Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1240/15.3T8GRD.C1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO LONES DANTAS
Descritores: DEVER DE OBEDIÊNCIA
DEVER DE ZELO
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO – CONTRATO DE TRABALHO / CESSAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO / DESPEDIMENTO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR / MODALIDADES DE DESPEDIMENTO / DESPEDIMENTO POR FACTO IMPUTÁVEL AO TRABALHADOR / NOÇÃO DE JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO.
Doutrina:
-MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 281, 804 e 807;
-MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho,11.ª Edição, Coimbra, p. 553 e 554 ; 13.ª Edição, Almedina, 2006, p. 564 ; 14.ª Edição, Almedina, 2009, p. 591;
-PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 2010, 5.ª Edição, Almedina, p. 529 e 530.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE TRABALHO (CT): - ARTIGO 351.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 12-05-2016, PROCESSO N.º 44/10.4TTVRL.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 187/2001, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT/TC/ACORDAOS.

Sumário :

1 – A noção de justa causa de despedimento, consagrada no artigo 351.º, n.º 1, do Código de Trabalho de 2009, pressupõe um comportamento culposo do trabalhador, violador de deveres estruturantes da relação de trabalho, que pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral;

2 – Apesar de ilícita, não é proporcionalmente adequada para justificar a aplicação da sanção de despedimento, a recusa de cumprimento de uma ordem do empregador no sentido de ser efetuada uma operação de recolha de leite que envolvia circulação por caminhos que sujeitavam o veículo a trepidações, levada a cabo por um motorista que informou o empregador que não iria aguentar a execução de tarefas associadas àquela operação, sendo certo que havia estado de baixa médica até dias antes, e já a sua saúde se havia ressentido anteriormente com uma tarefa idêntica que lhe havia sido ordenada e que ele acedera a realizar.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

AA instaurou a presente ação para impugnação da regularidade e licitude do despedimento apresentando o competente requerimento, mediante o qual deduziu oposição ao despedimento promovido por «BB, LDA».

Na audiência de partes, frustrando-se a composição amigável do litígio, apresentou o empregador o articulado motivador do despedimento no qual sustentou a regularidade e licitude do despedimento, invocando, à cautela, a responsabilidade do Estado nos termos do artigo 98º-N, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, bem como as deduções previstas no artigo 98º-O do mesmo Código.

Contestou o trabalhador, alegando a falsidade do processo disciplinar – matéria em relação à qual requereu a condenação do empregador, como litigante de má-fé, em indemnização de valor não inferior a € 5.000,00 – e sustentando a invalidade do procedimento disciplinar, por violação do direito de defesa do trabalhador. Alegou ainda a violação do disposto no artigo 357º, nº 4, do Código do Trabalho, impugnando os fundamentos invocados pelo empregador para o despedimento.

Deduziu ainda reconvenção e concluiu pedindo que o Tribunal:

1. Declare inválido, nos termos do artigo 382º, nº 2, alínea c), do Código do Trabalho, o procedimento disciplinar que conduziu ao despedimento e consequentemente condene o empregador a indemnizar o trabalhador nos termos do artigo 389º, nº 1, do Código do Trabalho e a reintegrar o trabalhador, nos termos da alínea b) do referido nº 1 do artigo 389º, sem prejuízo de o trabalhador vir a optar por uma indemnização, nos termos do disposto no artigo 391º do Código do Trabalho; e ainda condene o empregador no pagamento ao trabalhador de todas as prestações pecuniárias vincendas até à data do trânsito em julgado da sentença, a liquidar em execução de sentença, tudo acrescido de juros, à taxa legal, até integral pagamento, conforme o disposto no artigo 390º. Caso assim não se conceda:

2. Declare improcedente a justa causa invocada pelo empregador e consequentemente seja declarado ilícito o despedimento comunicado ao trabalhador, com as legais consequências, condenando-se o empregador ao pagamento de uma indemnização ao trabalhador, nos termos do artigo 389º, nº 1, alínea a), do Código do Trabalho, e a reintegrar o trabalhador, sem prejuízo deste vir a optar por uma indemnização, conforme o previsto no artigo 391º do Código do Trabalho; e ainda no pagamento ao trabalhador de todas as prestações pecuniárias vincendas até à data do trânsito em julgado da sentença, a liquidar em execução de sentença, tudo acrescido de juros, à taxa legal, até integral pagamento. Caso assim não se conceda:

3. Declare abusiva a sanção disciplinar de despedimento aplicada ao trabalhador, nos termos do artigo 331º, nº 1, al b), e/ou alínea d), e, em consequência, seja a empregadora condenada a indemnizar o trabalhador, nos termos gerais e a reintegrar o trabalhador, sem prejuízo deste vir a optar por uma indemnização nos termos do artigo 392º, nº 2, e ainda condenar no pagamento ao trabalhador de todas as prestações pecuniárias vincendas até à data do trânsito em julgado da sentença, a liquidar em execução de sentença, tudo acrescido de juros, à taxa legal, até integral pagamento.

4. Condene o empregador no pagamento do trabalho noturno e suplementar efetivamente prestado pelo trabalhador.

5. Condene o empregador como litigante de má-fé, nos termos do artigo 542º, nº 2, do Código de Processo Civil, e consequentemente seja condenado ao pagamento de uma indemnização, a favor do trabalhador, em valor não inferior a € 5 000,00.

A ação instaurada prosseguiu seus termos e veio a ser decidida por sentença de 30 de abril de 2017, que integrou o seguinte dispositivo:

«I. Na procedência da ação, julgar regular e lícito o despedimento do trabalhador AA, promovido pelo empregador «BB, Lda».

II. Julgando parcialmente procedente a reconvenção, condenar o empregador «BB, Lda» a pagar ao trabalhador AA a importância de € 1 453,19 (mil quatrocentos cinquenta e três euros dezanove cêntimos), acrescida da quantia que se vier a determinar em incidente de liquidação, respeitante ao trabalho suplementar prestado pelo trabalhador AA no período de 11 de agosto a 31 de dezembro de 2010 e nos anos de 2012 e 2015, tendo como limite uma hora de trabalho suplementar por cada dia útil de trabalho efetivamente prestado.

III. Absolver o empregador «BB, Lda» de todos os restantes pedidos formulados pelo trabalhador AA.

IV. Julgar não verificada a litigância de má-fé do empregador «BB, Lda».

V. Fixar o valor da causa em € 109 585,77 (cento e nove mil quinhentos oitenta e cinco euros setenta e sete cêntimos).

VI. Condenar o empregador «BB, Lda» e o trabalhador AA no pagamento das custas do processo, na proporção de 2% (dois por cento) para o empregador e 98% (noventa e oito por cento) para o trabalhador.»

Inconformado com esta decisão, dela apelou o autor para o Tribunal da Relação de Coimbra que conheceu do recurso, por acórdão de 29 de setembro de 2017, nos seguintes termos:

«VI – Termos em que se delibera julgar a apelação parcialmente procedente em função do que se revoga a decisão impugnada pelo que se decide:

Declarar a ilicitude do despedimento do trabalhador AA promovido pela empregadora BB, Lda e, em consequência, (i) condenar esta a reintegrá-lo no mesmo estabelecimento da empresa, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade e (ii) a pagar-lhe todas as retribuições  que aquele deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito da decisão do tribunal, acrescidas dos juros de mora, à taxa legal, a contar da data do trânsito em julgado da decisão que vier a declarar a ilicitude do despedimento.

Custas a cargo do recorrente e da recorrida na proporção de 1/10 para o primeiro e 9/10 para segunda.»

