Asseguradores de Automóviles (BB), Gabinete Gestor, o valor pago por este a título de indemnização.

Através da presente acção o autor, Gabinete Português Carta Verde, pretende ser reembolsado pelo réu, Fundo de Garantia Automóvel, do que despendeu e que corresponde ao quantitativo peticionado.

E nada obsta, demonstrados que estão os necessários pressupostos à procedência desta acção.

3. Decisão:

Termos em que se nega a revista e se confirma o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 12 de Maio de 2016


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Pires da Rosa