Irresignada com esta decisão, dela recorre a Ré de revista para este Supremo Tribunal, integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«a) À luz do disposto no artigo 80.° do CPT é admissível a revista, o que se requer;

 b) Na decisão recorrida o Recorrido solicitou à Relação de Coimbra a alteração da matéria de facto dada como não provada, mas não a alteração da matéria de facto dada como provada, solicitando que se desse como provado a conclusão vertida sob a letra "m" da matéria de facto dada como não provada;

c) O Tribunal de primeira instância fixara a propósito da matéria de facto dada como não provada (maxime sob a letra "m") que "o trabalhador (Recorrido) logo informou o empregador (Recorrente) que, por motivos de saúde, seria difícil a execução de tais tarefas associadas à recolha do leite, porquanto os caminhos são feitos em más condições, que sujeitam o veículo a trepidações prejudiciais à sua condição clínica";

d) Mas na matéria de facto dada como provada, foi fixado (e sujeito à dupla conforme pelo Tribunal recorrido) que: "O empregador (Recorrente) procede à recolha do leite junto dos produtores de leite, pelo menos, dos distritos da Guarda e de Viseu", (cf. Ponto 9 da matéria de facto da sentença, não alterada pelo acórdão); "Tais tarefas implicam que os motoristas conduzam uma viatura da empresa, destinada à recolha de leite, até à propriedade dos pequenos produtores de leite dos referidos distritos, desçam da referida viatura de forma a ligar uma mangueira do carro do leite a um depósito já previamente instalado nos terrenos dos pequenos produtores de leite, abram a tampa do depósito e injetem a mangueira do carro do leite nesse depósito e pressionem o botão da bomba de extração do leite. Fechem a referida tampa do depósito, recolocando a mangueira no carro de transporte do leite, conduzam o carro do leite de regresso à fábrica, para que seja vazado o conteúdo do depósito num tanque" (cf. Ponto 10 da matéria de facto da sentença, não alterada pelo acórdão); "Em maio de 2015, o gerente do empregador (Recorrente) deu ordem ao trabalhador (Recorrido) para fazer a "volta do leite" em ..., sendo que esta volta compreende as deslocações mais pequenas e (...) ... tem 25,71 km2 de área e, entre a fábrica e o centro de ..., distam 25,5 km" (cf. Pontos 12 e 15 da matéria de facto da sentença, não alterada pelo acórdão); " A volta do leite não é feita todos os dias" (cf. Ponto 13 da matéria de facto da sentença, não alterada pelo acórdão).

 e) Todo o processo gira, portanto, à volta de uma ordem dada diretamente pelo gerente da Empregadora (Recorrente) ao trabalhador (Recorrido).

f) O Tribunal Recorrido ponderada a prova testemunhal - que apreciou ex novo - concluiu que "a verdade é que apenas se provou que o trabalhador disse que não ia aguentar. Assim, não se pode afirmar que o trabalhador transmitiu ao representante do empregador as razões para a recusa, designadamente os problemas de saúde (...) não resulta, contudo, de qualquer meio de prova, que ao empregador tivesse sido transmitido que essa incapacidade se devia à execução, durante poucos dias, como admite o trabalhador, da tarefa de condução na volta do leite".

g) Apesar da prova produzida, no Acórdão conclui-se que "por outro lado, é das regras da experiência que a recolha do leite se faz primordialmente por caminhos agrícolas, não asfaltados, que dão acesso às explorações (...) cuja superfície é propícia a provocar trepidações e saltos nos veículos que nela circulam", e por nessa circunstância adita à matéria de facto dois novos pontos: "O trabalhador informou o empregador que não iria aguentar a execução das tarefas associadas à recolha do leite e esta recolha é feita por caminhos que sujeitam o veículo a trepidações".

h) Os pontos aditados entram em contradição com a demais prova dada como matéria assente, sendo que estes aditamentos não o foram com base na reapreciação da prova,

i) É o próprio Tribunal a quo a referir que de modo algum resulta demonstrado e provado que o Recorrido tenha informado o Recorrente de um qualquer motivo para a recusa, bem como sendo a volta de ... (a que estava na génese da recusa) a ordem dada, esta volta tenha um qualquer caminho cuja superfície é propícia a provocar trepidações.

j) A fls. 23 do acórdão recorrido lê-se: "Em face da materialidade provada não encontramos qualquer justificação para recusa do autor em 11 de maio de 2015 realizar "a volta do leite" na zona de .... (...) Aliás, no dia em 11 de maio de 2015 nenhuma justificação deu para a recusa em efetuar a "volta do leite", volta esta que até não é feita todos os dias."

k) Não se podem usar considerações sobre os caminhos agrários, ou considerandos de que os caminhos agrícolas, não asfaltados, quando há prova produzida sob o caso in concreto e a lei (vertida em sentença ou acórdão) deve aplicar o direito aos factos (provados) e não às generalidades das convicções formadas pelo Tribunal.

I) Por tudo isto não pode a alteração da matéria de facto supra referida manter-se, por ilegal, não se podendo aqui o STJ escudar em que está limitado em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, uma vez que esta limitação não é absoluta, como decorre da remissão que o n° 2 do art. 682° faz para o art. 674°, n° 3, do NCPC, norma que atribui ao Supremo a competência para sindicar o desrespeito de lei no que concerne à violação de norma expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

m) O descrito como alínea "m" da matéria de facto dada como não provada foi corretamente fixado na sentença e erradamente alterado pelo Acórdão recorrido, com influência decisiva na decisão sob recurso, como expressamente se acentua na mesma, o que permite concluir que sem essa alteração, a decisão teria sido a contrária.

n) O acórdão recorrido ao alterar descrito como alínea "m" da matéria de facto dada como não provada violou o disposto nos arts. 128°, n.° 1, alínea e) f) primeira parte e i) e n.° 2; 351° (maxime n.° 1 e 2, alínea a)) e 381° a contrário do Cód. do Trabalho e 662° do NCPC / 712 do CPC (antigo).

o) A isto acresce a conclusão pelo tribunal de primeira instância e pela Relação de que "por isso entendemos que a recusa em cumprir a ordem legitimamente dada foi ilegítima cometendo, assim, o trabalhador uma infração disciplinar".

p) Valorando esta recusa à luz do 351.°, n.° 1 do CT não poderia o Tribunal  da  Relação ter concluído,  [dissentindo]  com  a  primeira instância que: "No caso em apreço, é de referir que o trabalhador tinha mais de 17 anos de antiguidade na empresa, não tinha quaisquer antecedentes disciplinares e que se tratou de uma recusa isolada, não reiterada".

q) E isto porque o trabalhador tinha antecedentes disciplinares - que constam quer do processo disciplinar, apenso aos autos, quer de fls. 6/11 e 7/11 do despacho saneador do Tribunal de Primeira Instância onde se lê: "da nota de culpa resulta que essa "repreensão" foi feita a 6 de abril de 2015."; "ocorrência de janeiro de 2015, não podendo esta ser considerada como fundamento do despedimento." - referindo-se aqui a um antecedente disciplinar que fora desconsiderado dos autos, por prescrição; "O mesmo se dirá quanto à questão da animosidade do trabalhador com o seu superior hierárquico [referindo-se aqui ao Sr. CC, encarregado geral da Recorrente], que não constitui facto a apreciar, uma vez que nada consta a esse respeito da decisão final."

r) Ademais, de fls. 13 e 14 da sentença de Primeira Instância - não contraditado pela Relação - resulta que ponderada a prova se deu como provado que: "Por outro lado, da conduta do trabalhador resultaram prejuízos graves para o empregador"; "A conduta do trabalhador minou a autoridade do empregador, sendo de notar que a ordem lhe foi dada diretamente pelo gerente do empregador. Conjugando estes elementos é de admitir que aquela conduta tornou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, não se vislumbrando, por outro lado, que a reposição da autoridade do empregador pudesse ser alcançada com a aplicação de diferente sanção disciplinar. Conclui-se pois pela licitude do despedimento".

s) Conclui, o douto Tribunal da Relação que "a esta luz, ressalvando sempre melhor opinião, o despedimento do autor revela-se desproporcionado à gravidade da infração e também à culpabilidade do infrator, razão pela qual de decide julgar o despedimento ilícito."

t) Ora, a matéria em análise não se compadece com uma decisão "ressalvando sempre melhor opinião", mas exige uma decisão que aplique a lei aos factos, sob pena de não se completar a Justiça!

 u) Não é uma mera opinião que permite, à luz da lei vigente, que outra instância jurisdicional, altere a decisão firmada pela anterior.

v) A Relação deve mais do que emitir opiniões, validar conceitos e factos, de forma a aferir se o Direito foi corretamente aplicado e no caso in concreto o Tribunal a quo deixa muito a desejar neste petitório.

w) É que os factos sobre o conceito em causa (justa causa) não foram alterados, não foi desacreditada a matéria firmada como provada pelo Tribunal de Primeira Instância,

x) Pelo que jamais poderá entender-se à luz da lei vigente a alteração do despedimento tido como lícito para ilícito, por uma opinião, que desconsidera, sem mais que - e repete-se, porque necessário o vertido a fls. 13 e 14 da sentença de Primeira Instância - não contraditado pela Relação.

y) O dever de obediência é um dos deveres a que o trabalhador está adstrito e vinculado juridicamente em consequência da celebração do contrato de trabalho, sendo que esse dever que caracteriza, grosso modo, a relação laboral estando associado a um dos pressupostos fundamentais qualificadores da natureza  jurídica  do   contrato   de trabalho: a subordinação jurídica.

z) Daí a sua importância como fator essencial inerente à relação estabelecida entre as partes e que o trabalhador não pode desrespeitar pelas consequências que a sua violação - desde que ilegítima - acarreta no âmbito da execução do contrato de trabalho e no domínio organizacional da empresa em que está inserido.

aa) Ora, a recusa do Trabalhador foi considerada quer em sentença, quer em Acórdão de forma categórica como sendo ilegítima.

bb) Sendo essa a razão que à luz do legislador permite penalizar a violação desse dever com o despedimento, integrando-o numa das situações que consubstanciam a justa causa para o despedimento - cf. art. 351° do CT que estabelece que constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.

cc) A desobediência ilegítima, conforme sentença e acórdão, reitera-se concordam ter existido, aparece elencada como uma das situações de "justa causa", cf. alínea a) do 351.°, n.° 2 do CT.

dd) A sentença (e não o acórdão) faz referência: a) Ao quadro da gestão de empresa; b) Ao grau de lesão dos interesses do empregador; c) Ao caráter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros, d) E às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.

ee) O Acórdão omite-se por completo de qualquer valoração da sentença recorrida nesta matéria, nem mesmo apresenta uma fundamentação sua.

ff) Sendo que a Recorrente é uma pequena empresa, na área da produção de queijos, tem menos de uma vintena de colaboradores e o Recorrido estava de tal modo crispado com o responsável da fábrica, "braço direito do patrão", como o mesmo chegou a afirmar nos seus articulados, que não aceitava as ordens que este lhe distribuía, não obstante no giro fabril ser perante o encarregado geral que todos os demais trabalhadores respondem, conforme resultou de forma indiscutível da prova testemunhal produzida em audiência,

gg) E por esse motivo, viu-se forçado o gerente da Recorrente a ter de ser ele a dar as ordens ao Recorrido, ordens essas que ele incumpriu, sem motivo, pergunta-se o Recorrente como pode continuar a ser-lhe exigível que mantenha a confiança no Recorrido, sabendo que este o desautoriza, em última linha e sem motivo bastante?

hh)Note-se que nos presentes autos o que está em causa é o despedimento do Recorrido que foi decretado depois de lhe ter sido instaurado pela Recorrente um processo disciplinar, no qual concluiu que o Recorrido desobedeceu ilegitimamente a ordens precisas que ihe foram dadas pela hierarquia quer pela pessoa do seu encarregado geral (e estas acabaram por não ser objeto de prova por ter o Tribunal  entendido que tinha prescrito o poder disciplinar da Recorrente), quer pela pessoa do gerente da Recorrente.

ii) E na apreciação da decisão proferida pelo poder disciplinar (Recorrente) há que atentar, num quadro de Sentença/Acórdão que aos deveres enunciados acima acrescem os deveres gerais da boa fé e o de o trabalhador dever colaborar e promover a melhoria da produtividade da empresa, nos termos do art. 126° do CT.

jj) Não se podendo abstrair do princípio de que as relações que emergem do contrato de trabalho - intuitu personae - devem pautar-se não só pelo princípio da boa fé, mas desenvolver-se numa base ou relação de confiança, porquanto, uma vez quebrada, integra fundamento de justa causa de despedimento do trabalhador se passível de subsunção no n° 1 do art. 351° do CT.

kk) O que resultou da prova produzida e do acervo fáctico provado foi que: - O Recorrido não cumpriu sem motivo válido as ordens que lhe foram dadas pela Recorrente, sua entidade empregadora e - Que tal causou problemas à Recorrente;

II) Sendo que é a Recorrente que tem o poder de direção e de gestão da sua própria empresa cabendo-lhe definir o tipo de atividade do trabalhador Recorrido de acordo com as necessidades da mesma, desde que não atente contra os direitos e garantias assegurados por lei ao trabalhador e correlativamente a esse poder, tem o trabalhador Recorrido o dever de obediência, ter-se-ia de concluir no Acórdão que viola o dever de obediência aquele que se recusa efetuar o trabalho ordenado e desrespeita as ordens legítimas do empregador.

mm) Ao não proceder assim violou o Douto Acórdão recorrido os artigos arts 351°, n°s 1, n° 2, alíneas a), e e), e n° 3, do CT.

nn) Devendo, em consequência, ser revogado e substituído o Acórdão por uma decisão que dê provimento à pretensão do Recorrente no sentido de se manter a decisão de licitude do despedimento.»

Termina referindo que deverá ser revogado «o Douto Acórdão recorrido e substituído o mesmo por uma decisão que dê provimento à pretensão do Recorrente no sentido de declarar lícito o despedimento promovido pelo Recorrente em relação ao Recorrido».

O recorrido respondeu ao recurso interposto, integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«A - O douto Tribunal a quo entendeu aditar pontos de facto que considerou como provados; entendimento de que a Recorrente discordou.

B - Entende o Recorrido que a matéria de facto decidida pelo Tribunal a quo não pode in casu ser alterada, sob pena de se considerarem violadas as normas previstas no n.° 2 do artigo 682.°, n.° 3do artigo 674°e do CPC.

C - Não se verifica ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência de facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

D - O facto "O trabalhador informou o empregador que não iria aguentar a execução de tarefas associadas à recolha de leite" foi aditado aos factos provados em resultado dos depoimentos das testemunhas DD, EE e FF.

E - O aditamento não desonra o disposto nos artigos 128.°, n.° 1, alínea e), f) e i), n.° 2; 351.° e 381.° do Código do Trabalho (CT) e 662.° do CPC.

F - Por sua vez, o facto "Esta recolha é feita por caminhos que sujeitam o veículo a trepidações" resultou das regras da experiência comum, confirmadas pelas mesmas testemunhas. Foi produzida prova cabal sobre a má qualidade dos caminhos da volta do leite.

G - A reapreciação dos factos que a Recorrente vem agora peticionar desrespeita também o previsto no n.° 3 do artigo 682.° do CPC.

H - Certo é que a matéria de facto produzida é base suficiente à decisão de direito e não ocorrem quaisquer contradições, que permitam alterar a decisão sobre a matéria de facto.

I - Os pontos aditados pelo Tribunal da Relação não entram em contradição com a demais prova dada como matéria assente.

J - O facto de o trabalhador ter informado o empregador que não iria aguentar a volta do leite e que esta volta seria feita por caminhos irregulares, não implica com a matéria dada como provada, nomeadamente, a constante dos pontos 9, 10, 12, 13 e 15.

K - No que à matéria de Direito concerne, importa averiguar a consequência que o referido não acatamento da ordem veio a ter na relação laboral.

L - Para tal, no entanto, não pode a Recorrente expor nova história que molde os factos à conclusão jurídica que pretende demonstrar.

M - Certo é que o Recorrido não tem antecedentes disciplinares na relação laboral de 17 anos que manteve com a Recorrente.

N - Certo é que, ao contrário do que pretende fazer parecer a Recorrente, o trabalhador/Recorrido era pessoa querida entre os seus pares na empresa e sempre cumpridor, dado que se tratou de recusa isolada.

O - No que aos danos para a empresa concerne, também nada ficou provado, nem na sentença da 1.ª instância, nem tão pouco no acórdão de 2.ª instância, segundo o qual:

P - Bem andou o Tribunal da Relação ao entender não existir prejuízo grave, resultando da recusa do trabalhador.

Q - É irrefutável que a Recorrente não logrou provar o dano na autoridade dos superiores hierárquicos da empresa.

R - Ao contrário do que alega a Recorrente no ponto 56 do seu recurso, a sentença não faz qualquer referência ao quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao caráter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.

S - Para tal não bastará que a Recorrente venha expor agora os factos plasmados nos pontos 61 a 69 do Recurso a que ora se responde. Repete-se: não se provou a reiteração dos comportamentos do Recorrido, nem o desinteresse do Recorrido pelo trabalho que desempenhava, nem tão pouco se provou que daquele comportamento tenham resultado consequências para a Recorrente.

 T - No que à proporcionalidade da sanção diz respeito, considera o Recorrido que é o próprio artigo 351.° do Código de Trabalho, nos seus números 1 e 3, que lhe confere proteção, não tendo o mesmo sido desrespeitado no Acórdão recorrido.

U - Da Doutrina e Jurisprudência referida pela própria Recorrente resulta o que ora o Recorrido expõe.

V - Não poderá deixar de se apontar a desproporcionalidade da sanção do despedimento atendendo ao histórico disciplinar do trabalhador, à longevidade e saúde da relação laboral, ao histórico clínico do trabalhador (que sempre se deverá considerar como atenuante do seu comportamento), bem como à inexistência de prejuízos para a entidade empregadora a qualquer nível.

X Deve, assim, ser considerado ilícito o despedimento de que foi alvo o trabalhador, ora Recorrido, mantendo-se o Acórdão do Tribunal da Relação.»

Termina pedindo a confirmação da decisão recorrida.

Neste Tribunal a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta proferiu parecer nos termos do artigo 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho, pronunciando-se no sentido da confirmação da decisão recorrida.

Notificado este parecer às partes não motivou qualquer tomada de posição.

Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 3, e 639.º do Código de Processo Civil, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, estão em causa na presente revista as alterações levadas a cabo pelo Tribunal da Relação na matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância e a licitude do despedimento do Autor.


II

1 - As instâncias fixaram a seguinte matéria de facto:

«1. O trabalhador foi admitido para trabalhar sobre a autoridade e direção do empregador, como motorista, no dia 2 de abril do ano 2000.

2. Ultimamente auferia a retribuição mensal ilíquida de € 623,00, acrescida de um subsídio de alimentação, por cada dia de trabalho prestado.

3. No âmbito da relação laboral, o trabalhador costuma ir buscar trabalhadoras para a fábrica e levá-las no final do dia de trabalho, sempre com um veículo automóvel da empresa.

4. Até data não concretamente apurada, o trabalhador fazia também a distribuição do produto acabado, tendo deixado de realizar essa tarefa com a contratação de serviços de distribuição a terceiros pelo empregador.

5. Quando fazia a distribuição do produto acabado realizava a mesma em todo o território nacional.

6. Já à data em que fazia a distribuição do produto acabado, isto é, antes de o empregador ter contratado serviços de distribuição a terceiros, não se cingiam as funções do trabalhador ao serviço de motorista, já que, nos dias em que não realizavam a distribuição, “faziam o embrulhamento do queijo e do requeijão e a par com isso faziam entregas em ….” e no “… sito na …”, “colocavam os queijos na salga”, “selavam os queijos”.

7. O trabalhador apresentava-se na fábrica do empregador, partindo daí para a distribuição dos produtos fabricados pela mesma, “produtos acabados” (quando tinha essa função) e para a distribuição a clientes mais próximos, bem como para outras funções ligadas à condução que lhe eram adstritas.

8. O trabalhador realizava viagens, aquando da distribuição do produto acabado, que, na sua maioria, implicavam deslocações diárias com dimensão não apurada.

9. O empregador procede à recolha do leite junto dos produtores de leite, pelo menos, dos distritos da Guarda e de Viseu.

10. Tais tarefas implicam que os motoristas conduzam uma viatura da empresa, destinada à recolha de leite, até à propriedade dos pequenos produtores de leite dos referidos distritos, desçam da referida viatura de forma a ligar uma mangueira do carro do leite a um depósito já previamente instalado nos terrenos dos pequenos produtores de leite, abram a tampa do depósito e injetem a mangueira do carro do leite nesse depósito e pressionem o botão da bomba de extração do leite. Fechem a referida tampa do depósito, recolocando a mangueira no carro de transporte do leite, conduzam o carro do leite de regresso à fábrica, para que seja vazado o conteúdo do depósito num tanque.

11. À data da prática dos factos, o empregador tinha 4 trabalhadores com a categoria profissional de motorista.

12. Em maio de 2015, o gerente do empregador deu ordem ao trabalhador para fazer a “volta do leite” em ..., sendo que esta volta compreende as deslocações mais pequenas.

13. A volta do leite não é feita todos os dias.

14. Nos períodos de tempo em que não há leite a recolher, os trabalhadores motoristas desempenham outras tarefas, selam os queijos, arrumando os mesmos na câmara frigorífica, colocando-os em prateleiras, embrulham os queijos e o requeijão, limpam uma quinta.

15. ... tem 25,71 km2 de área e, entre a fábrica e o centro de ..., distam 25,5 km.

16. A distância a percorrer na volta do leite de ... é inferior à da zona de ....

17. A 11 de maio de 2015, sendo-lhe dada ordem para realizar a volta do leite de ..., o trabalhador recusou executar essa tarefa.

18. Em data não apurada foi ordenado, pelo gerente GG, que o trabalhador fosse realizar a designada “volta do leite”, acompanhado de DD.

19. Perante tal ordem, o trabalhador aceitou, com algumas reservas, executar essa tarefa, tendo, desde logo, dito que não ia aguentar.

20. O trabalhador esteve de baixa médica, por doença natural, pelo menos, no período de 19 de janeiro a 8 de maio de 2015.

21. A 7 de janeiro de 2015, a saúde do trabalhador ressentiu-se devido à realização daquela tarefa.

22. Fruto dos problemas laborais, o trabalhador apresenta queixas depressivas e ansiosas, sem grandes melhoras com as sucessivas medicações instituídas, tendo sido orientado para psicoterapia.

23. O trabalhador iniciava o seu dia de trabalho cerca das 07.00 horas, quando ia buscar as trabalhadoras do empregador, trabalhando até às 12.00 horas e retomando o trabalho às 14.00 horas, até às 17.00 horas, levando então as trabalhadoras de regresso, terminando o trabalho cerca das 18.00 horas, sendo este horário mantido de segunda a sexta-feira.

24. O trabalhador informou o empregador que não iria aguentar a execução de tarefas associadas à recolha do leite.[1]

 25. Esta recolha é feita por caminhos que sujeitam o veículo a trepidações[2]

2 – Nas conclusões a) a n) das alegações apresentadas insurge-se a recorrente contra as alterações à matéria de facto dada como provada levadas a cabo pelo Tribunal da Relação de que resultaram o aditamento dos factos a que se referem os pontos n.ºs 23 e 24.

Refere em síntese que os pontos em causa «entram a contradição com a demais provada dada como matéria assente, sendo que estes aditamentos não o foram com base na reapreciação da matéria de facto» e que por tal motivo «não pode a alteração da matéria de facto supra referida manter-se, por ilegal, não se podendo aqui o STJ escudar em que está limitado em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, uma vez que esta limitação não é absoluta, como decorre da remissão que o n° 2 do art. 682° faz para o art. 674°, n° 3, do NCPC, norma que atribui ao Supremo a competência para sindicar o desrespeito de lei no que concerne à violação de norma expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

Realça que a alteração levada a cabo colide com o disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil.

A decisão recorrida fundamentou a alteração da matéria de facto em causa, nos termos seguintes:

«Da alteração da matéria de facto:

Pretende o recorrente que esta Relação considere como provada a seguinte matéria que a 1ª instância entendeu dar como não provada (cfr. conclusões 8ª a 15ª):

“h. Aquando da consulta do processo, a filha do trabalhador verificou ser o processo composto unicamente por 13 folhas, numeradas de trás para a frente.

m. O trabalhador logo informou o empregador que, por motivos de saúde, seria difícil a execução de tais tarefas associadas à recolha do leite, porquanto os mesmos são feitos por caminhos em más condições, que sujeitam o veículo a trepidações prejudiciais à sua condição clínica.

n. O empregador não ignorava que, com a realização da condução na “volta do leite”, o estado de saúde do trabalhador era prejudicado.

o. O empregador emitiu uma ordem consciente dos efeitos nefastos que provocaria no estado de saúde do trabalhador”.

Analisemos.

Relativamente à matéria da alínea “h” diremos que, com esta matéria, pretende o recorrente provar a “falsidade” do PD (v. conclª 8ª “in fine”) da qual, na ótica do recorrente, resultará a ilicitude do despedimento.

Ora, a lei como causa geral da ilicitude do despedimento apenas prevê a ausência absoluta do PD. O despedimento por iniciativa do empregador é ilícito se não for precedido do respetivo procedimento (al. b) do artº 381º do CT); e este procedimento é inválido, gerando a ilicitude do despedimento, apenas nos casos taxativamente previstos nas várias alíneas do nº 2 do artº 382º do CT das quais não consta o facto de ao trabalhador ser disponibilizado apenas parte do PD, ou seja, ter-lhe sido facultado parte incompleta do PD.

Daí que, salvo melhor opinião, a matéria que o recorrente pretende ver incluída no rol dos factos provados mostra-se totalmente inócua para a decisão de direito considerando as soluções plausíveis para essa decisão.

Por isso, não se conhecerá nesta parte, por redundar na prática de um ato inútil proibido, aliás, pela lei, a impugnação.

Quanto à matéria descrita sob a alínea “m” o recorrente assenta o seu desacordo no teor dos depoimentos das testemunhas DD (motorista, trabalhador da empregadora há 17 anos) e EE, engenheira agroalimentar, a trabalhar na entidade empregadora desde 1999) e HH (que trabalhou para empregadora até há cerca de 13/14 anos).

Como a reapreciação da matéria de facto não pode constituir um novo julgamento como se o realizado em 1ª instância não tivesse existido, há que procurar as razões que levaram o julgador a decidir num sentido e não noutro.

No caso, o tribunal a quo entendeu que a matéria da alínea “m” não resultou provada com base na fundamentação que a seguir se transcreve: “no que respeita ao incumprimento da ordem que lhe foi dada, curiosamente a prova testemunhal que foi produzida seria de todo insuficiente para se concluir que o trabalhador incumpriu a ordem.

Na verdade, os depoimentos produzidos a esse respeito enredaram-se numa malha de equívocos, de tal modo que, na verdade, só se pôde julgar provada a recusa por parte do trabalhador na medida em que este, na contestação, admitiu essa recusa.

CC afirmou que foi a testemunha DD quem lhe transmitiu que o trabalhador havia recusado fazer a volta do leite. Também EE imputou o conhecimento dessa recusa à testemunha DD.

Por sua vez, II apenas ouviu comentar que o trabalhador havia recusado fazer a volta do leite, não identificando quem fez o comentário e a razão de ciência dessa pessoa.

Ora, DD relatou que o gerente do empregador ordenou ao trabalhador que fizesse a volta do leite, o que mereceu como resposta do trabalhador que ia mas não ia aguentar. Ou seja, estaria em causa a conversa ocorrida tempos antes da recusa.

Se, como se notou, a recusa resulta demonstrada da sua admissão pelo trabalhador, importa, contudo, concluir que não se provaram os termos em que o trabalhador transmitiu essa recusa, designadamente a versão do empregador a esse respeito.

Quanto às razões para a recusa e o seu conhecimento pelo empregador, importa sublinhar que, como se referiu, inexiste qualquer prova sobre o teor da conversa que foi mantida entre o trabalhador e o gerente do empregador e, mesmo quanto à conversa a que assistiu a testemunha DD, a verdade é que apenas se provou que o trabalhador disse que não ia aguentar.

Assim, não se pode afirmar que o trabalhador transmitiu ao representante do empregador as razões para a recusa, designadamente os problemas de saúde, ainda que, à data da recusa, já o trabalhador houvesse estado de baixa.

Na realidade, estando documentalmente demonstrada a incapacidade para o trabalho, não resulta, contudo, de qualquer meio de prova, que ao empregador tivesse sido transmitido que essa incapacidade se devia à execução, durante poucos dias, como admite o trabalhador, da tarefa de condução na volta do leite” .

A matéria que se pretende ver provada foi retirada do articulado pelo trabalhador, ora recorrente, do artº 95º da contestação e situa-se temporalmente no fim de 2014/inícios de 2015 (cfr. artº 92 da contestação), ou seja, muito antes do episódio de recusa ocorrido no dia 11 de maio de 2015 a que alude o facto 17.

Da audição dos depoimentos das testemunhas (na parte indicada pelo recorrente), que reputamos como credíveis considerando, além do mais, que ambas continuam a ser trabalhadores da empregadora/recorrida, apenas podemos extrair que, conforme se refere na decisão da matéria de facto, o trabalhador recorrente disse ao patrão Srº GG, na conversa presenciada pela testemunha DD, que não ia aguentar  a volta do leite; que não conseguia fazer essa volta por causa dos saltos que o carro fazia e que o recorrente se queixava das costas.

Por outro lado, é das regras da experiência que a recolha do leite se faz primordialmente por caminhos agrícolas, não asfaltados, que dão acesso às explorações agropecuárias, caminhos aqueles cuja superfície é propícia a provocar trepidações e saltos nos veículos que nela circulam.

Estas características são confirmadas não só pelo DD como também pela EE e pelo HH.

Da prova testemunhal não resulta, na nossa análise, que o recorrente, na data da conversa presenciada pelo DD, tenha logo informado o empregador que, por motivos de saúde, seria difícil a execução de tais tarefas associadas à recolha do leite, porquanto os mesmos são feitos por caminhos em más condições, que sujeitam o veículo a trepidações prejudiciais à sua condição clínica.

Apenas entendemos, em face da prova apreciada, ser de aditar à matéria de facto o seguinte:

 - O trabalhador informou o empregador que não iria aguentar a execução de tarefas associadas à recolha do leite; e

 - Esta recolha é feita por caminhos que sujeitam o veículo a trepidações

Por último, relativamente à matéria das alíneas “n” e “o” para além da expressão “efeitos nefastos” integrar um juízo valorativo, a prova apresentada pelo recorrente não infirma a decisão do tribunal a quo no sentido de ter ocorrido um erro de julgamento, caso em que se reclama a intervenção desta Relação ao sindicar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto.

A alteração preconizada pelo recorrente assenta no teor do depoimento da testemunha JJ, diretor da qualidade, trabalhador da empregadora há mais de 20 anos. Deste depoimento apenas se extrai que o recorrente tinha entrado de “baixa” por se queixar das costas.

Por isso, nesta parte, decidimos manter o decidido pela 1ª instância.»

3 - De acordo com o disposto no artigo 682.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, «aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado», sendo que «a decisão proferida pelo Tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, a não ser no caso excecional previsto no n.º 3 do art. 674.º».

Nos termos desta disposição, «o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

Deste modo, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa só pode ser objeto do recurso de revista quando haja ofensa de «disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova».

Acresce que, por força do disposto no n.º 3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil, «o processo só volta ao Tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de Direito, ou quando ocorram contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito».

A decisão do Tribunal da Relação quanto à matéria de facto não pode, assim, ser alterada pelo Supremo Tribunal de Justiça, salvo nas situações acima excecionadas, em caso de erro sobre regras de direito probatório material, ou quando seja insuficiente e deva ser ampliada «em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito».

À luz do exposto, a alteração da matéria de facto levada a cabo pelo Tribunal da Relação, na medida em que a mesma decorre dos poderes atribuídos àquele Tribunal pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil, fora das situações acima referidas, não pode ser objeto de censura por este Tribunal, dela não cabendo recurso, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo.

Analisadas as alterações à matéria de facto introduzidas pelo Tribunal da Relação, não se alcança que os factos agora aditados estejam em contradição com qualquer segmento da matéria de facto que já vinha fixada da 1.ª instância que possam motivar a intervenção deste Tribunal nos termos do n.º 3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil.

Por outro lado, analisada a fundamentação das alterações acima descritas não se alcança que o Tribunal da Relação tenha incumprido os deveres que o oneram nos termos do artigo 662.º do Código de Processo Civil.

Está em causa a ponderação de prova sujeita ao regime da livre apreciação cuja ponderação escapa à sindicância deste Tribunal, conforme decorre do n.º 4 do referido artigo 662.º do Código de Processo Civil.

Por outro lado, não vem invocado que os factos em causa estejam sujeitos a uma «certa espécie de prova» cuja violação justifique a intervenção deste Tribunal, nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil.

De facto, só o erro de apreciação da prova motivado na violação de prova sujeita àquele específico regime é que pode motivar a intervenção deste Tribunal e não o invocado erro de julgamento.

Assim, tendo em conta a natureza dos factos em causa e, bem assim, a fundamentação e os meios de prova usados pela Relação para proceder à alteração da matéria de facto contra a qual a recorrente se insurge, pode concluir-se que o acórdão recorrido não incorreu em violação do direito probatório material, pelo que se entende que deverá prevalecer a apreciação e modificação da matéria de facto efetuada pelo Tribunal da Relação no uso do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no nº 5, do art. 607.º, do CPC, e dos amplos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662.º do mesmo código.

Improcede deste modo a pretensão do recorrente de ver alterada a decisão recorrida na parte em que aditou à matéria de facto dada como provada os mencionados pontos.


III


1 - A prática dos factos eventualmente integradores de justa causa de despedimento ocorreu em 11 de maio de 2015, na vigência do Código do Trabalho de 2009, diploma à luz do qual deverão ser aferidos.

Nos termos do n.º 1 do artigo 351.º daquele Código, «constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho», especificando o número 2 daquele artigo, de forma exemplificativa, várias situações que poderão preencher aquele conceito.

Deste modo, são elementos do conceito de justa causa de despedimento: a) a existência de uma conduta do trabalhador que evidencie uma violação culposa dos seus deveres contratuais; b) que essa conduta seja objetivamente grave em si mesma e nas suas consequências; c) e que por força dessa gravidade seja imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.

Na síntese de M. do ROSÁRIO PALMA RAMALHO, o conceito de justa causa exige a verificação cumulativa de «um comportamento ilícito, grave em si mesmo ou pelas suas consequências, e culposo do trabalhador (é o elemento subjetivo da justa causa); a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral (é o elemento objetivo da justa causa); a verificação de um nexo de causalidade entre os dois elementos anteriores, no sentido em que a impossibilidade de subsistência do contrato tem de decorrer, efetivamente, do comportamento do trabalhador»[3].

Os factos integrativos do conceito de justa causa hão de materializar um incumprimento culposo dos deveres contratuais por parte do trabalhador, numa dimensão suscetível de ser considerada como grave, quer a gravidade se concretize nos factos em si mesmos, quer ocorra nas suas consequências.

Para além disso, exige-se que essa dimensão global de gravidade torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, o que a Doutrina vem chamando elemento objetivo da justa causa.

A subsistência do contrato é aferida no contexto de um juízo de prognose em que se projeta o reflexo da infração e do complexo de interesses por ela afetados na manutenção da relação de trabalho, em ordem a ajuizar da tolerabilidade da manutenção da mesma.

Por isso mesmo, por força do disposto no n.º 3 do mesmo artigo, «na apreciação da justa causa, deve atender-se ao quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao caráter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes».

A ponderação integral deste conjunto de circunstâncias permite projetar os factos imputados ao trabalhador no contexto da relação de trabalho e ponderar a partir daí o reflexo dos mesmos na estabilidade daquela relação, como base do juízo de tolerabilidade da sua manutenção.

A impossibilidade de manutenção da relação laboral deve ser apreciada no quadro da inexigibilidade com a ponderação de todos os interesses em presença, existindo sempre que a subsistência do contrato represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador.

Segundo MONTEIRO FERNANDES, «o que significa a referência legal à “impossibilidade prática” da subsistência da relação de trabalho – é que a continuidade da vinculação representaria (objetivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador» e que «[n]as circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações (pessoais e patrimoniais) que ele supõe seria de molde a ferir de modo desmesurado e violento a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador»[4].

M. do ROSÁRIO RAMALHO, debruçando-se sobre a construção jurisprudencial deste elemento da justa causa, afirma que «o requisito da impossibilidade de subsistência do vínculo laboral deve ser reconduzido à ideia de inexigibilidade, para a outra parte, da manutenção do contrato, e não apreciado como impossibilidade objetiva»; «a impossibilidade de subsistência do contrato de trabalho tem que ser impossibilidade prática, no sentido em que deve relacionar-se com o vínculo laboral em concreto»; «a impossibilidade de subsistência do contrato tem que ser imediata»[5].

Do mesmo modo, conforme se refere no Acórdão desta secção, de 12 de maio de 2016, proferido no processo n.º 44/10.4TTVRL.G1.S1, «podemos afirmar que, para a verificação da justa causa, não basta a mera existência dum dos comportamentos tipificados no nº 2 do referido artigo 351º, pois será sempre necessário que, para além disso, se possa concluir que a conduta do trabalhador provocou a rutura do contrato por se ter tornado impossível manter a relação laboral, impondo-se que a rutura seja irremediável em virtude de não haver outra sanção suscetível de sanar a crise contratual aberta com a conduta do trabalhador» e prossegue-se no referido acórdão considerando que «verificar-se-á a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral quando se esteja perante uma situação de quebra de confiança do empregador, por o comportamento do trabalhador ser suscetível de criar no espírito daquele a dúvida sobre a idoneidade futura da sua conduta, estando portanto o conceito de justa causa ligado à ideia de inviabilidade do vínculo contratual, correspondendo a uma crise extrema e irreversível do contrato»[6]

Deve, contudo, ter-se presente, conforme se referiu no citado acórdão desta Secção de 12 de maio de 2016, proferido no processo n.º 44/10.4TTVRL.G1.S1, que «como a relação de trabalho tem vocação de perenidade, apenas se justificará o recurso à sanção expulsiva ou rescisória do contrato de trabalho, que o despedimento representa, quando se revelarem inadequadas para o caso as medidas conservatórias ou corretivas, de acordo com o princípio da proporcionalidade, constituindo portanto o despedimento, uma saída de recurso para as mais graves crises contratuais, o que implica que o uso de tal medida seja balanceado, face a cada caso concreto, com as restantes reações disciplinares disponíveis, no dizer de MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 11ª edição, Coimbra, págs. 553-554» e prosseguiu-se naquele aresto referindo que «donde ser de concluir que, sendo o despedimento a sanção disciplinar mais grave, só deve ser aplicada nos casos em que o comportamento do trabalhador seja de tal forma grave em si e pelas suas consequências que se revele inadequada a adoção de uma sanção corretiva ou conservatória da relação laboral, sendo portanto necessário que nenhum outro procedimento sancionatório se revele adequado a sanar a crise contratual aberta com a conduta do trabalhador»[7].

O princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 330.º do Código do Trabalho, como parâmetro que deve enquadrar o sancionamento das infrações disciplinares, tem sido objeto de uma profunda reflexão na jurisprudência do Tribunal Constitucional,  atenta a natureza restritiva de direitos que aquelas medidas assumem, e, portanto, sujeitas aos limites constitucionais decorrentes do artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental.

Referiu-se, com efeito sobre esse princípio no acórdão n.º 632/2008, de 23 de dezembro de 2008, o seguinte:

«11. O que seja o conteúdo rigoroso da proporcionalidade, textualmente referida na parte final do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, é questão suficientemente tratada pela jurisprudência do Tribunal.

Com efeito, e como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 634/93 (referido também no Acórdão n.º 187/2001), a ideia de proporção ou proibição do excesso – que, em Estado de direito, vincula as ações de todos os poderes públicos – refere-se fundamentalmente à necessidade de uma relação equilibrada entre meios e fins: as ações estaduais não devem, para realizar os seus fins, empregar meios que se cifrem, pelo seu peso, em encargos excessivos (e, portanto, não equilibrados) para as pessoas a quem se destinem. Dizer isto é, no entanto, dizer pouco. Como se escreveu no Acórdão n.º 187/2001 (ainda em desenvolvimento do Acórdão n.º 634/93): O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).

A esta definição geral dos três subprincípios (em que se desdobra analiticamente o princípio da proporcionalidade) devem por agora ser acrescentadas, apenas, três precisões. A primeira diz respeito ao conteúdo exato a conferir ao terceiro teste enunciado, comummente designado pela jurisprudência e pela doutrina por proporcionalidade em sentido estrito ou critério da justa medida. O que aqui se mede, na verdade, é a relação concretamente existente entre a carga coativa decorrente da medida adotada e o peso específico do ganho de interesse público que com tal medida se visa alcançar. Ou, como se disse, ainda, no Acórdão n.º 187/2001, «[t]rata-se…de exigir que a intervenção, nos seus efeitos restritivos ou lesivos, se encontre numa relação “calibrada” – de justa medida – com os fins prosseguidos, o que exige uma ponderação, graduação e correspondência dos efeitos e das medidas possíveis».

A segunda precisão a acrescentar é relativa à ordem lógica de aplicação dos três subprincípios, que se devem relacionar entre si segundo uma regra de precedência do mais abstrato perante o mais concreto, ou mais próximo (pelo seu conteúdo) da necessária avaliação das circunstâncias específicas do caso da vida que se aprecia. Quer isto dizer, exatamente, o seguinte: o teste da proporcionalidade inicia-se logicamente com o recurso ao subprincípio da adequação. Nele, apenas se afere se um certo meio é, em abstrato e enquanto meio típico, idóneo ou apto para a realização de um certo fim. A formulação de um juízo negativo acerca da adequação prejudica logicamente a necessidade de aplicação dos outros testes. No entanto, se se não concluir pela inadequação típica do meio ao fim, haverá em seguida que recorrer ao exame da exigibilidade, também conhecido por necessidade de escolha do meio mais benigno. É este um exame mais ‘fino’, ou mais próximo das especificidades do caso concreto: através dele se avalia a existência – ou inexistência –, na situação da vida, de várias possibilidades (igualmente idóneas) para a realização do fim pretendido, de forma a que se saiba se, in casu, foi escolhida, como devia, a possibilidade mais benigna ou menos onerosa para os particulares. Caso se chegue à conclusão de que tal não sucedeu – o que é sempre possível, já que pode haver medidas que, embora tidas por adequadas, se não venham a revelar no entanto necessárias ou exigíveis –, fica logicamente prejudicada a inevitabilidade de recurso ao último teste de proporcionalidade.» [8]

Importa, contudo, ter também presente, conforme refere MONTEIRO FERNANDES, que «“a confiança” não pode ser senão um modo de formular o “suporte psicológico» de que a relação de trabalho, enquanto relação duradoura, necessita para subsistir. Ao fazer apelo às ideias de confiança, a jurisprudência reflete a perceção desse elemento mas deriva, não raro, para a deformação consistente em se atribuir relevância absoluta e indiscriminada à “confiança pessoal” do empregador no trabalhador»[9].

2 – Resulta do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 128.º do Código do Trabalho de 2009, que o trabalhador deve «cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes à execução e disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias».

Este dispositivo consagra o dever de obediência que é um dos deveres acessórios mais importantes do trabalhador, sendo um dos corolários da subordinação jurídica que caracteriza a situação do trabalhador no contexto da relação de trabalho e o reverso do poder de conformação da prestação de trabalho que caracteriza a posição do empregador.

Tal como refere MARIA do ROSÁRIO PALMA RAMALHO, «em termos extensivos, este dever envolve o cumprimento das ordens e instruções do empregador «respeitantes à execução ou disciplina no trabalho (…)», pelo que «o trabalhador deve obediência não apenas às diretrizes do empregador sobre o modo de desenvolvimento da sua atividade laboral (ou seja, o poder diretivo), mas também às diretrizes emanadas do poder disciplinar prescritivo, em matéria de organização da empresa, de comportamento no seu seio, de segurança, higiene e saúde no trabalho, ou outras»[10].

Por outro lado, resulta da alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo 128.º do Código do Trabalho de 2009, que o trabalhador deve «realizar o trabalho com zelo e diligência», dispositivo que consagra como sendo mais um dever do trabalhador, o dever de zelo.

O zelo colocado no cumprimento da prestação de trabalho reflete-se sobre a forma como o mesmo é prestado, permitindo aferir se há ou não cumprimento integral da prestação, ou seja, se a atividade prestada preenche ou não os objetivos que dela se esperam no contexto da atividade prosseguida pelo destinatário da prestação, a entidade empregadora.

«A falta de zelo e a negligência têm de ser aferidas por parâmetros objetivos, segundo o padrão do bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, variando em função da atividade a desenvolver»[11].

Voltemos então ao caso dos autos.


3 -  Em causa está a atitude do trabalhador em recusar efetuar a “volta do leite” de ....
Considerou a Relação que, em face da materialidade provada, o trabalhador cometeu uma infração disciplinar ao recusar cumprir aquela ordem que legitimamente lhe foi dada.
No entanto, ao subsumir o comportamento do trabalhador à cláusula geral do nº 1 do artº 351º do CT, a Relação considerou que o despedimento do autor se revela desproporcionado à gravidade da infração e também à sua culpabilidade, atendendo ao facto de o trabalhador ter mais de 17 anos de antiguidade na empresa, não ter quaisquer antecedentes disciplinares e, ainda, por se ter tratado de uma recusa isolada, não reiterada e por não se terem apurado, em concreto, os danos que da recusa advieram para a empregadora.
Decidiu, assim, julgar o despedimento ilícito.

É contra o assim decidido que a empregadora se insurge por considerar ser de manter a decisão de licitude do despedimento proferida pela 1.ª instância.

Com relevo para a decisão a proferir, ficou provado que:


1. O trabalhador foi admitido para trabalhar sobre a autoridade e direção do empregador, como motorista, no dia 2 de abril do ano 2000.
(…)
3. No âmbito da relação laboral, o trabalhador costuma ir buscar trabalhadoras para a fábrica e levá-las no final do dia de trabalho, sempre com um veículo automóvel da empresa.
4. Até data não concretamente apurada, o trabalhador fazia também a distribuição do produto acabado, tendo deixado de realizar essa tarefa com a contratação de serviços de distribuição a terceiros pelo empregador.
5. Quando fazia a distribuição do produto acabado realizava a mesma em todo o território nacional.
6. Já à data em que fazia a distribuição do produto acabado, isto é, antes de o empregador ter contratado serviços de distribuição a terceiros, não se cingiam as funções do trabalhador ao serviço de motorista, já que, nos dias em que não realizavam a distribuição, “faziam o embrulhamento do queijo e do requeijão e a par com isso faziam entregas em ...” e no “... sito na ...”, “colocavam os queijos na salga”, “selavam os queijos”.
7. O trabalhador apresentava-se na fábrica do empregador, partindo daí para a distribuição dos produtos fabricados pela mesma, “produtos acabados” (quando tinha essa função) e para a distribuição a clientes mais próximos, bem como para outras funções ligadas à condução que lhe eram adstritas.
8. O trabalhador realizava viagens, aquando da distribuição do produto acabado, que, na sua maioria, implicavam deslocações diárias com dimensão não apurada.
9. O empregador procede à recolha do leite junto dos produtores de leite, pelo menos, dos distritos da Guarda e de Viseu.
10. Tais tarefas implicam que os motoristas conduzam uma viatura da empresa, destinada à recolha de leite, até à propriedade dos pequenos produtores de leite dos referidos distritos, desçam da referida viatura de forma a ligar uma mangueira do carro do leite a um depósito já previamente instalado nos terrenos dos pequenos produtores de leite, abram a tampa do depósito e injetem a mangueira do carro do leite nesse depósito e pressionem o botão da bomba de extração do leite. Fechem a referida tampa do depósito, recolocando a mangueira no carro de transporte do leite, conduzam o carro do leite de regresso à fábrica, para que seja vazado o conteúdo do depósito num tanque.
(…)
12. Em maio de 2015, o gerente do empregador deu ordem ao trabalhador para fazer a “volta do leite” em ..., sendo que esta volta compreende as deslocações mais pequenas.
13. A volta do leite não é feita todos os dias.
14. Nos períodos de tempo em que não há leite a recolher, os trabalhadores motoristas desempenham outras tarefas, selam os queijos, arrumando os mesmos na câmara frigorífica, colocando-os em prateleiras, embrulham os queijos e o requeijão, limpam uma quinta.
15. ... tem 25,71 km2 de área e, entre a fábrica e o centro de ..., distam 25,5 km.
16. A distância a percorrer na volta do leite de ... é inferior à da zona de ....
17. A 11 de maio de 2015, sendo-lhe dada ordem para realizar a volta do leite de ..., o trabalhador recusou executar essa tarefa.
18. Em data não apurada foi ordenado, pelo gerente GG, que o trabalhador fosse realizar a designada “volta do leite”, acompanhado de DD.
19. Perante tal ordem, o trabalhador aceitou, com algumas reservas, executar essa tarefa, tendo, desde logo, dito que não ia aguentar.
20. O trabalhador esteve de baixa médica, por doença natural, pelo menos, no período de 19 de janeiro a 8 de maio de 2015.
21. A 7 de janeiro de 2015, a saúde do trabalhador ressentiu-se devido à realização daquela tarefa.
22. Fruto dos problemas laborais, o trabalhador apresenta queixas depressivas e ansiosas, sem grandes melhoras com as sucessivas medicações instituídas, tendo sido orientado para psicoterapia.

(…)
Para além destes, resultou provado também que
23 - O trabalhador informou o empregador que não iria aguentar a execução de tarefas associadas à recolha do leite; e
24  - Esta recolha é feita por caminhos que sujeitam o veículo a trepidações.

Ponderando a factualidade tida por demonstrada afigura-se-nos que, de facto, e tal como decidiram as instâncias, a conduta do autor viola o dever de realizar o trabalho com zelo e diligência e o dever de obediência a que alude o art.º 128.º, n.º 1, alíneas c) e e), do Código do Trabalho.
Com efeito, o quadro factual traçado em juízo, resulta claro que o autor recusou cumprir uma ordem que a ré, sua entidade patronal, expressamente lhe atribuiu e que consistiu em realizar a volta do leite de ..., em 11 de maio de 2015.
Não se provou que a tarefa em causa fosse de insuscetível realização e nada se apurou, em concreto, no sentido de ter existir uma qualquer circunstância efetivamente impeditiva de o autor concretizar aquela tarefa, pelo que se impõe concluir no sentido de que, com a sua apurada conduta o autor desobedeceu ilegítima e culposamente às ordens dadas pela ré.
Contudo, e pese embora o supra exposto, existem outras circunstâncias que se apuraram e que, quanto a nós, demonstram que o comportamento do autor por si só, não legitimava a ré a despedi-lo.
Na verdade, nem todo o comportamento ilícito e imputável ao trabalhador a título de culpa implica a impossibilidade de subsistência da relação de trabalho. Pelo contrário, o vínculo laboral apenas se torna inviável quando nenhuma outra sanção é capaz de sanar a crise contratual aberta pelo comportamento do trabalhador.
Ora, de acordo com o manancial fáctico provado, o comportamento do autor traduziu-se num único episódio e não lhe são conhecidos antecedentes disciplinares enquanto esteve ao serviço da ré, durante mais de 15 anos.
Acresce que não se apuraram quaisquer prejuízos na esfera patrimonial da ré, nem a alteração de relacionamento entre os seus trabalhadores.  
Para além disso, o trabalhador informou o empregador que não iria aguentar a execução de tarefas associadas à recolha do leite, sendo certo que havia estado de baixa médica até dias antes e já a sua saúde se havia ressentido em janeiro de 2015 com uma tarefa idêntica que lhe havia sido ordenada e que ele acedera a realizar.

Tais elementos de facto sempre haveriam que refletir-se favoravelmente ao autor, desaconselhando a aplicação da sanção mais gravosa, de despedimento, e justificando a aplicação de uma outra sanção de natureza conservatória.
Importa, de resto, referir que nada aponta no sentido de que, caso a ré tivesse optado por aplicar ao autor uma sanção conservatória, este não inverteria a sua conduta, interiorizando a censurabilidade do seu comportamento.
 Assim sendo, o juízo de prognose sobre a viabilidade futura da relação de trabalho deveria ser feito, in casu, em prol do trabalhador.
Deste modo, pese embora o comportamento do autor seja suscetível de integrar uma censurável infração disciplinar porque violador de deveres laborais, designadamente, os previstos nas alíneas c) e e) do art. 128º do Código do Trabalho, certo é que tal comportamento não é em face da factualidade demonstrada, valorada no seu conjunto, suscetível de afetar o âmago da relação laboral, visto não ser de molde a gerar uma quebra de confiança irremediável.

A Ré não demonstrou pois que o comportamento imputado ao Autor, no contexto em que ocorreu, revele gravidade, quer em termos de ilicitude, quer na dimensão da culpa manifestada, esta sobretudo atendendo ao estado de saúde do trabalhador dado como provado, que permita considerar o despedimento como sanção adequada à infração cometida.


IV

Em face do exposto acorda-se em negar a revista e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Junta-se sumário do acórdão.

Lisboa, 8 de março de 2018

António Leones Dantas (Relator)

Júlio Gomes

Ribeiro Cardoso

___________________
[1] Aditado pela decisão recorrida.
[2] Aditado pela decisão recorrida.
[3]Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6.ª Edição, Almedina, 2016, p. 804.
[4] Direito do Trabalho, 2009, Almedina, 14.ª Edição, p. 591.
[5] Obra citada, pp. 807 e seguinte.
[6] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[7] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[8] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080632.html.
[9] Direito do Trabalho, 13.ª Edição, Almedina, 2006, p. 564.
[10]Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 281.
[11] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 2010, 5.ª Edição, Almedina, p.p. 529 e 530.